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Canclini - O Consumo Serve Para Pensar (Consumidores e cidadãos)

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O autor do texto propõe um deslocamento da noção de consumo do senso comum, que o associa a “gastos inúteis” e “compulsões irracionais”, para uma reflexão que dê conta da sua complexidade como fenômeno que inclui relações de colaboração e transação entre pessoas. Mais do que exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas, o consumo é definido por Canclini como um “conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos”.

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Paulo Alcantasa GomesJosé Henrique Vilhena de Paiva

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CONSUMIDORES E CIDADÃOS

conflitos multlculturols

da globolizoção

Néstor Gordo Condini

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Editora UFRJ

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o consumo serve

para pensar'

UMA ZONA PRopiCIA para comprovar que o sensocomum não coincide com o bom senso é o consumo.Na linguagem corriqueira, consumir costuma serassociado a gastos inúteis e compulsões irracionais:Esta desqualificação moral e intelectual se apóia emoutros lugares comuns sobre a onipotência dos meiosde massa, que incitariam as massas a se lançaremirrefletidamente sobre os bens.

Ainda há quem justifique a pobreza alegandoque as pessoas compram televisores. videocassetese carros enquanto lhes falta casa própria. Como seexplica que famílias que não têm o que comer e vestirdurante o ano, quando chega o Natal dissipam o poucoa mais que ganharam em festas e presentes? Será queos adeptos da comunicação de massa não se dão contade que os noticiários mentem e as telenovelas distor- .cem a vida real?

Mais do que dar respostas a estas perguntas ..pode-se discutir a maneira como estão formuladas. Hojevemos os processos de consumo como algo mais com-plexo do que a relação entre meios manipuladores e

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dóceis audiências. Sabe-se que um bom número deestudos sobre comunicação de massa tem mostrado quea hegemonia cultural não se realiza mediante ações'verticais, onde os dominadores capturariam os recep-tores: entre uns e outros se reconhecem mediadorescomo a família, o bairro e o grupo de trabalho.ê Nessasanálises deixou-se também de conceber os vínculos entre'aqueles que emitem as mensagens e aqueles que asrecebem corno relações, unicamente, de dominação. Acomunicação não é eficaz se não inclui também inte-rações de colaboração e transação entre uns e outros.

Para avançar nesta linha é necessário situar osprocessos comunicacionais em um quadro conceitualmais amplo, que pode surgir das teorias e investiga-ções sobre o consumo. O que significa consumir? Qual

.. é a razão ~ para os produtores e para os consumi-dores - que faz com que o consumo se expanda e serenove incessantemente?

Rumo a uma teoriamultidisciplinar

Não é fácil responder a estas perguntas. Aindaque as pesquisas sobre o consumo tenham se multipli-cado nos últimos anos, reproduzem a segrnentação edesconexão existente entre as ciências.sociais. Temosteorias econômicas, sociológicas, psicanalíticas, psicos-sociais eantropol6gicas sobre o .que ocorre quandoconsumimos; 'há teorias literárias sobre -a recepção cteorias estéticas sobre a fortuna crítica das obras ar-tísticas. Mas não existe uma teoria sociocultural doconsumo. Tentarei reunir nestas notas as principais

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o consumo serve paro pe~sor

linhas de interpretação e assinalar os seus possíveispontos de confluência, com o objetivo de participar deuma conceitualização global do consumo onde possamser incluídos os processos de comunicação e recepçãode bens simbólicos,

Proponho partir de uma definição: o consumoé o conjunto de processos socioculturais em que serealizam a apropriação e. os usos dos produtos. Estacaracterização ajuda a enxergar os atos pelos quaisconsumimos como algo mais do que simples exercíciosde gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundoos julgamentos moralistas, ou atitudes individuais,tal como costumam ser explorados pelas pesquisasde mercado.

Na perspectiva desta _definição, o consumo écompreendido sobretudo pela sua racionalidade eco-nômica. Estudos de diversas correntes consideram oconsumo como um momento do ciclo de produção ereprodução social: é o lugar em que se completa oprocesso iniciado com a geração de produtos, onde serealiza a expansão do capital e se reproduz a força detrabalho. Sob este enfoque, não são as necessidadesou os gostos individuais que determinam o que, comoe quem consome. O modo como se planifica a distri-buição dos bens depende das grandes estruturas deadministraçãodo capital. Ao se organizar para proveralimento, habitação, transporte e diversão aos: mem--bros deurna sociedade, o si~tema econômico "pensa"como reproduzir a força de trabalho e aumentar alucratividade dos produtos. Podemos não estar de acor-do com a estratégia, com a seleção de quem consumirá

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mais ou menos, mas é inegável que as ofertas e bense a indução publicitária de sua compra não são atosarbitrários.

