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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 31 Editorial Franciscana BRAGA - 2007 1

CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · 1 H. DENZINGER-P. HÜNERMANN, El magisterio de la Eglesia. Enchiridion symbo- ... rio da Imaculada Conceição fosse reconhecido pela Igreja

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

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Editorial Franciscana BRAGA - 2007

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Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 31 - 2007 Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos 1. Fr. Gregorio P. de Guereño ofm — O beato Duns Escoto e a Imaculada Conceição 2. Fr.David de Azevedo ofm — O Evangelho no coração da vida franciscana 3. Fr. Amaral Bernardo Amaral — Matriz estruturante da cultura tradicional africana

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I — Estudos

O BEATO DUNS ESCOTO E A IMACULADA CONCEIÇÃO por Gregorio P. de Guereño ofm

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O BEATO DUNS ESCOTO E A IMACULADA CONCEIÇÃO

No dia 8 de Dezembro de 1854, há pouco mais de cento e cinquenta anos, Pio IX proclamou o dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa, com a bula Ineffabilis Deus, que se inicia com as palavras: “Deis inefável (...) determinou, no mistério escondido desde toda a eternidade, culminar a primeira obra da sua bondade por meio da encarnação do Verbo (...) escolheu e preparou para seu Filho unigénito, desde o princípio e antes de todos os séculos, uma mãe da qual haveria de nascer, feito carne, na plenitude dos tempos, amando-a mais que todas as outras criaturas, a tal ponto que nela pôs, de maneira especial, todas as suas complacências (...).”1

Segundo a bula, Deus inefável decide realizar, desde toda a eternidade, a

primeira e grande obra fruto do seu amor e da sua bondade: a encarnação do Verbo, o Filho Unigénito do Pai. Ao mesmo tempo, escolhe e prepara para seu Filho uma mãe da qual haveria de nascer na plenitude dos tempos. A Ela, junta-mente com o fruto das suas entranhas, Deus ama sobre todas as criaturas, pondo nela toda a sua complacência.

O Verbo encarnado é a summum opus Dei, a obra mais perfeita de Deus ad extra, a obra mestra da criação. Maria está unida por vontade de Deus ao Verbo encarnado. Desta maneira, a bula Ineffabilis Deus é de características estritamen-te teológicas. E Maria aparece totalmente relacionada com Ele e é n’Ele que tem todo o seu sentido.

1 H. DENZINGER-P. HÜNERMANN, El magisterio de la Eglesia. Enchiridion symbo-lorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum (=DH). Versão castelhana da 38ª edição alemã (Barcelona 2000) 2800. Para preparar a definição da Imaculada Conceição de Maria, Pio IX criou, a 1 de Junho de 1848, uma comissão de teólogos. A 2 de Fevereiro de 1849 enviou a encíclica Ubi primum ao episcopado católico para per-guntar a opinião acerca da definição. O Papa fez tal consulta seguindo o conselho de A. Rosmini. Dos 603 bispos consultados, 546 declararam-se favoráveis à definição. Depois de publicar os resultados, Pio IX cuidou que se preparassem vários esquemas. O Papa teve um intervenção decisiva na redacção final da bula; cf. DH, introdução à bula Inef-fabilis Deus, p. 732. A devoção à Imaculada Conceição teve grande incremento a partir do breve Sollicitudo omnium ecclesiarum, publicado por Alexandre VIII a 8 de Dezem-bro de 1661.

O Beato João Duns Escoto, de quem celebramos, em 2008, os 700 anos da sua morte, foi o teólogo que mais se empenhou na defesa do dogma da Imaculada Concei-ção. O artigo que agora publicamos, apareceu na revista Fraternidade provincial. Província Misionera de San Francisco Solano del Perú, nº 263, p. 84-97.

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Comemoramos há pouco os 150 anos da definição do dogma da Imaculada e estamos a comemorar os 700 anos da morte de Duns Escoto. A celebração des-tas efemérides é significativa para todos os membros da Igreja católica e diz res-peito a todos e a cada um, na sua vida pessoal e comunitária. Mas afecta de uma maneira especial e de forma mais comprometedora a Ordem Franciscana, que sempre venerou Maria como sua padroeira e lhe tributou ao longo dos séculos a honra que Maria merece como Mãe de Deus e Mãe Imaculada, fazendo que essa mesma veneração se estendesse a todo o povo cristão, até conseguir que o misté-rio da Imaculada Conceição fosse reconhecido pela Igreja de forma oficial, isto é, pela declaração do dogma. Depois de pôr em relevo a excelência de Maria e de apresentar o sentido do dogma, Pio IX declarava na já citada bula: “Declara-mos, proclamamos e definimos que a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria foi preservada imune de toda a mancha da culpa original desde o primeiro instante da sua concepção, por um privilégio singular de Deus omnipo-tente, em atenção aos méritos de Jesus Cristo salvador do género humano, foi revelado por Deus e deve ser, por isso, firme e constantemente acreditado por todos os fiéis.”2

No título deste trabalho, mencionamos o nome do Beato Duns Escoto, ofm,

porque ele figura na história como o Doutor e promotor eminente e decisivo da declaração definitiva da doutrina referente à Imaculada Conceição de Maria. Na realidade tal doutrina é fruto maduro da experiência de vida da pessoa de Duns Escoto, da história que o precede e da história que a ele se segue. Por sua vez, a experiência de vida dos cristãos a respeito do tema é fonte de novas reflexões e de estudos que esclarecem o ser e o significado de Maria na relação com Cristo e com a história de salvação. Por isso trataremos de dar relevo à figura de Duns Escoto na história da Igreja e da teologia, assim como na devoção e culto que o povo de Deus presta a Maria, a Mãe Imaculada.

Para apresentar uma visão panorâmica de matiz propriamente franciscana,

trataremos muito sucintamente os seguintes pontos: o sentir da fé do povo de Deus (sensus fidei) na tradição referente a Maria Imaculada; a relação especial de Francisco com Maria, que marcou indelevelmente toda a tradição franciscana; o significado do beato Duns Escoto como doutor da Imaculada Conceição; a perseverança dos franciscanos no caminho traçado por Francisco; e finalmente, alguns elementos que podem formar parte do cariz cristão e franciscano respei-tante a Maria na actualidade.

O sentir do Povo de Deus:

A influência decisiva da fé popular

2 DH 2803

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no dogma Imaculada Conceição Este é um aspecto ao qual nem sempre se dá o devido relevo. Esta é a razão

pela qual tanto o significado da Imaculada Conceição de Maria, como outras verdades da fé procedentes da Escritura, não se integram suficientemente na existência quotidiana e real dos cristãos; esta é a razão porque, na realidade, estas verdades pouco ou nada interferem na pessoa concreta; por isso a vida quo-tidiana dos cristãos não mudaria em nada se estas verdades não fossem professa-das. Tais verdades são consideradas como algo alheio ao todo da vida; a relação entre as pessoas e tais verdades é só passageira, como vinda do céu e mantida em terreno abstracto, de tal forma que não comprometa a pessoa nem a comunidade cristã.

Pois bem, a verdade sobre Maria – concebida “sem pecado original”, a Imaculada Conceição – tem a sua base, evidentemente, na Escritura; mas foi o povo de Deus, o povo cristão, o povo crente que teve a intuição, a capacidade e a coragem para, adiantando-se à reflexão teológica, sintonizar com a verdade e com o facto da Imaculada Conceição de Maria. Diz um conhecido mariólogo: “Um facto claro deduz-se da história do dogma da Imaculada Conceição: que a intuição do sentir cristão popular a favor do privilégio mariano se antecipou à teologia que durante muito tempo titubeou entre ser a favor ou contra o dogma, e mesmo ao magistério, que só em 1854 se pronunciou definitivamente.”3

Na realidade, no caso do culto a Maria Imaculada, a lex orandi precedeu a

lex credendi. A Igreja, primeiro, favoreceu o culto; depois esclareceu a doutrina; e, finalmente declarou o dogma. A própria bula Ineffabilis Deus sublinha estes passos.4 De facto, no Ocidente, a reflexão teológica começou com a introdução da festa da Imaculada na Igreja de Lião, sobretudo porque S. Bernardo se opôs a esta celebração, formando uma corrente de pensamento à qual se opôs o beato Duns Escoto, líder da corrente contrária.

Não foi por acaso que o concílio Vaticano II, confirmando a grande tradi-

ção cristã, insistiu no valor insubstituível do Povo de Deus em toda a acção e doutrina da Igreja ao assinalar que “a universalidade dos fiéis, que possui a unção do Espírito Santo (cf. 1Jo 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé, e mani-festa esta propriedade particular através do sentido sobrenatural da fé do povo inteiro (LG 12). É, pois, o Povo de Deus, quem, sob a inspiração e guia do Espí-

3 S. DE FIORES, “Immacolata”, em S. DE FIORES-S. MEO (a cura), Nuovo Dizionario di Mariologia (Torino) 1986) 681-682.

4 Cf. R. ROSINI, “Il culto dell’Immacolata nel pensiero di Giovanni Duns Scoto”, em a obra colectiva De culto mariano saeculis XII-XV. Acta Congressus Mariologicima-riani internationalis, Romae 1975 celebrat. Vol V (Roma 1981) 1-29.

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rito Santo, foi aceitando paulatina e seguramente o valor e o significado de Maria na história. No campo da Imaculada Conceição os testemunhos, sempre fundamentados na Escritura, aparecem já nos livros apócrifos do século II, de uma maneira especial o Protoevangelho de S. Tiago, chegando até à Idade Média, através de autores e grandes personalidades, e pelos concílios que manti-veram uma sábia e eloquente reserva ao falar do pecado original, sempre que se fazia alusão a Maria.

Cheia de graça, Mãe de Deus, nossa Mãe, Virgem Mãe, causa da nossa sal-

vação, nossa advogada e muitas outras expressões cujo conteúdo e riqueza apa-recem primeiro nos Padres da Igreja tais como em Epifánio, Efrém, Sofrónio, Germanod e Constantinopla, André de Creta, João Damasceno, e, mais tarde, teólogos medievais como Edmero e Guilherme de Ware, antes de Duns Escoto. Entre os Papas que mais se distinguiram neste campo, há que mencionar Sisto IV, Pio V, Clemente VII , Gregório XV, Alexandre VII, Clemente XI.5 Todos compreenderam lentamente que a dignidade da Mãe de Deus não podia estar refém de algum pecado; que o facto de ser corredentora exigia a imunidade da mancha original, a fim de merecer, com seu Filho, poder libertar-nos da culpa.

Maria é exaltada pela tradição cristã como a “toda santa”, a mulher que,

deve ser excluída da mancha do pecado original; Maria ocupa outro lugar, um lugar privilegiado, por força do amor de Deus que a predestinou para ser Mãe de seu Filho, Jesus Cristo. A relação primordial de Maria com Cristo é um facto aceite pelo povo de Deus; este facto ganhará relevância pouco a pouco; à medida que amadurece a intuição, amadurece também a reflexão teológica, Não é possí-vel apresentar aqui uma síntese, mesmo minimamente resumida, dos passos que se deram ao longo da história. No entanto, é possível salientar que a intuição do povo de Deus, guiada pelo Espírito Santo, fez amadurecer também a relação com Maria até se chegar a exprimir de maneira clara e concreta na celebração da festa da Imaculada Conceição.

A força irresistível deste sensus fidelium o “sentir dos fiéis” que lentamente

se faz consensus, a “consciência comum”, chocou, não obstante, com a incom-preensão e a rejeição da parte de mentes certamente privilegiadas e habituadas à

5 Não temos receio em assinalar a Venerável Madre Maria de Jesus de Agreda (1602-1665), monja concepcionista, como a mulher verdadeiramente dedicada à causa immaculista, sobretudo através da sua obra maior Mistica Ciudad de Dios. Não só foi uma acérrima defensora do privilégio concedido por Deus a Maria, mas também difun-diu a doutrina da Imaculada com a obra citada: juntou argumentos vindos da revelação bíblica, misticamente assimilados, com uma visão nitidamente sapiencial e intuitiva do tema. Compreende-se assim, a importância da festa da Imaculada em Agreda e nos res-tantes mosteiros concepcionistas, depois da bula Ineffabilis Deus.

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mais profunda reflexão teológica e cujo papel foi decisivo na Igreja. Mas, afor-tunadamente, a sua influência não foi decisiva por muito tempo. A verdade (pre-sente no sensus fidelium) foi-se impondo pouco a pouco ao longo das gerações.

Podemos aplicar aqui as palavras de beato João XXIII dirigidas a todo o

Povo de Deus sobre o culto à Virgem, no sínodo romano de 1960: “Desejamos que vos mantenhais no que há de mais simples e de mais antigo na prática da Igreja.” A doutrina da Imaculada Conceição, como também a da Assunção de Maria, são casos típicos que mostram a necessidade que a teologia tem, se deseja ser verdadeiramente eclesial, do alimento da experiência religiosa da gente sim-ples. Parte dessa experiência religiosa, constituída pela celebração litúrgica, na qual Maria sempre teve um lugar importante, contribui para clarificar o signifi-cado de Maria na Igreja.

Certamente, que na Igreja, este sensus fidelium caminhou sempre de mãos

dadas com a reflexão teológica sobre Cristo: questões trinitárias e cristológicas; sobre a graça e o pecado original; questões antropológicas; e, no geral, sobre o desenvolvimento da vida cristã, incluindo a questão escatológica. Toda esta pro-blemática não era alheia aos Padres da Igreja, particularmente a partir do século IV, como foi o caso de Epifánio e Agostinho.

O Padre Carlos Balic, ofm, grande estudioso e grande divulgador da dou-

trina de Escoto, especialmente no que se refere a Cristo e Maria, insinua que, para o Doutor da Imaculada, o sensus fidelium foi o ponto de partida para a sua doutrina acerca de Maria Imaculada; disse-o com estas palavras: “A verdade da Imaculada Conceição já estava no interior da alma cristã antes de Escoto. O povo cristão intuía que a Mãe do Senhor devia ter pela graça o que o Filho tinha por natureza; por conseguinte, não podia sentir, crer ou pensar que a Mãe de Deus estivesse sujeita ao pecado original. Ao contrário da atitude dos mestres medievais, que não estavam dispostos a aceitar esta verdade. Baseando-se em princípios teológicos como a universalidade do pecado e da redenção e de prin-cípios filosóficos que diziam que a Virgem não podia ser santificada no primeiro instante da sua concepção, viam-se induzidos a concluir que Maria não teria sido concebida sem pecado.”6

Em geral, podemos afirmar que os factores principais que influíram (no

Ocidente) na definição do dogma mariano da Imaculada Conceição (e também da Assunção), à semelhança da problemática teológica acima assinalada, foram os seguintes: a) a necessidade de professar a verdade da fé para glória de Deus e

6 R. ZAVALLONI, Giovanni Duns Scoto, maestro di vita e di pensiero (Bolonha 1992) 104, nº 13.

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para a salvação dos homens; b) a necessidade de clarificar o sentido do homem e da sua redenção através duma ideia verdadeira de concepção; c) a referência a Maria como exemplo espiritual-humano-moral para toda a humanidade; d) con-sequências provindas da experiência do culto dado à Mãe de Deus.7

São Francisco de Assis: o “cavalheiro” e paladino de Maria Não há dúvida que Francisco faz parte dessa grande multidão de fiéis que

se deixaram conduzir pelo Espírito Santo e dos que captam com a mais fina intuição a direcção a seguir.

A devoção de Francisco a Maria é sólida, bem fundamentada e bem centra-

da na Trindade e em Jesus Cristo. Só nesta perspectiva é capaz de atribuir a Maria as maiores prerrogativas e exclamar: “Salve, Senhora santa Rainha, santa Mãe de Deus, Maria, virgem convertida em templo, e eleita pelo santíssimo Pai do céu, consagrada por Ele como seu santíssimo amado Filho e o Espírito San-to, que teve e tem toda a plenitude da graça e do bem! Salve, palácio de Deus! Salve, tabernáculo de Deus! Salve, casa de Deus! Salve, vestidura de Deus! Sal-ve, Mãe de Deus!”8

Comentando a Saudação à bem-aventurada Virgem Maria, diz S. Lopez:

“Todos estes nomes, nada abstractos, que na inigualável admiração de Francisco a Maria, só oferecem a sua total grandeza se os contemplarmos a partir dos títu-los citados em último lugar: os títulos de serva (escrava) e mãe. Ao dizer serva, Francisco dizia acolhimento, espaço vazio, pobreza afinal... Ao dizer mãe, Fran-cisco proclamava toda a sua grandeza e graça, assinalando além disso o seu lugar e a necessidade de Maria na história de salvação: Deu ao Filho de Deus a carne da nossa humanidade e fragilidade.”9 Com razão afirma Celano que Francisco “Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus... Em sua honra cantava louvores especiais, erguia-lhe súplicas, consagrava-lhe afectos, tantos e tais que nenhuma língua humana os conseguiria exprimir”.10

7 Cf. B. FORTE, María, la donna icona del Misteri. Saggio di mariologia simbolico-narrativa (Torino 1989) 128.

8 Cf. Fontes Franciscanas I (FFI), 3ª edição, Editorial Franciscana, Braga, 2005, p.78. Na primeira antífona do Ofício da Paixão diz-se: “Santa Virgem Maria, não veio a este mundo mulher semelhante a ti, filha e serva do rei altíssimo, o Pai celeste, mãe do nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo”. Cf. FFI, p. 62.

9 S. LOPEZ, “Saludo a la Bienaventurada Virgen María”, em J. A. Guerra (ed.), San Francisco de Asís. Escritos, 45.

10 2C 198, 1.

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Bastaria examinar, uma por uma, as prerrogativas incluídas nesta oração, para nos darmos conta de que Francisco sabe ir até à fonte donde provém todo o bem de Maria.11 Basta assinalar que a tradição franciscana resumiu o mais exce-lente referente a Maria naquelas expressões que repetimos na “coroa seráfica”: Maria, filha de Deus Pai; Maria, Mãe de Deus Filho; Maria, esposa de Deus Espírito Santo; Maria, templo e sacrário da santíssima Trindade.

Maria, filha e serva do eterno Pai: relação filial de Maria com Deus Pai;

relação confiada e amorosa, tão forte, capaz de acender em Maria a força do fiat que a manterá fiel e firme ao longo de toda a sua vida. Maria, Mãe de Deus Filho: Mãe do Verbo eterno; Mãe entranhável no sentido mais forte da palavra, pois Deus mesmo fez que as puríssimas entranhas de Maria concebessem a Cris-to, a quem está unida substancialmente a humanidade com a divindade, com o Verbo de Deus desde o primeiro instante da sua concepção. Por isso mesmo é nossa mãe e nós somos seus filhos. Maria, esposa de Deus Espírito Santo: Se dizemos que toda a alma cristã é esposa do Espírito Santo, com muito maior for-ça se deve afirmar isso de Maria; pois ela concebeu por obra do Espírito Santo. O fiat de Maria converteu-a em esposa do Espírito Santo. Assim, Maria é templo e sacrário da Santíssima Trindade.

Templo e sacrário da Santíssima Trindade, porque “no mistério da anuncia-

ção se realizam duas missões divinas: aquela do Espírito que desceu sobre Maria e aquela do Verbo que, com o consentimento de Maria, começou a formar-se homem no seu seio. Aqui se estabelecem relações que envolvem a SS. Trindade: o Pai não fica excluído, porque é Ele que envia o Filho e o Espírito e neles man-tém a sua presença misteriosa”.12

A mesma bula Ineffabilis Deus, imediatamente antes da declaração e defi-

nição do dogma, assegura que tal definição acontece “para honra da santa e indi-visa Trindade, para glória e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da fé católica e desenvolvimento da religião cristã”.13

Desta forma, Maria tem também uma relação estreita com toda a humani-

dade, com a humanidade nova. Nem Maria nem Jesus podem ser compreendidos

11 O P. C. KOSER, no seu conhecido livro El Pensamiento franciscano (Madrid 1972) 59-70, expõe amplamente este espírito “cavalheiresco” de Francisco em relação a Maria. Merece a pena citar algumas palavras de Koser: “Não é por espírito de aventura, nem para ser singular e extravagante, nem sequer por um falso amor próprio ou por vai-dade, mas sim por um amor profundo e cavalheiresco a Deus Uno e Trino e a essa cria-tura que o poder de Deus aproximou mais do seu mistério”, p. 63

12 L. BOFF, O rostro materno de Deus, ed. Vozes, 9ª edição, Petrópolis, p. 172. 13 DH 2803.

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a título ou de forma meramente individual. Pelo facto de que Maria gerou o Sal-vador do mundo, ela mesmo se converteu em Mãe daquele que salvará o mundo do pecado (Lc 1, 31). Desta maneira está estreitamente unida à nossa história de dor e de exaltação, de sofrimento e penas, de esperança e de fé. No fiat de Maria estamos todos implicados. Como afirma Boff: “Todos estão incluídos e são co-gerados no mesmo movimento de dizer fiat.”14 Sentirmo-nos membros activos dentro deste movimento é aceitar a maternidade espiritual de Maria em relação a nós, maternidade real e geradora de vida.

E se existe uma relação especial de Maria com a humanidade inteira, a nova

humanidade, a relação de Maria com a Igreja não é menos estreita. “Virgem feita Igreja”, assim a proclama Francisco. A Igreja é a comunidade dos fiéis que aco-lhe o dom da salvação que é dado com o próprio Jesus Cristo. Maria não pode considerar-se alheia a esta comunidade. Pelo contrário, assim como Maria gerou real e espiritualmente a Cristo, assim gera real e espiritualmente os cristãos e fá-lo também pela força do Espírito Santo. Por isso Maria é proclamada Mãe da Igreja. Se Maria hoje continua a repetir o fiat, diz também de forma sempre nova: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5). Também ela está connosco até ao fim dos tempos.

A vida concreta de Francisco de Assis mostra-nos como a devoção a Maria

não consiste numa mera intenção, nem se baseia numas quantas palavras mais ou menos românticas e poéticas. Ele sentiu que a verdadeira devoção implica uma entrega generosa à causa de Maria, isto é, à causa de Jesus. Essa entrega é a fon-te de toda uma série de virtudes cristãs inspiradas em Maria. Francisco não ela-borou nenhuma teologia explícita de tudo o que disse acerca de Maria. Mas a sua intuição mais profunda não poderia ser outra que a do sensus fidelium da tradi-ção precedente; isto significa que, de alguma maneira, São Francisco pôde entrever o conteúdo daquela intuição, conteúdo que mais tarde se plasmaria em fórmulas teológicas explícitas, graças aos seus mais insignes seguidores. Desta forma, Francisco legou aos seus o material mais rico para a busca e o conheci-mento da verdade referente a Maria.

