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Caderno de Leituras Erico Verissimo Orientações para o trabalho em sala de aula

Cad Erno Lei Turas Eric Over Issimo

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  • Caderno de Leituras

    Erico VerissimoOrientaes para o trabalho em sala de aula

  • Organizao e edio

    Flvio Aguiar

    Caderno de Leituras

    Erico VerissimoOrientaes para o trabalho em sala de aula

  • O primeiro Caderno de Leituras da Companhia das Letras surgiu em 1999, com o intuito de melhorar o aproveitamento da produo literria no processo educativo. De dica do aos livros infantojuvenis, aquele caderno ganhou no va edio cinco anos depois, para atender s inmeras soli citaes das escolas e incorporar novos ttulos.

    Este caderno foi criado com o mes mo objetivo: dar apoio didtico a professores do ensino fundamental e mdio que queiram utilizar a obra de Eri co Verissimo para enriquecer o trabalho escolar. A fim de orien tlos, cinco especialistas foram convidados a propor anlises, indicar leituras e desenvolver atividades em tor no da obra desse escritor que construiu, por meio da fico, um complexo painel social do Rio Grande do Sul e do Brasil.

    Coordenado pelo professor de literatura brasileira Flvio Aguiar, este Caderno de Leituras faz parte das atividades que acompanham a reedio da obra completa de Erico Ve ris simo pela Companhia das Letras a partir de 2004. Com ele, esperamos abrir as portas e janelas das salas de aula a um dos maiores clssicos de nossa literatura e renovar defini tivamente nosso dilogo com aqueles que se dedicam a despertar nas novas geraes a paixo pela leitura.

    Os Editores

  • Sumrio

    Apresentao 9O Tempo e o Vento 11

    Ana Terra e Um certo capito Rodrigo Do povo ningum construo da identidade Ligia Chiappini 16

    Do dirio de Slvia Um romance dentro do romance Ndia Battella Gotlib 27

    Clarissa e Msica ao longe A personagem Clarissa: menina & moa Regina Zilberman 38

    Olhai os lrios do campo As tentaes de um jovem nos anos 1930 Maria da Glria Bordini 49

    Incidente em Antares O levante dos mortos Lus Augusto Fischer 59

    Atividades complementares 69Bibliografia complementar 73Sobre os autores do caderno 75Sobre Erico Verissimo 77Obras de Erico Verissimo 79

  • Apresentao

    Este caderno contm cinco ensaios que abrangem sete narrativas de Erico Verissimo. As trs primeiras (Ana Terra, Um certo capito Rodrigo e Do dirio de Slvia) so episdios dO tempo e o vento. As trs seguintes (Clarissa, Msica ao longe e Olhai os lrios do campo) integram o chamado ciclo de Porto Alegre, focalizando as transformaes do Brasil e do espao rural e urbano durante a dcada de 1930. A ltima narrativa (Incidente em Antares) tambm evoca a histria riograndense e brasileira, mas atravs de uma viso irnica e mordaz dos tempos contemporneos da instalao da ditadura de 1964.

    Os ensaios esto centrados na anlise dos elementos internos (tempo, espao, personagens, aes, pontos de vista, enredo, linguagem, estilo) e na interpretao (relacionamento com o contexto literrio, cultural, social, histrico e geogrfico) das narrativas, e so acompanhados por uma srie de boxes, com informaes complementares teis para contextualizar personagens e fatos histricos.

    Cada ensaio precedido por uma parfrase da narrativa, um resumo comentado que j introduz um ngulo particular de leitura, abrindo caminho, atravs de sugestes, para a anlise e a interpretao que se seguem. As parfrases so importantes para fundamentar o pensamento sobre essas narrativas e auxiliam em consultas eventuais, quando da leitura dos ensaios embora de modo algum substituam a leitura das prprias narrativas, o contato direto e nico de cada um com a obra e o pensamento do escritor.

    Logo aps o ensaio h sugestes de leituras complementares de obras literrias que por alguma razo (sempre comentada) podem ser associadas s obras de Erico. H tambm sugestes de atividades a serem desenvolvidas com os alunos. So propostas de abordagens que, partindo da narrativa, enveredam por diferentes campos do conhecimento, com foco quase sempre interdisciplinar. Nos ensaios e nas sugestes procurouse atender o amplo espectro das atividades escolares. No fim do caderno, alm de uma bibliografia de referncia, encontrase uma lista de sugestes de atividades, partindo da leitura de mais de uma das narrativas analisadas.

    Esperamos dessa forma aproximar do universo escolar e de outros leitores os mundos fascinantes criados por Erico Verissimo, um dos autores de maior relevo da nossa literatura. Quanto aos que j tm familiaridade com sua obra, esperamos que este caderno lhes re nove o interesse por esse escritor extraordinrio.

    Flvio Aguiar

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  • O tempo e o vento

    na Terra, Um certo capito Rodrigo e Do dirio de Slvia so episdios da trilogia O tempo e o vento, que composta dos romances O Continente, O Retrato e O arquiplago. Nestes, Erico Verissimo narra a histria de um cl familiar, os Terras Cambars,

    de 1745 at 1945, quando termina a Segunda Guerra Mundial e Getulio Vargas deixa o poder, depois dos quinze anos de seu primeiro governo.

    Ao longo dos duzentos anos cobertos pela narrativa, passa diante do leitor a formao da fronteira sulina, do Rio Grande do Sul e do Brasil. O espao central dos trs romances a cidade fictcia de Santa F, no noroeste do Rio Grande do Sul, e o tempo organizado atravs de um presente onde se d o desenlace dramtico dos acontecimentos que evocam as origens e o passado.

    O Continente focaliza o final da Revoluo Federalista, em junho de 1895. Mas os episdios rememorativos percorrem os tempos mais remotos das misses jesuticas, do estabelecimento dos primeiros colonos lusobrasileiros (Ana Terra), da Guerra dos Farrapos (Um certo capito Rodrigo), da Guerra do Paraguai, da abolio da escravatura e da proclamao da Repblica. So os anos de formao da sociedade riograndense e de consolidao da sociedade brasileira. Em O Sobrado, episdio que se passa em 1895, o ento chefe do cl, Licurgo Cambar, resiste em casa ao cerco dos arquiinimigos pertencentes ao cl oposto, o dos Amarais, recusandose a pedir trgua at para cuidar da mulher, que est para dar luz.

    NO Retrato e nO arquiplago, que partem do final de 1945, depois do trmino do Estado Novo, o ento chefe do cl, dr. Rodrigo Cambar, filho de Licurgo, apeado do poder juntamente com seu lder, Getulio Vargas, retorna do Rio de Janeiro para Santa F. Em alguns poucos dias de novembro e dezembro daquele ano, enquanto Rodrigo se recupera de graves problemas cardacos, produzse um verdadeiro ajuste de contas familiar.

    Ao mesmo tempo, evocamse acontecimentos que, desde o comeo do sculo xx, marcam a desagregao do cl e o processo de modernizao do Rio Grande do Sul e do Brasil, com seus impasses e suas contradies. Slvia, a autora de um dirio e afilhada de Rodrigo, casase com o filho dele, Joo Antnio. O dirio escrito durante um momento crucial da Segunda Grande Guerra: as primeiras vitrias dos nazifascistas e a derrocada posterior. Sob o olhar de uma mulher que descobre a si mesma e se interroga sobre seu destino, aparecem as grandes transformaes mundiais, que tambm atingem e envolvem as personagens de Santa F.

    Saga familiar nica na literatura brasileira, O tempo e o vento celebra, em meio s guerras e violncia, valores como a tenacidade, a paz, a liberdade e a coragem de resistir, to apreciados pelo escritor e cidado Erico Verissimo.

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    A

  • Ana Terra e

    Um certo capito Rodrigo

  • A famlia dos Terras, que veio de So Paulo para se instalar nos campos do Rio Grande do Sul, formada pelo pai, Maneco Terra, sua esposa, dona Henriqueta, e os filhos Ho r cio, Antnio e Ana. A vida deles dura, simples e rstica, e est sempre ameaada por ndios fugitivos e bravios, por bandidos e renegados, e pelas guerras entre lusos e castelhanos.

    nessas guerras que aparece a personagem histrica Rafael Pinto Bandeira, lder da partida das tropas lusas (j brasileiras em formao) na conquista e defesa da fronteira.

    Certo dia Ana descobre um ndio mestio ferido e desmaiado. Pedro Missioneiro, remanescente das antigas misses jesuticas, que fora atacado por assaltantes vindos das terras dos castelhanos. Acolhido com desconfiana pela famlia de Ana, termina sendo aceito pela necessidade de braos para o trabalho e por saber lidar com os animais. Logo surpreende a todos com seus dotes, numa mistura de encanto e desagrado: sabe ler, fala diferentes lnguas, toca msica e conta histrias.

    A princpio Ana tem asco do estranho, mas aos poucos cativada, seduzida, e engravida. Ao descobrir a gravidez, Maneco Terra manda matar Pedro. Ana se revolta contra a crueldade, porm acaba se resignando. A criana nasce, e ela lhe d o nome de Pedro. O menino cresce, a famlia prospera um pouco, adquire escravos. Horcio se casa e vai viver em Rio Pardo. Antnio e a mulher, Eullia, tm uma filha. Dona Henriqueta envelhece e morre.

    A vida da famlia se interrompe bruscamente quando suas terras so invadidas por bandidos castelhanos. Eles arrasam tudo, matam Maneco, Antnio e dois escravos. Estupram Ana, que ficara em casa para resistir e distrairlhes a ateno e assim salvar Eullia e as crianas.

    Ana, o filho Pedro e os outros sobreviventes se juntam a um grupo de colonos que vo para o planalto, regio onde o poderoso coronel Ricardo Amaral estava fundando um povoado. L recomeam a vida, e se envolvem de novo em conflitos e guerras interminveis. Pedro agora soldado recrutado. Ana adquire fama de boa parteira e de mulher corajosa. O episdio se conclui com a partida de Pedro para uma nova guerra, enquanto as mulheres amargam a eterna espera.

    Ana Terra o segundo episdio, do ponto de vista cronolgico, do romance O Con tinen te, que d incio trilogia O tempo e o vento.

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  • A ao comea em 1828, com a chegada do capito Rodrigo Severo Cambar a Santa F, j um pequeno burgo comandado pelo coronel Ricardo Amaral Neto, veterano das campanhas guerreiras entre lusitanos e brasileiros de um lado, e espanhis e uruguaios do outro.

    Numa entrada ruidosa, o capito Rodrigo irrompe no bar do Nicolau: Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!. Pois d, desafia a resposta calma e firme de Juvenal, neto de Ana Terra, um tipo quieto, taciturno, inditico.

    O desafio na verdade o princpio de uma slida amizade. Rodrigo conhece a irm e o pai de Juvenal, Bibiana e Pedro Terra, filho de Ana com o enigmtico Pedro Missioneiro. Apaixonado primeira vista por Bibiana, Rodrigo decide se estabelecer em Santa F, na contingncia de contraditar o potentado do burgo, o coronel Ricardo Amaral Neto, que no deseja sua permanncia. Rodrigo fica, mas desperta a inimizade do filho do coronel, Bento Amaral, com quem disputa o amor de Bibiana. O enfrentamento dos dois converge para um duelo faca, e Rodrigo gravemente ferido. Mas sobrevive graas aos cuidados de Juvenal e do padre Lara, que tambm se deixa seduzir pela personalidade fascinante do capito.

