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C A D E R N O 05 UMA UTOPIA PARA A RECONSTRUÇÃO SUMÁRIO 1 Introdução 2 Fundamentos do Sistema Princípios fundamentais – Princípios e conceitos funcionais 3 Funcionamento e perspectivas de implantação Resumo do funcionamento – Perspectivas de implantação ESTUDO DE CASO: O Brasil e seu caminho para um novo futuro 1 Condições de confronto 2 Novo projeto para nova hegemonia 3 Aplicação do novo modelo ao Brasil Resumo do funcionamento – Perspectivas de implantação

C A D E R N O 05 UMA UTOPIA PARA A RECONSTRUÇÃO SUMÁRIO 1 ...lukasoar1.dominiotemporario.com/doc/Utopia.pdf · Meishu Sama 1 Introdução No início deste estudo, ... cidadãos

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C A D E R N O 05

UMA UTOPIA PARA A RECONSTRUÇÃO

SUMÁRIO

1 Introdução

2 Fundamentos do Sistema Princípios fundamentais – Princípios e conceitos funcionais 3 Funcionamento e perspectivas de implantação

Resumo do funcionamento – Perspectivas de implantação ESTUDO DE CASO: O Brasil e seu caminho para um novo futuro

1 Condições de confronto

2 Novo projeto para nova hegemonia

3 Aplicação do novo modelo ao Brasil Resumo do funcionamento – Perspectivas de implantação

Caderno 05 – Uma utopia para a reconstrução

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“Para mudar o mundo só é preciso mudar a menor semente. É como jo-gar uma pedra num lago, criam-se ondas. Assim, para transformar o mundo num paraíso basta mudar o centro do centro do mais minúsculo dos pontos e, então, se produzirão as várias mudanças”. Meishu Sama

1 Introdução

No início deste estudo, tomamos o pensamento de Michel Löwyi como re-ferência conceitual para ideologia e para utopia, cujos conceitos vamos aqui recuperar, poupando o leitor do retorno àquelas páginas iniciais. U-topia (do grego u-topos = em nenhum lugar) é entendida como uma vi-são social de mundo com vistas a transformá-lo continuamente. Trata-se, portanto, de uma visão revolucionária e difere de ideologia, que significa uma visão social de mundo que visa validar, legitimar e manter o ‘status quo’, isto é, as condições, as regras e os poderes vigentes e dominantes. Ideologia deve ser entendida, portanto, como uma visão conservadora, a serviço das estruturas do poder dominante.

Löwy disserta a respeito da trajetória das mutações no conceito de ideo-logia, desde que foi literalmente inventado pelo filósofo enciclopedista francês Destutt de Tracy no início do século 19, até Karl Mannheim (Ide-ologia e Utopia), passando por Napoleão, Marx e Lenin.

O cientista Rogério Cezar de Cerqueira Leite, no seu artigo“Utopia, escas-sez e genética”, publicado no Caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo do dia 21/05/2000, faz uma discussão que contempla os três conceitos que compõe o título do artigo e destaca que:

“De fato, se no passado uma utopia podia ser uma concepção em ter-mos abstratos de uma sociedade ideal da qual foram eliminados todos os aspectos éticos e sociais considerados indesejáveis, hoje, como ve-remos, não podemos deixar de levar em consideração eventuais cons-trangimentos concretos.”

Dentre esses constrangimentos, Cerqueira Leite coloca obstáculos futuros que vem assombrando a humanidade, tais como o crescimento popula-cional para um quantitativo da ordem de 20 bilhões de habitantes no nosso planeta, mais de três vezes o contingente atual; a exaustão de bens naturais, especialmente os não renováveis como petróleo, carvão, cobre, ferro alumínio etc; a produção de alimentos; a poluição.

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Na opinião do cientista, todas essas dificuldades são contornáveis com o desenvolvimento da tecnologia, exceto a poluição no caso do efeito estu-fa, que não é contornável dentro de limites econômicos aceitáveis. Con-clui, portanto, que:

“Não há razões concretas para o abandono da utopia como alimento moral do intelecto, mesmo quando nos conscientizamos das contin-gências físicas que tanto assombram cientistas e outros intelectuais. Então por que renunciamos às utopias, até mesmo como meros refe-renciais, como horizontes que guiam as nossas aspirações?

A pergunta está bem posta. Quanto à sua própria resposta, sem que isso diminua a admiração que tributamos ao seu saber científico, nos permi-timos discordar política e sociologicamente do mestre quando diz: “Talvez porque finalmente estejamos incluindo em nossas visões a natureza bio-lógica do homem”.