Duns Escoto: o teólogo da Imaculada Conceição

O grande mestre do franciscanismo, Agostinho Gemelli, na sua obra tão

conhecida pelos franciscanos, afirma: “São Francisco é o cavalheiro da Virgem Maria, São Boaventura, é o seu poeta, e Duns Escoto, o seu teólogo... mas é um teólogo que constrói porque ama, e ama com um amor franciscanamente concre-

14 L. BOFF, op. cit. p. 175.

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to.”15 Por isso, Duns Escoto pode ser considerado, e com razão, o Doutor da Imaculada Conceição. Mas não seria Doutor sem antes ter sido discípulo. Escoto foi, antes de tudo, discípulo da palavra de Deus, e depois foi discípulo, discípulo insigne, da tradição que o precedeu, do tal sensus fidelium.

A partir do senso mesmo do Povo de Deus, a mente e o coração de Escoto

vibraram com aquela intuição fantástica que provinha de séculos anteriores, bem de dentro das comunidades cristãs; esta intuição, pouco a pouco, fará com que afirme e sustente com a mais pura e profunda convicção teológica, o que sem conhecimento claro, mas certeiro, se vinha vivendo, afirmando e celebrando. Com outras palavras: Escoto faz sua a opinião favorável à Conceição Imaculada de Maria que se ia perfilando doutrinalmente no meio de grandes dificuldades. Como bom filho, soube unir esta tradição com a intuição peculiar de São Fran-cisco. E conseguiu que dessas fontes – Escritura, tradição do sensus fidelium e Francisco – brotasse a expressão mais exacta da verdade sobre Maria como Mãe Imaculada.

Para chegar a tal verdade teve de vencer obstáculos específicos, vindos de

conhecidos doutores da Igreja, uns antigos e outros contemporâneos, tais como santo Anselmo, santo Alberto Magno, S. Tomás de Aquino, e praticamente todos os escolásticos do século XIII, que defendiam e alimentava a opinião comum contrária á Imaculada Conceição. Também encontrou adversários entre o seus irmãos, os filhos de S. Francisco; por exemplo, Alexandre de Hales, S. Boaven-tura, Mateus de Aquasparta,, e mais tarde Ubertino de Casale e Pedro João Olivi, que se mostravam contrários â prerrogativa mariana da Imaculada Conceição.16

Antes de entrar nos argumentos de fundo, assinalemos que Duns Escoto foi

capaz de se opor à grande corrente medieval que sustentava que a mulher cum-pria um papel meramente passivo e receptivo na gestação. O papel activo era atribuído exclusivamente ao homem. Dizia Duns Escoto, seguindo a opinião do médico Galeno, que nessa matéria era preferível seguir antes os especialistas que os filósofos.17 Isto significa muito na hora de valorizar Maria como sujeito ver-dadeiramente activo na geração do seu Filho; o que, pelo seu lado, incide, na valorização da mulher.

15 A. GEMELLI,O franciscanismo, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1944, p.83. 16 Cf. A. POMPEI, “Mariologia”, em L. A. MERINO-F.M. FRESNEDA (coord.),

Manual de teologia franciscana (Madrid 2003) 296-298. 17 Cf. J. PIJON, ofm, Juan Duns Escoto, Maestro del Amor y Doctor de María

(Barcelona 1993) 52. Cf. O mesmo trabalho do autor com pequenas variantes, com o título “Duns Escoto”, em Verdad y Vida 239 (Setembro-Dezembro 2003) 655.

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Duns Escoto, além de defender com firmeza que o pecado original não se transmite por geração natural (teoria “física” da transmissão do pecado original), como era defendido, em geral por todos, desde Santo Agostinho, teve de superar o que se chamou a “teoria ontológica” que ia contra a Imaculada Conceição de Maria com palavras semelhantes a estas: “Maria, enquanto filha de Adão, tinha primeiro de existir, e depois receber a graça.”18 Primeiro a vida e depois a possi-bilidade de redenção. Isto significa que, ao menos por um instante, Maria foi escrava do pecado original antes de ser redimida por Cristo. É claro para Escoto que primeiro se dá a existência e só depois a graça. Mas com o seu fino engenho soube tornear o argumento geralmente aceite e que se propunha como insuperá-vel.

É então que propõe o argumento magistral, chamado de “perfeitíssimo

mediador” e redentor. Indiscutível e coisa admitida por todos em teologia que Cristo é moderador e redentor perfeitíssimo, precisamente por ser Filho de Deus. Então sustém Escoto que “um Redentor perfeitíssimo só o é porque possui e exerce o grau mais perfeito de redenção possível, que consiste não só em liber-tar uma pessoa do mal já contraído (redenção libertadora), mas em impedir que contraia o dito mal (redenção preservadora). Impedir ou prevenir de contrair o pecado original é certamente um grau mais perfeito de mediação em relação à pessoa de que é mediador. Cristo, pois, não teve em relação a nenhuma outra pessoa um grau de mediação tão excelente como aquele que usou em relação a Maria.”19 Isto entende-se muito bem quando se recorre à clássica comparação entre a pessoa e a doença. A pessoa pode ser liberta da doença em duas perspec-

18 Cf. A. Pompei, “Mariologia”, op. cit. p. 303. 19 A. POMPEI, “Mariologia”, 304. Cf. o texto de Duns Escoto em E. MARIANI,

Scritti mariologici di G. Duns Scoto, em R. ZAVALLONI y E. MARINI (ao cuidado), em La dotrina mariologica de G. Duns Scoto (Roma 1987) 181ss. A selecção de textos lati-nos que apresenta E. Mariani, com a tradução italiana, foi sugerido pelo próprio P. C. Balic, grande conhecedor desta temática, texto que ele mesmo tinha publicado em latim, no ano de 1933, textos até então inéditos de Escoto referente a Maria. O mesmo C. Balic, no ano 1954 publicou um fascículo no qual se contém a edição crítica de todos os textos do beato João Duns Escoto referentes à Imaculada; cf. Joannes Duns Scotus Doc-tor Inmaculate Conceptionis. 1. Textus autoris (Romae 1954 108 páginas. Cf. também do mesmo C. Balic o extenso trabalho “De significatione interventus Joannis Duns Scoti in historia dogmatis Inmaculatae Conceptionis”, em Virgo Immaculata. Acta Congressus mariologici-mariani Romae anno MCMLIV celebrati (Romae 1957) 121 páginas. No dito trabalho, Balic apresenta a sentença comum dos doutores na época de ouro da escolástica, e a doutrina de Escoto em confrontação com os mesmos, assim como outros autores imediatamente posteriores a Escoto, tanto dos que negavam a Ima-culada Conceição como dos que a defendiam. O teólogo B. Forte afirma que Escoto teve uma “intuição genial” ao introduzir na teologia mariana o termo perseverar e aplicar ao argumento do “mediador perfeitíssimo”; Maria, la donna icona del misterio, 132.

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tivas: evitando que caia doente e curando a doença; isto é, pode-se libertar da doença prevenindo a doença ou curando a doença depois de contraída. Efecti-vamente sempre é melhor prevenir que curar. Pois foi isto o que Deus fez através de Cristo em relação a Maria. Deus preferiu preveni-la do pecado em vez de a redimir depois de o ter contraído. Advirta-se que o termo “perseverar” o “preve-nir” foi o termo usado pelo papa Pio IX na declaração do dogma mariano.

Na realidade, Duns Escoto ensinou tal doutrina não só em forma privada

mas também publicamente e não como meramente possível mas como um facto real, pelo que teve de enfrentar-se com a corrente dominante e tradicional que negava o que ele defendia. Daqui a famosa disputa sustentada em Paris na Uni-versidade de Sorbona sobre o tema da Imaculada Conceição de Maria. Se tal acontecimento não está devidamente registado, é na verdade a opinião de muitos autores, pelo menos desde o século XV.20 A partir do ensino de Escoto sobre a Imaculada a chamada “opinião piedosa” converteu-se em “opinião escotista”.

Perante o ensino de Escoto – afirma o autor – “a reacção da universidade

foi imediata e violenta. De acordo com o estilo daquele tempo e perante a dou-trina de Escoto, houve uma disputa pública, tal como consta historicamente em escritos a partir do século XV, como os manuscritos 139 da catedral de Valência, e 53 do Arquivo da Coroa de Aragão de Barcelona, que conservam sinais evi-dentes dessa reacção. Os biógrafos de João Duns Escoto revestiram a disputa de circunstâncias cheias de fantasia, pelas quais podemos hoje confirmar a sua autenticidade. Uma vez mais, a lenda poética é fruto de uma história verdadei-ra”.21

Podemos acrescentar: “O Doutor Subtil saiu tão airosamente da disputa,

que desde então na universidade se abriu uma corrente favorável à chamada

20Para fazer um juízo acerca da historicidade da célebre disputa parisiense sobre a Imaculada Conceição, cf. A. POMPEI, “Giovanni Duns Scoto e l’Immaculata Concezio-ne”, em R. ZAVALLONI-E. MARIANI, La dottrina mariologica di Giovanni Duns Scoto, 30ss. Se não se encontram testemunhos históricos preciosos sobre tal disputa, uma coisa fica clara, a de que os teólogos de Paris foram mudando paulatinamente de opinião, isto é, a favor da posição imaculista.

21 J. PIJOAN, Duns Escoto, Maestro del Amor y Doctor de María, 36. Este autor junta o título “Mártir da Imaculada” aos títulos “Doutor Súbtil” e “Doutor Mariano” geralmente dados a Escoto, devido a ter de fugir da universodade de Sorbona, sendo ameaçado de morte pelos seus adversários, p. 40. Os adversários, nãopodendo fazer frente à opiniãod e Escoto com argumentos convincentes, ameaçaram com “outros argumentos”. Assim se exprimia um mestre da universidade, enquanto que outro com-pletou a ideia com as palavras: “até ao fogo”.

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“opinião escotista”.”22 A partir daí multiplicaram-se as discussões públicas sobre a sentença escotista, o que significou que se deu lugar, sem medos, à pluralidade de opiniões. A autoridade da Igreja – papas e concílios – trataram de moderar as tensões e de regular a linguagem até chegar à definição dogmática no ano de 1854.

O Doutor Mariano assegurava que convinha à Mãe de Cristo ser preservada

do pecado original, precisamente por ser Mãe do Senhor. Deus, por tanto fez o que era mais conveniente. Daqui o axioma escotista potuit, decuit, ergo fecit (podia, era conveniente, logo fê-lo). Ainda que este argumento já fosse conheci-do antes de Escoto de forma um tanto difusa, pois já antes de Escoto se discutia a conveniência ou não de tal privilégio para María, no entanto, depois dele e graças a ele, fez-se popular. Escoto tinha dito: “Hoc (a preservação da culpa ori-ginal) praecise decuit matrem Christi (convinha precisamente à Mãe de Cristo.” Séculos depois, o papa Pio XII, no início do ano mariano, ao cumprir-se o pri-meiro século da definição do dogma da Imaculada Conceição, na encíclica Ful-gens corona (08-09-1953) argumenta: «Sem dúvida que Deus, “ prevendo os méritos do Redentor podia adornar Maria do privilégio singularíssimo” e, uma vez que “convinha que a Mãe do Redentor fosse adornada com tal privilégio para ser o mais digna possível”, “por isso não é possível pensar que Deus não o tenha feito”.»23

Era esta a autoridade – a autoridade da Igreja – à qual fazia apelo Duns

Escoto ao defender o seu argumento a favor da Imaculada Conceição com as palavras memoráveis: “Se isto não se opõe à autoridade da Igreja ou à autoridade da Escritura, parece provável que isto que é o mais excelente deve ser atribuído a Maria.”24 Passaram vários séculos até se chegar à definição do dogma (1854),

22 J. PIJOAN, Juan Duns Escoto, Maestro del Amor y Doctor de María, 36-37. 23 R. ROSINI, “Il culto dell’Immacolata nel pensiero di Giovanni Duns Scoto”,

99ss. Vale a pena assinalar a crítica que R. Rosini dirige a R. Laurentin a respeito do modo como este autor comenta o axioma “potuit, decuit, ergo feci”, como se de algo abstracto se tratasse e não concretizado em Maria. Cf. R. LAURENTIN, La cuestión ma-riana (Madrid 1964) 138-139. Cf. Pio XII, “Fulgens corona”, em DH 3908.

24 Depois de examinar os diferentes argumentos a favor ou contra a Imaculada Conceição, Escoto, com o maior respeito pelos defensores dos mesmos, apresenta esta questão: “Acerca da questão posso afirmar que Deus podia fazer com que Maria nunca estivesse estado em pecado original, podia também fazer com que tivesse estado em pecado por um instante, e podia fazer que tivesse estado em pecado por algum tempo, e no último instante a teria purificado do mesmo”. Mas com o mesmo respeito, claridade e firmeza assegura: “Quod autem horum trium quae ostensa sunt possibilia esse, factum sit, Deus novit” (só Deus sabe qual destas três possibilidades se realizou), mas defendo que “Si auctoritari Ecclesiae vel auctoritari Scripture non repugnet, videtur quod excel-

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mas o caminho, entre peripécias e controvérsias de escolas e autores, estava aberto e percorria-se paulatinamente. Agora, não só com esse sensus fidelium, que cada vez se faz consensus, e o contributo decidido de Escoto e seus seguido-res, mas também com o apoio da autoridade da Igreja.

Por isso podemos defender que Escoto teria subscrito e celebrado com

maior dos gozos as palavras do concílio Vaticano II: “Redimida de modo mais sublime em atenção aos méritos de seu Filho, e unida a ele por vínculo estreito e indissolúvel, foi enriquecida com a sublime prerrogativa e dignidade de ser Mãe de Deus Filho, e, portanto, filha predilecta do Pai e sacrário do Espírito Santo; com este dom da graça sem igual, ultrapassa de longe todas as outras criaturas celestes e terrestres. Ao mesmo tempo encontra-se unida na estripe de Adão com todos os homens que devem ser salvos; mais ainda, é “verdadeiramente mãe dos membros de Cristo... porque com o seu amor colaborou para que na Igreja nas-cessem os fiéis, que são membros de Cristo... porque com o seu amor colaborou para que na Igreja nascessem os fiéis, que são membros daquela Cabeça” (LM 53).

A Imaculada Conceição e a vida quotidiana dos cristãos

Se queremos tirar agora algumas conclusões do significado da Imaculada

Conceição de Maria em relação a nós, à nossa existência diária, teremos de dizer antes de tudo que ela se nos apresenta como o exemplo maior e mais claro de santidade ao qual a Igreja está chamada.

São Francisco dizia que Maria é a “Virgem feita Igreja” ou a “Virgem con-

vertida em templo”;25isto é, “espaço” de convocatória e acolhimento para todos os crentes; “espaço” de celebração da fé; ponto de partida e centro de confiança e de esperança para levar a cabo uma existência que em verdade responda ao

lentius est atribuire Mariae”; isto é, apoiado pela autoridade da Igreja e da Escritura, defendo como o mais provável é que Maria foi concebida sem estar submetida um só instante ao domínio do pecado, nem original nem actual; pois isso é o mais excelente para ela; C. BALIC, Joannes Duns Scotus Doctor Inmaculatae Conceptionis, 11, 13.

25 A expressão Virgo eclesia facta (Virgem feita Igreja) chama a tenção em Fran-cisco e tem o seu quê novidade, mesmo que seja uma expressão conhecida pela tradição cristã, concretamente a partir de Santo Ambrósio (339-397) que tratava Maria por “Dei-para ecclesiae typus” (Mãe de Deus, modelo da Igreja). Cf. St. AMBROSIO, Expos. In Lc 2, 7; PL 15, 1555. Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 63. Deve-se recordar que a Saudação que Francisco dirige à Virgem Maria é uma oração muito bela que constitui um tecido composto basicamente de invocações tomadas em parte da Escritura e em parte dos Padres da Igreja, como S. Germano, bispo de Constantinopla, e mais tarde S. Pedro Damião.

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chamamento do Senhor. Como Maria, também a Igreja e cada um dos cristãos, estamos chamados a viver a nossa vida totalmente orientada para o nosso futuro último que é o próprio Deus. Num mundo tão marcado pelo pecado, o homem encontra-se desorientado e muitas vezes sem rumo fixo e firme no caminho da vida. Necessita da companhia exemplar, estimulante e segura de Maria; necessita desta proximidade que lhe infunda confiança e segurança para se dirigir á meta à qual o Senhor o chama desde toda a eternidade.

Por outro lado, torna-se suficientemente claro que o dogma da Imaculada

Conceição de Maria põe em relevo a primazia da graça de Deus para todos e em todos os âmbitos da existência. Uma primazia sem condições e sem limites, tal como foi evidenciado e ilustrado em Maria. O facto de que Maria tenha sido envolvida por esse amor de Deus até fazer dela a Mãe do Salvador, Imaculada, não significa que esteja distante de nós e dos nossos problemas diários; Ela não é indiferente à nossa vida; Ela, pelo facto de ser imaculada, não é um ser inalcan-çável e alheia às nossas alegrias e esperanças; de qualquer forma, ela também faz parte da existência humana e como tal foi salva e redimida, ainda que de um modo mais excelente (sublimori modo redempta, LG 53). A confissão de fé em Maria como Mãe Imaculada permite que todos nos empenhemos de forma mais profunda e generosa em alcançar o desígnio que Deus tem sobre nós, também desde toda a eternidade.

O facto de Maria ter sido redimida de modo mais excelente (“redenção pre-

ventiva”) que o comum dos mortais, não impede que tenhamos o mesmo fim e o mesmo destino: a comunhão definitiva e plena com Deus. Por isso devemos estar agradecidos a Deus e sentirmo-nos estimulados por Maria, que nos prece-deu nesse destino, e com o seu exemplo de disponibilidade perfeita à palavra de Deus, infunde em nós a força e a energia para percorrer o caminho da nossa vida.

O mais importante é que todos demos atenção à palavra de Deus e à verda-

de da Imaculada Conceição de Maria, na situação do nosso mundo e dentro de um contexto pouco favorável à consideração e exaltação desta verdade mariana, que, no entanto, é exemplo luminoso para o cristão e para o ser humano.

L. Boff exprimi-o de maneira muito bela: “Enfim emergiu na criação um

ser que é só bondade; o deserto é ainda fértil; a árvore da vida não produz apenas flores estioladas; Uma desabrochou e concebeu uma Vida ainda mais excelente, Jesus Cristo; foi possível ainda e, pela primeira vez, arrancar da criação vulnera-da um olhar que não perde a inocência do seu brilho, um gesto que não encerra nenhuma ambiguidade, uma suavidade, uma beleza e uma clemência não mais ameaçadas. É possível um novo começo para uma humanidade nova; o paraíso

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não se perdeu totalmente no passado e o reino não ficou inteiramente no futuro; há um presente que realiza os sonhos mais ancestrais, a terra celebrou esponsais com o céu, a carne se reconciliou com o espírito e o homem brinca diante do grande Deus.”26

Ao lado do verdadeiro Adão, Cristo, foi criada a verdadeira Eva, Maria, a

Imaculada. Maria viveu num mundo de pecado, foi afectada pela dor do mundo, mas não pela maldade do mundo. “É nossa irmã na dor, mas não na culpa. Ele venceu inteiramente o mal com o bem; vitória que se deve, naturalmente, à redenção de Cristo.” 27

A conclusão mais clara que nos deve levar a dar bons frutos é a de conside-

rar Maria, Mãe imaculada, como companheira inseparável do nosso itinerário cristão, pois Maria só se entende em referência a Cristo. Essa ligação fica asse-gurada sempre que tenhamos em conta que “ a devoção autêntica não consiste em sentimentalismo estéril e passageiro, ou em vã credulidade, mas procede da fé verdadeira que nos leva a reconhecer a excelência da Mãe de Deus e nos inci-ta a um amor filial com a nossa Mãe e à imitação das suas virtudes” (LM 67). Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

26 L. Boff, O rosto maternod e Deus, ed.castelhana, 143-144. 27 Catecismo para adultos. Versão íntegral do catecismo holandês (Barcelona)

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O EVANGELHO CORAÇÃO DA VIDA FRNACISCANA1

Por Fr. David de Azevedo

1 Conferência proferida no encontro da Família Franciscana, durante a Peregrinação Franciscana a Fátima, Outubro de 2008

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O EVANGELHO CORAÇÃO DA VIDA FRANCISCANA

O título que nos foi proposto para esta reflexão foi: “O Evangelho, Cora-ção da Vida Franciscana”. Mas, antes do Evangelho, está a pessoa de Jesus. À parte a redacção das novas Constituições Gerais, o documento mais rico e mais concreto sobre a vida franciscana, produzido na Ordem dos Frades Menores depois do Concílio Vaticano II, intitula-se “Declaração sobre a vocação da Ordem nos dias de hoje”. Foi suscitado no Capítulo Geral extraordinário de Medellin, em 1971, elaborado por um grupo de irmãos durante os dois anos seguintes, e promulgado pelo Capítulo Geral ordinário celebrado em Madrid, em 1973. No parágrafo quinto declara: “No coração da vida franciscana está a expe-riência de fé em Deus, no encontro pessoal com Jesus Cristo. É o que atestam os escritos de S. Francisco. Sob qualquer aspecto que se aborde: oração, fraternida-de, pobreza, presença no meio dos homens, todo o projecto evangélico nos reme-te continuamente para a fé” (p. 11s.). (O sublinhado é nosso).

ENAMORAMENTO Nesta afirmação radical - e abrangente de todo o franciscanismo - é decisi-

vo sublinhar a expressão “encontro pessoal com Jesus Cristo”; e, nesta, a pala-vra “pessoal”. A vida franciscana é essencialmente uma relação pessoal. Não uma forma de vida funcional, em função seja do que for: da sociedade, da igreja ou da santificação pessoal. Mas uma relação, e uma relação de amor. Por isso o franciscanismo é um mundo novo. Verdadeiramente uma nova civilização, a civilização do coração. Como a Pessoa de Jesus é o todo do Evangelho, com este esclarecimento está correcto dizer “O EVANGELHO, CORAÇÃO DA VIDA FRANICSCANA”.