No entanto, a racionalidade de tipo macrossocial,definida pelos grandes agentes econômicos, não é aúnica que modela o consumo. Os estudos marxistassobre o consumo e sobre a primeira etapa da comuni-cação de massa (de 1950 a 1970) superestimaram acapacidade de determinação das empresas em relaçãoaos usuários e às audiências.! Uma teoria mais com-plexa sobre a interação entre produtores e consu-midores, entre emissores e receptores, tal como a de-senvolvem algumas correntes da antropologia e dasociologia urbana, revela que no consumo se manifestatambém uma racionalidade sôciopolittca interativa. "

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Quando vemos a proliferação de objetos ,e demarcas,'de redes de comunicação e de acesso ao consumo, apartir da perspectiva dos movimentos de consumidorese de suas demandas, percebemos que as regras -móveis - da distinção entre os grupos, da expansãoeducacional e das inovações tecnol6gicas e da modatambém intervêm nestes' processos. O consumo, dizManuel CasteIls, é um lugar onde os conflitos entreclasses, originados pela desigual participação na estru-tura produtiva, ganham continuidadeatravés da distri-buição e apropriação dos bens.' 'Consumir é participar

, de. um cenário de disputas por aquilo que asocie-, dadeproduz e pelos modos deusã-lo. A importânciaque às 'd'emandas pelo aumento do consumo e pelosalário indireto adquirem nos conflitos sindicais e areflexão crítica desenvolvida pelos agrupamentos de

, o consumo sorve pora pensar

consumidores são evidências de como o consumo épensado desde os setores populares. Se alguma vezesta questão foi território de decisões mais ou menosunilaterais, hoje é um espaço de interação, onde osprodutores e emissores não só devem seduzir os des-tinatários, mas também justificar-se racionalmente.

Percebe-se também a importância política doconsumo quando vemos políticos que detiveram a hiper-inflação na Argentina, no Brasil e no México centra-rem sua estratégia de consumo na ameaça de que umamudança de orientação econômica afetaria aqueles que.se endividaram comprando a prazo carros ou apare-lhos eletrodomésticos. "Se não querem que a inflaçãovolte, aumentem as taxas de juros e não consigamcontinuar pagando o que compraram, devem votar em

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mim novamente",' diz Carlos Menem ao tentar a re-eleição para a Presidência da Argentina. Uma fórmulaempregada na campanha eleitoral "o voto-prestação"exibe a cumplicidade que existe hoje entre consumoe cidadania.

Uma terceira linha de trabalhos, os que estudamo consumo como lugar de diferenciação e distinçãoentre as classes e os grupos, tem chamado a atençãopara os aspectos simb6licos e estéticos da raciona-/idade consumidora. Existe uma lógica na construçãodos signos de status e nas maneiras de cornunicã-los.Os_textos de Pie~~ Bourdieu, ~rjun Appaduraí eStuart

" .Ewen, entre' Outros, mostram que 'nas sociedades con-temporâneas boa parte da racionalidade das relaçõessociais se constr6i, mais do que na luta pelos meiosde produção, da disputa pela apropriação dos meios

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de distinção sirnbólica.! Há uma coerência entre os lu-gares onde os membros de uma classe e até de umafração de classe se aiimentam, estudam, habitam, pas-sam as férias, naquilo que lêem e desfrutam, em comose informam e no que transmitem aos outros. Essacoerência emerge quando a visão socioantropol6gicabusca compreender em conjunto a tais cenários. A16gica que rege a apropriação dos bens enquantoobjetos de distinção não é a da satisfação de neces-sidades, mas sim a da escassez desses bens e da im-possibilidade de que outros os possuam.