Para ele, a nossa sucumbência à distopia(∗) do capitalismo se embasa no comportamento territorial, possessivo, belicoso, conquistador, exclusi-vista do ‘homo sapiens’, o qual tem como origem o imperativo procriador e propagador do seu material genético. Daí que “nenhum processo civili-zatório poderá jamais neutralizá-lo completamente”.

A posição que vimos defendendo neste modesto estudo, vai no sentido exatamente oposto. Se fôssemos concordar com esse ponto de vista, es-taríamos tendentes a concluir que a perenização do domínio capitalista é algo inexorável. Entendemos isso como um absurdo, válido apenas para os ideólogos da dominação capitalista.

Na nossa visão, a menor semente ou o centro do centro dos sistemas sociopolíticos e econômicos é o Homem e, para mudar esse mundo basta mudar o Homem, não no sentido intrínseco mas, isso sim, quanto aos fundamentos das percepções de si mesmo e quanto às suas relações in-terpessoais.

O substrato, o âmago, o coração mesmo, das teses e argumentações contidas nos Cadernos precedentes giram em torno de um fato que está ficando cada vez mais evidenciado: as crises econômicas, políticas e soci-ais que assolam os países, e não apenas o Brasil, nada mais são do que meros assomos, tais como as pontas de um ‘ice-berg’, de uma crise mai-or, a crise civilizatória. Em outras palavras, essas crises são componentes

(∗) O articulista conceitua distopia (dys+topos = mau lugar, posicionamento er-rado) como a concepção de uma sociedade inerentemente imperfeita, em que os cidadãos não podem almejar paz, igualitarismo e uma qualidade de vida aceitá-vel. Exemplos disso são as sociedades imaginadas por Orwell, Huxley ou por “go-vernantes que submetem parcelas significativas de membros a salários de R$ 151,00 por mês, para satisfazer castas privilegiadas”, ironiza Cerqueira Leite

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da própria crise de vivência, convivência e sobrevivência da espécie hu-mana.

É indispensável e inadiável, portanto, que seja posto em marcha um pro-cesso que se contraponha ao modelo atual e que vise a reconstrução das estruturas sociais, políticas e econômicas em decomposição.

Desconhecemos a existência de propostas de projetos que visem enfren-tar tal desafio. Abordagens de alguns autores têm ficado apenas no e-nunciado de diretrizes políticas genéricas que, de um modo geral, são simples “listas de desejos” e não avançam no sentido de modelar e proje-tar a sua consecução.

Somente a tese do Novo Projeto Histórico, desenvolvida pelo professor Heinz Dieterich, aborda os fundamentos de um projeto para a maioria das pessoas que habitam o nosso planeta. Trata-se de uma tentativa pa-ra estabelecer novos paradigmas civilizacionais que, no entanto, fica na abordagem teórica e não avança nos aspectos operacionais.

Nossa modesta e singela proposta de Sistema pretende chegar à supera-ção da degenerescência dos sistemas vigentes e tenta delinear um mode-lo objetivo e concreto de reconstrução dos escombros produzidos pelo já senil e agonizante sistema capitalista.

2 Fundamentos do sistema

Os fundamentos conceptivos básicos, que dão suporte filosófico, ideológi-co e operacional para o novo Sistema, são constituídos por definições que classificamos como: a) princípios fundamentais e b) princípios e concei-tos funcionais.

Princípios fundamentais

São cinco os princípios basilares do Sistema: Igualdade, Individualidade, Fraternidade, Solidariedade e Liberdade. Três deles, não por acaso, são versões atualizadas dos postulados da Revolução Francesa, os quais, ali-ás, nunca foram implantados.

Não se trata de um retorno ao século 18 nem uma recuperação piegas do Iluminismo ou do Humanismo. Trata-se somente da retomada de visões a respeito da natureza e da condição humanas que estão submersas ou so-terradas sob imensas camadas de acumulação ideológica que visa a sus-tentação do capitalismo. Faz parte desse entulho, por exemplo, a mitifi-cação do individualismo e de princípios tais como o do “homem lobo do homem” e outras construções da antropologia política neoliberal, como vimos no Caderno 01.

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Nesse aspecto, algumas limitações do desenvolvimento científico têm também contribuído, de forma intencional ou não. Por exemplo: a) o re-corte, o fatiamento e o reducionismo da pesquisa científica e b) em nome de um falso realismo e objetivismo, a ciência trata apenas dos aspectos materiais, isto é, do que é visível no contexto espaço-tempo. Com rarís-simas exceções – de certa forma Einstein é uma delas -, os cientistas têm deixado para a filosofia e para a metafísica as questões que, pelo menos aparentemente, não são compatíveis com processos experimentais ou modelagem matemática.