Os textos franciscanos fixam os olhos no Evangelho. Assim, logo no início da Regra Bulada: “A Regra e Vida dos Irmãos menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade” (2 R 1,1). A Regra de Santa Clara repete literalmente. “A forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres, que S. Francisco instituiu, é esta: “observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade” (RCl 1, 1-2). A Regra da Ordem Franciscana Secular insiste na mesma afirmação: “A Regra e vida dos Franciscanos Seculares é esta: observar o Santo evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo os exemplos de S. Francisco de Assis, que fez de Cristo o inspirador e centro da sua vida para com Deus e para com os homens” (ROFS n. 4 p. 35).

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A referência que o Capítulo Geral de 1973 introduziu – Pessoa de Jesus – criando assim uma diferença, não é um acrescento, mas uma intuição. Com efei-to, podemos ver o Evangelho só como um texto moral, isto é, um conjunto de normas para uma conduta humana de suma dignidade, ou um programa de vida social para conduzir a humanidade a um estado de prosperidade e de paz, ou, mais correctamente, como mensagem de salvação humana, pelo anúncio do per-dão de Deus. O Evangelho seria um livro. Se, porém, dentro do Evangelho e para lá do Evangelho, virmos sempre a Pessoa de Jesus, então o Evangelho, antes de ser doutrina, moral, ou política, é a história, a vida, o retrato, a presença de Jesus, da sua Pessoa; e a vocação nele contida, antes de ser forma de vida, é enamoramento, amor apaixonado por Jesus. É diferente observar uma lei e ena-morar-se de Alguém. Uma coisa é amar e outra, cumprir. Sermos enamorados e apaixonados de Jesus!... Esta poderia ser a nossa primeira tese.

O EVANGELHO NO SEU VÉRTICE Mas, como ver o Evangelho à maneira de Francisco? “Observar o Santo

Evangelho”, mas, não é essa a obrigação de qualquer cristão?... Passando para a vida religiosa, os consagrados comprometem-se, como diz o Perfectae Charita-tis, a seguir a Jesus mais de perto. Qual é então a diferença entre um franciscano e os membros das outras congregações?... Não é vocação de todos eles observar o Evangelho?... Há congregações que situam a sua diferença específica numa linha horizontal: Os Irmãos de S. João de Deus imitam Jesus “bom samaritano”: os salesianos imitam Jesus amigo das criancinhas; os beneditinos, cartuchos ou trapistas imitam Jesus orante; os espiritanos e outros missionários imitam Jesus evangelizador, e assim muitos outros. A alma de S. Francisco, porém, não tole-rava deixar de lado algum aspecto da vida do seu Senhor. A diferença francisca-na devemos procurá-la não numa linha horizontal, de superfície, mas numa linha vertical, num processo de densificação. Como se a vida de Jesus - com todas linhas espirituais em que se exprimiu – fosse um cone invertido, condensando-se à medida que nos aproximamos do vértice. No vértice condensa-se toda a rique-za do Evangelho. É lá que se situa a vida franciscana.

O vértice é o mistério de Jesus, a saber: a natureza divina: na existência tri-nitária, e a natureza divina na existência terrena: a encarnação, a paixão e morte e a ressurreição. É deste núcleo que brota toda a vida franciscana: Jesus Verbo de Deus, Jesus nosso Irmão, Jesus feito Pobre, Jesus Crucificado, Jesus Ressus-citado, Jesus Vivo e Presente entre nós. S. Francisco procurou seguir os passos de Jesus na densidade total do seu mistério. O Evangelho condensado todo no vértice. Não só na superfície, mas no mistério. Esta a nossa segunda tese.

O que é mais surpreendente e confortador é que esta maneira de compreen-

der o Evangelho coincide com o perfil que os grandes exegetas de hoje fazem da

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vida de Jesus em seus traços mais configuradores. S. Francisco de Assis encon-trou esses traços em três conjuntos de textos que aparecem com mais frequência nos seus escritos:

- Relatos de vocação e seguimento (Mt 16, 24; 19, 16-29; Mc 10, 17-27; Lc 9, 1-6; 9, 23-29; 18, 13-27.

- Relatos de missão; Mc 8, 34-38; Mt 16, 24-28; Lc 9, 23-25; Jo 12, 25-26, 15,20.

- Relatos das bem-aventuranças. E sermão da montannha: Mt 5, 1 – 7, 29; Lc 6, 20-26.

Isto convida-nos a contemplar a vida de Jesus, não só na superfície – na sua

existência terrena, naturalmente influenciada pela cultura do seu tempo – mas também e sobretudo, na profundidade do seu mistério: na relação com o Pai e na relação com os homens. Quais são as linhas de vida que brotam da relação com o Pai?... Diríamos: a consciência filial, a dependência, o espírito de infância, a confiança, a alma agradecia, o encanto, a ternura, a fraternidade, o viver para a glória do Pai, a generosidade sem limite, a felicidade do coração. Tudo isto constitui a pobreza franciscana. A pobreza franciscana não consiste só nem tanto na escassez de bens materiais, mas no conjunto destas virtudes. Quais são as linhas de vida que brotam da relação com Jesus na sua existência terrena?... A comunhão com os homens, a pureza absoluta do amor, a preferência pelos mais pequeninos, a alegria de ser filho, a fraternidade, o amor absoluto (até à morte) e tantas coisas mais! Tudo isto é fraternidade.

Estes filões de ouro condensam-se em duas palavras que formam o nome oficial da Ordem Franciscana, Ordem dos Frades Menores. Comecemos por Menor.

MENOR SEMPRE CRIANÇA O contrário da pobreza, hoje, não é só, nem tanto, a riqueza, o luxo, a vida

desbragada, a ganância, a exploração, o escândalo da fome que sofre a maior parte da humanidade, o abismo cada vez maior entre ricos e pobres… O contrá-rio da pobreza hoje é uma doença, a neurose da independência, da autonomia, do orgulho, da emancipação, do querer ser Deus sem Deus… Uma mentalidade que se exprime em frases como estas: “Eu não preciso de Deus para nada”, “Deus, se existe, é uma hipótese inútil”, “Eu não preciso das esmolas de ninguém”; “Eu tenho direito, eu tenho direito…”. “Direitos humanos”, “Direitos da mulher”, “Direitos da criança”.” Direitos dos trabalhadores”.

Os homens de há cem ou duzentos anos, nos tempos do feudalismo e da fidalguia, até à Revolução Francesa, falavam de domíniuos: “Os meus domí-nios”, “As minha terras”, “Os meus servos”, “Os meus brasões”…”Os meus títu-

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los e condecorações”, “Os meus antepassados”. A sua grande ambição era ser “Dom”. Eu sou Dom. D. Afonso, D. Nuno. D. Fernando… D. Fulano, D. Sicra-no D. Beltrano… O homem de hoje não fala de domínios, mas, com orgulho mais raivoso talvez, de direitos: “Os meus direitos”, “Os meus direitos”, “As minhas liberdades”, “As minhas regalias” (E isto, tanto da parte dos trabalhado-res, como dos patrões). Depois, avança com os poderes da inteligência: “As conquistas da humanidade!”, “A ciência”, “A técnica”, “As viagens espaciais”, “Os exércitos”, “As armas nucleares”, “Os grupos financeiros”, etc. etc.

A alma franciscana está nos antípodas desta maneira de pensar. Para ela

tudo é dom no sentido de dádiva: dom de Deus e dom dos homens. As coisas que se recebem não são esmolas, mas dons, prendas, presentes dados por Deus e também pelos homens, mesmo quando são retribuição do meu trabalho. O traba-lho na mente de S. Francisco, não é um trabalho escravo, imposto pela necessi-dade de ganhar o pão de cada dia, (o pão de cada dia está garatido por Deus) nem um trabalho interesseiro para aumentar o rendimento ou subir de escalão, mas é um trabalho livre, espontâneo, com a alegria de contribuir para a felicida-de dos homens. A minha própria existência é feita de amor. Existo porque Deus me ama. Porque sou um beijo de Deus…um beijo permanente. Ser pobre é ser agradecido. Jesus afirma esta viragem de pernas para o ar no sentido da vida, em todo o seu Evangelho. Baste-nos uma palavra. Jesus está falando do nosso tema: dos que querem ser “grandes” e diz “Entre vós não há-de ser assim” (Cf. Mt.20, 20-28) – palavra que um cristão nunca deveria esquecer.

“Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus”. Pobre em espírito quer dizer agradecido. A bem-aventurança não é só na outra vida, mas já neste mundo, porque o franciscano vive a doçura da gratidão. A felicidade de saber-se amado. De sentir-se na casa do Pai. É outra tese.

SER HÓSPEDE Outro significado de MENOR é ser hóspede. Para o franciscano existir é

ser hóspede da divina Providência e da amizade dos homens. Não é uma fantasia de poeta. Vem no Evangelho e nos escritos de Francisco: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã… com o que haveis de comer… com o que haveis de ves-tir…”, “Olhai as avezinhas do céu…”, “Olhai os lírios do campo…” (Mt 6, 25-34; Lc 12, 22-31). “As raposa têm tocas, as aves do céu têm ninhos… o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 58). A mesma doutrina em S. Francisco. Revela-o logo no princípio da Regra Bulada: “A regra e vida dos Irmãos Menores é esta: observar o santo Evangelho, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade”. Não diz “vivendo em pobreza”, como era costume, mas “sem próprio”, isto é, sem nada meu. Vivo naquilo e daquilo que não é meu. No cap. 6º: “Os irmãos nada tenham de seu, nem casa, nem lugar, nem coisa algu-ma, mas como peregrinos e estrangeiros, vão pelo mundo servindo a Deus em

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pobreza e humildade…”. E mais explicitamente no Testamento: “Acautelem-se os irmãos de receber igrejas, pobrezinhas moradas, ou qualquer outra coisa que para eles seja edificada, se não forem conformes à santa pobreza. Hospedem-se nelas como peregrinos e estrangeiros… (T 24). Hospedem-se. Este conceito de ser hóspede é lindo; é sentir-se dependente da bondade hospitaleira dos benfeito-res e ver esta bondade em todo o relacionamento entre os homens. É sentir o mundo como um lar cheio de luz, de calor, de paz, de ternura. Hoje, na era da globalização, de fossemos capazes de criar uma alma hospitaleira; para os homens se encontrarem com alegria e se acolherem uns aos outros com ternu-ra!...Que lindo!... É outra tese… E missão franciscana.

Semelhante e não menos necessária para hoje é a doutrina sobre o trabalho:

“Eu trabalhava com minhas mãos e quero ainda trabalhar; e firmemente quero que os irmãos trabalhem em mister honesto, não pela cobiça de receber o preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e repelir a ociosidade” (T 20-21). Hoje S. Francisco diria: “Não pela ganância do preço do trabalho, mas pela alegria de contribuir para a felicidade do mundo”.

Substituir aquela mentalidade arrogante, de direitos e méritos, pela alma franciscana de dependência, confiança, gratidão e calor humano, é mais difícil do que resolver o problema da fome no mundo. Não bastam as reuniões dos G8, nem as suas fortunas. Mas é possível. É um dos grandes desafios franciscanos do futuro. Também dos franciscanos seculares.

IRMÃO Outro filão de ouro que brota do mistério de Jesus – quer o contemplemos

na Santíssima Trindade quer o admiremos na sua história como homem – é a fraternidade. A Encarnação do Verbo de Deus em Belém e depois a sua Paixão e Morte no Calvário, são um mistério de fraternidade. A Cruz é um Monumento de Ouro, um monumento de ternura e de solidariedade. O nome oficial da Ordem Franciscana é, como dissemos: “Ordem dos Frades Menores”. Foi o mesmo S. Francisco quem o escolheu. Diz Tomás de Celano: “Foi ele, com efei-to quem fundou a Ordem dos Irmãos Menores e lhe conferiu esse nome nas cir-cunstâncias que seguidamente se referem: Estavam a ser escritas na Regra estas palavras: “E sejam menores” quando, apenas as ouviu, exclamou de imediato: Quero que a nossa Fraternidade se chame dos Irmãos Menores” (1 C 38) Irmãos Menores. O franciscano ou se sente irmão, ou não é franciscano; ou se sente pequeno, mais pequeno que os outros, ou não é franciscano. Esta tese aplica-se não só aos membros da 1ª Ordem, mas a todos aqueles, homens ou mulheres, que fazem parte da Família Franciscana, como algo que pertence à sua natureza.

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Na espiritualidade franciscana, “irmão” não é um simples apelido, nem exprime um simples sentir afectivo, mas é um nervura estrutural que determina o ser do grupo – a fraternidade - e o modo que configurará todo o seu agir. A maior parte dos institutos de vida consagrada assemelham-se a uma pirâmide. No vértice está o objectivo específico da sua identidade: Deus, nos institutos de vida contemplativa; uma actividade apostólica, nos de vida activa. Depois o corpo do instituto organiza-se numa escala hierárquica, desde o dom abade ou superior, descendo progressivamente pelos demais graus de responsabilidade, até aos simples irmãos que constituem a base. Ao contrário, na Ordem Franciscana a figura que melhor a simboliza é a circunferência, ou mesa redonda. Diz a propó-sito o já referido documento de 1973: “Queremos viver, não uns ao lado dos outros, caminhando para o mesmo fim e ajudando-nos a atingi-lo, mas voltamo-nos uns para os outros para mutuamente nos amarmos, como o Senhor disso nos deu exemplo e mandamento” (n. 12).

Daqui resulta a estrutura do grupo, a igualdade dos irmãos, a forma de governo, o estilo do trabalho, o modo de oração, a gentileza do relacionamento, etc. Uma das características essenciais do grupo franciscano é a igualdade. Somos todos iguais. Não há irmãos coadjutores. “Coadjutor”, nos outros institu-tos, é natural, está no seu clima. Na família franciscana é uma língua estrangeira. Entre os franciscanos, em primeiro lugar está o ser irmão. Ser sacerdote vem depois. O mesmo se diga de qualquer cargo. A igualdade deverá ser outra tese a ter sempre presente.

E tudo isto brota do Mistério de Jesus. Voltemos de novo ao nome de “Filho de Deus”. S. Francisco atribui este nome a Jesus umas 25 vezes; e se o virmos implícito no nome de “Pai”, a frequência é muito maior. E, tão importan-te como o nome em si, são os adjectivos com que Francisco o enriquece: “Teu dilecto Filho”, “Teu Filho muito amado”, “Teu Santíssimo e dilecto Filho”, “Teu santíssimo e amado filho”, “Teu único Filho”. Jesus é gerado, querido e amado, momento a momento, com ternura e paixão infinitas, quer na Santíssima Trinda-de quer na sua existência humana. O homem, como irmão de Jesus e participante da sua natureza, participa dessa luz e ternura e irradia-as, em plano horizontal para os outros homens. Podemos ver essa irradiação em três linhas: como resso-nância afectiva, como vivência da filiação adoptiva e como encanto por Jesus.

RESSONÂNCIA AFECTIVA Duas são as forças espirituais que plasmam a identidade franciscana: a rela-

ção filial com Deus Pai; e o enamoramento apaixonado por Jesus. Delas proce-dem as linhas vitais da fraternidade. A intimidade filial com o Pai tem um momento de fulguração explosiva e grandiosa no julgamento perante o bispo de Assis. Francisco era um temperamento emotivo. A sua vida andava na boca de toda a gente. Sofria, sofria muito. No tribunal, num impulso intempestivo, des-nuda-se todo, atira com os trapos para os pés de Pedro Bernardone e grita: “Até

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aqui chamei meu pai a este homem, Pedro Bernardone. Daqui por diante quero gritar com todas as entranhas do meu ser e com toda a verdade das palavras: “Pai Nosso que estais no Céu”. Francisco deve ter tido uma experiência mística do que é ser pai por parte de Deus-Pai e do que é ser filho à maneira de Jesus. Como terá sentido no coração essa ternura divina?! Essa experiência estará pre-sente em toda a sua vida: na pobreza e na fraternidade; e, espontaneamente, expandir-se-á, em linha horizontal, a todas as criaturas, sob a forma de encanto e de ternura fraternal. Com a intensidade com que se sente filho, com essa intensi-dade se sente irmão.

Experiência da mesma natureza – mas infinitamente mais forte – fora vivi-da por Jesus. Quem poderá saber o que sentiu Jesus no episódio do Baptismo e no episódio da Transfiguração quando ouviu a declaração amorosa do Pai. “Este é o meu Filho muito querido no qual tenho todo o meu encanto”. Esta, uma fonte da fraternidade cristã que todos devemos contemplar e cultivar. A fraternidade não é lei, mas vida. Esta, outra tese.

FILIAÇÃO ADOPTIVA Infelizmente nós cristãos não temos consciência da novidade e da transcen-

dência da filiação adoptiva. Paulo fala com grandiosidade, no prólogo da Carta aos Efésios, sobre o projecto de Deus para o Universo: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do céu nos abençoou com todas bên-çãos espirituais em Cristo. Ele nos escolheu antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em caridade na Sua presença. Ele nos predesti-nou de sua livre vontade, para sermos seus filhos adoptivos, por Jesus Cristo (Ef. 1, 3-10). (O sublinhado é nosso) Que grandeza em cada palavra: Bendito seja Deus…abençoou… com todas bênçãos espirituais. Ele nos escolheu… san-tos e plenos de ternura… na Sua presença…antes da criação do mundo… Ele nos predestinou…filhos adoptivos por Jesus Cristo1… Os pais que adoptam uma criança dão-lhe coisas muito grandes: amor, carinho, lar, educação, nome de família… direito à herança… Há, porém, uma coisa que os pais adoptantes não conseguem dar: o ser. O rosto da criança não se parece com o da mãe adoptante mas com o da mãe biológica. O temperamento do jovenzinho não vem do pai adoptivo, mas do pai que o gerou. Na adopção divina, Deus vai mais longe. Faz-nos participantes do mesmo ser de Deus. Tornamo-nos participantes da geração do Verbo – e do mistério de ternura que a envolve e pertence o mesmo ser de Deus – que em Jesus se comunicou ao ser humano. O ser humano não está reali-zado enquanto não se realizar nele a filiação divina e, com ela, a fraternidade. A fraternidade é estrutural do homem. Disse o evangelista S. João: “Já somos filhos de Deus, mas ainda não sabemos o que isso é…. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é” (1 Jo 3, 2).

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IMITAÇÃO DE JESUS Voltemos à profundidade. O Mistério de Jesus na história terrena realizou-

se, resumidamente, de duas formas: na Encarnação e no Mistério Pascal. Na Encarnação – É costume ver a Encarnação em função da Paixão e

Morte de Jesus. Para nos redimir do pecado, morrendo na Cruz, o Verbo preci-sava de ter um corpo. Por isso “assumiu a nossa humana fragilidade” no seio da Virgem Maria. Mas isto é subordinar tudo ao pecado. A visão de S. Francisco é muito mais bela. O Verbo não encarnou só por causa do pecado, mas para se fazer nosso irmão; para estar connosco, ser Deus connosco, ((Emmanuel), para conviver com os homens, como um deles. É um mistério de comunhão. Tomás de Celano di-lo duma forma muito bela. “Francisco rodeava de um amor indizí-vel a Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a Majestade” (2 C 198). A meta escatológica do mistério de Jesus não foi prioritariamente resolver o problema do sofrimento, da morte e do pecado, mas a comunhão de Deus com os homens e dos homens entre si. O que quer dizer que o grande objectivo da humanidade não deve ser localizado no progresso económico, no bem-estar material e na paz diplomática, mas no relacionamento inter-pessoal e na comu-nhão. Esta não precisa de grandes riquezas. Há países pobres onde a convivência humana é muito mais intensa e mais feliz que em muitos países ricos. As aldeias são muito mais comunitárias que as grandes metrópoles. Basta recordar o forno comunitário, o poço, o lavadoiro, a eira, a missa dominical, as festas, etc. etc.. As fraternidades franciscanas não devem, pois, ser propriamente movimentos de piedade, associações devocionais, ou instituições de solidariedade social… mas canteiros e jardins duma certa maneira de ser homem e de ser mulher: irmãos e irmãs: “Não litiguem, nem questionem, mas sejam mansos, pacíficos e modestos, sossegados e humildes e todos falem honestamente como convém” (2 R 3, 10-11). O mistério do Natal é, primeiro que tudo, um mistério de família: “Um menino nos nasceu”, um irmãozinho nos nasceu, um irmãozinho que é o mesmo Deus.

No Mistério Pascal - Outro momento essencial do mistério de Jesus é o

acontecimento pascal. Também a paixão, morte e ressurreição de Jesus são um mistério de fraternidade.. Pela força do seu amor, Jesus sentiu-se o cabeça de casal da família humana, o seu fiador, o seu “goel”. Assumiu todo o seu passado negativo; e foi fiel a essa responsabilidade. Mesmo quando conheceu que a solu-ção dos nossos problemas passava pela sua morte: quando o povo se fechou à sua evangelização, não desistiu; quando lhe pediram que assumisse uma estraté-gia de luta violenta, não anuiu; quando se viu perseguido, não fugiu; quando as autoridades de Israel o começaram a combater, não mudou de doutrina; quando

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vieram para o prender, não fez descer as legiões de anjos; quando os próprios discípulos não o compreenderam, não abandonou sua missão. Foi fiel, foi solidá-rio, foi irmão, irmão até ao fim. A cruz é também um monumento de fraternida-de. A afirmação da vida em fraternidade, em contraposição com qualquer função apostólica, é outra tese da nossa reflexão.

A identidade franciscana não se especifica nem por uma actividade apostó-

lica ou social, nem por uma devoção particular: ao Coração de Jesus, ao Coração de Maria, ao Santíssimo Sacramento, ou qualquer outra, nem por um estado peculiar de viver: Há franciscanos que vivem nos conventos e pelas ruas as pre-gar; há freiras que vivem em clausura e oração contemplativa; há franciscanos que vivem em suas casas, em seus empregos, em suas responsabilidades sociais, profissionais ou políticas. O específico da identidade franciscana é uma espiri-tualidade, isto é, uma maneira de ser. Esta maneira de ser está condensada – como dissemos – em duas palavras. Frade Menor: Fraternidade e Menoridade. É esta figura que vem nos escritos de S. Francisco e nas nossas regras. Pergunte-mos: que presença tem o ensino desta espiritualidade na nossa formação?...