Contudo, nessas pesquisas costuma-se ver oscomportamentos de consumo como se s6 servissem paradividir. Mas se os membros de uma sociedade não com-partilhassem os sentidos dos bens, se estes s6 fossemcompreensíveis à elite. ou à maioria que os utiliza, nãoserviri~~ como instrumentos de diferenciação. Um carroimportado ou um computador com novas funções dis-tinguem os seus poucos proprietários na medida quequem não pode possuí-Ios conhece o seu significadosociocultural. Inversamente, um artesanato ou umafesta indígena cujo sentido mítico é propriedade dosque pertencem à etnia que os gerou - se tomam ele-mentos de distinção ou discriminação na medida queoutros setores da mesma sociedade se interessam porelas e entendem em algum nível seu significado. Logo,devemos admitir que no consumo se constr6i parte da _racionalidade inte,grativa e comunícatíva Be-umosociedade.

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Há uma raciona/idadepós-moderna?

Algumas correntes do pensamento pós-modernotêm chamado a atenção em uma direção oposta à queestamos sugerindo - sobre a disseminação do sentido,a dispersão dos signos e a dificuldade de estabelecerc6digos estáveis e compartilhados. Os cenários do con-sumo são invocados por esses autores como lugaresonde se manifesta com maior evidência a crise da racio-nalidade moderna e seus efeitos sobre alguns princípiosque haviam regido o desenvolvimento cultural.

Sem dúvida, Jean François Lyotard acerta quan-do identifica o esgotamento dos paradigmas que or-

. ganizavam .a racionalidade hist6rica moderna. Mas a. queda decerta~ narrativas onicornpreensivas não pode

implicar um desaparecimento do global como hori-zonte. A crítica pós-moderna serviu para repensar asformas de organização compacta do social instauradaspela modernidade (as nações, as classes etc.). É legíti-mo levar esse questionamento até a exaltação de umasuposta desordem pós-moderna, uma dispersão dossujeitos que teria sua manifestação exemplar na liber-dade dos mercados? É curioso que nesses tempos deconcentração planetária em volta do controle do mer-cado as celebrações acríticas da disseminação indivi-dual e a visão das sociedades como coexistência errá-

'. tica de' impulsos e des'ejos alcance~ tantoprestígio.. Surpreende também que o pensamento pós-

moderno seja sobretudo feito de reflexões filos6ficas,inclusive quando se trata de objetos tão concretos quan-to o desenho arquitetônico, a organização da indústria

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cultural e das interações sociais. Quando se tratade comprovar hipóteses em pesquisas empíricas, ob-servamos que nenhuma sociedade e nenhum gruposuportam por muito tempo a irrupção errática dosdesejos, nem a conseqüente incerteza de significados.Em outras palavras, precisamos pensar, ordenar aquiloque desejamos.

É proveitoso invocar aqui alguns estudos antro-pológicos sobre rituais e relacionã-los às perguntas queiniciaram este artigo sobre a suposta irracionalidadedos consumidores. Como diferenciar as formas de gastoque contribuem para a reprodução de uma sociedade,daquelas que a dissipam e desagregam? O "desper-dício" do dinheiro no consumopopular é uma auto-

. sabotagem dos pobres, simples mostra de sua incapa-cidade de se organizar para progredir?

Encontro uma chave para responder a estas per-guntas na freqüência com que esses gastos suntuosos,"dispendiosos", se associam a rituais e celebrações.Não só porque uma data ou o aniversário do santopadroeiro justifiquem moral ou religiosamente o gasto,mas também porque neles ocorre algo através do quala sociedade busca se organizar racionalmente.

Por meio dos rituais, dizem Mary Douglas eBaron Isherwood, os grupos selecionam. e fixam ~graças a acordos coletivos -:-05 significados que re-gulam a sua vida. Os rituais servem para "conter ocurso d?s significados" e tornar explícitas as defini-ções públicas do que o consenso geral julga valioso.Os rituais eficazes são os que utilizam objetos mate-riais para estabelecer o sentido e as práticas que os

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preservam. Quanto mais custosos sejam esses bens,mais forte será o investimento afetivo e a ritualizàçãoque fixa os significados a eles associados. Por isso,eles definem muitos dos bens que são consumidos co-mo "acessórios rituais", e vêem o consumo como umprocesso ritual cuja função primária consiste em "darsentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos".'