Essas trajetórias do desenvolvimento cientifico têm deixado insolúveis, sem respostas e sob denso envolvimento em mistério, questões funda-mentais da natureza humana tais como aspectos importantes referentes ao que somos, como somos, donde viemos, para onde vamos etc.

O sistema reinante tem se aproveitado dessas lacunas e debilidades para nos impingir interpretações que lhe são favoráveis, no seu processo de dominação, exploração e alienação.

Claro está que qualquer processo de oposição e de confronto com o sis-tema vigente, tem que desmitificar e desmistificar seus fundamentos, seus pilares, suas construções de sustentação.

Por isso, nossa discussão de um novo modelo tem de começar, de modo lógico, pelos fundamentos do novo Sistema.

Igualdade - Os seres humanos habitantes do planeta Terra são absolu-tamente iguais na sua essencialidade dual, isto é, tanto do ponto de vista material da sua formação corpórea (elementos físico-químicos, células, moléculas, partículas atômicas e subatômicas), quanto do ponto de vista imaterial, metafísico (ou divino, ou cósmico, como queiramos).

Significa dizer que:

1 Os elementos químicos constitutivos da espécie humana são os mes-mos para todos os indivíduos da espécie. Na verdade, também são os mesmos elementos constitutivos de toda a natureza do planeta Terra, porque dela provém. E, mais ainda, muitos dentre essa centena de elementos químicos existentes na Terra, possivelmente também exis-tam em outros planetas do Universo. Se acaso existirem mundos cuja constituição reproduza os mesmos elementos e condições físico-químicas vigentes no nosso planeta, é fácil inferir que lá poderão exis-tir espécies vivas similares ou até iguais aos da Terra.

2 Os agregados desses elementos químicos e físicos em conjuntos mo-leculares e celulares são também exatamente iguais em todos os in-divíduos da espécie humana, independentemente da região do globo terrestre em que vivam, do gênero, dos costumes, das culturas etc.

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3 Para aqueles que, como nós, acreditam que a vida dos seres humanos é um “sopro divino”, isto é, possui uma essencialidade metafísica, fica claro que, sob esse ponto de vista, a igualdade é ainda e também ab-soluta.

Individualidade - A individualidade permite a diferenciação inter e in-traespécies, isto é, entre os indivíduos de espécies diferentes e também entre os indivíduos de uma mesma espécie.

O princípio da individualidade diz que cada indivíduo da espécie humana, assim como de qualquer outra, é um ser uno, ou seja, uma unidade típica da espécie, cujas características diferenciais são devidas aos agregados de toda a sua história genética. As diferenciações comportamentais são decorrentes do processo histórico, cultural e educacional dos grupos hu-manos. Essas diferenciações foram sendo adquiridas ao longo da história do seu desenvolvimento, tanto como espécie quanto como participante dos agrupamentos e das sociedades humanas.

Exemplificando: uma criança nascida na China, filha de pais chineses e criada na China, será um chinês. Um seu irmão gêmeo univitelino, se for criado no Brasil por pais adotivos brasileiros, parecerá um chinês mas se-rá um brasileiro. Adquirirá todas as características culturais do nosso po-vo, as quais acabarão por se superpor ao seu biótipo oriental e formará aquilo que se costuma chamar de consciência de identidade individual.

A cultura e o seu elemento fundamental, a linguagem, são qualidades es-pecíficas da espécie humana e uma das esferas das relações sociais fun-damentais do Homem. O econômico e o político são também esferas de realização da natureza humana.

É por isso que, no âmbito dos países, os dominadores sempre procuram moldar a consciência de identidade nacional dos povos-objeto do seu domínio, valendo-se de mecanismos ideológicos tais como a mídia alie-nada ou tendenciosa, a contra-cultura, a linguagem, os costumes, os go-vernos subservientes e corruptos, as economias capengas, enfim, os Es-tados frágeis. Em último caso e se necessário, o poder militar. Este é um receituário genérico para os processos imperialistas modernos, os quais os EUA têm aplicado de forma muito competente.

Fraternidade - É o resultado da combinação harmônica entre os princí-pios da Igualdade e da Individualidade. Significa que cada um exerce a sua individualidade com absoluto respeito à individualidade do outro por-que são iguais em essência, ou seja, verdadeiramente irmãos.

O Homem é um ser gregário, talvez o mais gregário das espécies animais do planeta Terra. O gregarismo é uma resultante da tendência ao agru-pamento, como ocorre nos rebanhos, nos formigueiros, nas colméias, nos agrupamentos e sociedades humanas. No caso do homem, o sentido gre-

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gário pode adquirir maior ou menor grau em função de fatores racionais – consciência e inteligência, por exemplo -, que são mais desenvolvidos na espécie humana e, portanto, diferenciais em relação às demais espé-cies.