Sendo o Mistério de Jesus o fundamento da estrutura do universo, e brotan-

do desse mistério a fraternidade, esta afirma-se como uma dimensão estrutural de toda a criação, designadamente do ser humano. Mas, para que se torne reali-dade universal, tem de vencer muitas barreiras. Limito-me a mencionar alguns episódios da vida de Francisco que simbolizam algumas dessas barreiras: o beijo do leproso – nele está presente o nojo do outro e o medo do contágio; Os três ladrões de Monte-Casale – nele se ultrapassa a vingança contra a criminalidade; o caso do Lobo de Gúbio – nele se vence a barreira da agressividade feroz; a Visita ao Sultão do Egipto – que está acima das diferenças religiosas; a Compo-sição do Cântico do Ir. Sol – (que vence o sofrimento) e a estrofe á Irmã Morte Corporal – superando o horror mais fundo de todo o ser vivo, a morte. Estas forças de divisão e destruição: contágio, criminalidade, ferocidade, fanatismo, dor e morte, estão presentes em toda a história humana, muitas delas elevadas a potência pavorosa. S. Francisco, fazendo do Evangelho coração de sua vida sou-be elevar seu encanto fraterno acima de todas elas e ultrapassá-las.

Mas não será tudo isto simples teoria?... S. Francisco ao referir, no Testa-

mento, a primeira experiência da sua conversão, fala do encontro com os lepro-sos: “O Senhor, um dia, me conduziu ao meio deles; e com eles usei de miseri-córdia; e ao afastar-me deles, tudo quanto antes me parecia amargo, se tornou para mim em doçura de alma e de corpo”. A nossa reflexão poderá parecer demasiado teórica, deixando de lado o aspecto concreto do carisma franciscano, designadamente a presença e actuação entre os marginalizados. Daí o perigo de se imaginar uma vida franciscana reduzida a “atitudes espirituais”. Seria um

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silêncio funesto, que acabaria por deixar a identidade franciscana como edifício inacabado. Nela a presença dos pobres não é propriamente um serviço de carida-de. É o problema da verdade da nossa vida e dos valores que a constituem. “Ser menor” e “ser irmão” – com toda a riqueza de valores que salientámos – só são reais quando vividos na relação concreta com os mais humildes. O que distingue o cristocentrismo franciscano é o seguimento da vida terrena de Jesus. Daí a primazia do aspecto concreto do pensamento e da vida. Cada aspecto da vida terrena de Jesus é a verdade de tudo quanto se condensa no vértice.

Estamos celebrando o 8º Centenário da fundação da Ordem Franciscana.

Tomámos como lema “O Evangelho, Coração da Vida Franciscana”. Como rea-firmar o franciscanismo no nosso tempo?... Como vivê-lo?... Como difundir seus valores na nossa sociedade?....

A Família Franciscana está decrescendo em número. Porém, quanto menor é o significado que temos como instituição religiosa, mais evidente se torna, na Igreja e no mundo, o significado de S. Francisco. Enquanto Francisco for uma referência para a Igreja, o franciscanismo tem futuro. Que franciscanismo? Tal-vez não aquele que tem como espinha dorsal as ordens religiosas, a 1ª e a 2ª. Há outro franciscanismo que está emergindo e que acabará por encontrar suas estru-turas, institucionais ou não. A 1ª e a 2ª ordens subsistirão. Mas serão minoritá-rias e proféticas. Temos que fazer um esforço por canalizar o laicado francisca-no, não necessariamente só nas estruturas tradicionais da Ordem Franciscana Secular, mas com ela e com movimentos novos que, vivendo a espiritualidade franciscana com radicalidade, estejam atentos e abertos à problemática do mun-do actual. Os movimentos de jovens simpatizantes de S. Francisco são uma espe-rança. (Cf. JAVIER GARRIDO, Meditacion del Franciscanismo, Ed. Aranzazu 2003, p. 325).

A terminar, de novo a palavra de S. Francisco: “E todos aqueles que rece-berem esta carta, eu, o irmão Francisco, menor servo vosso, vos peço e suplico pela caridade que é Deus (Jo 4, 16) e com o desejo de vos beijar os pés, que vos sintais obrigados a acolher, observar e guardar com humildade e amor estas palavras e as demais de Nosso Senhor Jesus Cristo. E todos aqueles e aquelas que as receberem com benevolência, lhes derem atenção e enviarem cópias a outros, se no seu cumprimento perseverarem até ao fim, que sobre eles venha a bênção do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ámen.” (2 CF 87).

CONCLUSÃO: O Evangelho é o Coração da Vida Franciscana. O Evangelho, porém, antes de ser doutrina e lei, é a presença da Pessoa de Jesus. A vida cristã, antes de tudo é relação entre pessoas: o homem e Jesus – uma relação de amor. Daí, algumas consequências:

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1º - Enamoramento de Jesus – Não mera observância de leis. 2º - Jesus visto não só à superfície, mas no seu mistério original (na Trindade e na História). 3º - A pobreza – não é só carência de bens, mas:

- Dependência e gratidão; - Sentir-se hóspede: de Deus e dos irmãos; - Viver e trabalhar com a alegria de colaborar para o bem dos outros.

4º - A fraternidade - brota de dentro: - Na medida em que sinto a ternura de ser filho, nessa medida me senti-

rei irmão; - Como filho adoptivo, tenho o ser de Deus dentro de mim. Esse ser

deve florir em filialidade e em fraternidade. 5º - A fraternidade, penetra e condiciona toda a nossa vida franciscana:

- Igualdade – Somos todos irmãos. Somos todos iguais. - Relacionamento interpessoal. – A coesão do grupo não é imposta de

fora, pelas leis, mas resulta do amor entre os irmãos, do relacionamento interpes-soal.

- Mediações de liberdade – O governo das fraternidades não se faz por mediações de autoridade (leis, superiores, etc.), mas por mediações de liberdade.

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MATRIZ ESTRUTURANTE DA CULTUR TRADICIONAL AFRICANA

Fr. Amaral Bernardo Amaral ofm

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MATRIZ ESTRUTURANTE

DA CULTURA TRADICIONAL AFRICANA INTRODUÇÃO “Ousar um diálogo com a Cultura Tradicional Africana”

Durante muito tempo e ainda hoje, o ocidente e mesmo o cristianismo, for-

mularam juízos e condenações globais sobre o Africano e a sua Cultura Tradi-cional, sem o terem escutado, nem o terem deixado explicar-se. Não havia espa-ço para o diálogo intercultural com a “África pagã e infiel, mergulhada nas trevas da idolatria, da feitiçaria e em práticas obscurantistas.” Muitos erros foram cometidos e ainda hoje se cometem, no relacionamento do ocidente cris-tão com a África e a sua cultura tradicional. As orientações do Concilio Vaticano II e da Igreja pós-conciliar sobre o Diálogo, muitas vezes, são consideradas como válidas e aplicáveis apenas quando referidas à relação com o Islão e com as “grandes civilizações orientais”, isto é, as “culturas do livro”, mas não são válidas nem aplicáveis quando se trata da relação com a África. Aqui se fala de “salvar os pobres africanos”, de “tirar os africanos do contágio das práticas pagãs”.

Na prática porém, a Cultura Tradicional Africana mostra-se muito mais

aberta à penetração missionária e ao Evangelho do que aquelas civilizações. Com efeito, é na África que se regista o maior número de conversões ao Evange-lho e da expansão do cristianismo nos últimos anos. O Evangelho de Cristo e a mensagem cristã encontram um eco profundo e terreno favorável no coração da Cultura Tradicional Africana e nos seus valores essenciais. Mas a evangelização dos africanos continuará a ser cosmética e superficial, se não se levar a sério os dinamismos da inculturação, na qual se opera a encarnação do Verbo de Deus (Evangelho) nos valores autênticos existentes na cultura africana.

Não vejo como possa superar-se a esquizofrenia religiosa de muitos cristãos

africanos, a não ser que a potência do Evangelho penetre em profundidade até às raízes na cultura e nas culturas dos africanos, para iluminá-las, interpelá-las e purificá-las, eliminando o que nelas há de negativo, e elevando e dignificando o que há de positivo nas tradições religiosas e culturais desses povos. Somente quando os africanos forem capazes de assimilar o essencial da mensagem cristã e de a exprimirem, fielmente segundo a sua língua, a sua índole, a sua maneira de pensar e de viver, poderão sentir o cristianismo como “coisa própria sua”, como parte de sua própria natureza.

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A inculturação do Evangelho será a garantia da sobrevivência do Cristia-nismo na África, independentemente das mudanças socio-políticas e histórico-culturais que venham a dar-se no futuro. A inculturação do Evangelho foi a sal-vação do cristianismo Copta, no Egipto e do cristianismo Abissínio, na Etiópia. Lá, onde este fenómeno não se deu, as florescentes Igrejas do Norte da África dos primeiros séculos, não sobreviveram ao fim da civilização romana. Desapa-receram por completo, sem deixar qualquer sinal na Tunísia, na Líbia, na Argé-lia. Isto pode vir a acontecer na África ao sul do Saara, se o Cristianismo não assumir as culturas locais, tornando-se africano em tudo, excepto naquilo que é anti-evangélico. Isto porém não pode acontecer sem um diálogo autêntico entre o Cristianismo e a Cultura Tradicional Africana.

Agora que falamos de diálogo intercultural há que aprender a escutar com

respeito a experiência do outro. O Ocidente, o cristianismo ocidental, se quiser dialogar com a África, deverá renunciar ao seu complexo de superioridade e dei-xar que o africano lhe fale de si próprio, lhe explique a sua experiência cultural e lhe revele os seus valores. Como bem o diz Altuna: “Não se deve aproximar da África negra aquele que a não deseja conhecer. Como poderá amá-la, se desco-nhece o seu rosto? Como a ajudará a libertar-se se desconhece a sua alma?”1 Da mesma maneira, o Africano, se quiser ter uma relação de diálogo autêntico com o Ocidental e ou, com irmãos de outras culturas, deve superar os seus complexos de inferioridade e assumir serenamente a sua identidade reconhecendo os pró-prios valores e também os limites.

Estou convencido de que, na realidade, o diálogo intercultural não se dá

entre sistemas culturais (Cristianismo, Islão, etc.), como se esses pudessem exis-tir independentemente das pessoas. No plano do concreto, o diálogo dá-se quan-do pessoas de culturas diferentes entram em interacção. E, no processo do diálo-go, não há superior e inferior, mas sim uma dinâmica de oferta e de acolhimento recíproco de valores, de respeito e de reconhecimento.

A nossa reflexão sobre a “Matriz estruturante da Cultura Tradicional Afri-

cana” é um esforço de apresentar alguns traços básicos através dos quais se pode conhecer o rosto e a alma da África e apreciar os valores da Cultura Tradicional Africana. Desenvolveremos a nossa reflexão segundo o Esquema que se segue:

A primeira parte tentará reflectir sobre a questão da Cultura Tradicional

Africana, para afirmar a sua existência e a sua fundamental importância para a compreensão e a evangelização dos Africanos.

1 ALTUNA, Raul R. de Asúa, Cultura tradicional Banto, Luanda (1985), p. 41-42.

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A segunda parte apresenta-nos os traços mais característicos da Cultura

Tradicional Africana, os seus pressupostos filosóficos e o seu método educativo: o método iniciático.

A terceira parte tenta definir a Religião Tradicional Africana e apresentar

em traços gerais o seu perfil e os valores fundamentais que a caracterizam bem como alguns dos seus limites.

A quarta parte apresenta, em sete categorias existenciais, o modo como na

prática se articulam e são vividos os diferentes aspectos da Cultura Tradicional Africana apresentados nas partes anteriores.

E, finalmente, na conclusão, tenta-se abrir estradas, ou pistas, para um diá-

logo autêntico e fecundo entre a Religião Tradicional Africana e o Evangelho tomado como Regra e Vida dos Frades Menores de São Francisco. Afirmamos a nossa convicção de que, no mais íntimo da alma e da Cultura Tradicional Afri-cana, estão inscritos dinamismos que a abrem e a preparam para acolher, favora-velmente, a mensagem do Evangelho e, consequentemente, os valores que informam o carisma e a espiritualidade franciscana.

1. A QUESTÃO SOBRE A CULTURA TRADICIONAL AFRICANA “Durante muito tempo pensou-se que os povos sem escrita, são povos sem

cultura. A África negra não possui escrita, mas isso não impede que conserve um passado e que os seus conhecimentos e cultura sejam transmitidos e conheci-dos.”2

Antes de falarmos do Diálogo com a Cultura Tradicional Africana, temos

de começar por colocar a questão de fundo sobre a sua existência. Até que ponto é possível falar propriamente de uma Cultura Tradicional Africana? O que é, e como se caracteriza?

Sobre esta questão, as opiniões de um número considerável de africanistas e antropólogos divergem muito. Uns preferem falar de culturas tradicionais africa-nas, evidenciando a pluralidade e a diversidade de povos, de línguas e de cultu-ras que vivem neste imenso continente. Outros, porém, defendem a tese da uni-dade original como um pressuposto necessário para a compreensão do mistério África que, apesar da enorme diversidade de povos, de religiões e de culturas, apresenta denominadores comuns essenciais que geram em todo o continente as

2 ALTUNA Raul R. de Asúa, Cultura Tradicional Banto, Luanda (1985), p. 32

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mesmas linhas básicas de pensamento, o mesmo sistema linguístico, a mesma concepção religiosa e espiritual do mundo e da vida, a mesma concepção do homem, da sociedade e do destino final da pessoa humana.

Na verdade, um olhar sobre a África revela-nos a existência de um varia-

díssimo mosaico de povos, de etnias, de tribos, de clãs e de culturas, aparente-mente muito distantes umas das outras. Hamite-Camitas, Nilóticos, Sudaneses, Bantos, Khoisane, Malgaxes e Árabes apresentam diferentes modos de conceber a realidade; diferentes línguas, usos e costumes; diferentes modos de concretizar, na vida prática, os ideais sociais, morais e espirituais. Assim, para alguns, a ideia de uma Cultura Tradicional Africana que unifique todos estes Povos num patri-mónio cultural comum, parece um sonho impossível.

Outros, porém, entre estes, eminentes antropólogos e estudiosos africanos

como o historiador senegalês Sheik Anta Diop, o queniano John Mbiti e outros, defendem fortemente a existência de uma homogeneidade e parentesco de base subjacente à grande diversidade de etnias e de línguas que se verifica hoje em toda a África. Delafosse M., no seu estudo sobre As Civilizações Negro-Africanas, conclui: «Ainda que ao observador superficial o não pareça, é bem evidente a unidade existente nas populações negro-africanas, unidade que nos obriga a recuar até ao primitivo núcleo étnico, até à semelhança relativa dos meios físicos, económicos e sociais em que se formaram e desenvolveram. Assim como o tipo antropológico dos negros puros, nas suas linhas gerais, é idêntico em toda a parte; assim como as línguas negro-africanas formam uma família linguística homogénea, (…) assim também se pode falar, admitindo ape-nas os factos essenciais, que existe uma cultura negro-africana bem definida cujos traços essenciais se encontram nos povos negros…»3.

Durante muitos séculos, as migrações, os esforços para se adaptar a meios e

ambientes diferentes, a aquisição de novos modos e experiências de vida, os encontros e a comunicação com outros povos e culturas, fizeram que a unidade primitiva conhecesse uma certa evolução em direcções diversificadas, dando origem às diferenciações culturais que hoje existem em África.

Contudo, a herança primitiva não foi completamente destruída: ela continua

activa, como um rio subterrâneo a fecundar, a inspirar e a influenciar as novas aquisições culturais em cada um dos povos actuais. Nisto reside a razão funda-mental que explica a incrível semelhança de concepção do universo, do sistema religioso, educativo, social e económico, a alta percentagem de vocábulos comuns nas diferentes línguas, mesmo as mais distantes geograficamente.

3 ALTUNA, Raul R de Asúa, Cultura tradicional Banto, Luanda (1985), p. 28-29.

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A nossa reflexão parte do princípio de que a diversidade não é negação da

unidade e a variedade não significa total disparidade e exclusão. A minha expe-riência das visitas às várias regiões da África, leva-me a concluir que existe em toda a África negra uma fundamental unidade cultural, com diversidade de for-mas e de expressões nas grandes famílias dos povos africanos.

O antropólogo Leo Frobenius autor do livro, As origens das Civilizações

Africanas, e História da Civilização Africana, não tem a mínima dúvida em afirmar: «Trata-se de uma cultura única e una». De facto, como bem reporta o P. Raul Altuna: «O negro-africano, apesar de mestiçado com os pigmeus das selvas guineense e equatorial e com os semito-camitas das planícies sudanesas, apre-senta ainda uma extraordinária unidade, subjacente à grande diversidade somáti-ca e cultural... É impossível negar esta unidade fundamentada na história e evi-dente nas crenças religiosas e nas restantes manifestações da cultura-civilização negro-africana e na caracteriologia étnica. A África Negra é una e aberta…» 4

O historiador senegalês, Sheik Anta Diop, defende categoricamente esta

tese da unidade cultural em toda a África. E vê as particularidades étnicas, lin-guísticas, religiosas, sócio-políticas e culturais-regionais como aspectos, ou perspectivas diferentes de uma só e única cultura, acumulada pelos africanos através de todos os tempos.

Esta unidade de base permite-nos falar de Cultura Tradicional Africana e

delinear alguns dos seus traços característicos mais salientes, respeitando a plu-ralidade das expressões específicas e particulares. É sobre estes valores funda-mentais que se pode lançar a ponte de um diálogo autêntico e enriquecedor com outras culturas.

2. A CULTURA TRADICIONAL AFRICANA E SEUS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS

4 ALTUNA, Raul R. de Asúa, Cultura Tradicional Banto, Luanda (1985), p. 23

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Para melhor compreendermos a Cultura Tradicional Africana, temos de conhecer as linhas gerais do seu pensamento sobre as questões fundamentais como: o Cosmos, Deus, a pessoa humana, a sociedade, a vida e a morte.

1. O que entendemos por Cultura Tradicional Africana? Entendemos por Cultura Tradicional Africana a manifestação original e

global das experiências acumuladas pela comunidade dos povos africanos, atra-vés de todos os tempos, nos diversos domínios de pensamento e de organização sócio-política, económica, filosófica e religioso-espiritual, conservadas e trans-mitidas de geração em geração através de instituições, de ritos, de símbolos, de crenças, de cantos, de danças, da língua, dos usos e dos costumes.

Devo dizer, desde já, que a actual Cultura Tradicional Africana é já o fruto

de um longo diálogo e interacção do dado cultural africano com outras culturas, ao longo de séculos. Por muito que se tenha conseguido preservar alguns dos seus valores essenciais, a Cultura Tradicional Africana já não se encontra no seu estado puro. Conheceu uma evolução, mais ou menos profunda, ao longo da his-tória, de acordo com a exposição ao contacto com experiências culturais de outros povos e civilizações: a civilização ocidental cristã, durante o longo perío-do colonial, marcou profundamente o modo de ser, de pensar e de agir dos afri-canos, imprimindo neles uma nova dinâmica cultural. Da mesma maneira, a civi-lização islâmica, durante séculos de relações comerciais e religiosas, sobretudo em algumas regiões do continente, fundiu-se com o modo de ser africano para formar uma nova cultura que já não é, nem puramente africana tradicional, nem puramente árabe islâmica. Por outro lado, as influências do pluralismo ideológi-co, do materialismo prático, da cultura do “marketing” e do relativismo absoluto que caracterizam a modernidade e a pós-modernidade, vão modelando uma nova cultura, a partir de muitos aspectos do que era a Cultura Tradicional Africana. Estes encontros interculturais, não se limitam a uma simples justaposição ou coexistência de respeitosa tolerância recíproca das culturas envolvidas. Bem pelo contrário, elas passam por processos profundos de interacção e de desafios mútuos, de assimilação e de enriquecimentos recíprocos, até culminar na trans-culturação, que é o nascimento de uma nova cultura, diferente das anteriores.

Neste processo, a Cultura Tradicional Africana passou por perdas e enri-

quecimentos significativos, mas não foi destruída nos seus elementos essenciais. O processo de síntese global continua a realizar-se gradualmente. Portanto, ao falarmos da Cultura Tradicional Africana temos consciência de estar diante deste complexo de interacção de sistemas culturais, ainda não completamente integra-dos e harmonizados numa única cultura homogénea.

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2. Algumas características dominantes da Cultura Tradicional Africana 2.1. A oralidade e o poder da palavra Uma característica dominante da Cultura Tradicional Africana é a oralida-

de. A Cultura Tradicional Africana é toda ela baseada na tradição oral. Na África Tradicional não há livros, nem bibliotecas, nem arquivos, mas há a memória colectiva da comunidade, memória condensada em instituições vivas como a família, o clã com as suas sagas, fórmulas, contos, lendas e celebrações rituais. Tudo isto forma a literatura oral que constitui a inestimável riqueza cultural da África, porque abarca todos os aspectos da existência, revela o pensamento e as convicções mais profundas, inspira e modela os comportamentos individuais e sociais. Através da literatura oral, a Sociedade Africana interpreta-se e explica-se a si própria, narra a sua história, os seus ideais, os seus sofrimentos e as suas esperanças.

Na tradição oral africana, a palavra falada exerce um papel de fundamental

importância. Ela constitui o único meio de conservar e de transmitir o patrimó-nio comum herdado dos antepassados, estabelecendo, desta forma, a comunhão vital entre os vivos e os mortos. Na África tradicional, a palavra é falada, decla-mada e cantada para torná-la cada vez mais eficaz na sua função específica de mediação entre o passado, o presente e o futuro. Para os Africanos a palavra pronunciada “não se perde no ar”, porque ela é possuidora de um poder próprio e produz sempre um efeito benéfico, ou maléfico, conforme a intenção, a dignida-de e o estado de ânimo do sujeito que a pronuncia. Maldição ou bênção pronun-ciadas por um pai ou por uma mãe, pelo chefe, por um ancião, por um sacerdote, ou pelo adivinho-mago, ou ainda por um feiticeiro, ganham uma eficácia total.

2.2. O poder dos símbolos A Cultura Tradicional Africana é extremamente rica em símbolos, sinais,

gestos, imagens e ritmo, pelos quais o mistério inexplicável encarna e se torna presente na realidade humana para se exprimir e comunicar eficazmente. Assim, a palavra é completada, explicitada e realizada através dos ritos e símbolos. Existe, portanto, uma acção recíproca entre os símbolos e a palavra. Os primei-ros completam a significação profunda da palavra e introduzem o pensamento e a imaginação no mistério e a segunda ilumina, esclarece e torna inteligível o mistério que se revela no rito e no símbolo.

Este património cultural comum é sagrado, porque tem a sua origem em

Deus, que é a plenitude da vida e o princípio formador e informador de todos os seres. Os primeiros antepassados receberam directamente de Deus este patrimó-nio comum, juntamente com o dom da vida, para o defender e comunicar aos seus descendentes de geração em geração.