Certas condutas ansiosas e obsessivas de con-sumo podem ter origem numa insatisfação profunda,segundo analisam muitos psicólogos. Mas em um sen-tido mais radical, o consumo se liga, de outro modo,com a insatisfação que o fluxo errático dos signifi-

.cados engendra: Comprar objetos, pendurá-I os ou dis-tribuí-los pela casa, assínalar-lhes um lugar em. umaordem, atribuir-lhes funções na comunicação com osoutros, são os recursos para se pensar o próprio corpo,a instável ordem social e as interações incertas com osdemais. Consumir é tornar mais inteligível um mundoonde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteispara a expansão do mercado e a reprodução da forçade trabalho, para nos distinguirmos dos demais e noscomunicarmos com eles,· como afirmam Douglas eIsherwood, "as mercadorias servem para pensar".'

É neste jogo entre desejos e estruturas que asmercadorias e o consumo servem também para orde-

.nar politicamente cada sociedade. O consumo é umprocesso em que os desejos se transformam em de-mandas e em atos socialmente regulados. Por que arte-sãos indígenas ou comerciantes populares que enrique-cem pela repercussão afortunada de seu trabalho, porque tantos políticos e líderes sindicais que acumulam

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dinheiro por meio da corrupção continuam vivendo embairros populares, controlam seus gastos e tentam "nãoaparecer"? Porque acham mais interessante continuarpertencendo a seus grupos originários (e às vezes pre-cisam disso para manter seu poder) do que exercer aostentação a que a sua prosperidade os impulsiona.

O estudo de Alfred Gell sobre os muria gondosda índias propõe uma linha sutil para explicar estepapel regulador do consumo. Os muria que, graças àsmudanças da economia tribal durante o último século,ficaram mais ricos do que seus vizinhos, mantêm um'estilo simples de vida que Appadurai, invertendo a

d " • "'expressão de Veblen, chama e avareza conspicua .Gastam em bens com certa prodigalidade, mas com acondição. de que representem valores compartilhados,quenãoalterema homogeneidade suntuosa.. Como observei em povos indígenas do México,

a introdução de objetos exteriores modernos é aceitadesde que possam ser assimilados pela lógica comuni-tária. O crescimento da renda, a expansão e variedadedas' ofertas de mercado, assim como a capacidade téc-nica para se apropriarem dos novos bens e mensagens,graças ao acesso a níveis de educação mais elevados,não bastam para fazer com que os membros de umgrupo se atirem sobre as novidades. 9Aesejo de pos-suir "o novo" não atua como algo irracional ou inde-pendente da cultura coletiva a. que se pertence.' .'

.Aindá em situações plenamente modernas,' oconsumo nã~ é algo "privado, atomizado e passivo",sustenta Appadurai, mas sim "eminentemente social,correlativo e ativo", subordinado a um certo controle

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o consumo servo para pensar

político das elites. O gosto dos setores hegemônicostem esta função de "funil", a partir do qual vão sendoselecionadas as ofertas exteriores e fornecendo mo-delo~ político-culturais para administrar ,as tensõesentre o próprio e o alheio.

Nos estudos sobre consumo cultural no México'que mencionarei mais adiante, descobrimos. que a faltade interesse de setores populares em exposições de arte,teatro ou cinema experimentais não se deve apenas,ao fraco capital simbólico de que dispõe para apreciar'estas mensagens, mas também à fidelidade com osgrupos em que se insere. Dentro da cidade, são seuscontextos familiares, de bairro e de trabalho, os quecontrolam a homogeneidade do consumo, os desviosnos gostos e nos gastos .. Numa escala mais ampla,' oque' se entende como cultura nacional continua ser-vindo de contexto para seleção do exógeno.

Comunidades fransnacionaisde consumidores

Contudo, estas comunidades de pertencimento econtrole estão se reestruturando. A que conjunto aparticipação numa sociedade construfda predominan-temente pelos processos de globalizados de consumonos faz pertencer? Vivemos um tempo de fraturas e he-

. terogeneidade, de segrnentações dentro d~ cada nação .edecomunicações fluídas com asordenstra~snacio':nais da informação, da moda e do saber. Em meio aesta heterogeneidade encontramos códigos que nos uni-ficam, ou que ao menos permitem que nos entendamos.Mas esses códigos compartilhados são cada vez menos

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consumidores e cidedãos

os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos.Essas velhas unidades, na medida que subsistem, pa-recem se reformular como pactos móveis de leiturados bens e das mensagens. Uma nação, por exemplo,a esta altura é pouco definida pelos limites territoriais -ou por sua história política. Sobrevive melhor .cornouma comunidade hermenêutica de consumidores, cujoshábitos tradicionais fazem com que se relacione de ummodo peculiar com os objetos e a informação circulantenas redes internacionais. Ao mesmo tempo encontra-mos comunidades internacionais de consumidores - jámencionamos as de jovens e de telespectadores ~ quedão sentido de pertencimento quando se diluem aslealdades nacionais.