Se os fatores gregários racionais são diferenciais na natureza humana, então a decisão de se relacionar mais ou menos, melhor ou pior, de ma-neira harmoniosa ou conflituosa, solidária ou egoísta para com seus se-melhantes, cabe inteiramente à vontade do homem. Tais escolhas de-pendem de seu livre arbítrio, de modo e forma completa, integral, abso-luta e exclusiva.

No entanto, isso não acontece bem assim. Cada vez mais, a construção cultural e ideológica que o sistema capitalista vem impondo, direta ou in-diretamente, a todas as sociedades onde atua e domina, faz com que o homem moderno não consiga exercitar plenamente seu livre arbítrio. Re-tomá-lo, é mais uma tarefa de reconstrução indispensável e inadiável.

Solidariedade - É o resultado da combinação harmônica entre os prin-cípios da Igualdade e da Fraternidade. Significa que cada um, sendo i-gual ao outro na sua essência dual, não apenas o respeita fraternalmen-te, mas também é solidário no exercício da individualidade do outro.

As sociedades humanas primitivas exercitavam o sentido gregário prati-cando a fraternidade e a solidariedade, de modo fácil, tranqüilo e perfei-to. As disputas de poder e liderança eram naturais, específicas e pontu-ais, tanto no tempo quanto no espaço.

Por que, então, isso deixou de ser assim? A discussão que vimos travan-do ao longo de todo este estudo deve permitir responder a essa questão com razoável facilidade. Em resumo, podemos afirmar que, a partir de um passado não muito remoto, estamos sendo progressivamente induzi-dos ideologicamente a esquecermos princípios e valores humanos porque eles não interessam aos processos de dominação e perturbam os meca-nismos de exploração das maiorias pelas minorias detentoras de poder.

Liberdade – Todos os indivíduos humanos, indistintamente, são livres e podem exercitar seu livre arbítrio desde que sejam respeitados os princí-pios da Igualdade, da Individualidade, da Fraternidade e da Solidarieda-de. Em outras palavras, trata-se da regra clássica: “A liberdade de cada um termina onde começa a do outro”.

Como conclusão decorrente dos enunciados dos cinco princípios funda-mentais, se pode afirmar que não foram necessárias muitas discussões, justificativas e aprofundamentos para perceber que os princípios se com-põem, se interconectam e se complementam. Além disso, o seu conjunto se contrapõe, como antítese, ao sistema vigente. Em outras palavras, têm sentido dialético. Ao estabelecermos a sua prevalência sobre os prin-

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cípios hoje vigentes, invertemos totalmente as prioridades atuais, onde a dimensão humana e a dimensão social vêm sendo cada vez mais subme-tidas ao político e ao econômico.

Cabe reforçar o ponto de vista de que, se esses princípios se contrapõem à ideologia reinante, é justamente deles que necessitamos para superá-la e derrotá-la. O novo Sistema estabelece o primado do social e do centro do seu centro, isto é, o Homem que é a célula-máter de todos os siste-mas sociais, políticos e econômicos. O Sistema que estamos modelando repõe nas suas devidas posições tanto o social como o econômico e o po-lítico, sistemas que hoje estão com prioridades invertidas. Assim, o eco-nômico e o político voltam a ser instrumentos do social, ou seja, da con-secução do objetivo de que a vida humana seja digna, fraterna, solidária, feliz e considere todas as formas de vida existentes no planeta, preser-vando o seu futuro. E o nosso também!

Ao negar a função de objeto, estabelecida para o ser humano pelo capita-lismo, e ao confirmar para o homem o ‘status’ e o papel de sujeito da sua própria história, o novo modelo inverte o sinal do princípio mais brutal do modelo vigente e nega as suas três dimensões básicas para as interações sociais: exploração, dominação e alienação.

Nesse novo contexto, a democracia retoma soberanamente o seu espaço e coagula todos os princípios que estamos defendendo, numa síntese dia-lética que certamente sobreviverá por algum tempo. Quanto tempo? Tal como a História nos tem mostrado tantas vezes, este tempo será apenas o suficiente para que seja apontado para a sociedade um novo sistema melhor e mais perfeito, sob o ponto de vista humano, do que este aqui modelado e proposto como substituto do capitalismo.

Princípios e conceitos funcionais

Eqüidade - Cada indivíduo deve obter, eqüitativamente, as condições necessárias para uma vida digna, com dois componentes de renda. O primeiro componente é constituído por um valor monetário distribuído u-niformemente a todas as pessoas com vistas ao atendimento - que pode ser apenas parcial inicialmente - das suas necessidades básicas. Corres-ponde a uma espécie de direito natural que todo indivíduo possui pelo simples fato de existir e estar vivo. A sociedade como um todo, frater-nalmente, subsidia esse direito.