    Casamse afinal Rodrigo e Bibiana, apesar da discreta insatisfao de Pedro Terra e da inimizade dos Amarais. Logo vm os filhos. Rodrigo tenta levar uma vida civil, tornandose scio de Juvenal na posse de uma venda. Afeito s lutas, s noitadas de carteado e bebida e s aventuras com mulheres, Rodrigo no se d bem na vida de homem pacato e casado. Numa noite em que fica jogando at tarde, morrelhe a filha Anita, deixandoo aturdido e desamparado. Quando tudo parece desabar, uma guerra vem salvlo. a Re vo lu o Farrou pilha, que se inicia em setembro de 1835. Soldado de primeira hora, ele adere revoluo. Mas tem de deixar Santa F, dominada pelos Amarais, fiis ao governo do Rio de Janeiro.

    Algum tempo depois, Rodrigo volta para tomar a vila, mas morre numa luta com Ricardo Amaral. Enquanto isso, a vila cresce; comeam a aparecer riquezas financeiras, at um certo luxo e modernidades. S que esses novos tempos no tero mais a magia da poca dos heris fundadores.

    Um certo capito Rodrigo o terceiro episdio do romance O Continente.

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  • Do povo ningum construo da identidadeLigia Chiappini

    Personagens de fico fortes e vigorosas, como Ana Terra e o capito Rodrigo,

    convivem com personagens e fatos histricos. Estes s ganham vida atravs daqueles:

    e assim a fico renova a nossa viso da histria.

    Embora Ana Terra e o capito Rodrigo Cambar sejam personagens muito diferentes, ambos so he ris fundadores de Santa F, o lugarejo que ao longo dos 150 anos (17451895) dO Continente vai se transformando de pequeno povoado, com al guns poucos ranchos, em vila; e de vila em cidade. A partir da sua presena na simblica Santa F, eles fundam o Con ti nente de So Pedro, como era chamado nos seus primrdios o estado do Rio Grande do Sul.

    O Continente narra a formao e a ascenso da fa m lia dos Terras Cambars, cuja decadncia se precipita nos dois ltimos volumes da trilogia O tempo e o vento. Ana Terra e o capito Rodrigo no so, porm, um par romntico. Entre eles h mais de uma gerao de homens e mulheres. Quando o capito aparece no povoado, Ana Terra j est morta e enterrada.

    O povoado de Santa F, depois vila e cidade, ser gerado e gerido pelos Amarais e pelos Terras Cambars, numa alternncia de poder em que estes tero cada vez mais voz. E tudo comea com o en con tro dos Terras, na pessoa de Bibiana, neta de Ana, com o capito Rodrigo. Os Terras Cam ba rs forma ro parte da elite que cria e desenvolve o Rio Grande, mas primeiro precisam vencer a sua con dio de origem no mundo colonial a descendncia de um povo ningum e construir a prpria identida de. Pedro

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    O pOvO ningumEm seu livro O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil (1995), o antroplogo Darcy Ri-beiro apresenta definies que podem ajudar a en-tender a condio de Maneco Terra e de Pedro Missioneiro em Ana Terra: Temos aqui duas ins-tncias. A do ser formado dentro de uma etnia, sempre irredutvel por sua prpria natureza, que amarga o destino do exilado, do desterrado, forado a sobreviver no que sabia ser uma comunidade de estranhos, es tran gei ro ele a ela, sozinho ele mesmo. A outra, a do ser igual mente desgarrado, como cria da terra, que no cabia porm nas entidades tnicas aqui constitudas, repelido por elas como um estra-nho, vivendo procura de sua identidade. Sabendo--se outro, tem dentro de sua conscincia de se fazer de novo, acercando-se dos seus similares outros, compor com eles um ns coletivo vivel. Muito es-foro custaria definir essa entidade nova como hu-mana, se possvel melhor do que todas as outras. S por esse tor tuoso caminho deixariam de ser pessoas isola das como ninguns aos olhos de todos.

    Para definir essas condies ambguas geradas pelo empreendimento colonial, que no Brasil en vol-vem inicialmente nativos, lusos, africanos e os mes-ti os decorrentes, Darcy Ribeiro cria um neologis-mo: a ninguendade, conceito oposto mas com-ple mentar ao de identidade. para sair da con-dio de povo ningum que os rebentos da colo-nizao constroem uma nova identidade, a qual os faz renascer. Seria esse o sentido simblico da mor te antevista de Pedro Missioneiro?

  • Terra, filho de Ana e pai de Bibiana, filho de um ningum, o mestio Pedro Missioneiro, que veio, como ele mesmo diz, de ninguna parte, modo in definido que utiliza para nomear a terra arrasada das Mis ses, destrudas pelos portugueses e espanhis em 1756.

    O capito Rodrigo aparece em Santa F tambm vindo no se sabe de onde, das muitas andanas do peosoldado que correu campo, participando das guerras contra os castelhanos, em tempo de delimitao das fronteiras do sul do Brasil. Da unio dele com Bibiana, nasce Bolvar, pai do espartano Li curgo, que ser o mandachuva de Santa F, depois de derrotar definitivamente a hegemonia dos Amarais, quando da proclamao da Repblica.

    A histria de Ana Terra vai de 1777 aos anos 20 do sculo seguinte. A do capito comea em 1828 e vai at 1836, terminando de modo coerente com sua personalidade de gacho valente e atrevido: numa guer ra. Comum entre os dois episdios, e caracterstico de toda a trilogia, o fato de as personagens fictcias andarem lado a lado com personagens histri cas. Em Ana Terra, aparece, entre outros, o grande Rafael Pinto Bandeira, que teria livrado o Con ti nen te dos castelhanos, pondo fim ao ciclo das guerras de fronteira na regio. Em Um certo capito Rodrigo, comparecem heris da Revoluo Farroupilha, como Bento Gonalves e o gene ral Netto. Ao lado dessas personagens histricas, so referidos alguns governadores do Rio Grande do Sul, a chegada de d. Joo vi e da famlia real, a revoluo constitucionalista do Porto e seus efeitos no Brasil, a Independncia, a coroao e a abdicao de d. Pedro i e o despontar de d. Pedro ii.

    A arte do romancista faz as personagens e os acontecimentos ficcionais parecerem mais vivos e verdadeiros aos nossos olhos do que as personagens e os acontecimentos histricos. Ou melhor, estes s ganham vida atravs daqueles. E com essa estratgia se produz a boa fico: pela inveno constrise uma verdade para a histria, ajudando a conhecer a complexidade dos fatos e dos atores e a refletir sobre o passado como forma de entender o presente e criar alternativas para o futuro.

    o tempo dos pioneirosQuando o episdio de Ana Terra tem incio, ainda tempo de pioneiros, como seu pai, Maneco Terra, com quem ela vive, aos 25 anos, numa casa simples, ao lado da me, a sofrida dona Henriqueta, e de dois irmos, Antnio e Horcio. A famlia se sustenta criando animais e plantando principalmente o trigo, produto que acompanhar a histria da regio com os altos e baixos da poltica e da economia. Esse lugar em que moram isolado e dis

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    Rafael pintO BandeiRa (1740-94)Nasceu em Rio Grande, filho de oficial do Exrcito. Com catorze anos inaugurou sua vida militar, que nunca mais abandonou. Co me ou a se notabilizar na dcada de 1770, quan do conduziu uma srie de cam panhas vitorio sas con tra os espanhis, em ter-ras do Rio Grande do Sul. Tor nou-se poderoso, acu-mulou prmios em dinheiro e terras sob a forma de sesmarias. De mons trava gran de mo bilidade no cam- po de bata lha, com deslocamentos rpidos que lem bravam a guerra de guerri lhas. Formou bata-lhes de cavalarianos negros, cuja fama atemoriza-va os espanhis. Despertou invejas, e foi denunciado como ladro de gado e leva do pre so para o Rio de Janeiro. Ino cen tado, viu seu pres tgio crescer ainda mais. De 1787 a 1790 residiu em Lisboa, de onde voltou co mo ge ne ral. Morreu pro va vel mente de uma infec o generalizada.

    BentO gOnalves da silva (1788-1847)Grande lder da Revoluo Farroupilha, entrou para a vida militar em 1811 e par ticipou das diversas in ter venes luso-brasileiras no Uruguai em de cor-rn cia das guerras de indepen dn cia daquele pas. Es tan cieiro de posses, foi eleito presidente da Re p-blica Rio-Grandense, mas afastou-se da presi dn cia no final da revoluo. Morreu relativamente empo-brecido pela guerra, de um ataque de pleurisia.

  • tante de outros mais po voados, como Rio Pardo, aonde os irmos vo comprar e vender coisas, e de onde trazem notcias da civi lizao. A vida ali feita de muito trabalho, nenhum conforto, poucas alegrias e quase ne nhum dilogo.

    Certo dia, esse mundo invadido pela presena do mestio Pedro Missioneiro, com suas habilidades de domador, suas msicas de flauta, suas lnguas e leituras, suas histrias, que Maneco Terra achava men tirosas. Eram narrativas que ouvira dos mais ve lhos em So Miguel, o maior dos Sete Povos das Mis ses, onde nascera e se criara, filho de me ndia e pai vicentista, um bandeirante lusobrasileiro.

    Essas histrias traziam vestgios da conquista portuguesa e espanhola e da resistncia de uma cultu ra diferente, para a qual, por exemplo, certos bi chos eram sagrados e por isso no podiam ser comidos como era o caso da mulita, que ajudara a Vir gem Ma ria a salvar Jesus menino. No mundo de Pedro Mis sio neiro, as mulheres podiam encantarse em lagartixa e os homens podiam antever a prpria morte como ele mesmo fez. Pedro, acolhido pelos Terras, assassinado por ordem de Maneco, depois de en gravidar Ana.

    Da para a frente, Ana Terra vive para criar o fi lho, amargando ressentimento, sem falar nem com o pai nem com o irmo. At o dia em que um bando de assaltantes castelhanos lhe matam a famlia, com ex ceo da cunhada, da sobrinha e de Pedrinho, filho de Pedro Missioneiro. Atacada e violentada pelos cas telhanos, Ana como que morre e renasce, indo ao fun do de um poo e reganhando a superfcie, de alma e corpo lavados, pronta para reiniciar a vida fora daquele lugar. Ela a personagem que comea a paciente construo (ou reconstruo) de uma identidade.

    as novas guerrasOs quatro sobreviventes resistem durante alguns dias na terra arrasada pelos castelhanos, at serem levados para o futuro povoado de Santa F, no planalto missioneiro, perto da cidade de Cruz Alta.

    Pedro cresce e deve partir para as guerras com os castelhanos, integrando o exrcito organizado por Ricardo Amaral, fazendeiro que manda no povoado. Ana tem de aguentar

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    as misses jesuticasA partir do sculo xvii, a Companhia de Jesus (Or-dem dos Jesutas) instalou uma rede de povoados em terras que hoje esto no Paraguai, no norte da Ar gen tina e no Rio Grande do Sul, estado onde se estabilizaram os Sete Povos das Misses: So Borja, So Ni co lau, Santo ngelo, So Loureno, So Lus Gon zaga, So Joo Batista e So Miguel, o mais importante de todos. O objetivo de tais povoados era congregar os ndios, sobretudo guaranis, para cristiani z-los e impedir sua escravizao. As mis-ses tor na ram-se grandes produtoras de artefatos, gado e erva-mate.