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2.3. A autoridade dos anciãos na transmissão fiel da tradição A sabedoria tradicional que nasce da primeira palavra pronunciada pelo

patriarca fundador, está inseparavelmente ligada ao princípio da transmissão da vida, de tal modo que a comunidade descendente do mesmo antepassado é duplamente unida pelos laços vitais do sangue e pelas tradições culturais. Deste modo, o sangue e a tradição oral constituem o laço vital que une a comunidade dos vivos entre si e destes com os seus antepassados.

Eis porque em toda a África, os antepassados são os guardas zelosos que

garantem a protecção e a transmissão fiel das tradições, punindo implacavelmen-te toda a transgressão e o desrespeito feitos à herança cultural dos antigos. A administração responsável desta herança cultural é particularmente confiada aos anciãos, aos mestres, aos pais e aos adultos da Comunidade.

2.4. A Centralidade da família como lugar de transmissão da vida e da cul-

tura A família nuclear, célula fundamental da sociedade clânica, é o primeiro

espaço natural da promoção, da conservação e da transmissão da Cultura Tradi-cional Africana. Os progenitores, juntamente com o dom da fecundidade pro-criadora, recebem também a altíssima responsabilidade de transmitir a linfa espi-ritual das normas tradicionais que educam, explicam e garantem a continuidade dessa vida. Aqui a transmissão é por osmose: dá-se na vida normal do dia a dia da família. A nível da família alargada ou comunidade clânica, os anciãos, os mestres e os adultos assumem a responsabilidade de educar as novas gerações nas sãs tradições herdadas dos antepassados. As festas e as celebrações religio-sas, os ritos de iniciação, os tribunais, as reuniões à volta da fogueira, etc., são momentos privilegiados da transmissão da Cultura Tradicional Africana. São as Escolas e as Universidades da África Tradicional.

3. Alguns pressupostos filosóficos da Cultura Tradicional Africana Afirmada a existência da Cultura Tradicional Africana e definidos alguns

dos seus traços gerais, põe-se agora a pergunta se essa cultura apresenta valores próprios e originais, autênticos e reconhecíveis, capazes de responder às ques-tões fundamentais dos seus seguidores e de dar uma contribuição válida para o progresso da nova humanidade globalizada.

A pergunta que nos fazemos é: qual é a concepção fundamental sobre a

qual o africano assenta e estrutura todo o universo do seu pensamento, dos valo-

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res, das crenças religiosas? Qual é o princípio-chave que rege e explica as suas instituições políticas, económicas, sociais, religiosas e educacionais? Qual é a ideia base que justifica e esclarece os seus comportamentos, os seus usos e cos-tumes, as suas reacções psicológicas, etc?

Podemos encontrar um vasto leque de valores humanos, sociais, morais e

espirituais, acumulados durante séculos em toda a África e que, hoje, constituem o inestimável património da Cultura Tradicional Africana, tais como: o princípio da relação e da participação comunitária na força vital universal, a profunda reli-giosidade e abertura ao transcendente espiritual, a crença na imortalidade, a pre-valência do bem comum sobre os interesses individuais, o forte sentido de famí-lia alargada, o valor da solidariedade, da hospitalidade e da partilha, o amor à vida e à fecundidade, o respeito e a veneração pelos mais velhos e pelas crianças, o sentido de paciência e de esperança na vida, etc.

Estes valores dominantes na Cultura Tradicional Africana, são compatíveis

com os conteúdos fundamentais da Boa Nova do Evangelho de Cristo e podem favorecer e enriquecer o encontro em diálogo com outras culturas.

Não ocorre neste espaço fazer um estudo aprofundado e exaustivo da

antropologia cultural africana. Limitar-me-ei a desenvolver aqueles valores que podem ajudar no processo de incarnar e de exprimir autenticamente a mensagem evangélica e franciscana segundo a cultura, a índole e a mentalidade própria dos africanos.

Relação e participação comunitária Já houve várias teorias que tentaram explicar qual o princípio-chave da

ontologia africana. Para o franciscano Frei Placide Tempels, missionário belga entre os Baluba, do Congo, a ideia da “força vital” constitui o conceito chave da filosofia africana5. J. Jahan, a partir de dados linguísticos, descobriu que no pen-samento africano havia diferentes categorias de seres ligados por um elemento contínuo, a “força universal”6. John Mbiti prefere falar de uma ontologia religio-sa antropocêntrica, em que todas as coisas são vistas a partir das suas relações com a pessoa humana. Segundo este antropólogo queniano, a religião é para o africano “um fenómeno ontológico; pertence à questão da existência, ou do ser”7.

5 TEMPLELS, Placide, La Philosophie Bantu, Bruxelles (1945) 6 JAHAN, J., Muntu (1958) 7 MBITI, John, African Religions and Philosophy, Nairobi (1985)

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Penso que os três antropólogos citados sublinham dimensões importantes da mesma concepção de base sobre o ser e o universo, que corre nas camadas profundas do espírito africano e que condiciona e dá cor a todas as manifesta-ções da vida, do agir e do relacionar-se entre os Povos de África.

A partir da minha experiência pessoal no seio do meu povo e percorrendo a

África de Norte a Sul e de Leste a Oeste, observando as suas celebrações, as suas crenças e rituais religiosos, as suas manifestações artísticas, as suas instituições políticas, sociais, económicas e educacionais, fico com uma forte impressão de que em todos eles há um pensamento comum que sublinha fortemente a exalta-ção da relação e da participação comunitária a todos os níveis do ser e da exis-tência.

Parece que a sociedade africana é uma assembleia permanentemente con-

vocada para celebrar os mínimos detalhes da vida: o nascimento, o crescimento, o casamento, a doença, a morte, a lavoura, a sementeira, a colheita, tudo é feito em comunidade e, tanto quanto possível, com a presença e a participação de todos os membros, vivos e mortos.

O Africano não consegue conceber a sua existência sem a comunidade, sem

a família. Para o Africano, ser pessoa humana é pertencer a uma dada comunida-de e pertencer a uma comunidade, significa participar nas crenças, cerimónias, rituais, nas angústias e nas esperanças dessa mesma comunidade8. Para os Vatonga, por exemplo, o pobre (gisiwana) não é aquele a quem falta dinheiro, ou bens materiais, mas aquele que não tem família. Pelo contrário, a pessoa que tem família, irmãos, mesmo que lhe faltem os bens materiais, não é pobre.

3.2. A celebração do mistério da vida Se apurarmos mais a nossa atenção em descobrir o objecto e a finalidade

desta participação comunitária, veremos que no centro está a celebração do mis-tério da vida. A vida que nasce, que se desenvolve, que frutifica e que morre para entrar na imortalidade espiritual, é entendida como energia, força e dina-mismo incessante que se recria e se comunica em todas as dimensões do cosmos, impregna e anima todo o universo, mas somente na pessoa humana encontra a sua expressão consciente9. Para o Africano toda a realidade é animada de vida, e não existe nada que seja essencialmente morto: “ser é viver”.

8 MBITI, John, African religions and Philosophy, (1985), p. 2 9 ALTUNA, Raul R de Asúa, Cultura tradicional Banto, Luanda (1985), p. 46

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O universo é visto como um concerto harmonioso integrado por todos os seres, hierarquizados segundo o seu grau de participação vital. Seres espirituais, animais, plantas, seres inanimados, os fenómenos naturais, etc., estão intima-mente ligados entre si por laços de total solidariedade e interdependência, for-mando um equilíbrio de forças que nada pode destruir. Todos os seres, particu-larmente as árvores, são reservatórios desta energia vital.

É clara a crença na existência de um Princípio Vital activo, que concentra a

plenitude da Vida e a comunica. Existe uma cadeia ininterrupta de força vital ligando os diferentes níveis da existência. Cada categoria da existência supõe todas as outras para manter o equilíbrio vital universal. Assim, todos os seres procedem da mesma fonte e estão intimamente unidos entre si por este Principio Vital para participarem como comunhão universal no eterno ritmo da dança da vida.

A família alargada ou Clã, é o lugar natural onde as pessoas realizam a par-

ticipação vital. Os antepassados são os canais através dos quais a energia vital chega aos descendestes. Daí, o cuidado de manter sempre boas relações com os antepassados, para que eles não interrompam a corrente vital. Este princípio de participação comunitária no dom da vida é a chave de interpretação para com-preender todo o sistema de pensamento e de crenças que estruturam e caracteri-zam a Cultura Tradicional Africana.

3.3. A origem do mal e o sofrimento Para o Africano não há desastres ou catástrofes naturais, como também não

há sofrimento, morte e doenças naturais porque a natureza, por si mesma, nunca erra. Deus, origem e sustentador último da harmonia universal, governa e admi-nistra a força vital do mundo, em favor dos homens, através dos seres espirituais que por sua vez estão em profunda harmonia com Ele.

Quando é respeitado o equilíbrio da correlação das forças cósmicas, há

prosperidade, bem-estar, paz e harmonia, no indivíduo e na sociedade. Quando esta harmonia universal é perturbada, desencadeia-se a desgraça e o povo expe-rimenta o sofrimento e a infelicidade.

Somente o homem, o centro consciente da cosmogonia tradicional africana,

pode agir contra a natureza e contra as normas eternamente estabelecidas nas tradições dos antigos. Algumas pessoas (curandeiros, feiticeiros, adivinhos, magos ou sacerdotes) possuem conhecimentos e habilidades para interferir na força vital existente na natureza e podem apoderar-se de certos espíritos para usar a sua força para o bem, ou para o mal.

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É aqui que se situa a origem de todos os desequilíbrios responsáveis pelo mal no mundo. Todos os males e desgraças que afectam a terra e a sociedade: as catástrofes e as calamidades naturais, as doenças, as injustiças, as guerras, etc., são fruto da ruptura no equilíbrio vital universal causada pela má conduta dos homens.

Pelo princípio da participação universal, qualquer mal ou infracção ocorri-

da em qualquer ponto do sistema, afecta todo o equilíbrio. O mal cometido por uma pessoa não atinge apenas o indivíduo, mas repercute-se em cadeia, atingin-do toda a sua comunidade e, por fim, todo o universo.

A única maneira de restabelecer a ordem e o equilíbrio vital é através da

realização de ritos apropriados. Orações, sacrifícios e oferendas são recursos indispensáveis para restabelecer o equilíbrio perturbado.

4. O método educativo da Cultura Tradicional Africana Todas as sociedades humanas têm os seus próprios sistemas e métodos

educativos e formativos através dos quais operam os processos de socialização dos indivíduos. Entendendo por socialização o processo pelo qual, numa socie-dade, as gerações mais velhas passam o património cultural e humanístico para as novas gerações, imprimindo nestas os modos de se comportar, de sentir, de julgar e de pensar próprios do grupo sócio-cultural a que pertencem.

A educação tradicional teve, e tem ainda, um papel insubstituível de extre-

ma importância na promoção, na conservação e na transmissão dos valores fun-damentais da cultura em que se apoia a sociedade tradicional. Durante séculos, quando não havia escolas públicas, nem igrejas, nem avançados meios de comu-nicação social, a educação tradicional foi o único meio de formação e de educa-ção dos indivíduos para viverem harmoniosamente dentro da sua sociedade e garantirem a coesão e a consciência de pertença nos membros da comunidade clânica.

A educação tradicional é um conjunto de princípios, de normas, de ritos, de

cerimónias, de modos, de hábitos que, durante séculos, passam de geração em geração, de família em família, e que moldam e caracterizam o modo próprio de ser, de se comportar, de se relacionar dos indivíduos dentro dum determinado Clã, ou Etnia.

Apesar da aparente insuficiência de meios convencionais, a educação tradi-

cional marca tão profundamente o coração e o espírito da pessoa, que influencia

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os centros de interesses, os critérios de avaliação e as motivações de fundo nas principais opções a tomar, quer a nível individual, quer a nível colectivo. Os melhores cursos escolares, universitários, catequéticos e teológicos, nem sempre conseguem tais níveis de eficácia na determinação de atitudes e de comporta-mentos dos indivíduos.

A Educação Tradicional envolve crenças religiosas, usos, costumes e nor-

mas de etiqueta, normas de conduta tais que os indivíduos devem respeitar no seu relacionamento com as diferentes categorias de pessoas.

4.1. A importância do método iniciático na transmissão dos valores culturais As formas de transmissão da Cultura Tradicional Africana são várias, mas

assumem especial relevância as narrações, o canto e a dança, os jogos, os rituais religiosos e os símbolos. Tudo isso é feito através de um processo gradual e pro-gressivo de iniciação nos mistérios e segredos da tradição. O método iniciático caracteriza toda a educação africana tradicional. Vejamos, brevemente, em que consiste e como se realiza a iniciação tradicional africana.

Antes de mais é importante saber que a iniciação tradicional africana é uma

verdadeira escola da vida, para a vida em comunidade. A iniciação tradicional tem uma filosofia e um método próprios para dar ao indivíduo informação e formação completas para a vida, e para a sua participação plena na Comunidade.

A iniciação tradicional é baseada na concepção da vida como uma longa

viagem de crescimento, em que o indivíduo, guiado pela mão dos mais velhos, vai passando, gradual e progressivamente de uma fase da vida a outra; de “menos ser, para mais ser”, até atingir o pleno estatuto de “muthu”, isto é, de pessoa madura, consciente, autónoma, responsável, solidária e comunicadora da vida. Na visão bantu das coisas, a pessoa não nasce já feita, mas vai se fazendo gradualmente no processo iniciático através de instruções, de ritos, de símbolos e de cerimónias.

O método iniciático africano imprime sempre uma mudança radical na pes-

soa que é iniciada. A pessoa deve passar por uma renovação interior profunda que modifica, não somente os comportamentos, as atitudes, a mentalidade, a vida, mas também o próprio ser. Raul Altuna diz tratar-se de uma verdadeira “transformação ontológica”10. O iniciando deve morrer para o passado (tudo o que era antes), para renascer como uma nova criatura, na nova fase. A criança

10 ALTUNA, P. Raul R. de Asúa, Cultura Tradicional Banto, Luanda (1985), p. 272

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deixa definitivamente a infância e passa a ser homem, ou mulher adulta. Trata-se de uma passagem total, gradual, progressiva e irreversível em três tempos.

4.2. Momentos da iniciação tradicional Três momentos importantes marcam a dinâmica desta passagem: a separa-

ção, o isolamento e a reintegração. Cada um destes momentos tem conteúdos, símbolos e ritos apropriados.

A separação Na dinâmica da iniciação, antes de mais deve dar-se um corte, uma separa-

ção do indivíduo em relação ao seu mundo de infância, às suas seguranças e mimos maternos, aos amigos e às brincadeiras e atitudes do tempo de criança. Deve deixar para trás tudo isso e enterrá-lo de uma vez por todas. O indivíduo “deve ser arrancado e separado da sociedade para melhor ser iniciado na tradi-ção”11. Esta separação e ruptura é bem significada pelo gesto de partir e de se distanciar fisicamente, até desaparecer no seio da floresta. Durante este percurso, as crianças estão proibidas de olhar para trás, devendo sempre seguir em frente, indiferentes mesmo às vozes das mães que choram. Assim fica bem assinalado o rompimento com uma realidade que deve morrer definitivamente para elas.

O isolamento Em seguida é o momento do isolamento total no meio da floresta, sem

qualquer tipo de comunicação com o mundo exterior. É o momento mais forte da iniciação. É neste período de reclusão total que se faz a revelação dos mistérios e segredos da tribo; que se dá o ensinamento dos ideais e princípios fundamentais da sabedoria tradicional, através de provérbios e de contos; que se narram as páginas mais gloriosas da história da tribo, com a apresentação dos heróis e dos modelos a imitar; que se ensinam os princípios religiosos, éticos e morais e as normas que regulam a vida e a convivência na comunidade. Na floresta, os ini-ciados recebem noções práticas da vida, no dia a dia, sobre como resolver pro-blemas concretos, como enfrentar com serenidade as dificuldades; como gover-nar sabiamente o lar, etc.

11 GWEMBE, Ezequiel, Ritos tradicionais de iniciação africana, longa viagem para o crescimento, O método iniciático e a formação da juventude, Centro de Forma-ção de Nazaré, 1a Semana Teológica, Beira (1996), p. 18

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Para inculcar profundamente no coração e na mente todos estes ensinamen-tos, servem-se do método de ensino vivo e experimental, que impõe rigorosa disciplina, duras provas físicas e morais e severos castigos para submeter a von-tade, corrigir comportamentos, modelar a personalidade, imprimir audácia e autodomínio. Assim, a iniciação tradicional consegue estruturar a personalidade adulta, levando o indivíduo a conhecer os valores fundamentais, a assumi-los e a integrá-los coerentemente na sua personalidade.

Toda a formação ali recebida é fundada no binómio morte – vida e a lin-

guagem misteriosa dos símbolos e dos ritos joga um papel decisivo. A floresta incomunicável é carregada de significados simbólicos. Pode significar “o lugar das origens, do mistério primordial”; o silêncio da “noite cósmica”; o túmulo; o seio materno. Neste sentido, o desaparecimento dos iniciandos e o seu isolamen-to na floresta tem o profundo significado de morte, de “regresso às origens” e de retorno ao mundo embrionário onde, no silêncio, se prepara a gestação do novo ser, o renascimento do homem adulto.

A reintegração Durante o tempo da reclusão e do isolamento na floresta, deu-se a morte

definitiva da criança e o renascimento do homem adulto. A morte definitiva da fase anterior é fortemente significada também pelo acto de destruição total de qualquer vestígio da sua passagem pela floresta. Tudo aquilo de que se serviram, durante o tempo da reclusão, é destruído, enterrado ou queimado. Fazem jura-mento de fidelidade aos segredos da iniciação e de pôr em prática, na própria vida, os ensinamentos recebidos em fraternidade. Sentem-se ligados por laços de lealdade fraterna aos membros do grupo.

O iniciado é de novo apresentado à Comunidade, já como um membro de plenos direitos e deveres, como alguém assumido pelos antepassados e transfor-mado em guardião dos segredos e da tradição dos antigos. Recebe um acolhi-mento jubiloso, um nome novo e um vestido novo.

De todo este processo iniciático, “o que importa é que a passagem seja clara

e que produza o efeito desejado: morrer para o passado, nascer para uma vida nova”12.

3. A RELIGIÃO TRADICIONAL: ELEMENTO ESTRUTURANTE E BÁSICO DA CULTURA TRADICIONAL AFRICANA

12 Ibid. p. 20

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1. Profundo sentido religioso na base da cultura africana

Os Africanos têm uma concepção profundamente religiosa da vida e da existência. O sobrenatural penetra e anima tudo. A religiosidade cobre todas as esferas da existência e influencia os comportamentos individuais e colectivos. O Africano é um ser profundamente religioso, envolvido num mundo de participa-ção religiosa que começa antes mesmo do seu nascimento e se prolonga para além da sua morte física.

Não poderá conhecer verdadeiramente o Africano, nem compreender os

seus problemas e comportamentos, quem ignorar as suas crenças, as atitudes e as práticas tradicionais. A religião é o elemento mais forte e dominante da Cultura Tradicional Africana.

Entendemos por religião o conjunto de ideias, de crenças, de atitudes, de

ritos, de normas, de celebrações e de símbolos, elaborados de forma organizada e sistemática a partir da experiência de uma comunidade humana, no esforço de traduzir a sua relação e comunicação com o mundo espiritual e sobrenatural. Esta experiência vivida por uma Comunidade é retomada e aprofundada pela reflexão; é traduzida em fórmulas e transmitida de geração em geração pela tra-dição oral. Em alguns povos, esta tradição oral foi condensada em “escrituras sagradas”, mas na África tradicional mantém o seu carácter exclusivamente oral. Nem por isso, porém, ela deixa de ser uma verdadeira e autêntica religião, que cobre toda a pessoa e toda a sua vida, e determina profundamente a sua lingua-gem, o pensamento, os medos, as opções e as atitudes individuais e comunitá-rias.

As crenças e as ideias religiosas dos Africanos não estão formuladas em

dogmas e credos para serem decorados e recitados da mesma maneira por todos, mas estão profundamente inscritas no coração e na vivência de cada indivíduo, na história e nas tradições das famílias, nos usos e nos costumes das tribos e etnias. A recitação e as práticas concretas hão-de variar com as famílias e com os desafios a que devem responder, mas os conteúdos essenciais são os mesmos. Existe um sistema religioso coerente, dentro do qual o indivíduo encontra as informações necessárias para se orientar de modo harmonioso e integrado na vida, dentro do seu mundo e da sua comunidade. Querer ignorar isto, é falhar redondamente no caminho do diálogo com a Cultura Tradicional Africana.

2. A Religião Tradicional Africana, abertura ao Deus

único e transcendente

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O facto da Religião Tradicional Africana invadir todos os domínios da vida, da actividade e do pensamento, levou muitos ao erro e à confusão, quando tentaram abordar a questão da religião tradicional africana, definindo-a simples-mente como “Animismo” e como “Vitalismo”, entre outros nomes.

2.1. A Religião Tradicional Africana não é, nem “animismo”, nem “vitalismo” Por “animismo”, entende-se, geralmente, a religião do culto de adoração às

almas ou espíritos, constituindo um impedimento ao verdadeiro culto a Deus, segundo o Evangelho.

É verdade que a crença, a veneração e a reverência aos espíritos e aos defuntos, familiares ou não, é uma componente importante da religiosidade tra-dicional africana. Esta referência, porém, não é o único fenómeno do universo religioso africano, nem esgota o imenso campo das manifestações e das expres-sões da religiosidade tradicional africana.

O mesmo se deve dizer quanto ao conceito “Vitalismo”, usado por alguns estudiosos para caracterizar a cultura e a religião africanas. Vitalismo, seria uma concepção da realidade centrada sobre a vida. Uma espécie de culto à vida, leva-do ao exagero. Também é verdade, como dissemos acima, que o conceito chave da participação vital é determinante na Cultura Tradicional Africana. Para o Africano, toda a realidade é animada de vida: “ser é viver”. Não existe nada que seja essencialmente morto. Mesmo assim, não seria justo reduzir toda a riqueza da religiosidade tradicional africana a um puro vitalismo.

Afirmar que tudo é só “animismo” ou “vitalismo” é um reducionismo empobrecedor, semelhante a um indivíduo que entrasse numa grande floresta com imensa variedade de espécies de árvores e, parando diante de uma, pensasse que aquela única árvore fosse toda a floresta. Sem dúvida, que a religiosidade popular e a devoção dos Santos são aspectos importantes da religiosidade cristã, mas seria um erro grave reduzir todo o Cristianismo só a essas suas duas dimen-sões.