O outro componente de renda deve ser obtido individualmente, de con-formidade com a capacidade de trabalho de cada pessoa, como resultado de um processo individual de trabalho.

Embasamento operacional - O desenvolvimento da tecnologia, em especial dos sistemas de informação e de informática - a telemática - é condição fundamental para o funcionamento eficiente do Sistema. É ab-

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solutamente claro e visível que a operacionalização de um Sistema como este seria impensável até as duas ou três últimas décadas do século 20.

Conceitos capitalistas, antes e depois. Os conceitos e princípios fundamentais do sistema capitalista hoje vigente ficam negados e aboli-dos. Assim será com conceitos e princípios tais como: Remuneração do capital, Lucro, Acumulação de riqueza, Concentração de renda, Mercado, Emprego, Salário, Propriedade, Posse, Classe social, Classe econômica. Com maior propriedade poder-se-á dizer que estão sendo, literalmente, jogados no lixo da História.

Entretanto, alguns conceitos tais como emprego, salário, renda, moeda, etc. poderão ser aproveitados mediante reformulação ou ter alguma per-manência circunstancial e transitória na fase de readaptação para o novo Sistema.

No quadro a seguir é explicitado um comparativo sintético entre concei-tos, princípios e valores capitalistas que são reformulados e que poderão ser aproveitados, transitoriamente ou não.

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Nome No sistema atual No novo sistema

Trabalho Ver Caderno 03 Uma das expressões essenciais da condição e da existência humanas

Emprego Ver Caderno 03 Em processo gradual de extinção

Mercado Paradigma atual, deificado, do capitalismo

Abolido e substituído pelo conceito de troca solidária de bens e servi-ços

Oferta e

procura

No capitalismo passou de regulador teórico do mer-cado a facilitador tão so-mente da acumulação de capital

Retoma o papel de mero instru-mento de regulação quantitativa e qualitativa da troca de bens e ser-viços

Comércio de bens

Sistema de vendas, com diversos níveis de inter-mediações e de lucros em cascata.

Distribuição de bens, com acrésci-mo apenas dos custos do trabalho de distribuição

Valor de uso e va-lor de troca

Ver Caderno 03 O valor de troca desaparece, res-tando apenas o conceito de valor de uso. O trabalho será o único va-lor agregado

Proprie-dade e posse

Princípios abolidos Permanece apenas o princípio do direito de uso

Empresa Organização-símbolo da acumulação capitalista

Substituída pela organização pro-dutiva ou distributiva ou de servi-ços

Moeda Falso símbolo do poder fi-nanceiro

Mero instrumento facilitador da troca de mercadorias e serviços

Renda Instrumento de acumula-ção capitalista

Instrumento de vivência e sobrevi-vência do homem

Estado Ver Caderno 04 O Estado de direito poderá ser uti-lizado transitoriamente como orga-nizador da sociedade, até que ela determine uma nova forma de or-ganização.

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3 Funcionamento e perspectivas de implantação

Resumo do funcionamento

Sistemas cadastrais. O sistema cadastral dos indivíduos abrangidos pelo sistema será centralizado e integrado nacionalmente. Seu desenvol-vimento será feito a partir da reformulação e da integração dos sistemas existentes.

Todos os países possuem fontes variadas de sistemas de informações ca-dastrais de onde se pode construir com razoável facilidade, mediante os avanços tecnológicos disponíveis, um cadastro unificado que se aperfei-çoará rapidamente.

No Brasil, por exemplo, temos os cadastros do Imposto de Renda, do INSS, do Superior Tribunal Eleitoral, dos Registros Gerais (estaduais), do Cadastro de Endereçamento Postal, dos cartórios de registro civil, do sis-tema bancário etc.

Renda individual e familiar. A renda com a qual as pessoas adquirirão os bens e serviços necessários ao exercício do seu próprio viver e do vi-ver de sua família, será composta de duas parcelas:

1. O rendimento básico que será igual para todas as pessoas do mes-mo grupo de faixa etária, conforme as regras de distribuição estabe-lecidas a seguir.

2. O rendimento variável que corresponderá à remuneração do traba-lho individual de cada um.

Rendimento básico. Esse rendimento, sob o princípio “a cada um se-gundo suas necessidades fundamentais”, será uma obrigação do Sistema e será atribuído a todas as pessoas integrantes do universo considerado, ou seja, a toda a população do país.