    No sculo xviii, os Sete Povos viraram moeda de troca nas negociaes entre a Coroa portuguesa e a espanhola. Com o Tratado de Madri, de 1750, o territrio dos Sete Povos passou para os portugue-ses, e o da Colnia de Sacramento, para os espa-nhis. Os n dios e os jesutas deviam deixar as mis-ses. Du ran te a resistncia, notabilizou-se o corre-gedor de So Miguel conhecido como capito Sep Tiaraju. A luta s terminou em 1756, quando Sep morreu em combate. Seguiu-se um grande massacre de guaranis, e as misses foram incendiadas e aban-donadas. A Guer ra dos Sete Povos assunto do poema O Uraguai (1769), de Baslio da Gama.

    teiniagu, a lagaRtixa encantadaAssim conhecida a princesa moura que vive sob a forma de lagartixa com uma pedra rubra no lugar da cabea. Uma das verses mais famosas dessa lenda, que remonta aos tempos dos Sete Povos das Mis ses, a do escritor gacho Simes Lopes Neto. Se gun do o autor, uma princesa moura encantada veio da Espanha para a misso de So Tom, na Ar-gen tina, e ali se apaixonou por um sacristo, que a capturou dando-lhe mel de abelhamirim. Durante o dia ela assumia a forma da lagartixa; durante a noi-te, trans formava-se em princesa, e ela e o sa cristo se amavam. Descobertos, ele foi condenado mor-te. Mas, depois de algumas peripcias, ambos con-se guiram fugir e se converteram numa imagem dos povoadores dos campos do Sul. Ela passou a ha bi tar uma furna prxima fronteira do Uruguai, on de, con ta-se, h riquezas espantosas. Central nO tempo e o vento, o tema da Teiniagu evoca o poder de seduo e a in de pendncia das mulheres.

  • o destino das mulheres: esperar e trabalhar. Pedro vai e Pedro volta. Planta trigo, perde trigo e terras. Constri uma casa e passa a viver modestamente com o fruto do trabalho. Quando o episdio de Ana Terra termina, assim que a deixamos, esperando e resmungando com o vento que a persegue. O velho minuano, vento implacvel e gelado que vem do pampa, est sempre a rodela, trazendo a memria dos mortos que ela deixou pelo caminho.

    Est traada a a origem do Continente de So Pedro e sua sina, feita de muitas guerras, esperas, de nascimentos e mortes, da luta do tempo linear, que vai amarrando as guerras e as perdas, e do vento, que traz a voz dos mortos, a lembrana de velhas guerras e a certeza de guerras futuras.

    Enquanto as mulheres geram e defendem a vida, com o trabalho cotidiano que vai da roca lavoura, os homens a destroem peleando. As mulheres so a permanncia, elas do e guardam a vida, at que ela se v. E ento guardam a memria dos mortos e suas his t rias, para contar s crianas da famlia, como Ana Terra vai fazer com Bibiana, sua futura neta.

    chega o capitoO episdio do capito Rodrigo comea em 1828, quando ele, no auge dos trinta anos, veterano de muitas guerras, chega ao bar do Nicolau, em Santa F. Ainda que espalhafatosa e desafiante, sua irrupo no bar logo produz um amigo, Juvenal Terra. Impressionado com a firmeza e a coragem deste, Rodrigo evita a briga iminente, convidandoo a tomar um trago e a conversar. nessa conversa que o romancista revela ao leitor episdios passados da vida do capito e sua participao nas guerras contra os castelhanos, desvendando alguns ngulos mais gerais da histria do Rio Grande, do Brasil, do Prata e da Europa, j que as tenses na fronteira com o Uruguai e a Argentina refletiam volta e meia tenses entre Portugal e Espanha e entre estes e outros pases europeus.

    pelo olho crtico e ao mesmo tempo fascinado de Juvenal que o capito Rodrigo se mostra ao leitor, no apenas como valente guerreiro, mas tambm como um gacho anrquico, simptico e arrogante, que entre um gole de pinga e uma garfada de linguia frita, bebendo e comendo ruidosamente, contrasta com os modos comedidos de Juvenal. Mas graas a Juvenal que Rodrigo vai, entre outras coisas, escapar da morte certa num duelo com Bento Amaral, o filho do temido coronel Ricardo Amaral Neto, dono de Santa F. o incio de uma longa amizade entre dois gachos muito diferentes mas tambm muito parecidos.

    A imagem de Rodrigo como um gacho gaudrio, valente para a guerra, talentoso no violo e sedutor com as mulheres aprofundase ao longo do livro; Erico disse ser o capito uma espcie de prottipo dos gachos que conheceu na infncia, a comear pelo prprio pai o macho, o bravo guerreiro, o mulherengo, o homem generoso, impulsivo e livre, principalmente livre.

    a grande paixoNo dia dos mortos daquele ano de 1828, vamos reencontrar Rodrigo no cemitrio, justo no momento em que Pedro Terra e a filha Bibiana, irm de Juvenal, visitam a sepultura da me, Ana Terra. Ele se apaixona primeira vista por Bibiana, uma continuao da av em muitos

    caderno de leituras 19

  • aspectos, sobretudo no carter firme de mu lher estoica. O teimoso capito, tambm de nome telrico cambar uma rvore muito forte , est decidido a permanecer ali, mes mo contra a vontade do coronel Ricardo Amaral, para conquistar Bibiana, apesar da reprovao silenciosa de Pedro. E leva um ano at conseguir casarse com ela.

    Os ganhos e as perdas, as alegrias e os sofrimentos do jovem par so provocados principalmente pelo carter contraditrio do capito, que ama Bibiana mas incapaz de abandonar a vida aventureira de peosoldado, refletida at na roupa que usa, metade paisana, metade militar. Em 1829, Rodrigo um homem casado, scio de uma venda com o carreteiro Juvenal Terra. Mas a vida pacata no se coaduna com seu temperamento de gacho guerreiro, mulherengo, jogador e cantor.

    Em 1835, como para salvlo, rebenta mais uma guerra, e ele se transforma num soldado farroupilha, vindo a morrer como tal, na conquista militar e simblica da vila onde para sempre deixar a marca de sua identidade.

    Enquanto isso a vila de Santa F cresce, e preparase o terreno para o aparecimento das riquezas

    financeiras, das modernidades, at de um certo luxo. Mas esses tempos e suas figuras no tero mais a magia dos heris fundadores, a no ser quando aqui e ali algum sinal dos mortos ainda aparece para contar a histria at o fim, que um eterno recomeo.

    as vozes indiretas e a linguagem do silncioNo episdio de Ana Terra, Erico tinha poucos elementos para traar um drama de origens. Seria difcil fazer falar figuras com to pouco a dizer aos outros e a si mesmas. A grande descoberta algo que no Nordeste o escritor Graciliano Ramos tambm utilizar: as vozes indiretas e a linguagem do silncio, como disse certa vez o filsofo francs MerleauPonty. Ana Terra ser mestre em exprimir com poucas palavras sabedoria rica de experincia. Assim explica Erico Verissimo:

    A ideia de uma famlia de analfabetos que vivia sozinha num rancho perdido em

    meio do verde deserto do Continente, sem vizinhos, sem calendrios, sem relgios,

    sem vida espiritual, no oferecia elementos de drama. No tardei, porm, a compreen

    der que era exatamente nessa aparente falta de drama que estava toda a dramaticidade

    daquelas vidas. Quando descobri que os Terras eram casmurros e silenciosos e no se

    comunicavam entre si, essas possibilidades dramticas aumentaram.

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    a RevOluO faRROupilha (Ou gueRRa dOs faRRapOs)Na madrugada de 20 de setembro de 1835, mili ta-res rebelados, sob a liderana do coronel Bento Gon alves da Silva (1788-1847), invadiram Porto Alegre, a capital da provncia, e depuseram o go vernante. Era o comeo da Revoluo Farroupilha, a mais longa guerra civil brasileira, que duraria dez anos e mataria em torno de 5 mil pessoas, numa poca em que a populao do Rio Grande do Sul mal passava dos 100 mil habitantes.

    As causas da guerra eram, entre outras, o des con-tentamento com perseguies polticas promovidas por autoridades ligadas administrao portuguesa, a insatisfao com o desamparo da re gio, esqueci-da pelas autoridades centrais, o excessivo imposto sobre o charque brasileiro e o favorecimento da im portao do charque platino, bem como a agita-o de ideias republicanas e at abolicionistas.

    O prolongamento das lutas ocorreu porque os re volucionrios dominavam os campos, onde dispu-nham de apoio e fartas cavalhadas, alm de estarem afeitos s escaramuas, que os imperiais tinham dificuldade de acompanhar. Mas fracassaram na obten o de um porto. No incio de 1845, assinou-se um ter mo de paz (o Imprio no quis reconhecer a palavra tratado), pondo fim ao combate.

  • Se em Ana Terra o silncio fala e a viso se divide ambiguamente entre o narrador onisciente e uma oniscincia seletiva, centrada sobretudo em Ana, em Um certo capito Rodrigo a loquacidade do capito que comanda a narrao, principalmente nos dilogos dele com o padre Lara.

    A estabelece Erico um confronto entre o ponto de vista do peosoldado, guiado pela paixo de viver, pelo sentido anrquico e igualitrio, e o da Igreja, que pregava a igualdade dos homens perante Deus apesar de servir aos poderosos, curvandose a eles e ignorando as injustias. Nesse confronto, pese o dedo em algo que ser dramatizado com nfase mais tarde, no tempo de Licurgo Cambar, bisneto de Ro drigo, mas que aparece discretamente desde o epis dio de Ana Terra: o latifndio e a escravido.

    Maneco Terra tinha escravos que at na hora da morte eram meio invisveis como pessoas para os brancos. Depois da luta com os castelhanos, Ana Terra d sepultura a esses corpos, embora desconfie, tarde demais, que um dos negros escravos ainda estava vivo ao ser enterrado. Por outro lado, tambm se expressa aqui a primeira crtica concentrao de tanta terra na mo de poucos, pela manipulao do sistema de sesmarias.

    No episdio seguinte, o capito Rodrigo, quando mais no seja para testar o princpio cristo e as convices do padre Lara, defende a libertao dos escravos numa sociedade ideal, assim como o fim do latifndio e a diviso das terras entre todos os semterra do Rio Grande. A fala do capito serve de contraponto crtico posio da Igreja, ao pensamento e discurso do padre Lara, cuja fala, por sua vez, serve tambm para examinar criticamente a sociedade rstica de Santa F e os homens rudes que a compem.

    As reflexes do padre esto sempre a pesar o direito e o avesso do capito, sem deixar de reconhecer suas qualidades sob o comportamento do gacho semibrbaro, que no teria culpa de sua rudeza, diante da vida de guerras e de abandono que levou desde menino.

    os heris e a gente simplesAo lado das personagens fictcias e de suas aventuras inventadas, aparecem desde o incio personagens histricas vistas pelo olho do homem comum, o que permite problematizar heris e feitos.

    Rafael Pinto Bandeira, por exemplo, do alto de seu cavalo, tece elogios a Ana Terra quando ele passa rumo fronteira na luta com os castelhanos. Mas, no olhar terra a terra de Maneco, o heri apenas um entre muitos estancieiros mais interessados em salvar suas terras do que em salvar a ptria. H tambm menes a Bento Gonalves, s vsperas da Revoluo Farroupilha, que, para uns, pretende separar o Rio Grande do Sul do Brasil e unilo aos pases em formao no Prata e, para outros, quer apenas respeito e reconhecimento do governo central.

    caderno de leituras 21

    a teRRa, as sesmaRias e O tRigOAs lutas de fronteira formaram um padro de proprie-dade e de proprietrios de terras no extremo sul do Brasil. Os militares recebiam extensas concesses de terra (as sesmarias), que deviam ser utilizadas para criao de gado e protegidas por homens armados. Esses senhores de terra viravam caudilhos, seguidos por gente disposta a matar e morrer por eles.