, Corno Os acordos entreprodutores, instituições,mercados e receptores - que constituem e renovam ospactos de leitura periodicamente - se fazem atravésdessas redes internacionais, o setor hegemônico deuma nação tem mais afinidades com aquele de outrado que com os setores subalternos da própria. Há vinteanos os seguidores da teoria da dependência reagiamdiante das primeiras manifestações deste processo acu-sando a burguesia de falta de fidelidade aos interessesnacionais. E, naturalmente, o caráter nacional dos in-teresses era definido a partir de tradições "autênticas"do povo. Hoje sabemos que essa autentic,idade é ilusó-ria, pois o sentido "próprio" de um repertório de objetoséarbitradamehtedelimitâdo e reinterpretado em pro-cessos hist6ricos híbridos. Mas, além disso, a misturade ingrédientes de origem "autóctone" e "estrangeira"é percebida, de forma análoga, no consumo dos setores

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o consumo serve pare penser

populares, nos artesãos camponeses que adaptam seussaberes arcaicos para interagir com turistas, nos tra-balhadores que se viram para adaptar sua cultura ope-rária às novas tecnologias, 'mantendo suas crençasantigas e locais. Várias décadas de construção de sírn-bolos transnacionais criaram o que Re~ato Ortiz de-'nomina uma "cultura internacional-popular", com umamemória coletiva feita com fragmentos de diferentesnações." Sem deixar de estar inscritos na memórianacional, os consumidores populares são capazes deler as citações de um imaginário multilocalizado quea televisão é a publicidade reúnem: os ídolos do cine-ma hollywoodiano e da música pop, os logotiposçlejeans e cartões de crédito, os her6is do esporte de váriospaísese os do próprio que jogam em outro compõemum repertório de signos constantemente disponível.Marilyn Monroe e os animais jurássicos, Che Guevarae a queda do muro, o refrigerante mais bebido no mun-do e Tiny Toon podem ser citados ou insinuados porqualquer desenhista de publicidade internacional con-fiando em que sua mensagem terá sentido ainda paraaqueles que nunca saíram do seu país.

É preciso, pois; averiguar, como se reestruturamas identidades e as alianças quando a comunidade na-cional se debilita, quando a participação segmentadano consumo --,- que se toma o principal procedimento

, de identificação '~solidariza -as elites de cada paísatravés de um circuito transnacional, e, de outro lado,os setores populares? Ao estudar o consumo culturalno ,México 11, descobrimos que a separação entre ,gru-pos hegemônicos e subalternos já não se apresenta

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principalmente como oposição entre o nativo e o im-portado, ou entre o tradicional e o moderno, mas comoadesão diferencial a subsistemas culturais de diversacomplexidade e capacidade de inovação: enquanto al-guns escutam Santana, Sting e Carlos Fuentes, outrospreferem Julio Iglesias, Alejandra Guzmán e as teleno-velas venezuelanas.

Esta cisão não se produz unicamente no con-sumo ligado ao entretenimento. Segmenta também ossetores sociais em relação aos bens estratégicos neces-·sários para que se situem no mundo contemporâneo esejam capazes de tomar decisões. Ao mesmo tempo emque o processo de modernização tecnológica da in-dústria e dos serviços exige mão-de-obra mais qualifi-cada cresce a evasão escolar, limitando-se o acesso