A distribuição dos rendimentos básicos será procedida sob as seguintes regras:

I. 100% do módulo de renda mínima para cada adulto, maior de xx anos; (xx a definir, por exemplo 18 anos)

II. 50% do módulo para cada jovem, com idade entre 7 e xx anos;

III. 25% do módulo para cada criança até 7 anos.

IV. O valor monetário do módulo será reavaliado periodicamente le-vando em consideração o tamanho e o crescimento da economia do país. Será determinado sob os princípios da ciência atuarial e do sistema de cálculo do Produto Interno Bruto. Ou, ainda, com o

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uso de outra metodologia mais aperfeiçoada, dentro dos princípios básicos estabelecidos.

V. O sistema de financiamento desse benefício será decorrente da ar-recadação de uma taxa única, aplicada sobre o valor dos bens e serviços transacionados no processo mercantil de trocas, sob os novos conceitos de mercado e de moeda. Será constituído um fundo público, na acepção mais ampla e pura do termo, sob admi-nistração participativa da sociedade. Esse fundo deverá fazer in-versões nos processos produtivos, alavancando poderosamente o desenvolvimento econômico da nação. Essas inversões não terão qualquer sentido especulativo porque a acumulação de capital es-tará, por princípio, abolida. Todo o resultado das taxas de investi-mento para alavancar os setores produtivos reverterá para o cres-cimento do fundo e, conseqüentemente, para valorização do mó-dulo.

Para exemplificar, vemos no quadro a seguir alguns exemplos teóricos de renda familiar básica, onde o valor do módulo é suposto igual à 100 uni-dades monetárias, quaisquer que sejam.

Quadro 01

Composição das famílias

Quantida-de

de módu-los

Valores monetá-

rios

Família A - total 3 adultos 2 jovens 1 criança

4,25 3,00 1,00 0,25

425,00

Família B - total 3,00 300,00 2 adultos 2,00 1 jovem 0,50 2 crianças 0,50 Família C - total 3,50 350,00 2 adultos 2,00 2 jovens 1,00 2 crianças 0,50 Família D - total 2,75 275,00 2 adultos 2,00 1 jovem 0,50 1 criança 0,25 Família E - total 3,75 375,00 3 adultos 3,00

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1 jovem 0,50 1criança 0,25

Valor de bens e serviços. O valor de custo de cada bem ou serviço será constituído pelo somatório dos valores de todos os respectivos compo-nentes de custo, inclusive o trabalho despendido na sua produção. Esse já é um processo usual no sistema capitalista, sendo apenas adaptado para os princípios do novo Sistema, onde o valor de venda (preço) passa a ser igual ao valor de custo, tendo sido eliminada a figura do lucro.

Será estabelecida a proporcionalidade do valor de cada componente de custo, em relação ao total do custo do bem ou serviço, de modo a somar sempre uma unidade, seja na base 1, 100, 1000 ou outra base qualquer. Como exemplos de componentes de custo podemos considerar a manu-tenção de instalações e equipamentos, os insumos, o trabalho humano, as taxas governamentais, os reinvestimentos etc.

Rendimento variável. O rendimento variável é representado pela re-muneração do trabalho e se dará sob o princípio: “a cada um segundo sua capacidade individual de trabalho”.

A determinação do valor do trabalho tem desafiado os estudiosos desde que o capitalismo se firmou como o sistema predominante, conforme foi discutido no Caderno 03, quando tratamos da crise do mundo do traba-lho.

O salário “pró tempore”, isto é, por tempo trabalhado e não diretamente proporcional aos produtos realmente produzidos, foi um instituto capita-lista que veio simplificar os problemas do capital e se transformou em mais um instrumento de exploração dos trabalhadores, através da mais-valia.

Alternativas como as cooperativas de trabalho, tem introduzido mais difi-culdades que facilidades, porque acabam por distorcer o seu sentido ini-cial tal como aconteceu com esse tipo de cooperativismo, submetido aos interesses dos empresários. Por outro lado, as cooperativas solidárias de produção, adaptadas da idéia da atual economia popular solidária (ver Caderno 03), poderão ser um mecanismo operacional muito importante no novo Sistema.

Teorias mais recentes, como a da economia equivalente, do cientista Ar-no Peters, têm visado introduzir inovações conceituais e de princípios no que se refere à teoria do valor, inclusive do trabalho.

Peters defende que o valor do trabalho deve ser diretamente proporcional ao tempo trabalhado, independentemente da qualificação do trabalhador. Aparentemente esse critério introduz facilidades mas, ao mesmo tempo,

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cria dificuldades quase insuperáveis. A principal é o cálculo do tempo de trabalho utilizado em todos os insumos do produto em causa, incluído o trabalho para produção dos insumos dos insumos e, assim indefinida-mente, até atingir os primeiros trabalhos realizados nas matérias-primas mais primárias, retiradas diretamente da natureza, fonte primordial do todo processo produtivo.