    A Coroa portuguesa tentou povoar aquelas para-gens trazendo colonos de outras regies do Brasil, de Portugal e dos Aores. Mas os colonos mal conse-guiam desenvolver uma economia de subsistncia, base de mandioca, milho e pequenas pontas de gado. No raro, quando obtinham um plantio mais estvel, como o do trigo, viam seu esforo arra sado por alguma guerra ou matana. O trigo era um pro-duto sofisticado e rentvel, pois era co biado nas vilas e cidades que comeavam a surgir. Seu plantio significava promoo social e a possibilidade de a bas tecer as estncias dos potentados. Outras fon tes de renda importantes eram a criao de gado e a indstria do charque, que abastecia todo o Brasil.

  • A leitura ficcional da histria faz dela algo paradoxalmente mais humano e verdadeiro do que aquela que aprendemos nos manuais escolares, feita de homens e mulheres sem contradies nem dvidas.

    a complexidade do brasil e as peculiaridades rio-grandensesAs trajetrias de Ana Terra e do capito Rodrigo assinalam tambm simbolicamente a histria dividida do Rio Grande entre o Brasil e o Prata. A Revoluo Farroupilha se tece na tenso dessa regio, e a proximidade fsica e cultural com o Uruguai e a Argentina vista como atrao perigosa e centrfuga para a unidade brasileira nos anos psIndependncia. Essa revoluo at hoje uma marca da identidade gacha, uma forma peculiar de aceitarse como parte do Brasil, sem perder o orgulho e o desejo de participar com autonomia da federao que o Rio Grande do Sul teria ajudado a construir com o sangue de seus valentes capites Rodrigos.

    Essa brasilidade fronteiria cada vez mais mltipla vai ser explicitada ao longo dos dois episdios aqui tratados. Em Ana Terra j esto o portugus, o ndio e o negro escravo. Em Um certo capito Rodrigo, chegam os alemes, e depois os italianos e outros imigrantes. Mas a mistura no se faz sem tenses e preconceitos, desde a rejeio dos Terras ao ndio Pedro Missioneiro at o falatrio do povo de Santa F sobre a conduta da alemzinha Helga Kunz, que parte na garupa do noivo para casarse em So Leopoldo e por isso chamada de bicho semvergonha. Ao preconceito racial e cultural somase o preconceito sexual: o machismo que reconhece apenas ao homem o direito de responder aos desejos do corpo.

    Enquanto o capito se entrega a tais desejos at as ltimas consequncias, doa a quem doer, Ana Terra e Bibiana refreiam no amor de um homem s, mesmo depois de morto, as suas nsias e anseios, a ponto de nem sequer deixlos aflorar quando ficam sozinhas embora Ana Terra tenha se entregado a um ndio sem saber por qu e Bibiana tenha desafiado a famlia para casar com o capito. Apesar de tmidos, esses so sinais de algo que se desenvolver nos episdios posteriores dO tempo e o vento. E ento as mulheres e o Rio Grande vo mudar, mas vai doer em muita gente. Por ora, ainda tempo de machos e de guerras. E cabe s mulheres trabalhar, parir e esperar...

    leituras sugeridas

    1. Os demais romances e episdios dO tempo e o vento. Nada substitui a leitura completa e o

    conhecimento do destino dos Terras Cambars e de sua Santa F, numa contnua revelao

    de situaes e vises instigantes da histria do Brasil.

    2. O ltimo dos moicanos (1826), de James Fenimore Cooper. O romance focaliza a formao

    inicial dos Estados Unidos e oferece interessante contraponto s caractersticas da formao

    brasileira e ao nosso romance tambm. Uma adaptao para o cinema foi filmada por Michael

    Mann, em 1992.

    3. Martn Fierro (1873), de Jos Hernndez. O poema, cuja ao se passa no pampa argentino,

    assinala a formao tnica, cultural e social do gacho platino, s vezes coirmo, s vezes

    inimigo de armas do gacho brasileiro nas guerras de fronteira.

    22 caderno de leituras

  • 4. O sertanejo (1875), de Jos de Alencar. Um dos primeiros romances do regionalismo no Brasil,

    acontece aproximadamente na mesma poca de Ana Terra e abrange a formao brasileira

    nos sertes do Nordeste.

    5. Viva o povo brasileiro (1984), de Joo Ubaldo Ribeiro. O romance espelha a formao de

    nosso povo tambm a partir de uma vasta linha temporal, tendo por centro a cidade de

    Salvador e a Bahia.

    6. Cem anos de solido (1967), de Gabriel Garca Mrquez. Como O tempo e o vento, o roman-

    ce rev a histria de uma regio e de um pas (a Colmbia) atravs da histria de uma famlia

    (os Buenda) e de uma cidade imaginria (Macondo).

    7. Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913), de Joo Simes Lopes Neto. Esses contos

    narram algumas das histrias missioneiras inspiradoras dO tempo e o vento. Os dois volumes

    foram editados em um nico livro e esto disponveis no site .

    atividades sugeridas

    1. No prefcio de uma das edies de Um certo capito Rodrigo, Erico Verissimo afirma: Cada

    leitor deste livro ver o capito Rodrigo sua maneira, de modo que haver um dia vrios

    Rodrigos mais ou menos parecidos uns com os outros mas nunca idnticos. Isso valeria para

    outras personagens, como Ana Terra, por exemplo. Os alunos podem levantar as qualidades

    fsicas e morais dessas personagens, para descobrir o seu capito Rodrigo ou a sua Ana Terra.

    Podem fazer anotaes e, depois, apresentar na classe seus perfis, constatando semelhanas

    e diferenas e fundamentando-as com o texto. Aps esse cotejo podem escolher, pelo voto,

    quais os tipos mais discrepantes de cada personagem.

    2. Como muitos escritores e leitores, Erico tambm pensa que a narrativa escrita d mais mar-

    gem imaginao do que a feita por imagens (filme, vdeo, novela). Diz ele a esse respeito:

    E nesse mistrio da participao do leitor que vejo a superioridade do livro sobre o cinema

    como meio de expresso artstica. O cinema tem de mostrar tudo. O romance joga com omis-

    ses que so s vezes to importantes como as descries e os dilogos explcitos. Depois de

    fazer o exerccio 1, os alunos podem assistir a verses filmadas ou televisionadas de Ana Terra

    ou de Um certo capito Rodrigo, para comparar o que viram na tela com o que imaginaram

    lendo e relendo os livros. Podem discutir se Erico tem razo, por qu, e as vantagens e des-

    vantagens na configurao das personagens atravs da linguagem verbal e visual.

    3. O romance, como praxe, no conta tudo. Escolhe quais acontecimentos resume e quais deve

    apresentar com mais detalhes aos leitores. A estes cabe descobrir depois de notar o que

    vem longamente narrado aquilo que sintetizado e o que silenciado ou apenas sugerido,

    e qual a funo das diferentes estratgias em cada caso. Tendo isso em vista, os alunos podem

    fazer o exerccio criativo de preencher com a imaginao certas elipses da narrativa de Erico,

    por exemplo, contando por escrito a morte de Ana Terra ou os ltimos momentos do duelo

    entre Bento Amaral e o capito Rodrigo. As verses podem ser lidas em voz alta, e as melho-

    res, expostas no mural da classe.

    caderno de leituras 23

  • 4. A histria, feita pelos historiadores, uma narrativa que tambm faz suas escolhas para falar

    do passado. Erico sabe disso, e tematiza a dificuldade de apanhar pelo discurso o que de fato

    ocorreu, pois este implica necessariamente a mediao da subjetividade e do contexto em que

    ela opera. o que nos diz esta reflexo do padre Lara, sobre a Revoluo Farroupilha: No

    deixava de ser curioso a gente ver a histria no momento em que ela estava sendo feita! Dali

    a cem anos, como iriam os historiadores descrever aquela guerra civil? O pe. Lara sabia como

    era custoso obter informaes certas. As pessoas dificilmente contavam as coisas direito.

    Mentiam por vcio, por prazer ou ento alteravam os fatos por causa de suas paixes. Cenas

    da vida cotidiana que se tinham passado sob o seu nariz, ali mesmo na praa de Santa F,

    eram depois relatadas na venda do Nicolau duma maneira completamente diferente. Como

    era ento que a gente podia ter confiana na histria?.

    Pensando nisso, podem ser propostas pesquisas em livros de histria e na internet sobre

    alguns dos fatos histricos referidos em Ana Terra e/ou em Um certo capito Rodrigo, para

    que se confronte a verso da historiografia com a de Erico. Os alunos podem discutir seme-

    lhanas e diferenas, procurando avaliar o que se diz e o que se oculta, alm do que se apren-

    de, sobre tais fatos atravs da historiografia e do romance. Grupos podem pesquisar, por

    exem plo, a imigrao alem para o Rio Grande do Sul; a vida dos ndios nas misses guaranis

    e a destruio destas durante a Guerra dos Sete Povos das Misses; a vinda da famlia real em

    1808; as Guerras da Cisplatina etc. As turmas mais avanadas podem discutir at as verses

    distintas de um acontecimento dentro da prpria historiografia.

    5. Os alunos podem, tambm, levar adiante a comparao, agora com outras verses ficcionais.

    No caso das misses, podem ler O Uraguai, de Baslio da Gama; os Contos gauchescos e as

    Lendas do Sul, de Joo Simes Lopes Neto; o romance Netto perde sua alma, de Tabajara

    Ruas, ou ver o filme de mesmo ttulo, de Tabajara Ruas e Beto Souza. H ainda uma verso

    feminina em romance e srie televisiva, A casa das sete mulheres, de Leticia Wierzchowski.

    Uma forma interessante de trabalho tomar uma personagem histrica e ver como ela apa-

    rece nas diferentes verses. Depois disso, os alunos podem produzir uma pea de fico,

    individualmente ou em grupo, apresentando suas razes para compor dessa ou daquela

    maneira uma personagem histrica de sua escolha.

    24 caderno de leituras

  • Do dirio de Slvia

  • 26 caderno de leituras

    Um belo dia, em setembro de 1941, Slvia resolve comear um dirio, que compra meio s escondidas. Depois de uma semana se pe a escrever. Pouco a pouco suas motivaes se desvendam: ela chegou plena conscincia de que seu casamento um fracasso afetivo e de que o cunhado o grande amor de sua vida; de que sente a necessidade de um Deus no convencional, com quem quer se ver a ss para uma confisso ntima de f que a redima.

    Slvia afilhada de Rodrigo Terra Cambar, o potentado de Santa F que foi com a mulher e alguns filhos para o Rio de Janeiro, acompanhando a ascenso de Getulio Vargas ao poder. Ela se casou com Joo Antnio ( Jango), o filho do dr. Rodrigo que permaneceu em Santa F para tomar conta da estncia e do casaro da famlia.

    Seu verdadeiro amor, o escritor Floriano, primognito de Rodrigo, foi para os Estados Unidos dar aulas na universidade. De certo modo, Slvia escreve o dirio tambm para compensar a falta que sente do cunhado, embora esse amor ameace a estabilidade da famlia.

    Enquanto Santa F, o Rio Grande do Sul e o Brasil completam sua dramtica passagem para os caminhos e impasses da modernidade, vm lembranas como a da proclamao do Estado Novo, em 1937, e do drama familiar que isso desencadeia; o rompimento de Rodrigo com o irmo Torbio e a morte violenta deste; a cruenta Guerra Civil espanhola, entre republicanos esquerdistas e falangistas de direita; a ascenso do nazifascismo, o incio da Segunda Guerra, a queda da Frana, o bombardeio da Inglaterra, a entrada dos Estados Unidos no conflito depois do ataque de Pearl Harbor.