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dos setores médios (e, obviamente, das maioriaspo-pulares) à informação mais nova. O conhecimento dosdados e dos instrumentos que habilitam ao trabalhoautônomo ou criativo se reduz aos que podem as-sinar serviços de informática e redes exclusivas de te-levisão (antena parabólica, TV a cabo, estações trans-missoras de canais metropolitanos). Para o resto daspessoas, se oferece um modelo de comunicação demassa, concentrado em grandes monopólios, que senutre da programação standard norte-americana, alémde produtos repeti tivos, de entretenimento light, gera-dos em cada país. " " "" Colcca-se.vpois, dé outra maneira .a crítica ao

consumo como lugar irrefletido e de gastos inúteis. Oque ocorre é que a reorganização transnacional dossistemas simbólicos, feita sob as regras neoliberais de

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máxima rentabilidade dos bens de massa, gerando aconcentração da cultura que confere a capacidade dedecisão em elites selecionadas, exclui as maiorias dascorrentes mais criativas da cultura contemporânea. Nãoé a estrutura do meio (televisão, rádio ou vídeo) acausa do achatamento cultural e da desativação polí-tica: as possibilidades de interação e de promover areflexão crítica destes instrumentos têm sido muitasvezes demonstradas, ainda que em microexperiênciasde baixa eficácia para as massas. Ta~poucó deve-seatribuir apenas à diminuição da vida pública e ao retirofamiliar da cultura eletrônica a domicílio a explicaçãodo desinteresse pela política: não obstante, esta trans-formação das relações entre o público e o privado noCOnsumo cultural.co~idiano representa uma mudançabásica das condições em que deverá se exercer umnovo tipo de responsabilidade cívica.

Se o consumo tornou-se um lugar' onde fre-, qüentemente é difícil pensar, é pela liberação do seucenário ao jogo pretensamente livre, ou. seja, feroz,entre as forças do mercado. Para que se possa articu-lar o consumo com um exercício refletido da cidadania,é necessário que se reúnam ao menos estes requisitos:a) uma oferta vasta e diversificada de bens e mensa-gens representativos da variedade internacional dosmercados, de acesso fácil e equitativo para as maio-rias; blinformação multidirecional e confiável a respeito'da qualidade dos produtos, cujo controle seja efetiva-mente exercido por parte dos consumidores, capazesde refutar as pretensões e seduções da propaganda; c)participação democrática dos principais setores da

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sociedade civil nas decisões de ordem material, simbó-lica, jurídica e política em que se organizam osconsumos: desde o controle de qualidade dos alimentosaté as concessões de freqüências radiais e ·televisivas,desde o julgamento dos especuladores que escondemprodutos de primeira necessidade até os que adrni-nistram informações estratégicas para a tomada de

decisões.Estas ações, políticas, pelas quais os consu-

midores ascendem à condição de cidadãos, implicamnuma concepção do mercado não como simples lugarde troca de mercadorias, mas como parte de interaçõessocioculturais mais complexas. Da mesma maneira, oconsumo é visto não como a mera possessão individual

'. de objetos isolados mascomo a apropriação coletiva,em rei ações de solidariedade e distinção com outros,de bens que proporcionam satisfações biológicas e sim-

.bélicas, que servem para enviar e receber mensagens.As teorias. sobre o consumo evocadas neste capítulomostram, ao serem lidas de forma complementar, queo valo~ mercantil não é alguma coisa contida natura-lisiícamente nos objetos, mas é resultante das interaçõessocioculturais em que os homens os usam. O caráterabstrato dos intercâmbios mercantis, acentuado agorapela distância espacial e tecnológica entre produtorese consumidores, levou a crer na autonomia das merca-

,dórias e no caráter ínexorãvel, alheio aos Objetos; dasleis objetivas que regulariam os vínculos entre ofertae demanda. O conf~onto das sociedades modernas comas "arcaicas" permite ver que em todas as sociedadesos bens exercem muitas funções, e que a mercantil é

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apenas uma delas. Nós homens intercambiamos obje-tos para satisfazer necessidades que fixamos cultural-mente, para integrarmo-nos com outros e para nos dis-tinguirmos de longe, para realizar desejos e para pensarnossa situação no mundo, para controlar o fluxo erráticodos desejos e dar-lhe constância ou segurança em ins-tituições e rituais. Dentro desta multiplicidade de açõese interações, os objetos têm uma vida complicada. Emcerta fase são apenas "candidatos a mercadorias=P,em outra passam por uma etapa propriamente mer-cantil e em seguida podem perder essa característicae ganhar outra. Um exemplo: as máscaras feitas porindígenas para uma cerimônia, logo vendidas a umconsumidor moderno e finalmente instaladas em apar-