Nossa proposta também sustenta a tese de que todo o trabalho humano utilizado em todas as etapas de elaboração de um serviço ou bem de consumo deve ser considerado, já que o trabalho é o único fator que a-grega valor ao bem ou serviço. Nesse ponto estamos de acordo com o professor Peters. E não apenas com ele, mas com todos aqueles que o precederam nessa idéia, passando obrigatoriamente por Marx e retroa-gindo até os economistas clássicos, Adam Smith e David Ricardo, especi-almente este último. Em outras palavras, nessa questão nada está sendo inventado, apenas reconcebido.

Nossa diferença de concepção em relação a Peters se estabelece em dois pontos. Primeiro, quanto ao princípio de que todo trabalho deve ser me-dido de modo igual em tempo, independentemente do tipo de trabalho e de quem o executa. Em segundo lugar, não vemos necessidade de pro-ceder ao cálculo retroativo, através de um complicado processo matemá-tico que julgamos ser, além de difícil execução, totalmente desnecessá-rio. Parece que o modelo do Dr. Peters não se contrapõe ideologicamente ao modelo capitalista mas apenas segue uma variante dele, porque parte do princípio de que as pessoas não são capazes de determinar, elas mesmas, quanto vale o seu trabalho e que, por isso, alguém mais capaz e melhor equipado, deve faze-lo. Além disso, pressupõe a impossibilida-de de serem definidos valores por processo solidário, muito diferente do mecanismo vigente que é baseado em processos conflituosos sob os prin-cípios capitalistas do “homem lobo do homem” e “todos contra todos”, is-to é, nas teorias de Hobbes e de Benton, como vimos anteriormente.

No nosso modelo é fundamental ter presente, permanentemente, os prin-cípios que embasam o Sistema que estamos propondo. Como primados, se não forem válidos, toda a discussão subseqüente será invalidada.

Estamos então agora, literalmente, em uma encruzilhada conceptiva.

A formulação do nosso modelo não é um processo de voluntarismo ou mero exercício de abstração intelectual. Entendemos que ele tem consis-tência lógica e dialética. Além disso é o único caminho que conseguimos visualizar para uma contraposição ao sistema vigente.

Para assimilarmos de forma completa e adequada o Sistema, devemos ter presente que os paradigmas do capitalismo e todos os princípios ideo-lógicos que lhe davam sustentação (extensamente discutidos neste en-

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saio) não mais existem ou estão em fase final de extinção. Para nós, en-tretanto, foram suprimidos de nossas vidas e mentes como visão de mundo!

Tudo se passa como se o sistema vigente já atingiu o ponto final do seu ciclo e entrou em vigência um novo ciclo - lembram-se da teoria dos ci-clos? - com um novo sistema social, econômico e político, diametralmen-te oposto ao atual. Por algum tempo e de alguma maneira, porém, de-vem ainda subsistir ou tentarem subsistir concepções e ações reacioná-rias dos donos do capital. Isso, entretanto, não nos interessa neste ins-tante, para efeito do raciocínio quanto à lógica do modelo.

É claro que, mesmo idealmente, é difícil fazermos a abstração de um sis-tema que está aí, no nosso dia a dia. Como deixar de vê-lo, fingir que não existe?. Acontece que a aceitação tácita do ‘status quo’, da sua ine-vitabilidade, é tudo o que o capitalismo deseja e precisa para se manter dominante. A pergunta que devemos fazer a nós mesmos a todo momen-to é: como participar de algo que nos exclui? A resposta é óbvia: é im-possível !

De conformidade com os novos princípios e conceitos, os valores da re-muneração do trabalho, de todas as naturezas e em todos os níveis, será definido por acordos estabelecidos pelos trabalhadores entre si de forma livre, democrática, participativa, solidária, fraterna e igualitária. Forma igualitária não significa necessariamente igual. A palavra igualitária aqui tem um sentido mais próximo de equânime, princípio que, composto com os demais, se torna muito fácil de ser obedecido.

O recebimento, por parte dos trabalhadores, da remuneração do seu tra-balho se dará sempre a posteriori ao recebimento do valor de venda de produtos ou serviços executados ou realizados. Trata-se, portanto de uma verdadeira partilha e explicitará, na prática, o princípio da participa-ção direta e completa dos trabalhadores no valor real da troca de bens e serviços, anulando o processo de exploração capitalista exercido através do lucro ou da mais-valia.

Para visualizar melhor o processo, vejamos um exemplo de cálculo e de distribuição da remuneração do trabalho em uma organização produtiva.