    Pelo Sobrado e pelo dirio de Slvia desfilam personagens e amigos dos Terras Cambars. Ali esto Jango e Maria Valria, a tiaav de Floriano, o tio Bicho, o angustiado Aro Stein e Zeca, novio catlico que faz eco s preocupaes msticas de Slvia.

    O dirio encerrado em 1943. O nazismo e o fascismo se esboroam, os Aliados e os russos vo vencer a guerra uma questo de tempo, escreve Slvia. No dia 4 de dezembro ela conclui: Cerro os olhos e fico esperando o recado de Deus.

  • Um romance dentro do romanceNdia Battella Gotlib

    Refugiada num dirio aparentemente descompromissado, Slvia aos poucos afia

    seu olhar. Nesta viagem sem volta, Erico desenha um painel severo da condio

    social da mulher num contexto poltico de represses.

    Do dirio de Slvia um episdio dO arquiplago, terceiro romance dO tempo e o vento. Coi sa incomum em quase todo o restante da obra, aqui os fatos so narrados em primeira pessoa e por uma personagem mulher, Slvia, que apresenta uma viso diferente da histria da famlia Terra Cambar.

    Os cinquenta fragmentos que compem o episdio se organizam segundo marcao cronolgica, de 24 de setembro de 1941 a 4 de dezembro de 1943. Entretanto, os relatos no obedecem apenas ao registro do dia a dia, caracterstico do gnero dirio. Obedecem tambm aos ritmos do devaneio, das lembranas, das expectativas da autora. Tal escrita associativa chamada pela prpria personagem de jornal, remontando ao termo de origem francesa journal (com sentido de jornal e de dirio), que deriva de jour (dia). Esse dirio guarda, portanto, um sentido de jornada, e se faz quase uma notcia de viagem. Que viagem? A da protagonista por seus interiores.

    Se os fragmentos tm extenso variada, uns brevssimos (a data seguida de duas oraes), outros mais longos (vrias pginas), cada um deles nasce da prpria condio temporal da escrita: o dia de seu registro, num tempo de verbo presente, a partir do qual se fazem remisses ao passado ( flashbacks) e elucubraes sobre o futuro.

    No somente por ser dirio que essa parte dO arquiplago sobressai. Afinal, no mesmo romance, Floriano, filho do patriarca da famlia, Rodrigo Terra Cambar, escreve fragmentos confessionais, em primeira pessoa, numa espcie de dirio de romancista. A narrao de fatos de sua vida cotidiana alimentada pelo propsito de dar forma ao que dever ser o grande romance de sua carreira de escritor, em que contar a histria do Rio Grande do Sul desde 1745. Para isso recorre memria de pessoas mais velhas, reunindo dados de seu passado, que remonta, entre outros, aos trisavs dele, capito Rodrigo e dona Bibiana. Em momento distinto, reproduz os trechos mais significativos do dirio que manteve nos Estados Unidos, quando foi professor de literatura brasileira numa universidade da Califrnia.

    caderno de leituras 27

  • as diferenas dos dois diriosCada um desses dirios, que se destacam dos demais captulos narrados em terceira pessoa, escrito por uma mulher e por um homem que constituem um par amoroso dentro do romance. Os dois se unem pelo amor e por uma espcie de comunho espiritual. E em funo dessa forte relao afetiva e sentimental que o dirio de Slvia se desenvolve.

    Enquanto Slvia mergulha corajosamente nas suas mazelas e questes interiores, Floriano mantmse na superfcie ( tambm o que dizem, em conversa, os leitores dos romances dele), sem deixar que os seus fantasmas aflorem. Essa diferena de procedimentos dos narradores pode ser atribuda diferena de propsitos: escrever um dirio ntimo, no caso de Slvia, e um caderno de anotaes de escritor, no caso de Floriano. Mas no poderiam mostrar tambm uma diferena de posturas de homem e de mulher diante da vida?

    Vale a pena refletir sobre esse ponto to discutido, sobretudo pela crtica feminista, que reconhece modos especficos de a mulher se comportar como autora, narradora e leitora de textos. Slvia, ao escrever um dirio ntimo, descreve e expe um romance, pelo menos espiritual, o dela com Floriano. Este, ao construir um perfil de romancista, acaba se ocultando detrs dele e reconhecendo a sua dificuldade em se expor.

    as perguntas de um dirioO dirio de Slvia iniciase com um questionamento sobre a tradio do gnero, utilizado por adolescentes romnticas, em segredo, para confessar experincias sentimentais. Elas criam, assim, um espao onde inseguranas, limitaes, ansiedades de certa forma reprimidas por um contexto social adverso podem emergir. O dirio propicia mirarse no espelho, confrontarse com a prpria imagem, num exerccio de explorao do territrio da intimidade.

    O dirio de Slvia prope questes como: em que consiste um dirio? E, a partir da: para quem se escreve? para que se escreve? At a pergunta final: o que consegue a personagemescritora do dirio atravs dessa escrita?

    Logo no comeo do captulo, a narradora mostra uma espcie de preconceito contra o tipo de escrita que passa a praticar, tradicionalmente cultivado por mooilas inseguras e sonhadoras. Da o medo do ridculo que surge quando Slvia mente que dar o dirio de presente a uma mocinha e tenta se justificar: Porque na realidade dei o dirio jeune fille que em parte ainda sou. Ou quando alude lembrana de que se costumava colocar um amorperfeito seco entre duas pginas. Ou mesmo quando descreve fisicamente o dirio, objeto meio cafona: Tipo lbum, fecho de metal, uma gaivota dourada na capa de plstico azul imitando couro.

    Mas, no lugar do amorperfeito, ela coloca a prpria angstia. E para isso emprega o termo alemo Angst, tal como usado por filsofos. Nesse ato de substituio da tradio ingnua pela conscincia filosfica, Slvia inaugura seu desabafo, com o intento de discretamente lamber as prprias feridas na solido, embora saiba que o certo mesmo curlas.

    E no fcil enfrentar o mergulho na intimidade naquilo que, com certa ironia, chama de angustiazinha nacional e municipal , mediante exerccios de franqueza. Tanto que, logo no incio dessa empreitada, menciona, antes do que pretendia, o nome de Floriano. Ou seja, ela surpreendida pela prpria escrita, que a conduz a direes no controladas. Eis ento um dos espantos e, ao mesmo tempo, um dos encantos que a escrita pode nos fornecer: levar a atos e fatos inusitados, a direes inesperadas.

    28 caderno de leituras

  • as mltiplas facesOcupao em dia de chuva. Necessidade de registrar o que vem pensando e sentindo, sem aparentemente tomar isso a srio. Reconhecimento de que no uma, mas muitas Slvias, entre elas a que escreve e a que l, e vrias que escrevem, e que leem. Assim por dian te, a sequncia desdobrase em mltiplas projees. A linguagem do dirio leva a personagem a re descobrirse.

    Mas, ao olhar para si, Slvia acaba fatalmente olhando para o outro e situandose num contexto de vida mais amplo, que pessoal e coletivo, individual e social, nacional e internacional, para, num es tgio seguinte, reconhecerse em estado de solido in tensa, no qual aguarda a religiosa contemplao da magnitude divina, cerrando esse circuito com a se renidade espiritual conquistada com um novo possvel amor, pela f em Deus.

    H, pois, um ntido percurso de questionamentos da personagem. E eles compem, afinal, a linha do enredo do romance, desde as primeiras palavras es critas pela mulher casada, como se fosse uma adolescente, at as relaes complexas que ela cada vez mais madura mantm com outras personagens. A aflora a problematizao da condio social da mulher num contexto poltico de represses, inquietaes, anseios e frustraes provocados pelo violento Estado No vo, no Brasil, e pela Segunda Grande Guerra.

    medida que o tempo passa e a escrita se con soli da em ato srio e consequente, diluise o tom de iro nia e brincadeira que alimenta os primeiros fragmen tos minados pela insegurana, sem no entanto dei xar que a seriedade apague uma saudvel leveza. No incio, a personagem brinca consigo mesma, mas tenta livrarse da inconsequncia e enfrentar os problemas. Ela quer botar as cartas na mesa, ciente de que os problemas que tem com os outros, afinal, convergem para uma nica pessoa: meu problema maior sou eu mesma.

    Na sequncia do processo de conscientizao a que a leva a escrita, a autora analisa sua prpria reao perante os dois irmos, o marido ( Jango) e o cunhado (Floriano). Ela ento reconhece a frustrao pela relao no consumada com Floriano, to intelectuali zado, e pelo casamento consumado com Jango, sempre a cuidar dos animais do Angico.

    caderno de leituras 29

    getuliO vaRgas e O estadO nOvOO gacho Getulio Dornelles Vargas (1883-1954) atra vessa toda a obra de Erico Verissimo. Fez carrei-ra poltica por entre as extremadas polaridades partidrias do Rio Grande do Sul; foi deputado fe de ral, ministro da Fazenda e presidente (como se dizia ento) da provncia. Chegou Presidncia da Repblica testa de um movimento revolucionrio que contou com indiscutvel popularidade nacional, derrogando as oligarquias da Repblica Velha, cujo sistema eleitoral corrupto e limitado no continha mais o pas. Usando da conciliao e da represso sem trgua, venceu rebelies como a de 1932 (em So Paulo), a de 1935, de militares esquerdistas, e a de 1938, dos integralistas.

    Em 1937, numa crescente espiral repressiva e autoritria, instaurou o Estado Novo. Proclamou a Constituio chamada Polaca, de molde fascista. Suprimiu as liberdades individuais e fechou o Con-gres so. Proibiu os partidos polticos, inclusive os que o apoiaram, e ordenou a queima das bandeiras es taduais; criou o Departamento de Im pren sa e Pro-paganda, que imps rgida censura. In me ros mi li-tantes de oposio foram presos, torturados pela polcia poltica, ou deportados.

    Instituiu, pela primeira vez na histria do Brasil, um conjunto orgnico de leis que sistematizavam direitos aos trabalhadores, como frias, descanso remunerado, previdncia social, estabilidade e sal-rio mnimo; e passou a controlar os sindicatos. nes sa poca que o pas entra no domnio da in ds-tria pesada, a siderrgica, consolidando o pro cesso de modernizao.

    Cortejado por nazistas e fascistas, Vargas pare-ceu se inclinar a eles, mas continuou negociando com os Aliados. Em 1942, o torpedeamento de navios bra sileiros precipitou a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, do lado dos Aliados. Em 1945, o fim da guerra marcou tambm o ocaso do Estado Novo: Getulio foi deposto por um golpe mi litar, mas deixou o poder ainda como lder popu-lar, graas poltica nacionalista e trabalhista que en cetara. Voltou Presidncia eleito pelo povo, mas suicidou-se em 1954, em meio a um golpe conservador que tentava dep-lo.

  • o pequeno teatro da vidaH pelo menos duas imagens que revelam a argcia do autor na seleo e montagem dos seus recursos narrativos. Uma a do teatro, usado para traduzir o fracasso do casamento: a vida uma comdia em que a esposa, m atriz, no diz nem faz no palco o que a vida conjugal espera dela, segundo o papel que lhe cabe. E os momentos de improviso so vistos com estranhamento pelo marido, rstico, autoritrio, impermevel a dilogos, restrito, talvez por insegurana, ao seu mundo de certezas, como Slvia resume numa s frase: um homem slido e prtico, incapaz de sonhos e fantasias.