2.2. A Religião Tradicional Africana é uma experiência Comunitária do Clã Um dos valores mais nobres da Cultura Tradicional Africana é a concepção

comunitária da vida. A sociedade tradicional africana encontra o seu centro vital na comunidade da família alargada ou clã, que integra pessoas irmanadas por fortes laços morais, religiosos, espirituais, de parentesco, de alianças, com um património tradicional comum, fielmente conservado e transmitido às gerações mais novas. A comunidade Clânica é o principal meio de aculturação, na medida em que oferece os modelos de integração e de identificação com a própria cultu-ra materna.

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Mais do que todas as outras instituições tradicionais, a comunidade-família é, em África, o elemento integrativo de maior solidez e coesão. A religião tradi-cional africana está intimamente ligada a esta instituição central, da qual tira a sua principal força e actualidade. Mário Ignácio Aguilar afirma a este respeito que: «As práticas religiosas de África estão directamente relacionadas com a pertença a uma comunidade que tem sua própria cosmologia, crença e ritual. Cada uma dessas cosmologias expressa uma visão por parte de um povo africa-no acerca das suas origens, da criação do mundo e da relação permanente entre o mundo terreno e o mundo espiritual, ou divino. A relação entre o divino, o sobrenatural e o humano expressa-se em contexto comunitário, através da cele-bração de ocasiões comunitárias em que as ideias cosmológicas e a relação entre as pessoas e os seres espirituais é recordada, actualizada e celebrada.»13.

As crenças religiosas, bem como as suas práticas rituais são herdadas dos

antepassados fundadores do clã e definem a identidade e a pertença étnica e cul-tural do indivíduo. Tomar parte nas celebrações religiosas tradicionais é exprimir a comunhão e a identificação com o seu povo; é assumir como próprias, as ori-gens do Clã e é renovar as experiências históricas, os mitos e as tradições comuns a toda a Comunidade.

Os mortos são membros efectivos da comunidade familiar e são os guar-

diães e os protectores dos familiares vivos. Ainda hoje, não há nada de bom ou de mal que aconteça na vida dos vivos que não seja conotado, directa ou indirec-tamente, com a vontade dos defuntos da família. Se tudo corre bem na família, é porque os antepassados estão satisfeitos; significa que os vivos observam os ensinamentos e as tradições legadas. Mas se as coisas correm mal, se o feiticeiro entra em casa e perturba a vida e a saúde da família, é porque as “sentinelas familiares”, os antepassados do Clã não estão contentes, e deixaram de proteger a casa, permitindo, assim, a entrada do inimigo.

Por sua vez, os antepassados dependem dos seus familiares vivos para se

alimentarem e continuarem vivos. Estabelece-se, desta maneira, um verdadeiro “comércio familiar”, entre os vivos e os mortos. Os vivos necessitam de recorrer aos mortos para a vida lhes correr bem e os antepassados só se mantêm vivos na medida em que são recordados, invocados e alimentados pelos seus descenden-tes vivos.

A religião tradicional africana nasce, portanto de uma experiência comuni-

tária e familiar de Deus e do sagrado, herdada dos antepassados. Pertence-se a

13 AGUILAR, Mário I., Dios en Africa, elementos para una antropologia de la religion, Estella (Navarra) (1997) p. 25

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um tipo de religiosidade, não por conversão, mas por nascimento. Na religião tradicional africana não há lugar para proselitismo missionário. Não há preocu-pação de converter ninguém para a religião do outro clã. Mas aceitam-se e res-peitam-se todas as formas de religião

Este aspecto comunitário e familiar, por mais importante que pareça, não

permite reduzir a Religião Tradicional Africana a puro fenómeno sociológico, destinado apenas a promover e a manter a comunhão, a organização e a sobrevi-vência de um determinado grupo étnico. Seria outro reducionismo empobrece-dor.

Na verdade, existe na religião africana tradicional uma verdadeira dimensão

espiritual e transcendente, embora misturada com outros elementos ainda não purificados, como o culto dos antepassados, a adivinhação e a magia.

2.3. A Religião Tradicional Africana reconhece um Deus único e transcendente Contrariamente ao que muitos pensam, a religião tradicional africana não é

politeísta. Os Africanos acreditam num único Deus Transcendente, Criador e Senhor de todas as coisas. Neste ponto não há variações em toda a África. A transcendência absoluta de Deus na Religião Tradicional Africana é garantida em todas as tribos e etnias, embora variem muito os nomes de Deus e as formas de expressar a relação com Ele.

John Mbiti investigou o conceito de Deus em cerca de 300 povos Africanos

tradicionais para escrever o seu livro Conceitos de Deus em África (1969). No final do seu estudo, apresentou esta conclusão: “Em todos estes povos, sem uma única excepção, os homens conhecem um só Deus que é o ser supremo.”14

Esta mesma verdade foi já constatada desde o início pelos primeiros mis-

sionários que entraram em contacto com os povos africanos. O Padre Gonçalo da Silveira, em 1560, falando da religião dos Tonga, dizia: “...nenhum tem nenhum género de ídolo nem culto que pareça de idolatria. Têm um Deus ao qual cha-mam Umbee.” 15

Na Guiné Bissau, os missionários, acerca da Religião Tradicional, escre-

vem assim: “Embora com diferenças sensíveis entre as várias etnias, podere-mos, no entanto, dizer que em todas elas se manifesta a crença arreigada num

14 MBITI, J. African religions and Philosophy, Nairobi, (1985), p. 29. 15GARCIA, A., História de Moçambique Cristão, Lourenço Marques

(1969), pp.100.

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Ser Supremo, Criador e Senhor de tudo o que existe. Esse Ser supremo tem vários nomes, conforme os diferentes povos que a praticam.”16

O Papa Paulo VI, na sua Encíclica Africa Terrarum, n. 8, descobre e revela

aos cristãos do Ocidente uma grande novidade: “A ideia de Deus como causa primeira e última de todas as coisas, é elemento comum importantíssimo na vida espiritual da tradição Africana. Esse conceito, percebido mais que analisado, vivido mais do que pensado, exprime-se de modo bastante variado, de cultura para cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra a vida Africana, como a presença de um Ser Superior, pessoal e misterioso.”17

Estes testemunhos que afirmam o carácter monoteísta da religião tradicio-

nal africana, parecem estar em contradição com a prática religiosa geralmente observada em toda a África tradicional que é centrada sobre os espíritos, a quem se dirigem as orações, as oferendas e os sacrifícios. Parece contradizer também a opinião do Pastor Henry Junod que, no seu livro, Usos e costumes dos Bantos escreve: “Todo o homem que deixou esta vida terrestre tornou-se um chikwem-bo (espírito), um deus. E ainda: “como todo o ser humano se torna um Chik-wembo (deus) após a morte, o resultado é haver diversas categorias de antepas-sados-deuses18. Aqui estamos num terreno extremamente complexo do fenómeno espiritual africano. Henry Junod ficou confundido e não entendeu nada19.

16 VICENTE, João D., ASSOCIAZIONE RETE GUINEA BISSAU ONLUS, Gui-né Bissau (Verona), edição bilingue, 2004.

17 PAULUS VI, Africa Terrarum, n. 8. 18 JUNOD H., Usos e costumes dos Bantos, Lourenço Marques (1974), p.337-338 19 Henry Junod cometeu um grande erro de distinção de nomes. A Palavra chik-

wembu normalmente usado no plural swikwembu refere aos espíritos de possessão, dotados de conhecimento sobre o passado, o presente e o futuro, de poderes sobre os espíritos maus e poderes medicinais contra doenças de todo género. Não são almas de pessoas mortas de quem o povo se recorde ou reconheça pelo nome. Nunca são antepas-sados do Clã, mas são forasteiros e desconhecidos. Já perderam a imortalidade pessoal, tornando-se espíritos puros. Esses espíritos, porém, podem apossar-se de pessoas para operar o bem, para defender a família, para combater os espíritos maus e vingadores. Mas recebem o seu poder do Espírito Supremo, “Chikwembu Nkulukumba”, que é Deus. Mas Chikwembu Nkulukumba não se confunde com os swikwembu, porque é sumamente transcendente. As pessoas, quando morrem, tornam-se espírito, mas não deuses, porque um só é o Espírito Supremo. Mas H. Junod deu-se conta da sua confusão diante do panteão espiritual africano. Nas páginas 388 do mesmo livro, ele reconhece que: os antepassados “jamais passam de humanos. Não são seres transcendentes... o seu poder é limitado e falta-lhes o carácter moral... sabem o que respeita aos seus descenden-tes, abençoam-nos, ou punem-nos, mas são absolutamente indiferentes aos outros homens”. E na página 440 descobre que os “os deuses ou espíritos, a quem se atribui o

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A seguir, mostraremos como na religião tradicional africana, se faz clara

distinção entre Deus, Espírito Supremo, criador e fonte única da vida e de todos os bens, e os espíritos dos antepassados, que são apenas intermediários indispen-sáveis para fazer chegar aos homens as graças que vêm de Deus.

3. O significado da veneração dos Antepassados Na concepção africana do universo, o segundo nível na pirâmide da exis-

tência a partir do topo, é ocupado pelos espíritos. Estes são situados abaixo de Deus e acima das pessoas humanas. Pela sua situação privilegiada na hierarquia dos seres, os espíritos têm acesso directo a Deus e têm grande influência na vida dos vivos.

Toda a pessoa humana é destinada a tornar-se espírito. Ser espírito é, para os africanos, a vocação última do ser humano e o desfecho do processo normal do seu amadurecimento. John Mbiti escreve: “Ela (a pessoa humana) necessa-riamente se tornará espírito como, em circunstâncias normais, a criança cresce e, automaticamente se torna adulto.” 20

O relacionamento entre o Deus único e os seres humanos só se torna possí-

vel através de intermediários espirituais. Frei João Dias Vicente escreve o que observa nas etnias da Guiné-Bissau: “O ser Supremo existe mas não tem relação directa e muito frequente com as criaturas humanas. São sobretudo os espíritos intermédios que desempenham essa função em relação aos homens, tanto para o bem como para o mal, tanto para a protecção como para a desgraça.”21

Normalmente, os espíritos são invisíveis, embora a sua presença e influên-

cia sejam fortemente sentidas até nos mais pequenos acontecimentos da vida da família e dos indivíduos. Em momentos particularmente intensos da família, os antepassados podem manifestar-se através de sinais, sonhos, fenómenos estra-nhos para enviar uma mensagem aos vivos. Só os adivinhos podem dar a inter-pretação autêntica destes sinais e revelar o seu significado à comunidade.

poder de possessão de seres humanos, “swikwembu “, não são os antepassados dos Ton-ga, os antepassados-deuses, mas sim os espíritos dos zulos e os dos ndaus”.

20 MBITI J., African Philosophy and Religions, Nairobi,1985, p.77 21 VICENTE; João D. , ASSOCIAZIONE RETE GUINEA BISSAU ONLUS,

Guiné Bissau (Verona), edição bilingue, 2004.

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Há, no panteão africano, várias categorias de espíritos, mas são os espíritos dos antepassados de cada clã que garantem a ligação dos seus descendentes com Deus. O dom da vida e a sabedoria da tradição oral têm a sua fonte em Deus e são directamente comunicados por Ele ao patriarca fundador do clã, o qual transmite essa força vital aos seus descendentes, de geração em geração, até hoje. Deste mesmo canal se servem os vivos para aceder à fonte da energia vital que é Deus.

O Africano faz uma profunda experiência da bondade e da suma misericór-

dia de Deus, Fonte permanente de todo o bem e de todas as graças que o homem necessita para viver e ser feliz aqui na terra. No conceito africano da providên-cia, Deus nunca cessa de comunicar a vida ao homem, nem espera pelo pedido do homem, pois Ele conhece e acompanha com amor paternal todas as necessi-dades dos seus filhos. Com Deus, o homem africano nunca tem problemas. Lou-va, venera, adora e agradece a Deus pela sua infinita misericórdia para com os homens. Não há atitudes de medo, directamente referidos a Deus, porque Ele nunca faz mal ao homem. De facto, não consta que haja rituais e cerimónias mágicas para defender as pessoas contra os males causados por Deus. Não há nenhuma desgraça que vem de Deus contra o homem. Portanto, não há necessi-dade de fazer sacrifícios para aplacar a ira de Deus.

Os Africanos temem, sim, principalmente a interferência negativa dos feiti-

ceiros que têm o poder de manipular magicamente a força vital e os espíritos maus contra as pessoas, causando-lhes toda a sorte de desgraças. A maior parte das cerimónias e ritos da Religião Tradicional destinam-se a apaziguar estes espíritos e a neutralizar a acção dos feiticeiros.

Deus não intervém directamente em defesa das pessoas contra os males dos

feiticeiros, porque esta é tarefa específica dos intermediários espirituais, os ante-passados do Clã. Eles receberam plenos poderes para comunicar a vida aos seus familiares vivos e para os defender, eficazmente, contra a acção dos feiticeiros e dos maus espíritos. Nenhuma força maligna consegue atingir uma família que está em plena comunhão e harmonia com os seus antepassados. Se alguma des-graça entra na família, é porque qualquer coisa não vai bem no relacionamento entre os vivos e os seus defensores familiares, e estes relaxaram as defesas.

O problema está, precisamente aqui: os antepassados, apesar de viverem

numa dimensão espiritual, continuam a ser humanos, a manter tendências e exi-gências próprias dos homens: querem comer, querem carinho, querem ser recor-dados para não caírem na lei do esquecimento. Se os vivos se distraírem no cumprimento das suas obrigações de honrar os seus defuntos, estes, ficam zan-gados e bloqueiam toda a comunicação vital.

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Eis a razão porque todo o africano faz tudo para manter viva a sua ligação

com os seus antepassados, que ele acredita estarem vivos e fazendo parte da família dos vivos, embora numa dimensão espiritual. A família deve fazer ritos e orações para restabelecer a harmonia da comunidade dos vivos com os seus defuntos, cerimónias e rituais para expulsar os espíritos maus, e ritos para neu-tralizar os feiticeiros.

É neste sentido que aparece o aspecto negativo da Religião Tradicional: o

medo que faz que ela assuma, por vezes, aspectos de magia. Esta característica de intermediação tem induzido muitos no erro de considerar esta religião como politeísta.

O culto tradicional aos espíritos dos defuntos não é um culto de adoração.

Não é uma idolatria. Na verdade, nos nomes com que se designa Deus nas lín-guas africanas, não se notam resquícios de idolatria, ou de politeísmo. Os nomes de Deus não têm nenhuma ligação com nomes de seres criados ou de fenómenos atmosféricos, etc. No pensamento religioso africano, Deus conserva a sua abso-luta transcendência e intocabilidade acima de todos os seres por Ele criados, inclusive os espíritos. Os africanos não reconhecem divindades inferiores. Nem mesmo os antepassados fundadores do clã são considerados deuses. A própria magia banto que tem poder para manipular todos os poderes e coisas criadas, inclusive os espíritos, nunca imaginou manipular a Deus.

4. Crença na imortalidade da alma e na vida para além-túmulo Para os africanos a morte não é aniquilamento do ser humano, nem é o nau-

frágio e a frustração total da vida. A crença na vida ou na imortalidade, é muito forte nos africanos. A pessoa não morre, “ela parte para a grande viagem”, ou “vai juntar-se aos seus antepassados”.

Na verdade, para os africanos, os mortos não estão mortos, continuam vivos e participam da vida e dos acontecimentos da sua família, do seu clã. O africano não teme tanto a morte física, mas tem um medo terrível de morrer sem deixar descendência. A morte verdadeira acontece quando a pessoa cai no esquecimento e ninguém mais se lembra dela. Somente os filhos directos são a garantia do prolongamento, até ao máximo, da imortalidade pessoal.

Todas as manifestações e práticas religiosas da Cultura tradicional são ins-

piradas por esta forte crença na imortalidade da vida que atinge a sua plenitude na comunhão com Deus. O africano vive a sua existência “na forma gradual de participação vital, no interior da qual o homem descobre incessantemente que a sua verdadeira vida começa para além da morte, na plenitude com a fonte da

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vida, isto é, com Deus22.” Os ritos e as cerimónias religiosas são a forma de manter sempre viva esta intimidade com a Fonte da Vida.

Daqui se deduz a importante função social e o valor espiritual que tem o

culto dos antepassados na Cultura Tradicional Africana. Elas celebram o memo-rial das origens e da história da família; renovam e estreitam os laços de unidade e de comunhão dos membros vivos; renovam a consciência de pertença a um passado comum, com um património sociocultural comum e chamados a um destino comum. Nestas cerimónias são recordados e reassumidos os valores e os ideais fundamentais que servem para projectar o futuro, com confiança e espe-rança.

Num artigo sobre o valor das celebrações dos defuntos entre os Vatonga, escrevia: “A celebração das parentais aparece aqui na sua função e significado mais profundos: como ocasião privilegiada do reencontro da grande família clânica, como momento forte da tomada de consciência de ser um povo que tem um chão e uma cultura em que assentam as suas raízes e donde tira a força para construir o futuro. A grande Família constituída pelos vivos e pelos mortos está convocada, em Assembleia, para celebrar a sua unidade, para comemorar a sua origem e o seu passado comum e para renovarem as suas esperanças....”23

Estas celebrações são realmente os arquivos e as bibliotecas, tesouros cultu-rais inestimáveis; são as escolas e as universidades onde se actualiza e transmite a Cultura Tradicional Africana. O abandono puro e simples destas práticas leva-ria a um suicídio ou genocídio cultural, com consequências desastrosas para o futuro de toda a África. Confirma isto a grande desorientação das novas socieda-des africanas urbanizadas com todos os seus desequilíbrios.

5. Formas e modos de exprimir a religiosidade tradicional africana Os Africanos respondem à sua sede espiritual de muitos e variados modos.

Esta resposta é expressa em forma de culto exteriorizado em actos e dizeres. As formas mais comuns de os africanos exprimirem a sua religiosidade tradicional são as orações, as invocações, as bênçãos e as saudações. Estes actos de culto podem ser formais e ou informais, regulares ou espontâneos, comunitários ou individuais, elaborados ou simples. A oração acompanha todas as circunstâncias da vida da pessoa. Ela pode acompanhar ou não, de sacrifícios e oferendas. Não há actividade que não seja consagrada pela oração. Trata-se de orações simples, curtas e espontâneas, na maioria das vezes não verbais. Nas grandes cerimónias as orações, por vezes, tornam-se longas, formais e estilizadas, estruturadas em

22 AGOSSOU, M.., “Exigências evangélicas e antropologia africana” Concilium, Junho 126 (1977) p. 366

23 AMARAL B., A celebração da Mhamba entre os Vatonga, Maputo (1993), p.6

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quatro partes: invocação, louvor, súplica e conclusão. As expressões variam con-forme as regiões, os clãs e as famílias, mas o princípio essencial mantém-se o mesmo. Em todos elas o culto é expresso em formas exteriorizadas e, preferen-cialmente, pronunciadas e cantadas mais do que meditadas.

As danças e os gestos são parte importantíssima da expressão cultual afri-cana, na medida em que a dança é a celebração da vida. É o corpo que fala por si mesmo e pelo espírito. Reproduzindo as danças tradicionais e os rituais herdados dos antepassados, o africano reintegra-se nas suas origens, recapitula a sua histó-ria, interioriza a sua identidade, vibra ao ritmo da natureza e abre-se à vida, res-tabelecendo a ordem, a comunhão e a harmonia universal. Desta forma, ele reali-za a participação comunitária na força vital.

O Povo Africano dirige as suas orações directamente aos seus antepassa-

dos, que são a ponte obrigatória que liga os vivos a Deus. Nas orações comunitá-rias e oficiais é, geralmente, o membro mais velho do clã que preside.

4. AS SETE CATEGORIAS EXISTENCIAIS DA CULTURA TRADICIONAL AFRICANA

A imensa e secular riqueza de valores humanos e espirituais da Cultura

Tradicional Africana revela-se, de uma forma natural e espontânea, na vida con-creta das pessoas, das famílias e dos povos africanos: nas suas convicções, cren-ças, ritos, cerimónias e atitudes, e nos seus comportamentos em relação ao sobrenatural, ao cosmos, à pessoa humana, à sociedade, ao mistério da vida e da morte, etc.

Vendo a facilidade com que a mensagem e os valores franciscanos são

favoravelmente acolhidos em todos os povos africanos, pode-se concluir que o carisma franciscano encontra profundo eco na alma e nos valores que informam a cultura tradicional desses povos. Os africanos identificam-se facilmente com muitos aspectos da vida e da espiritualidade franciscana, por exemplo: a profun-da fé em Deus, sumo Bem, a fraternidade, a solidariedade, o amor à vida e aos filhos, como dom de Deus, o amor à criação, etc.

Ao falarmos da Cultura Tradicional Africana, não ignoramos a pluralidade

e a diversidade de formas culturais existentes no continente. A África, nos seus 53 países é, de facto, um variadíssimo mosaico de povos, de etnias, de tribos, de clãs e de culturas, aparentemente muito distintas umas das outras: Hamite-Camitas, Nilóticos, Sudaneses, Banthu, Khoisane, Malgaxes e Árabes. Mas tam-bém é impossível negar a unidade fundamental, tão evidente na caracteriologia

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étnica, nas crenças religiosas e nas manifestações da cultura e da civilização negro-africana, comuns em todos os povos do Continente.

Por outro lado, durante muitos séculos, as migrações, os esforços para se

adaptar a meios e ambientes diferentes, a aquisição de novos modos e experiên-cias de vida, os encontros e a comunicação com outros povos e culturas; o impacto da colonização, da modernidade e da globalização, introduziram signifi-cativas mudanças em muitos aspectos da Cultura Tradicional Africana. Todos estes processos fizeram que a unidade primitiva conhecesse evolução em direc-ções diversificadas, dando origem às diferenciações culturais que encontramos hoje em África.

Contudo, a herança comum primitiva não foi completamente destruída. Ela

continua activa, como um rio subterrâneo a fecundar, a inspirar e a influenciar as novas aquisições culturais em cada um dos povos actuais. Nisto reside a razão fundamental que explica a incrível semelhança de concepção do universo, do sistema religioso, educativo, social e económico, a alta percentagem de vocábu-los comuns nas diferentes línguas, mesmo as mais distantes geograficamente.