·tamentos Urbanos ou museus, aonde se esquece seuvalor econômico. Outro: uma canção produzida pormotivações puramente estéticas logo alcança uma re-percussão massiva e lucros como disco, e, finalmente,apropriada e modificada por um movimento político,se toma um recurso de identificação e mobilizaçãocoletivas. Estas biografias cambiantes das coisas edas mensagens nos levam a pensar no caráter mer-cantil dos bens como oportunidades e riscos de seu de-sempenho. Podemos atuar como consumidores nos si-tuando somente em UJTl dos processos de ínteração -

. o que o mercado regula - e também podemos exercercomo 'Cidadãos uma reflexão' e uma experimentaçãomais ampla que leve em conta as múltiplas poten-cialidades dos objetos, que aproveite seu "virtuosísmoserniótico'"! nos variados contextos em que as coisasnos permitem encontrar com as pessoas.

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Propor estas questões implica recolocar a ques-tão do público. O descrédito dos Estados como admi-nistradores de áreas básicas da produção e infor-mação, assim como a não-credibilidade dos partidos(incluídos os de oposição), diminuiu os espaços ondeo interesse público podia se fazer presente, onde deveser limitada e arbitrada a luta-de outro modo selva-gem - entre os poderes mercantis privados. Começama surgir em alguns países - através da figura doombudsman, de comissões de direitos humanos de ins-tituições e periódicos independentes - instâncias não-governamentais e apartidárias que permitem desem-baraçar a necessidade de fazer valer o público face àdecadência das burocracias' estatais, Algunsconsumi-dores querem ser cidadãos.

Depois da década perdida para a América La-tina, que foi a dos oitenta, durante a qual os Estadoscederam o controle da economia material e simbólicaàs empresas, está claro aonde a privatização sem limi-tes conduz: descapitalização nacional, subconsumo dasmaiorias, desemprego, empobrecimento da oferta cul-tural. Só através da reconquista criativa dos espaçospúblicos, do interesse pelo público, o consumo po-derá ser um lugar de valor cognitivo, útil para pensare agir significativa e renovadoramente na vida social.Vincular o consumo com a cidadania requer ensaiar

. um reposicionamento do mercado na sociedade, tentar .a reconq~ista imaginativa dos espaços públicos, dointeresse pelo público. Assim o consumo se mostrarácomo um lugar de valor cognitivo, útil para pensar eatuar significativa e renovadoramente, na vida social.

o consumo serve poro pensar

Notas

. 1. Este capítulo é uma reelaboração ampliada doartigo que, com o mesmo título, publiquei na revista Di6-logos de ia Comunicaci6n, Lima, n. 30, jun.l1991.

2. Ver, entre outras, as obras de LULL, James (ed.).World Families Watch Television, Newbury-California:Sage, 1988; de BARBERO,Jésus Martín. De los medias a iasmediaciones. México': Gustavo Gilí,: 1987; e de OROZCOGui11ermo (compilador). Hablan los televide~tes. ESludiO:de recepciân en varios paises. México: UniversidadIberoamericana, 1992.

3. Um exemplo: os textos de TERRAIL, Jean-Pierre,PRETECEI!-LE,Desmond, GREVET, Patrice.Necesidades y con-~umo. México: Grijalbo, 1977. .' .

4. CASTElLS, Manuel. La Cuestiôn urbana. México:Siglo XXI, 1974; apêndice à segunda edição.

5. BOURDIEU,Pierre. La Disrinci6n. Madrid: Taurus,1988; ApPADURAl,Arjun (ed.). La Vida social de Ias cosas.México: Grijalbo, 1991; EWEN, Stuart. Todas Ias imâgenes 6S.del consumismo. México: Grijalbo-CNCA, 1991. .

6. DOUGtAs, Mary, ISHERWOOD,Baron. El Mundo delos bienes. Hacia una antropología dei consumo. México:Grijalbo-CNCA, 1990. p. 80.

7. Idem, p. 77.

8.. GEi.L. Alfred. Los Recién !legados ál mundo d~los bienes:' el consumo entre Tos gondos muria:-'In:ApPADURAl, A. Op. cit., p. 143-175.

9. APPADURAI,A. Op.cit., p. 47.

10. ORTIZ, Renato. Op. cit., capo IV.