    A outra imagem justamente a que desdobra esse trao de carter do marido, a rusticidade, mas recorrendo a um tom irnico e bemhumorado, uma das marcas de Erico Verissimo: Como pode acreditar em feridas da alma quem vive to preocupado com as bicheiras dos animais do Angico? Se eu lhe contar meus problemas espirituais, temo que me receite creo lina. Como tudo seria mais fcil na vi da (deve refletir ele) se pudssemos juntar todos os nos sos parentes, amigos e dependentes que tm pro ble mas de conscincia,

    e atirlos como se faz com o gado, dentro dum ba nhei ro cheio de carrapaticida....

    O dirio importante, ainda, por registrar com certa espontaneidade (pelo menos aparente) as variaes de comportamento de Slvia. Ora ela critica o marido, ora sentese culpada por havlo criticado; ora escreve, ora pensa em rasgar a pgina. As contradies da personagem vo sendo aos poucos reveladas pelo dirio, que se constitui, ao mesmo tempo, em escrnio (tesouro) que contm as raras joias que a vida nos d, e em lata de lixo, onde so despejados o tdio, as tristezas e os dios. Esses movimentos internos da narrativa, que avana s vezes num sentido, s vezes em sentido contrrio, realam a complexidade da natureza humana.

    Como problematizar as aes ou inaes e a prpria reflexo uma das funes crticas dessa linguagem de balano de vida, a narradora tambm usa com eficincia o recurso das perguntas e res pos tas. Por que casei com Jango? Porque... E a Slvia lana vrias hipteses, descobrindo, por exemplo, que, apesar de amar Floriano, decidiu se casar com Jango para acatar a vontade do patriarca poderoso, Rodrigo, seu padrinho e protetor, senhor do Sobrado e de Santa F, e pai de Floriano e de Jango.

    Sentese a fora da diferena entre as classes so ciais: em seu casamento, Slvia agiu como se ainda fos se a me nina assustada que ganhava roupas de segunda mo da menina rica Alicinha, filha de Rodrigo. Slvia cres

    30 caderno de leituras

    a gueRRa civil espanhOlaNa dcada de 1930, cresceu a radicalizao ideo l-gica entre esquerda e direita no mundo inteiro. Na Es panha, desenvolveu-se um confronto dra m tico quan do os republicanos tomaram o poder em elei-es democrticas. Inconformados, os falangistas, de direita, comearam um levante armado em 1936, sob a liderana de Francisco Franco, em Tnger, possesso espanhola na frica.

    Numa das mais sangrentas guerras civis da hu ma nidade, os falangistas obtiveram apoio dos re gi mes nazista e fascista, que lhes forneceram ar mas, blindados, avies e soldados. Pela primeira vez ocor reram bombardeios areos macios e cont nuos contra populaes civis. Ficaram triste-mente fa mo sos os ataques a Guernica, Valencia, Bar celo na e outras cidades.

    Com o apoio da Unio Sovitica e de movimen-tos esquerdistas do mundo inteiro, os republicanos formaram brigadas internacionais que levaram mais de 60 mil combatentes estrangeiros para a Espanha, in cluindo dezesseis brasileiros. Intelec-tuais e artistas so li darizaram-se com a dramtica luta pela liberdade.

    Em 1939, os falangistas derrotaram os republi-canos e iniciaram uma ditadura que duraria d ca-das. Muitos republicanos se refugiaram na Frana, onde eram mantidos em verdadeiros campos de concentrao. Muitos outros aderiram luta contra os nazistas, e alguns foram repatriados. Um dos bra sileiros, Homero Jobim, passou seu dirio de cam panha a Erico Verissimo, que o usou como fon-te de inspirao para escrever o romance Saga (1940) e compor o destino de Aro Stein.

  • cera presenciando o sofrimento da me, uma costureira que trabalhava noite adentro para ganhar o m nimo e, alm de tudo, por causa de um casamento infeliz, vivia desiludida, para sempre descrente dos homens.

    o tempo e os espaosPor todas essas razes, o tempo uma das grandes presenas no dirio. A narradora, j casada e madura, sempre recorre ao passado atravs das cenas que recorda. Lembrase, por exemplo, do dia de seu noivado, quando Floriano chega do Rio de Janeiro e em meio ao burburinho da festa a chama de minha querida, numa clara demonstrao de amor. Lembrase do enterro do tio Torbio, que a havia aconselhado a seguir os rumos do corao e confessar o amor por Floriano. Lembrase das inmeras conversas que teve com Floriano: ele contando do namoro com a americana Mandy Patterson ou declarando a inteno de se dedicar integralmente literatura o que significaria no insistir na ideia de se casar algum dia.

    A histria de Slvia envolve ainda a histria de outras personagens que frequentam o Sobrado, em Santa F, e contribuem para que a narrao se estenda at o Rio de Janeiro e a Europa. Se o Brasil do sul, agrrio e conservador, aparece com realce atravs de Jango, que mora e trabalha no Angico e dali quase no sai, Rodrigo Terra Cambar, o ento patriarca de Santa F, poltico de projeo nacional, getulista e oportunista, estabelece o elo entre o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. Na cidade sedutora ele vive com a mulher, Flora, abnegada na condio de esposa enquanto o marido troca sucessivamente de amante.

    Alm desses vitoriosos, h os derrotados. Aderbal Quadros (Babalo) e dona Lau renti na, pais de Flora, moram na estncia, agora em runas. Segundo Floriano, Aderbal trabalhou inconscientemente para a pobreza por no compactuar com o regime movido a lucro in de cente e com a distribuio de terras injusta. J Aro Stein, judeu e militante comunista, experimenta as atrocidades da Guerra Civil espanhola, do asilo em campo de concentrao para refugiados na Frana e das prises brasileiras sob o jugo da ditadura de Getulio Vargas.

    os dilogosUm dos recursos usados pelo narrador para reunir opinies diversas num mesmo espao so as conversas entre vrias personagens, como o caso dos seres no Sobrado. Ali elas ouvem no rdio as notcias da Segunda Grande Guerra, com a crescente ascenso dos fascistas, vista com apreenso pelos italianos de Santa F. E temem pela sorte dos Aliados, ameaados pelos pases do Eixo, cuja fora nazista invade a Dinamarca, Noruega, Blgica, Holanda, Luxemburgo, at tomar Paris, obrigando franceses e ingleses ao episdio dramtico da retirada de Dunquerque.

    caderno de leituras 31

    a segunda gueRRa e a RetiRada de dunqueRqueA derrota da Frana e a consequente ocupao de Paris foram dos acontecimentos mais dramticos da Segunda Guerra Mundial, que culminaram com a retirada de Dunquerque.

    Milhares de soldados britnicos que lutavam no continente e remanescentes do Exrcito francs se viram confinados s margens do canal da Mancha. Por razes como o mau tempo e uma certa contem-porizao por parte de Hitler, que desejava um ar mistcio com a Inglaterra para poder voltar-se con-tra a Unio Sovitica, o ataque final foi retardado.

    Comeou ento em Dunquerque uma das maio-res retiradas de tropas de toda a histria. De 27 de maio a 4 de junho de 1940, milhares de embarca-es de todos os tipos foram mobilizadas para eva-cuar 338 mil soldados da Frana e envi-los para a Inglaterra. O episdio marcou a derrocada do pri mei-ro enfrentamento dos Aliados com os nazistas, mas tambm assinalou a tenacidade da resistncia qual estes ltimos terminariam por sucumbir.

  • Apenas Dinda (Maria Valria), a velha cega que parece tudo saber, vive ausente, sem se importar com a guerra dos outros, embora no se descuide de vigiar Floriano e Slvia, para no deixlos a ss, temerosa de que acontea algo entre os dois, numa guerra toda particular para manter a integridade e a unio da famlia, de que se considera a sagrada protetora.

    Entre as cenas de feio poltica, merece ateno a do discurso que Getulio Vargas faz a bordo do couraado Minas Gerais e que o tio Bicho l num dos seres do Sobrado. O discurso interpretado pelo Bandeira como sendo fascista e pelo dr. Rodrigo como sendo dissimuladamente pramericano. O comentrio final do tio Bicho define a sagacidade de Vargas e a postura dos brasileiros diante dele: O presidente um felizardo. Pode fazer ou dizer todos os absurdos que no faltar nunca um intrprete benvolo que o explique e justifique. Esse jogo de diferentes pontos de vista em relao a um mesmo objeto no caso, o discurso de Getulio praticado pelo autor no s no dirio de Slvia como em outras partes do romance.

    uma coincidncia de olhares?Resta ainda uma considerao: at que ponto o olhar humanista de Erico Verissimo coincide com o olhar de Slvia? Ou: at que ponto a construo da narradora Slvia (tal como acontece com o narrador e romancista Floriano) seria uma projeo do prprio Erico, de corao grande e compreenso aberta, sempre atento s virtudes da grandeza humana?

    De todo modo, esses trs construtores de texto (Erico, Floriano e Slvia) colaboram para melhorar a formao dos seus leitores: incluem dados de informao, exercitam a viso crtica da realidade, desenvolvem a sensibilidade esttica, realam os valores humansticos.

    Slvia termina o dirio. O captulo acaba, mas o livro continua. Qual ser o destino do dirio de Slvia? Tero ela e Floriano foras para mudar a sua sina? Basta ler o restante do ltimo volume dO arquiplago para saber. Adianto apenas que, embora secreto, esse dirio ganhar, no final do romance, um novo leitor. Mas to importantes quanto as respostas que o dirio possa suscitar so as perguntas que ele levanta, e que Slvia no esquecer.

    leituras sugeridas

    1. Legio estrangeira (1964), livro de contos de Clarice Lispector. Em Os desastres de Sofia, uma

    me nina descobre o fascnio e as dores de amar e crescer. Em A quinta estria, uma mulher j

    ma dura transforma o esforo de livrar seu apartamento de baratas num ritual narrativo que a

    vai consumindo e fazendo mergulhar em vises fantsticas da condio humana. Clarice Lispec-

    tor analisa com grande argcia o olhar feminino sobre o mundo circundante e o mundo interior.

    2. Orlando (1928), de Virginia Woolf. O romance acompanha uma personagem fantstica, ora

    ho mem, ora mulher, durante alguns sculos desde o Renascimento, testemunhando as seme-

    lhanas e diferenas entre os sexos.

    3. As horas (1998), de Michael Cunningham. Parcialmente inspirado em Mrs. Dalloway, de

    Virginia Woolf, o romance aproxima o destino de trs mulheres, entre elas o da prpria escri-

    tora inglesa, que se suicidou no clima sombrio da Segunda Guerra Mundial e dos ataques

    areos contra a Inglaterra.

    32 caderno de leituras

  • 4. A mulher que escreveu a Bblia (1999), de Moacyr Scliar. Interessante viso da presena da

    Bblia em nossa cultura a partir do olhar de uma mulher.

    5. Minha vida de menina (1942), de Helena Morley. Dirio verdico de uma garota de provncia

    do final do sculo xix, o qual antecipa a voga das histrias do cotidiano ao traar um retrato

    vivo e bem-humorado da vida em Diamantina entre 1893 e 1895, ao mesmo tempo que

    re vela as inquietaes tpicas de uma adolescente.