A nossa reflexão parte dos seguintes pressupostos: 1) a pluralidade e a

diversidade não são negação da unidade original; 2) a evolução não é destruição total do ser original. A minha experiência das visitas às várias regiões da África, leva-me a concluir que, apesar da diversidade de formas e de expressões, existe em toda a África negra uma fundamental unidade cultural de base, que se mani-festa nos seguintes aspectos: o princípio da relação e da participação comunitária na força vital universal; a profunda religiosidade e abertura ao sagrado (trans-cendente espiritual); a crença na imortalidade e na intermediação dos espíritos (dos antepassados); a prevalência do bem comum sobre os interesses individuais; o forte sentido de família alargada; o valor da solidariedade, hospitalidade e par-tilha; o amor à vida e à fecundidade; o respeito e a veneração pelos mais velhos e pelas crianças; o sentido de paciência e de esperança na vida, etc.

Vejamos como estes aspectos da Cultura Tradicional Africana que, de ago-

ra em diante, será representada pela sigla CTA, se articulam e se manifestam a partir das sete categorias existenciais que nos foram propostas como base da nossa reflexão.

1. A escuta A sociedade tradicional africana e a sua cultura são estruturadas em função

da oralidade. O pensamento, a acção e a relação são organizados de acordo com os princípios ditados pela tradição herdada dos antepassados e oralmente trans-

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mitida de geração em geração. Nela a palavra falada, proclamada, cantada ou, simplesmente gesticulada, desempenha um papel de extrema importância. É a palavra que articula, explica e esclarece os mecanismos que regem os vários aspectos da vida da comunidade: o religioso-sagrado, o poder-político, e o direi-to legislativo. É ainda a palavra primordial pronunciada pelo patriarca fundador do clã que indica a direcção certa, em caso de dúvida; que estabelece a comu-nhão e restaura a harmonia, em caso de conflitos e contrastes.

Na CTA a palavra é a ponte de unidade e continuidade entre o passado, o

presente e o futuro. A palavra ritual recria o cosmos e garante a continuidade da unidade vital universal.

Sendo a oralidade um traço estruturante importante da CTA, essencialmen-

te fundada sobre a palavra, é óbvio que a capacidade de escuta seja a virtude mais apreciada na sociedade tradicional africana. Uma característica fundamen-tal desta cultura é a exigência de fidelidade ao conteúdo da mensagem (tradição), herdada dos antepassados e que deve passar de geração em geração, através dos séculos, sem perder a sua força unificadora e iluminadora do clã.

Para mostrar o quanto é importante a escuta para os africanos, bastaria ver o

espaço e o tempo que se lhe dedica na vida, na linguagem e no relacionamento entre as pessoas, bem como as cerimónias e os ritos que a rodeiam.

Em muitos povos africanos, como por exemplo entre os Vatonga, os

Vatshwa, os Vatxopi, os Varonga, o termo usado para dizer “ouvir”, tem uma significação que vai para além da simples actividade sensorial do ouvido. Ouvir (gupwa) é usado para exprimir todas as impressões e vivências interiores. Diz-se: “ouvir fome”, “ouvir sofrimento”, “ouvir amor”, “ouvir alegria”, “ouvir paz”, etc.24 Portanto, “gupwa” é fazer uma experiência global da realidade.

Da mesma maneira o verbo “escutar” (gu yingisa), tem uma significação

muito ampla. Em Gitonga “gu yingisa” não significa apenas ouvir, significa sobretudo obedecer, conformar-se com os princípios estabelecidos, acatar as ins-truções e normas recebidas. Escutar (gu yingisa) significa também viver e com-portar-se de acordo com os ensinamentos recebidos dos mais velhos, os detento-res da experiência da vida e da sabedoria. Isto mesmo vale para a forma negativa do verbo. Quando se diz que uma pessoa não escuta “kha yingisi” pode signifi-car que não ouve, como também e sobretudo, significa que tal pessoa não tem capacidade de escuta; não vive conforme as normas vigentes; não aceita (ou

24 “Gupwa ndzala”, “gupwa wuvi”, gupwa lihaladzo”, “gupwa gunengela”, “gup-wa gurula”

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resiste) o processo de conversão; não cresce, não revela amadurecimento nas suas atitudes.

Os jovens devem desenvolver a capacidade de escutar atenta e silenciosa-

mente, de modo a não perder os mínimos pormenores do quanto lhes é transmi-tido oralmente pelos anciãos. O escutar africano envolve toda a pessoa. Não se trata de escutar só com os ouvidos, mas com o coração (rula monyo u yingisa); com o entendimento (rula wongo u yingisa) e com todo o próprio ser (rula u yingisa). Desta maneira, escutar adquire um significado muito profundo. Escu-tar, é interiorizar, assimilar e guardar as experiências da memória colectiva do clã, para poder transmiti-las, como se delas tivesse participado directamente. Escutar, é mergulhar na experiência fundante daqueles que estiveram na origem da tradição. Assim, quando um africano narra os acontecimentos da história dos seus antepassados, diz: “nós”, como se ele tivesse estado presente e fosse prota-gonista e testemunha directa do que está a contar.

Outra característica importante da CTA é a escuta atenta, afectiva, paciente

e respeitosa. O africano tem todo o tempo para escutar o seu interlocutor. Não cortará nunca a palavra que ainda está a ser pronunciada, porque esta palavra traz a força, a vida e a personalidade daquele que fala.

A escuta-presença solidária, muitas vezes silenciosa mas intensa, é outra

característica muito comum nos africanos. Junto ao doente, à pessoa angustiada, sobretudo em caso de morte de alguém, os amigos permanecem horas e horas e até dias, não para dizer palavras, mas simplesmente para estar presentes. Esta presença acompanhada de gestos simples, de atenção, de um sorriso, de um olhar de amizade produz efeitos muito benéficos no coração e na alma do outro.

Para terminar esta reflexão sobre a escuta, penso ser importante referir que

em muitas culturas africanas, a pessoa sábia há-de ter orelhas grandes para escu-tar tudo e olhos grandes para ver tudo, mas boca pequena para falar pouco. Aos emissários e portadores de mensagens que cruzam os caminhos africanos reco-menda-se que tenham quatro olhos, quatro orelhas e uma só boca, para significar que devem dedicar toda a sua atenção e todo o tempo possível a escutar e a observar a realidade, mas falar o mínimo e só quando for necessário. O tagarela não é admitido no conselho25 dos anciãos, onde são tomadas as decisões mais importantes da vida do clã.

25 O adágio tonga diz: “Khokho nya maguru kha yi beli namboni muthu nya mambwaga kha beli huwo”, que quer dizer:“o fala-barato não entra no conselho (pala-bre)”.

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2. O Encontro A sociedade tradicional Africana é fortemente marcada pelo sentido do

encontro. A vida é um encontro. Viver, é encontrar continuamente novas terras, novas realidades, novas pessoas e novas experiências. Isto pode explicar essa forte tendência natural do africano para inventar ocasiões de encontro, de cele-bração e de festa. Também nisto se há-de encontrar a raiz da irresistível atracção dos africanos pelo mercado, não tanto como lugar de compra e venda de artigos, mas sobretudo como lugar de encontro, de rever amigos, de renovar laços e de obter novas experiências.

Desde o seu nascimento, a criança africana é iniciada, através de cerimónias

e de rituais de apresentação, num processo gradual de encontros com os diferen-tes níveis da existência, até se harmonizar completamente com todas as forças que constituem a unidade e a participação vital de todo o cosmos.

Depois do parto, a mãe e a criança não podem sair do lugar abrigado, antes

de pelo menos sete dias, até que se realizem todas as cerimónias e rituais de apresentação do novo ser aos elementos essenciais da Natureza: a terra, a água, o ar (nos seus quatros ventos ou pontos cardeais) e o fogo.

Com estas cerimónias, a criança é integrada e harmonizada com as princi-

pais forças cósmicas para que não seja por estas fulminada como elemento estra-nho ao sistema. Depois, seguem-se os ritos de apresentação e harmonização com as pessoas, com o clã e com a sociedade. Com estes ritos, dá-se o nascimento social, étnico e cultural da criança. Nestes dias, o recém-nascido como que é ritual e simbolicamente iniciado nas tradições e nas actividades que caracterizam o clã: caça, pesca, agricultura, pastorícia, guerra, etc. Nos clãs dedicados à caça, colocam na mãozinha da criança de sexo masculino um pequeno arco simbólico, enquanto se pronunciam votos para que ela cresça e se torne um homem robusto, capaz de alimentar a sua família com o fruto da sua caça. Às meninas, fazem-nas pegar num cestinho de palha, símbolo dos cuidados domésticos.

No dia da saída da criança com a sua mãe, faz-se um grande encontro de

festa com a presença de toda a gente: os membros da família alargada, os paren-tes, os amigos, os vizinhos, etc. Dá-se o primeiro encontro do recém-nascido com a sociedade alargada para além das fronteiras do seu próprio clã. Nesse dia, atribui-se oficialmente à criança um nome de família previamente designado pelo oráculo dos antepassados, ou inspirado por estes em sonhos ao ancião do clã.

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Na árvore dos antepassados dá-se o nascimento religioso, a apresentação ritual do recém-nascido aos seus antepassados protectores. O seu nome é pro-nunciado pela primeira vez publicamente e aclamado por toda a assembleia reu-nida. Este rito aplica-se para crianças de ambos os sexos, com as respectivas adaptações. Tratando-se de uma menina, diz-se: “Tu te chamarás (fulana) … sê boa dona de casa e saibas compreender o teu marido; sê fecunda e boa educadora da tua família, como o foi a aquela de quem recebes o nome. Agora, o recém-nascido já é uma pessoa com um nome próprio dentro do clã, deve ser acultura-do através de uma educação que lhe permita assumir, identificar-se e harmoni-zar-se completamente com o seu clã, assumindo as normas e os valores culturais dos seus antepassados. Usará este nome até ao fim dos ritos de iniciação, que têm lugar na juventude, quando o iniciado poderá escolher para si mesmo, o seu nome de adulto.

O encontro com o “outro”, expande-se e amadurece ao longo da vida, atra-

vés de uma densa rede de relacionamentos de amizade e de alianças, dentro e fora do clã, para atingir a sua expressão máxima no casamento e na transmissão da vida pela geração de filhos. Estes encontros continuam com os pactos e alian-ças que permitem ao indivíduo estender ao máximo a rede dos seus encontros, isto é, da sua influência nos outros clãs. Por isso, o ancião africano procura ter muitos filhos e filhas para poder casá-los em vários clãs e ampliar assim o seu prestígio e influência social.

O encontro com a morte é outro momento solene na vida do Africano. Este

encontro é preparado antecipadamente, ainda em vida da pessoa e é prolongado por longo tempo depois da sua morte física. O encontro com a morte é, em Áfri-ca, um encontro que, por sua vez, ocasiona e motiva encontros entre si dos membros vivos da família, destes com os antepassados e com o cosmos, através de cerimónias e rituais destinados a restaurar a harmonia e a participação vital universal lacerada pela morte. O encontro com a morte abre a porta para o encontro definitivo com os espíritos dos antepassados. Esta é a aspiração máxi-ma do africano: atingir a plena maturidade de pessoa humana, tornar-se um espí-rito protector e entrar na comunidade daqueles que já ultrapassaram a barreira da morte e se dedicam agora a garantir a vida, a felicidade e a harmonia dos seus descendentes.

A celebração das parentais (culto aos antepassados), é uma ocasião privile-

giada do reencontro da grande família clânica: os vivos e os mortos, para cele-brarem a sua unidade como família; para comemorarem a sua origem e o seu passado comum; para renovarem as suas esperanças no futuro.

3. Acolhimento e hospitalidade

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Bom lar (boa família), é aquele que acolhe hóspedes: “Ndranga nya yadi khiyo nya vapfhumba” Entre os valores que caracterizam a CTA, figuram também a hospitalidade

e o acolhimento. Em muitas línguas da África Ocidental, como por exemplo, o Evve-Mina, de Togo-Benin-Ghana, todo o estrangeiro ou o hóspede que chega, é considerado como “o desejado” (amedjro). Acolher bem os hóspedes é ensinado em todos os povos africanos através de provérbios e de contos, como a princesa das virtudes e a nobreza de um lar.

Entre os Vatonga, um requisito importante para a menina poder casar, é que saiba acolher bem os hóspedes. Quando os navegadores portugueses, a caminho da Índia, desembarcaram pela primeira vez nas costas africanas do Oceano Índi-co, em terras de Inhambane, ficaram maravilhados com a calorosa hospitalidade com que foram acolhidos pelos habitantes do lugar que os convidaram a entrar nas suas casas e a partilhar do que tinham. E chamaram àquela terra “a Terra da Boa Gente”.

Na verdade, para os africanos o outro, o diferente de nós, não é visto como

um concorrente, ou como uma ameaça à nossa situação adquirida, mas é consi-derado sempre como alguém que nos traz aquele aspecto que nos falta para nos completar, e vem receber o que nós temos para dar e para comunicar. A troca de presentes entre a pessoa que visita e aquela que é visitada é uma forma simbólica de representar esta complementaridade mais profunda. O sentido africano do acolhimento assenta, precisamente, nesta reciprocidade de dar e receber, que não defrauda nem esvazia ninguém, bem pelo contrário, enriquece a ambas as partes.

Este é dos valores tradicionais que mais sofreu com o impacto colonial e a

urbanização. A objecção que se poderia colocar a quanto se disse neste ponto é: e como se explica o afro-pessimismo? Como se explica que o africano seja des-confiado e suspeitoso em relação aos estrangeiros, procure sempre tirar proveito dos visitantes e, muitas vezes, de modo nem sempre limpo, nem honesto? Infe-lizmente, isto é também verdade. Mas devemos reconhecer que os africanos pagaram muito caro pela sua inocência e ingenuidade no relacionamento com os outros povos. Todos os documentos que temos dos primeiros encontros com os cruzadores dos mares, mostram-nos como os africanos acolheram os visitantes com alegria e com festa e lhes abriram todos os seus tesouros, deram-lhes terras, filhas para casar. Os visitantes, porém, pouco tempo depois, inverteram tudo. Arrancaram as terras aos nativos, impuseram as suas leis e reduziram-nos à escravidão e aos serviços forçados. Leia-se só o capítulo dos “Prazos”, em Moçambique no séc. XVII. O relacionamento de senhor que possui tudo e do servo, coitadinho, que depende em tudo do seu senhor, criou nos africanos a pés-

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sima mentalidade de que o branco é aquele que tem para dar e o africano nada pode dar ao senhor. Os Africanos aprenderam que devem antecipar-se à malícia dos outros. E isto, durante muitos séculos, acabou criando uma mentalidade viciada.

A família africana tradicional sente-se feliz e honrada em ser visitada, em

acolher hóspedes. Quem quer que chegue, seja a que hora for, é sempre bem-vindo. Não necessita de avisar com antecedência. Se puder fazê-lo, melhor é, mas se não conseguir, não deve preocupar-se com isso. A sua chegada será sem-pre uma festa. Afinal, o hóspede é uma bênção.

A família ficará muito ofendida se vier a saber que um amigo, passou pelo

caminho sem entrar em casa ou que foi tomar a refeição ao restaurante, ou dor-mir no hotel, só porque não tinha avisado com antecedência. “Onde come um, comem dez”, diz o ditado africano. Ninguém vai ficar sem comer. E a melhor coisa que há em casa, será para a visita.

Na família africana o alimento é sempre preparado em quantidade avançada

em relação aos membros da família para prever uma possível visita inesperada. O ocidental, ao ver estas coisas, escandaliza-se dizendo: “Mas que desperdício! Esta gente não tem noção nenhuma de economia doméstica. Porque, sendo tão poucos, cozinham em panela tão grande?”

O acolhimento entre os africanos é sempre uma cerimónia que pode ir do

mais simples ao mais complicado, podendo ser mais ou menos demorado, de acordo com as circunstâncias. Mas ele implica sempre, partilha de experiências vividas, comunicação de novidades.

Os aspectos mais apreciados no acolhimento são: a atenção, a calma e a

serenidade; o saber dar tempo ao tempo para escutar, para criar um clima de intimidade favorável à comunicação profunda. Convidar a visita a sentar-se, ofe-recer um copo de água, ou uma cerveja tradicional, preparar água para o banho e servir rapidamente um pequeno lanche, são gestos de acolhimento muito apre-ciados entre os africanos.

Acolher e escutar alguém, é saber respeitar o seu ritmo e esperar com

paciência e delicadeza o momento do outro. A visita é capaz de passar horas, falando de muitas coisas, antes de apresentar a verdadeira motivação da sua visi-ta. É preciso certificar-se de que a pessoa está preparada para acolher a mensa-gem, sobretudo, em se tratando de um assunto difícil como a morte, os proble-mas pessoais, etc. É por isso que os africanos ficam ofendidos e escandalizados se notam que o anfitrião está preocupado com o tempo e quer que as coisas

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sejam feitas à pressa. Se o africano não encontra ambiente de escuta serena e acolhedora, pode despedir-se sem ter comunicado a mensagem que trazia. Por isso, quem acolhe não pode dar à sua visita a impressão, de estar apressado, preocupado e atrapalhado. Se a visita se der conta disto, concluirá que não é bem-vinda e tratará de escapar o quanto antes.

Cumprimentar a visita em pé, ou à porta, é sinal de descortesia inadmissí-

vel. Nunca se pergunta à visita que chega: “quantos dias vai ficar?”, ou “quando volta a para sua casa?” Tais perguntas são facilmente interpretadas como expul-são. Também nunca se pergunta à visita se quer comer, ou se tem fome, ou ainda o que quer comer. Estas perguntas nunca receberão uma resposta verdadeira. O africano nunca responderá dizendo que tem fome, ou que quer comer esta, ou aquela comida. Dirá sempre que não, mesmo que venha de longa viagem com fome e com sede.

4. A Relação Relação é uma categoria existencial fundamental na CTA. A vida é, essen-

cialmente, relação. A pessoa humana é um ser em relação contínua com o mundo interior e exterior, com a sociedade, com os espíritos dos antepassados, com Deus “Nungungulu”. Estar em relação, é a condição existencial do africano, cuja vida é, fundamentalmente, radicada no princípio da participação comunitária.

O Africano concebe o universo como uma grande unidade existencial, na

qual se distinguem diferentes graus de relação. Todas as categorias de seres: espíritos, animais, plantas, seres inanimados e fenómenos naturais, são animados de vida e estão intimamente ligados entre si por uma força que os mantém em íntima relação de solidariedade, de interdependência e de harmonia universal. O equilíbrio é garantido, somente, enquanto cada nível da existência gravita dentro da sua própria órbita, obedecendo às próprias leis. A ruptura em qualquer ponto da cadeia, levaria à desintegração de todo o sistema. A qualidade de vida, a paz, o bem-estar, a saúde, a prosperidade, a felicidade e a segurança das pessoas e da sociedade, dependem da manutenção desta harmonia cósmica.

A pessoa humana, “muthu”, ocupa o centro vital do equilíbrio universal das

forças cósmicas. Ela é o “umbigo” do mundo. Ela tem um relacionamento espe-cial com cada nível da existência e todos os seres existentes são vistos e avalia-dos em função da sua relação com a pessoa humana. Toda a criação está profun-damente unida e harmonizada pela participação vital e pela inter-comunhão dos homens entre si e com Deus, por intermediação dos antepassados. Para o Africa-no a relação vertical (com Deus e com os espíritos) e horizontal (com as pessoas e com o mundo), envolve sempre a totalidade da pessoa humana, o corpo, a

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mente, o espírito e as emoções. A fronteira entre o espiritual e o material, o reli-gioso e o secular, é tão ténue, que mal se distingue.

O importante é notar que, em todos estes tipos de relacionamentos, se dá

muito valor ao papel dos intermediários. O africano, de modo geral, não trata pessoalmente os assuntos que lhe dizem respeito. Todos os assuntos importantes: casamento, negócios, contratos e alianças, são negociados através de intermediá-rios. Mesmo no âmbito familiar, muitas vezes se usa a intermediação da mãe, ou da avó, para se falar com o pai sobre um assunto importante. Esta mesma estru-tura verifica-se no campo religioso.

O aspecto mais notório de relação na CTA é a religiosidade, herança rece-

bida dos antepassados e fielmente transmitida de geração em geração. Esta reli-giosidade cobre todas as esferas da existência e influencia os comportamentos individuais e colectivos. O africano é um ser profundamente religioso, envolvido num mundo de participação religiosa que começa antes mesmo do seu nascimen-to e se prolonga para além da sua morte. Onde está o africano, ali está a sua reli-gião. Ele carrega-a consigo para toda a parte: para o campo agrícola, para a sala de aulas, ou para o exame da Universidade; para o estádio de jogos e para a cer-vejaria; para o gabinete do trabalho e para a Assembleia da República e também para a vida religiosa consagrada. Esta religiosidade difusa manifesta-se e expri-me-se através de crenças, de gestos, de símbolos, de ritos, de cerimónias, de celebrações, de atitudes e de práticas tradicionais. Nisto tudo, parece estarem misturadas todas as actividades possíveis: a medicina, a educação, a política, a magia, a feitiçaria, a crença na vida para além do túmulo, a crença na presença e na influência dos espíritos dos defuntos sobre os vivos, a crença em um Deus único e Criador.

No pensamento africano, a vida da pessoa humana, é totalmente mergulha-

da no mistério da providência de Deus, “Nungungulu”, Criador e Senhor de todas as coisas, fonte permanente de todos os bens e de todas as graças que a pessoa necessita para ser feliz. A relação com Deus realiza-se, naturalmente, através da vida. Deus está na origem e no fim da vida, e preside a todas as acti-vidades da pessoa e da comunidade. Na saudação, o africano diz «pela graça de Deus, estou bem”; quando as pessoas se despedem, a que parte diz «Deus te guarde» e a que fica responde: «vai em paz! Deus te proteja e abençoe o teu caminho». É frequente escutar dos africanos quando interrogados sobre a sua vida e o seu futuro, dizerem: «Deus é que sabe»; e quando acusados injustamen-te, dizem: “Deus vê». Antes de qualquer empreendimento grande ou pequeno, diz-se: «Se Deus quiser, ou se Deus me ajudar, hei-de realizar». Parece que toda a vida do africano é uma oração contínua, permanentemente dirigida a Deus.

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Apesar desta referência contínua a Deus, os africanos aparentemente não revelam sinais exteriores do culto religioso directamente referido a esse Deus. É surpreendente ver o contraste entre a frequência com que o nome de Deus é pen-sado, invocado e pronunciado e a ausência, quase total, de sinais exteriores de crença na presença desse Deus. De facto, na religião tradicional africana não se encontram lugares sagrados, nem altares, nem imagens, nem rituais nem calen-dário consagrados a Deus. É deste modo que o africano afirma, de uma maneira categórica, a absoluta transcendência e a omnipresença de Deus. Na verdade, todo o cosmos é lugar de Deus, todo o tempo pertence a Deus e toda a vida é um canto de louvor a Deus. Mas Deus está acima de tudo e não se confunde com nenhum aspecto particular.