    6. Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. Nesse clssico da literatura brasileira, Machado

    expe as agruras e os mistrios do cime masculino diante do mundo feminino, que foge ao

    seu controle.

    atividades sugeridas

    1. O dirio muito praticado ainda hoje, de diferentes formas, como, por exemplo, as divulgadas

    pela internet. Com base nessa premissa, os alunos podem:

    a) avaliar as caractersticas tpicas de um dirio, levando em conta aquelas que aparecem no

    dirio de Slvia (marcao cronolgica? desabafo de uma intimidade? procura de um espao

    prprio?);

    b) comparar os recursos a detectados com os do dirio escrito por Floriano, em dois outros

    captulos do mesmo stimo volume dO tempo e o vento (como se comportam o narrador

    Floriano e a narradora Slvia? quais as diferenas fundamentais entre eles?);

    c) encontrar um dirio na internet e compar-lo com os de Slvia e Floriano;

    d) criar um dirio real ou fictcio, durante um perodo de tempo (uma semana, um ms), para,

    no final, descobrir quais os recursos nele predominantes e quais as funes que tal dirio

    acaba privilegiando (simples registro de emoes e sentimentos, balano de vida, conheci-

    mento de si, instrumento de processo de conscientizao, busca de redeno de culpa, ten-

    tativa de punio, desmitificao de dolos, revelao de vrias faces etc.);

    e) continuar a escrever o dirio de Slvia como se fosse a prpria Slvia, de modo que os acon-

    tecimentos nele expostos tenham enfim um desfecho, e depois comparar esse desfecho com

    o do romance de Erico.

    2. A mulher personagem constante no dirio, e aparece numa grande variedade de situaes e

    mesmo vivendo em condies diversas. Pode-se pedir aos alunos que avaliem as diferenas entre

    algumas personagens-mulheres do romance, como Slvia, Flora, Dinda, Toni Weber, tentando

    resumir, em trs ou quatro palavras, os traos fundamentais de cada uma. Pode-se pedir ainda

    que examinem as imagens empregadas por Floriano, em conversa com Slvia, quando ele com-

    para a terra a uma mulher (Suponhamos que esta terra, esta cidade, esta querncia seja uma

    mulher...). Floriano tambm fala das relaes de seus familiares com a terra, e faz analogias ao

    relacionamento com uma mulher: Jango estaria casado com a mulher/terra; o dr. Rodrigo a

    teria trado com a cidade do Rio de Janeiro e agora estaria sendo devorado pela amante,

    Eduardo estaria apaixonado por ela e assim por diante. Com base nisso, sugere-se:

    a) discutir com os alunos que outras imagens poderiam traduzir tais relaes (exemplos: casa,

    rvore, gua);

    caderno de leituras 33

  • b) propor-lhes que escrevam um texto utilizando uma dessas novas imagens;

    c) discutir que implicaes de significado cada uma delas pode trazer (terra pode sugerir,

    por exemplo, propriedade, conquista, cultivo, fertilidade etc.).

    3. Erico Verissimo faz meno a vrias passagens histricas relacionadas com os anos 1930 e 1940,

    perodo em que se instaurou o Estado Novo, no Brasil, e a Segunda Grande Guerra, na Europa.

    a) Numa delas, h referncia ao discurso que Getulio Vargas pronunciou no couraado Minas

    Gerais. Os alunos podem procurar esse ou outro discurso de Getulio e examin-lo consi deran-

    do as opinies que Bandeira e Rodrigo Cambar emitem sobre o posicionamento poltico do

    pre sidente. possvel definir outras interpretaes? Podem ainda fazer o mesmo com discur-

    sos famosos de outras personagens histricas ou da atualidade.

    b) A Segunda Guerra aparece algumas vezes no Dirio de Slvia atravs de notcias de rdio

    ou de jornais, provocando reaes de pnico diante da violncia dos nazistas e dos fascistas.

    Os alunos podem identificar, por meio da leitura de notcias de jornal, os efeitos de uma guer-

    ra internacional dos dias de hoje (como a que resultou da invaso do Iraque pelos Estados

    Unidos) na vida cotidiana de pessoas comuns. Podem escrever cartas imaginrias a essas

    pessoas, depois troc-las entre si e redigir respostas, que em seguida podem ser discutidas.

    4. Ver sua prpria imagem no espelho nos faz lembrar o mito grego de Narciso. Numa das

    muitas verses, Narciso filho do rio Cfiso e da ninfa Lirope. De grande beleza, ele sempre

    desprezou as mulheres que o amavam, entre elas a ninfa Eco, que se finou de amor. Narciso

    enamorou-se da prpria imagem refletida nas guas e nelas se afogou, transformando-se na

    flor que leva seu nome.

    Num dos versos de Sampa, Caetano Veloso tambm usa a imagem de Narciso. Pode-se

    pedir aos alunos que estabeleam um paralelo entre essa imagem na msica de Caetano e as

    que aparecem ao longo do dirio de Slvia.

    34 caderno de leituras

  • Clarissa e

    Msica ao longe

  • 36 caderno de leituras

    Clarissa uma adolescente de quase catorze anos que sai da pequena cidade de Jaca recan ga, no interior do Rio Grande do Sul, e vai morar em Porto Alegre, na penso dos tios. Est para se formar professora.

    Perante os olhos vidos da garota passam as personagens da penso, com seus grandes conflitos, pequenas alegrias, impasses e desiluses. Quem mais a atrai e intriga Amaro, um homem maduro, bancrio que sonha ser msico. Apesar de seu jeito seco e taciturno, Amaro cerca Clarissa de amabilidades, pois ela lhe lembra um amor inocente, de uma inocncia que ele, um msico frustrado que toca num piano alugado, j perdeu.

    Clarissa percorre as ruas, as praas da cidade, vai escola, ouve falar da ascenso de nazistas e fascistas na Europa e de conflitos inevitveis que se armam, ameaando a paz. Descobre as primcias dos sentimentos amorosos e, ao presenciar um caso de infidelidade conjugal, se v de repente iniciada nos mistrios e contradies da vida.

    O convvio com o menino adoentado que perdeu a perna num acidente lhe mostra o poder consolador do afeto e a irremedivel infelicidade da infncia perdida. A escola, que lhe abre as portas de uma opo de vida, tambm se fecha em padres rgidos e comportamentos autoritrios voltados para o passado. Nos pequenos animais que participam do mundo de Clarissa, o papagaio que sabe seu nome, o gato que deseja comlo e o peixe que ela ganha de presente, a jovem descobre os afetos que, pelas circunstncias da vida, se fazem e devem ser abandonados.

    Quando ela completa catorze anos e se forma, muita coisa mudou. Clarissa conheceu o travo das desiluses, a paixo das pequenas e grandes descobertas, o sabor acre da morte sem remdio. No final do romance ela retorna terra natal, a pequena cidade de Ja ca recan ga. Ao lado das vaidades de mocinha, descobre a solido, bem como o silncio, j que no pode mais compartilhar seus conhecimentos com os outros.

    Que ser de mim?, se pergunta, enquanto um carro a leva para a estao de trem.

  • caderno de leituras 37

    A jovem Clarissa est de volta terra natal, no interior do Rio Grande do Sul. Professora formada na capital do estado, agora d aulas na escola local. medida que o tempo passa, a ingenuidade que ainda habita a garota cede espao conscincia cada vez mais aguda e dolorosa do drama que Jacarecanga e a famlia dela esto vivendo.

    Clarissa descende do outrora poderoso cl dos Albuquerques, donos de terras e gado na regio. Seu bisav lutou na Guerra do Paraguai, mas tudo o que resta da grandeza daquela poca o retrato dele, fantasma e carranca que domina a sala do solar da famlia. Os Albuquerques esto empobrecendo, perdendo terras e casas para os Gambas, imigrantes italianos. Em torno do casaro da famlia, encontramos Joo de Deus e dona Cle mncia, pais de Clarissa; a tia Cleonice, que h doze anos espera um casamento; o tio Jovino, um beberro que nada faz alm de beber; o tio Amncio, viciado em cocana, e a tiaav Zez, j um tanto demente por conta da velhice.

    Depois de perder mais uma casa, todos se veem na contingncia de habitar o solar. Com eles vem tambm Vasco Bruno, primo e companheiro de infncia que Clarissa admira. Em meio aos conflitos incessantes, o passado prximo e conturbado da famlia da garota vem tona: o tio que se suicidou ainda jovem; a derrocada financeira da famlia; a complicada histria da me de Vasco, que, seduzida e abandonada pelo marido, tambm se suicidou.

    um mundo perdido, de onde as personagens no conseguem sair. Enquanto afundam, se debatem na sua impotncia. O refgio de Clarissa o dirio que comea a escre ver. Mas um dia Vasco o rouba. A jovem se desespera, pois acha que o primo vai zombar dela e cobrila de acusaes. Nada disso acontece: Vasco lhe devolve o dirio e diz que passou a conhecla melhor.

    nesses passos e contrapassos que Clarissa, sem sair da acanhada Jacarecanga, conhece a complexidade do mundo.

  • A personagem Clarissa: menina & moaRegina Zilberman

    Em narrativas de estilo simples e direto, a jovem Clarissa contempla o novo espao urbano e a

    desagregao do velho mundo de seu cl familiar. Jbilo, desencanto, angstia e viso crtica se misturam

    numa fico repleta de alternativas para o leitor.

    Clarissa (1933) o primeiro romance publicado de Erico Verissimo. Com ele o escritor comeou a criao de um mundo especfico de personagens, cuja presena se estenderia por vrios romances. Dez anos depois, ao lanar O resto silncio, Erico completava a cons

    truo de uma viso abrangente da cidade de Porto Alegre e das mudanas aceleradas que atingiam o espao urbano brasileiro.

    Desde Clarissa, Erico demonstrou maestria no manejo do ponto de vista e da concentrao de significados. Quando o leitor abre o livro, deparase com a seguinte frase: S agora Amaro acredita que a primavera chegou: de sua janela v Clarissa a brincar sob os pessegueiros floridos. Em seguida ficamos sabendo que a personagem reside numa penso; que h ou tra figura humana em cena, um menino doente, numa cadeira de rodas, e que um avio cruza o cu.

    O pargrafo fala tambm da presena ostensiva da primavera e da luminosidade do dia, dados que ajudam a compor o ambiente e situar o leitor no tempo e no espao. O tempo o mais recente possvel, pois s agora, expresso que inicia o romance, remete a ao para a atualidade. Alm disso, valorizase a mo dernidade, j que o narrador faz questo de destacar o avio que cruza o cu.

    O espao urbano, embora no haja referncia explcita a uma cidade. Ao lembrar que os ptios da

    38 caderno de leituras

    a pORtO alegRe de claRissaClarissa se passa em 1932, numa Porto Alegre de ar buclico de pequena vila. As casas tm quintais, animais, jardins; as jovens namoram nas janelas, os rapazes passeiam em ruas iluminadas por lampies de gs. H sinais do progresso em quase tudo: au-tomveis e bondes cruzam as ruas, vitrines en chem os olhos dos passantes, vez por outra um avio risca o cu. O famoso dirigvel Graf Zeppelin sobre voa a cidade a caminho do Rio de Janeiro ou de Buenos Aires; em 1927, voos comerciais regula-res pousam e partem do Guaba.

    Por volta de 1930, Porto Alegre tinha cerca de 200 mil habitantes; em 1935, 250 mil. A partir do final dos anos 1920, grandes mudanas recortam a cidade. No centro, demolem-se pelo menos duas centenas de prdios antigos casares assobra-dados que muitas vezes viravam cortios para dar lugar a avenidas. Porto Alegre j tem qua se 4 mil automveis. Uma nova usina a carvo espalha fuligem pelo ar e inunda a cidade de energia eltri-ca, triplicando a capacidade produtiva. Os lampies de gs esto com os dias contados; j no existem quando, em 1936, Clarissa retorna a Porto Alegre no romance Um lugar ao sol.

  • penso e da casa vizinha esto separados por um muro florido, o narrador sugere que as residncias esto prximas, caracterstica da vida em centros populosos, e no no campo.

    As duas pginas seguintes complementam os dados fundamentais do livro: esclarecem a situao de Clarissa, que mora com a tia e frequenta a escola, a profisso de Amaro, msico, e revelam quem so os demais pensionistas. O narrador parece contar a histria com vagar, detendose nas imagens e nos sons captados por Amaro. Contudo, a impresso contrariada pela rapidez com que vai introduzindo os elementos principais do romance, para que o leitor, antes de tudo, sintase membro do grupo e participe da vida das personagens.

    Amaro msico, mas no consegue dar vazo sua criatividade, frustrandose sempre que deseja compor. por isso que, quando Clarissa o define como um homem triste, sabemos de antemo a causa da tristeza e entendemos seu comportamento. A menina o oposto dele. J no primeiro pargrafo, o narrador a associa primavera que chega e s flores que nascem, especialmente as do pessegueiro, clebres por anteciparem essa estao do ano. Clarissa o novo que se anuncia e alegra a todos: na frase que d incio ao livro, a garota brinca no quintal; quando finda o primeiro segmento do captulo 1, ela est sorrindo.

    a ao do narradorPor intermdio do narrador, as pginas de abertura apresentam outras habilidades de Erico. Citemos duas.

    O segmento inteiro emprega o verbo no presente, e o pretrito s utilizado quando se trata de um acontecimento anterior quele vivido pelas personagens. Isso permite que o narrador amplie as possibilidades do agora e os eventos se desenrolem diante de ns, ao contrrio da prtica comum, que traz o verbo no pretrito, como se tudo j tivesse ocorrido e se encerrado quando o leitor toma conhecimento dos fatos.

    bastante difcil conduzir uma narrativa dessa forma, pois o contar est associado ao uso do pretrito, mesmo quando o que sucede se passou h poucos instantes. O efeito obtido por Erico Verissimo ao tornar cinematogrfico o relato notvel, alm de mostrar o quanto o autor aprendia com uma tcnica bem recente na poca (1933).

    Das pginas iniciais at o final do primeiro segmento do captulo de abertura, o narrador expe a maneira como Amaro percebe o ambien te circundante, destacando no apenas os seres hu manos sobretudo Clarissa e o menino doente , mas tambm as cores e as sensaes pictricas suscitadas pelo espao. Mencionase a quantidade de tons: o roxo das glicnias, o dourado do sol e o azul do cu.

    Na sequncia, mais cores aparecem, de modo direto ou no, transformando numa pintura o ce n rio divisado por Amaro. Contudo, o compositor de se ja converter em som sua percepo do espao, mudando do registro visual para o auditivo, porque a criatividade dele passa pela msica. O esforo de Amaro altamente expressivo das dificuldades de inveno com que se depara todo escritor, pois tambm o artista que lida com as palavras precisa proceder transposio de sentimentos ou vivncias originrias de sua experincia e imaginao para o mundo fantstico da fico. Amaro, amargo como o nome sugere, no bemsucedido.

    msica ao longeEmbora o romance Msica ao longe conte com a mes ma protagonista de Clarissa, no foi

    caderno de leituras 39

  • lanado imediatamente depois deste. Entre eles, Erico comps Caminhos cruzados (1935), com outras personagens na mesma Porto Alegre. Clarissa e Msica ao longe passamse em lugares dife rentes, e o modo de narrar tambm modificado pelo escritor, que diversifica os processos de produo a fim de atrair o leitor para novas questes.

    A frase de abertura de Clarissa mostra o ngulo pelo qual Amaro enxerga a garota, brincando entre os pessegueiros floridos, sintoma da chegada da primavera. J em Msica ao longe, o observador externo e annimo que se ocupa da narrao v a moa riscar com giz no quadronegro a paisagem que os alunos devem copiar, e depois explica como o desenho e reproduz o dilogo.

    Em Clarissa, o autor, por meio da percepo de Amaro, privilegia os aspectos da natureza, cuja luminosidade fica reforada pela juventude da menina. Em Msica ao longe, o dilogo entre a jovem professora e os alunos, apresentado sem a interferncia de comentrios do narrador ou de pensamentos da personagem, que preenche as primeiras pginas.

    as razes da mudanaEssas duas alteraes no so apenas tcnicas. Podemos notar que a paisagem, matria do deslumbramento de Amaro em Clarissa, transformase em objeto do desenho das crianas, que, no levando o trabalho a srio, banalizamna, provocando sua dessacralizao, rebaixamento e vulgarizao. O cenrio que Amaro percebia liricamente se torna pretexto para o riso das crianas, que no se comovem diante do desenho.

    Alm disso, enquanto Amaro aprecia a paisagem urbana onde vive e o mundo moderno representado pelo avio que cruza o cu, os meninos desdenham e riem da reproduo pouco imaginativa do ambiente rural feita por Clarissa. Nem a professora, que voltou para o campo, nem seus alunos apreciam o mundo que habitam, caracterizado pela simplicidade e, de certo modo, pelo atraso, expresso na chamin da casa e na referncia vaca, assunto de piada de um dos estudantes. Outras aluses paisagem manifestam o desencanto de Msica ao longe, como a descrio que sucede meditao da professora enquanto os meninos rabiscam: Clarissa perdese em divagaes. A luz jorra atravs das janelas. A manh vai envelhecendo aos poucos. Na parede a folhinha diz que hoje 20 de maro.

    Se retornarmos abertura de Clarissa, reparamos que a luminosidade sinal de vida e juventude graas animao da garota e citao da primavera. Em Msica ao longe, a manh envelhece, e o calendrio marca a chegada do outono, estao associada ao ocaso, caducidade do tempo e decadncia.

    a complexidade da narraoTal como ocorre em Clarissa, Erico Verissimo principia Msica ao longe de forma muito

    original: sugere como se deve entender o tempo, o espao e as personagens, sem que o narrador tenha de tecer comentrios ou dar explicaes. Deparamonos com um relato apa ren temente simples, fcil de acompanhar, mas no fundo complexo, porque antecipa nas entrelinhas o modo como deseja ser compreendido pelos leitores. Enquanto Clarissa valoriza a juventude e a modernidade, admiradas por Amaro, que deseja reproduzilas em sua obra musical, Msica ao longe logo menciona o envelhecimento e a decadncia.

    40 caderno de leituras

  • Isso no significa que o pblico faa todas as de du es possveis na primeira leitura. Pelo contrrio, as sutilezas utilizadas para compor o cenrio e esboar as personagens ali esto para que voltemos ao incio e busquemos, a cada oportunidade em que nos aproximamos da obra, outros sentidos para as palavras em pre gadas. Clarissa e Msica ao longe suscitam novas pos sibilidades de interpretao medida que o leitor aden tra o texto.

    o tempo e o espaoCabe perguntar por que o escritor muda o registro de um livro para outro, sem alterar seu modo simples e discreto de narrar. A questo tem a ver com o tempo e o espao.

    Clarissa e Msica ao longe elegem uma apresentao linear dos acontecimentos, coerente com o estilo direto das obras. Embora a poca seja idntica em ambas, pois se refere atualidade, h divergncia na maneira de encarla: num caso, o presente visto positivamente; no outro, dse o contrrio. A diferena, por sua vez, relacionase ao espao e situao econmica e social das personagens.

    A ao de Clarissa transcorre em Porto Alegre, e, ainda que a obra no assuma perspectiva eufrica quanto modernidade, constatase visvel satisfao com o modo de vida contemporneo. porque os costumes mudaram que a menina de catorze anos incompletos pode migrar para a capital, residir temporariamente na penso da tia e diplomarse professora. Nesse romance, o passado apresentado de forma cmica como no saudosismo do major Nico Pombo , sinal de que o escritor no experimenta nostalgia pelo que j aconteceu. Mas no so todas as manifestaes da atualidade que so aprovadas pelo livro: ele sugere, por exemplo, que a situao brasileira no perodo insatisfatria e lembra, na fala de Amaro, a ascenso do nazismo e do fascismo na Europa, fatos simultneos ao ano de publicao de Clarissa, 1933.

    Em Msica ao longe, a narrativa transcorre em Jacarecanga, a cidadezinha interiorana de onde vem Clarissa e para onde ela retorna depois de obter o ttulo de professora. O atraso da comunidade antecipado nas pginas de abertura, quando as crianas desenham uma casa em cima duma coxilha, isolada e praticamente desabitada, pois no h referncia a seres humanos. As aluses ao espao s confirmam a situao de desolao e decadncia, como o j mencionado envelhecimento do dia e o outono.

    caderno de leituras 41

    as aRtes das aRtesNada revela melhor as transformaes de um mun do do que as artes, pois nelas, alm da tcnica, transpa-recem as mudanas do corao e da mente, por vezes mais vertiginosas que as mudanas externas.

    Em 1932, ano em que Clarissa se forma professo-ra, um grande acontecimento marcou a vida ar ts tica da capital do Rio Grande do Sul. O Cine-Theatro Im-pe rial, no centro, trouxe para o seu palco o conjunto Ases do Samba, do qual faziam parte Noel Rosa, Francisco Alves, Mrio Reis, Pery Cunha e Non.

    Porto Alegre tinha uma vintena de cineteatros, assim chamados porque alternavam sesses de ci-nema com espetculos ao vivo. Havia dois pontos nobres: o Theatro So Pedro, inaugurado em 1858, e o ento recm-construdo Auditrio Ara jo Vianna, uma concha acstica ao ar livre.

    Neles se apresentaram artistas como o pianista Arthur Rubinstein e os cantores lricos Beniamino Gigli e Tito Schipa. Na cidade, apreciava-se muito a pera. No era incomum pessoas se aglomerarem do lado de fora do Theatro So Pedro para ouvir os cantores pelas janelas abertas ou simplesmente para v-los passar. Novas rdios transmitiam ao vivo os espetculos.

    No Carnaval, os bailes em clubes eram frequen-tados por pessoas de posses e pela crescente classe mdia. O povo gostava mesmo de brincar na rua, nos desfiles dos blocos.

    Na rua dos Andradas, uma editora comeava a ganhar fama no pas inteiro: a da Livraria do Globo. Era ali que trabalhava Erico Verissimo, num canto improvisado em escritrio, como secretrio de re-da o da Revista do Globo.

  • a crise e a desagregaoAo longo de Msica ao longe, assistimos lenta desagre gao da famlia Albuquerque cujo ltimo re bento Clarissa , por problemas de dinheiro e mu danas no sistema econmico. Em Clarissa, questes desse tipo j apareciam: dona Eufrasina queixase dos pensionistas que atrasam o pagamento; o tio de Cla rissa no trabalha, aguardando uma improvvel colocao no servio pblico; Amaro msico mas de pen de do salrio que recebe no banco onde est em pre gado. Contudo, aqui a instabilidade econ mi ca no atinge profundamente as personagens; apenas retrata o cotidiano da classe mdia brasileira, pre crio e sem perspectivas a curto prazo.

    Msica ao longe traz o problema financeiro para o primeiro plano, diagnosticando a gravidade da situao de um grupo que deteve o poder econmico por muito tempo e foi glorificado no passado mas no presente no tem meios para se sustentar. A narrativa pro pe um registro diverso daquele do livro anterior, agora desalentado e melanclico, tal qual o tempo e o cenrio contemplados pela protagonista. A insegurana da moa em relao profisso e aos alunos igualmente representativa da fragilidade social que a obra expressa.

    De Clarissalivro para Clarissapersonagem de Msica ao longe, h, portanto, mudanas substantivas, adiantadas pel