A ideia que o africano tem de Deus é de um Pai bom e providente, que

conhece e acompanha com amor paternal todas as necessidades dos seus filhos. A relação com esse Deus é caracterizada por uma confiança total, pois Ele nunca cessa de comunicar a vida aos homens, nem espera que estes lhe façam pedidos. No comportamento religioso dos africanos, não se verificam atitudes de medo em relação a Deus. A pessoa não precisa de se defender de Deus, pois não há nenhuma desgraça que de Deus possa vir contra a pessoa humana. Na religião tradicional africana, não se conhecem ritos e cerimónias mágicas para a pessoa se proteger contra qualquer acção de Deus. Não há necessidade de realizar sacri-fícios para aplacar a ira de Deus. Com Deus não se fazem negócios.

A relação com os espíritos ocupa lugar de destaque na religiosidade tradi-

cional africana. O universo africano é povoado de um sem número de espíritos que exercem uma grande influência na vida e nos comportamentos, pessoais e colectivos da sociedade africana. Há espíritos da terra, espíritos da floresta, espí-ritos das águas (mar, rios e lagos) e espíritos do deserto; há também os espíritos da família. Os espíritos, hierarquicamente situados abaixo de Deus e acima dos homens, são os mensageiros e os servidores de Deus no governo do mundo. O relacionamento entre Deus e os seres humanos, só é possível através de interme-diários espirituais, sobretudo, os antepassados do clã “Dzinguluve”.

Na verdade, para os Africanos, os mortos não estão mortos, continuam

vivos e participam da vida e dos acontecimentos da sua família, do seu clã. São eles que garantem aos seus descendentes, a protecção contra todo o tipo de males, sobretudo contra os ataques dos espíritos maus; são eles que apresentam a Deus as necessidades e os pedidos dos seus descendentes, e fazem chegar a estes, a vida e as graças que vêm de Deus.

Apesar de viverem em estado de espírito, estes intermediários têm tendên-

cias e exigências próprias dos homens. Querem comer, querem carinho, querem

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ser recordados para continuarem vivos, querem que as tradições e os ensinamen-tos por eles deixados sejam fielmente observados pelos seus. Se não forem satis-feitos nestas exigências, ficam zangados e vingam-se, não permitindo a passa-gem da graça e das bênçãos divinas para os seus. Eis a razão pela qual a religiosidade tradicional africana se ocupa mais da relação com os espíritos dos antepassados, do que da relação com Deus. Os africanos não têm medo de Deus, mas dos espíritos que podem bloquear a comunicação com Deus. É necessário estar em boas relações com os espíritos para manter os canais da vida divina sempre abertos.

Mas os Africanos temem principalmente a interferência negativa dos feiti-

ceiros que têm o poder de manipular magicamente a força vital da natureza e de comandar os espíritos maus contra as pessoas, causando-lhes toda a sorte de desgraças. A maior parte das cerimónias e dos ritos da Religião Tradicional Africana, destinam-se a apaziguar estes espíritos. É neste sentido que aparece o aspecto negativo desta religião: o medo e a magia. Muitas orações, sacrifícios e oferendas são directamente dirigidas a estes intermediários espirituais. A preva-lência da intermediação na CTA tem induzido, alguns estudiosos e missionários, ao erro de considerar a religião africana como politeísta. Mas de facto não é assim.

A relação com a família é, para o africano, a principal fonte de afecto e de

segurança psico-afectiva. São muito fortes e profundos os laços que vinculam o indivíduo à sua comunidade familiar. O amor paternal, exercido com autoridade, distância, severidade, protecção e solicitude; o amor para com os pais, rodeado de respeito, temor, obediência, reverência e veneração, o mesmo vale para com todas as pessoas mais velhas e para os anciãos; o amor materno, cheio de afecto, ternura, protecção e doação pelos filhos; o amor fraterno, nutrido de afecto, de confiança, de amizade e de solidariedade entre os irmãos. A comunidade clânica oferece todos estes aspectos de relação e é regulada pelas crenças, normas, usos e costumes tradicionais. Para completar a informação, julgo importante sublinhar o facto de que o conceito africano de família alargada, apresenta diferenças notáveis em relação ao conceito ocidental da família nuclear. Na comunidade familiar africana não existem tios, primos e sobrinhos, mas apenas pais, irmãos e filhos. Os irmãos do meu pai são meus pais; os filhos dos irmãos do meu pai, são todos meus irmãos. Da mesma maneira, todos os filhos e filhas dos meus irmãos, são meus filhos. E isto é tão sério que, em algumas etnias, como na Guiné Bissau a responsabilidade pela educação dos jovens cai em primeiro lugar sobre o irmão do pai, ou da mãe conforme, a sociedade é paterlinear ou materlinear.

Cada grau de parentesco obedece a normas de relacionamento bem defini-

das e que não se devem confundir. O indivíduo é aceite ou não, de acordo com a

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sua capacidade de assimilar, de respeitar e de se identificar com essas normas da comunidade. O africano não pode ir contra as normas tradicionais da sua comu-nidade, porque isso provocaria a ruptura no equilíbrio da participação vital, atraindo a desgraça para si e para toda a família. A pessoa não tem tanto medo de Deus, mas tem, sobretudo, medo do juízo da comunidade. O medo de ser jul-gado pela comunidade, é maior do que a própria consciência individual.

É muito significativa a relação de intimidade que une o filho à mãe, não

somente durante a gestação e o aleitamento, mas durante toda a vida. A criança africana passa a maior parte das horas do dia às costas da mãe. A mãe trabalha, transpira com a sua criança às costas. Este contacto directo, corpo a corpo, per-mite uma profunda e intensa osmose térmica, hídrica e emocional, muito impor-tante para a segurança e para o equilíbrio psíquico e emocional da criança. Tam-bém a mãe é, na África, a principal educadora dos filhos. É ela que imprime na consciência, no coração e no carácter dos filhos, as normas morais, sociais e religiosas tradicionais da Comunidade. O filho está ligado à sua mãe por fortes laços de afectividade, de respeito e de fidelidade. Não há coisa mais temida do que a maldição da mãe ao filho. Deus escuta a dor da mãe causada pelo filho desobediente. Se a mãe, zangada com o próprio filho, molhar o seio e apontá-lo para Deus, atrai todo o tipo de desgraças e de maldição para este filho. E não há recurso possível para revogar esta maldição. Por isso, deve evitar-se, a todo o custo, molestar a mãe, ou causar-lhe tristeza.

O africano é também fortemente vinculado à sua terra de origem. A terra

está ligada ao seu passado, ao seu presente e ao seu destino final no futuro. É ali que estão sepultados os seus antepassados e se encontra a sua árvore de culto. A terra que o viu nascer, na qual foi plantada a sua placenta, sobre a qual foi deita-do, no dia da sua apresentação ritual e que mais tarde foi regada com o seu pró-prio sangue, no rito da circuncisão, é parte inseparável de si mesmo. Mesmo se forçado a emigrar para longe, a sua mente e o seu coração estarão sempre volta-dos para a sua terra, e não dormirá em paz, enquanto não voltar lá, ainda que apenas simbolicamente. Se alguém morre fora da sua terra, faz-se tudo para tra-zer o seu corpo e, se não for possível, faz-se o enterro simbólico. Se morrer em terra estrangeira, pede que na sepultura a cabeça seja orientada na direcção da sua terra de origem. Com isto pode-se imaginar a violência e o traumatismo cau-sado pelas deportações, pelas deslocações desordenadas e pela emigração força-da de populações para terras desconhecidas, por causa de guerras, de genocídios e da fome.

5. Simpatia/empatia

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Muitos dos visitantes, que chegam pela primeira vez a África, ficam admi-rados ao verem a facilidade com que se reúnem grandes multidões de pessoas pelos mais diferentes motivos: o casamento, o nascimento de uma criança, a doença, ou a morte. É muito elevado o sentido de solidariedade e de participação nos momentos mais densos e significativos da vida, com particular intensidade na doença e na morte.

Tradicionalmente, quando morria alguém, toda a aldeia ficava paralisada

até ao fim do enterro. Desde o momento da morte até ao enterro do defunto, não se podia ferir a terra com a enxada. Toda a gente abandonava os trabalhos para ir ao lugar do falecimento. Em pouco tempo, se ajuntavam pessoas de perto e de longe, familiares, amigos e mesmo pessoas aparentemente sem nenhuma relação de familiaridade. Todos se unem para acompanhar e confortar os membros da família, não somente durante a cerimónia do enterro, mas antes e depois deste. O ditado tradicional diz: «no sofrimento, todos somos família»

Culturalmente, o africano revela uma grande tendência para a compaixão. É

esta capacidade de participar dos estados afectivos das outras pessoas, de comungar dos seus sofrimentos e das suas alegrias, que chamamos simpatia. Muitas vezes, este sentimento ultrapassa os limites do puramente emocional, para atingir níveis mais profundos da alma e da personalidade, através dos pro-cessos de presença, de escuta e de compreensão amorosa da situação dos outros.

Como dizíamos na categoria da escuta, o africano é pessoa de escuta atenta,

afectiva, paciente e respeitosa; uma escuta que implica toda a pessoa e a leva a mergulhar na experiência íntima da outra pessoa, de modo a formar o sentido do “nós”. A empatia verdadeira acontece quando alguém se aproxima do outro e procura, com simplicidade, colocar-se no lugar do seu interlocutor e tentar sentir o pulsar da realidade a partir da sua experiência, do seu ritmo e do seu ponto de vista. Quando a pessoa se põe na pele do outro e procura ver e avaliar as coisas a partir de lá, então as almas tocam-se e dá-se o conhecimento em profundidade.

A empatia africana é fecunda, pois, através da escuta atenta e afectuosa, a

pessoa abre-se ao outro, acolhe-o com afecto e faz que ele “nasça” dentro si. Na medida em que se faz a partilha em profundidade, a pessoa que acolhe e escuta, faz suas as experiências, as emoções, as preocupações, os medos e as esperanças daquele que é acolhido.

Para o Africano tradicional a escuta-empática tem uma função terapêutica.

Escutar e acolher com amor, é curar o espírito e o coração da pessoa. Os sábios-magos, os médicos-curandeiros, os anciãos são chamados “monturo”, isto é, a lixeira, onde as pessoas vão “jogar” o lixo das suas vidas. Estes agentes passam a

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maior parte do tempo dos colóquios, com os seus clientes, simplesmente a escu-tar com atenção. Escutam não passivamente, só com os ouvidos, mas com todo o corpo, com gestos, com emissões de gemidos monossilábicos que asseguram ao interlocutor que está a ser seguido, e o estimulam a verbalizar todos os dramas e preocupações que traz na alma e no coração. Depois disto dão-lhe alguns conse-lhos e indicam remédios e rituais a fazer. A pessoa fica aliviada e, muitas vezes, liberta do seu mal. Depois de ter falado, a pessoa sente-se bem leve e, por vezes, nem sequer necessita que se lhe digam palavras, ou que lhe prescrevam remédios ou rituais. Ela vai agradecida, porque encontrou a cura do acolhimento e da escuta-empática.

6. Alegria e Festa A África é caracterizada pela sua alegria contagiante, a sua alma vibrante, o

seu canto, a sua dança e o seu ritmo envolventes, o seu carácter escaldante e fes-tivo.

Há, sem dúvida, uma grande diferença de atitudes entre os africanos e os

outros povos diante do sofrimento, da miséria e da insegurança na vida. Milhares de famílias e de crianças africanas vivem, o dia a dia, em situação de completa insegurança quanto ao amanhã. Passam o dia com fome, sem saber onde vão passar a noite, nem o que vão comer no dia seguinte; contudo, continuam a dan-çar ao som de cânticos, ao ritmo do tambor e das palmas.

Visitando famílias e populações africanas fortemente flageladas pelo sofri-

mento prolongado nos bairros pobres das cidades, nos campos de refugiados e nos lugares onde se amontoam populações de deslocados, ficamos profundamen-te surpreendidos com a sua capacidade de sofrer com serenidade e sempre com um sorriso no rosto.

Para o Africano, a vida é uma festa. Ele agradece a Deus pelo pouco e

encontra sempre motivos para celebrar com alegria cada instante que passa como um dom. Por vezes, me ponho a pensar em famílias ricas do Ocidente, que se sentam em redor de uma mesa farta, a abarrotar de abundância e de variedade de comidas, mas sem alegria e com o rosto triste, sempre a lamentar-se. Enquanto que as famílias africanas, com muitos filhos, com um pouco de comida e de bebida e com o tambor, fazem festa em todo o dia e contagiam todo o ambiente com a sua alegria. Mesmo vivendo em pobreza absoluta e com toda a espécie de sofrimento, o africano não se lamenta. É ainda capaz de cantar e de sorrir.

Vejamos as celebrações eucarísticas dos cristãos africanos como são ani-

madas e cheias de dinamismo. É uma festa que se prolonga até ao infinito, sem

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que ninguém olhe para o relógio. Porquê correr? Porquê preocupar-se com o tempo, se o Senhor nos visita e está no meio de nós? As comunidades cristãs em África, sobretudo as mais pobres do interior, preparam sempre alguma coisa para servir a todos e alguma recreação com cantos e danças para o fim da celebração. Afinal, a Missa é a festa dos fiéis em torno ao seu Senhor, é o momento do encontro, do convívio e da partilha de bens espirituais e também materiais. Não há encontro, não há celebração, sem festa e não há festa, sem comer juntos o que há. Não importa tanto a qualidade e, ou a quantidade da comida; o mais impor-tante é a intensidade da relação, do encontro, da comunhão e da partilha. O afri-cano mostra a sua alegria cantando e dançando. É a totalidade da sua pessoa, corpo e espírito unidos, para manifestar a alegria.

E donde extrai o africano a energia e a motivação para esta alegria e para

esta capacidade de fazer festa no meio de tanto sofrimento? Eu penso que a sua fé total em Deus e o seu sentido de comunhão fraterna, são as principais fontes da sua alegria e da sua esperança.

7. A Esperança e o futuro Muito se tem falado da África como um “Continente de esperança”.Não sei

com que consciência se faz tal afirmação. Mas corresponde à realidade. Os povos africanos não vivem senão da esperança num amanhã de libertação. Isto continua mesmo em nossos dias, depois das independências políticas, algumas já celebradas há mais de quatro décadas. Trata-se de uma esperança desprovida de aparente certeza, humanamente segura, mas que desafiou e sobreviveu a séculos de dominação e de escravidão colonial e continua, batendo no coração dos povos mergulhados no túnel obscuro do subdesenvolvimento, da fome, do analfabetis-mo, da corrupção generalizada e das guerras fratricidas. Apesar de tudo, o sorri-so ainda não se apagou da face do homem africano. Continuamos a interrogar-nos: de onde vem esta esperança que continua fazendo dos Africanos, apesar de tudo, homens e mulheres de espírito alegre e contagiante?

Na minha estadia na América Latina, sempre me interroguei: como se

explica que a colonização tivesse determinado o extermínio quase completo das populações indígenas (Índios Americanos, Aborígenes Australianos), mas nunca tivesse conseguido exterminar as populações de origem africana, mesmo as que foram deportadas para longe de suas terras e submetidas a desumanas condições de existência? Isto deve-se, em grande parte, à força e ao dinamismo próprio da Religião Tradicional Africana.

Soube, então, que os negros africanos, levados à força para a escravatura

nas Américas, transportaram e conservaram a sua religião e as suas crenças tra-

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dicionais. Assim, depois dos árduos trabalhos do dia, ainda se reuniam nos ter-reiros de Candoblé, de Makumba, de Kimbundu, de Vodou, e passavam a noite inteira cantando, dançando e tocando tambores. Aí recordavam e prestavam cul-to aos seus antepassados e nutriam viva esperança de um dia tornarem à longín-qua “Mãe África”, para oferecer o Grande Sacrifício nas “Árvores Sagradas da Tribo”. É ali que as populações das senzalas encontravam a energia para sobre-viver a todos os sofrimentos.

Continua a ser assim na África de hoje. A Religião Tradicional Africana

continua a ser a principal fonte de alegria e de esperança para as populações afri-canas que, depois de séculos de escravidão e de exploração, parecem condenadas ao esquecimento no meio de todo o tipo de sofrimento, de todo o tipo de miséria, de doenças endémicas, de guerras sem fim. É na sua religião tradicional que encontram a força para resistirem à tentação do desespero que facilmente os levaria ao suicídio colectivo. Infelizmente, o genocídio cultural, iniciado na era colonial e continuado agora com a aplicação negativa da globalização, poderá lograr a destruição dos povos africanos a partir da lapidação dos seus fundamen-tos culturais.

5. CONCLUSÃO: PISTAS PARA O DIÁLOGO ENTRE A EXPE-

RIÊNCIA RELIGIOSA FRANCISCANA E A CULTURA TRADICIONAL AFRICANA

Seguindo a reflexão nestas categorias existenciais, encontram-se vários

pontos de contacto entre a cultura tradicional africana e a experiência religiosa franciscana. A escuta é um elemento fundamental na caminhada espiritual de conversão de Francisco e dos seus discípulos. Francisco escuta a voz do Crucifi-xo de São Damião, escuta o Senhor que lhe fala nos sonhos, escuta o Evangelho da missão apostólica. Trata-se de uma escuta atenta, meditada e interiorizada até imprimir, no seu próprio corpo, a imagem viva do Cristo Crucificado. É uma escuta que transforma a vida. Para Francisco, Deus é sempre um Deus que fala e que revela a sua vontade, ao definir o programa de vida dele e dos irmãos: «O Senhor me revelou…»

A experiência espiritual de Francisco é fundada no encontro pessoal com

Deus, em Jesus Cristo. Este encontro, que começa na família, observando a fé e a prática religiosa da sua mãe, aprofunda-se na juventude com o encontro pes-soal com o Cristo Crucificado em São Damião, no leproso e nos pobres, na Igre-ja em ruínas, no Evangelho e depois com o “Senhor Papa”. O encontro pessoal com Deus, envia Francisco ao encontro dos irmãos para formar a fraternidade e impele-o a partir ao encontro dos mais distantes, «para entre os infiéis.» O

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encontro para Francisco é algo profundo que transforma a vida, a visão das coi-sas e impõe um novo projecto à sua própria vida.

Quando Francisco encontra Deus que lhe fala ao coração, torna-se um

homem aberto e profundamente acolhedor. Compreende que a sua vida não é para ser consumida no isolamento egoístico, mas para ser partilhada com os outros. Acolhe os irmãos com simpatia e compaixão e adopta como regra de ouro da vida fraterna o princípio de: fazer ao irmão, como gostaria que os outros lhe fizessem, se estivesse nas mesmas situações (cf. CM). Tudo isto encontra um eco forte em tudo quanto dissemos nas categorias de acolhimento e de simpatia africanas.

A sua relação especial e profunda com Deus transforma Francisco num

homem de relação universal, em dupla direcção: relação vertical com Deus e a horizontal com os homens e com as criaturas, para formar a fraternidade univer-sal solenemente celebrada no «Cântico das Criaturas». Isto encontra um eco pro-fundo no princípio africano da solidariedade comunitária e da participação vital universal.

A profunda experiência espiritual de Francisco, a sua fé incondicional

naquele Deus que é «Tudo» para ele, que é «o Sumo Bem, o Bem total», faz do franciscanismo uma mensagem de total confiança na misericórdia e na providên-cia divinas. Nisto lança a sua raiz a perfeita alegria que Francisco e os seus com-panheiros celebravam, mesmo nos momentos de grandes provações. É aí que se encontram as razões da esperança que atravessa de lés-a-lés toda a história dos 800 anos de vida e de testemunho evangélico franciscano. Ali encontra a fonte permanente para renovar as energias necessárias para recomeçar o caminho com coragem, mesmo nos momentos de crises graves. Com os olhos da fé de Francis-co, o franciscanismo é sempre uma mensagem positiva, cheia de esperança e optimista da realidade, da vida e da história.

O cristianismo em África apresenta-se ainda como um cristianismo desen-

carnado, vivido como algo de fora, sem ligação real com os autênticos valores das tradições culturais dos africanos. A fé no Evangelho e a Cultura Tradicional Africana continuam a ser dois mundos à parte, ainda que sobrepostos nas mes-mas pessoas.

Na verdade, ainda não se deu o encontro fecundo entre a fé cristã e a cultu-ra africana para permitir o nascimento de uma nova realidade: o Cristianismo Africano. Muitos africanos foram baptizados e têm práticas sociais cristãs, mas a sua alma move-se numa esfera totalmente diferente. Nos momentos importantes da vida individual e social, muitos cristãos africanos decidem, não guiados pelos

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critérios da sua fé cristã, mas segundo os critérios das tradições dos seus ante-passados.

O Franciscanismo, devido às afinidades acima apresentadas, está em

melhor posição para ajudar na evangelização em profundidade, dos povos e da cultura africana. No diálogo autêntico entre o franciscanismo e a CTA, terá necessariamente de dar-se um duplo movimento de ambas as partes.

O franciscanismo terá de se africanizar, assumindo os valores autênticos existentes na CTA. Esta, por sua vez, deverá deixar-se interpelar naqueles aspec-tos que podem estar em contradição com a Boa Nova do Evangelho. A mensa-gem franciscana é chamada a explicitar a revelação do Verbo Encarnado já pre-sente em gérmen na alma e na cultura africana. E os franciscanos africanos, fundados sobre o património idêntico do carisma evangélico vivido por São Francisco e pelos seus companheiros e transmitido ao longo dos séculos pela tradição franciscana, devem tecer com o franciscanismo africano, o novo modo de professar, de viver e de expressar com fidelidade o mesmo e único carisma, mas de acordo com a originalidade da língua, do estilo, do génio e da cultura africana.

A africanização do franciscanismo não deve limitar-se apenas aos aspectos exteriores e folclóricos, mas deve atingir os níveis mais profundos e transformar os modos de pensar, de viver, de exprimir e de se relacionar, quer a nível indivi-dual, quer a nível social, moral e religioso. Só deste modo os Africanos poderão ser autenticamente africanos e autenticamente cristãos e franciscanos.

Roma , Santa Maria Mediatrice, aos 20 de Abril de 2007 Frei Amaral Bernardo Amaral, OF