Uma micro-organização produtiva, com um total de 5 trabalhadores or-ganizados sob o novo conceito de cooperativa produtiva solidária (uma das novas formas de organização produtiva), fabrica e vende os produtos “X” e “Y”, aos valores unitários de 30,00 e 40,00 unidades monetárias, respectivamente. No período de um mês são transacionadas 150 unida-des do produto “X’ e 130 unidades de “Y”. A participação do componente de custo trabalho, em cada unidade desses produtos é, respectivamente, 40% e 45% do total, proporções estabelecidas por acordo entre os traba-

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lhadores cooperativados.

O acordo também estabelece as regras e as condições de alteração de valores nos casos de mudança do quadro funcional. As diferenças de participação são estabelecidas de conformidade com as regras acordadas entre os trabalhadores. Nas pequenas organizações como essa os valores podem ser estabelecidos individualmente, para cada participante do tra-balho. Nas organizações maiores, independentemente do tamanho e complexidade, os valores serão estabelecidos por função, tarefa ou ativi-dade, porém sempre de modo participativo, solidário e democrático.

O modelo de quadro funcional e de remuneração por função já é usado pelo sistema capitalista. O que muda, essencialmente, é que esse quadro passa a ser decidido e modelado sob novos parâmetros e princípios im-pensáveis no atual modelo de acumulação de capital. Obviamente, não cabe discutir nesta breve síntese os detalhes operacionais de tal proces-so. Basta-nos a convicção quanto à sua exeqüibilidade.

Os resultados obtidos no nosso exemplo elucidativo estão resumidos no quadro a seguir.

Quadro 02

Descrição

Produ-to X

Produ-to Y

Venda X

Venda Y

Venda total

Quantidades tran-sacionadas

150 130

Valores monetários (unitários e totais)

30 40 4.500 5.200 9.700

Participação total do trabalho

40% 45% 1.800 2.340 4.140

Trabalhador A 0,13 0,15 234 351 585

Trabalhador B 0,25 0,20 450 468 918

Trabalhador C 0,20 0,25 360 585 945

Trabalhador D 0,27 0,20 486 468 954

Trabalhador E 0,15 0,20 270 468 738

Supondo que os trabalhadores da micro-organização produtiva do Qua-dro 02 sejam os titulares das famílias do Quadro 01 e que nas respecti-vas famílias apenas eles exerçam trabalho remunerado, temos a seguir o resumo das rendas familiares no período considerado, isto é, um mês.

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Famílias

Renda básica

Renda do trabalho

Renda familiar

total A 425 585 1.010 B 300 918 1.218 C 350 945 1.295 D 275 954 1.229 E 375 738 1.113

Vê-se que as variações nas remunerações individuais decorrentes do tra-balho são bem maiores do que a variação na renda final das famílias do exemplo. As rendas familiares apresentam uma diferença relativamente pequena, o que significa uma renda mais eqüalizada e uma distribuição bem mais justa, se comparada com os padrões atuais.

Apesar de teórico, singelo e até simplista, o exemplo acima é elucidativo porque o modelo de cálculo pode ser adaptado a qualquer organização produtiva, independentemente de sua dimensão, complexidade e sofisti-cação organizacional, em qualquer parte do mundo. Entendemos que to-das as dificuldades de enquadramento no modelo, quer seja de ordem organizacional, funcional ou operacional, podem ser solucionadas mercê dos incontáveis recursos informáticos já existentes e dos inimagináveis recursos que serão criados, no futuro, pela ciência e pela tecnologia em todos os seus campos.

No caso de uma organização distributiva o processo de cálculo não é muito diferente daquele que é realizado para uma organização produtiva, sendo até mais simples porque a distribuição (que no capitalismo se chama comércio) é uma decorrência do processo produtivo. A participa-ção do fator trabalho será calculada sobre o resultado das trocas monetá-rias, o qual contemplará os valores de aquisição das mercadorias, aos quais serão agregados os valores do trabalho de distribuição. Aqui tam-bém, obviamente, não existe a figura do lucro.

O funcionamento de uma organização de serviços terá como maior di-ficuldade a determinação do valor de remuneração do serviço prestado. O processo de definição de valor se dará de forma interativa, mediante o ajuste permanente entre o custo da organização e o valor de venda pos-sível de ser obtido. Este “ajuste” seguirá os novos conceitos de oferta e procura, onde a diferença essencial em relação ao modelo capitalista é a ausência de mais valia, de exploração e de acumulação de capital.

Conforme se vê, as dificuldades de viabilização do Sistema não são, sob

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qualquer forma, de natureza operacional, já que toda e qualquer dificul-dade desse tipo pode ser solucionada pela tecnologia. As dificuldades são, isto sim, de natureza política e ideológica, vinculadas às concepções e visões sociais de mundo e de humanidade vigentes no sistema capita-lista cujos defensores e usofrutuários se oporão ferozmente ao novo mo-delo.

Por isso, uma aceitação amplamente majoritária por parte da sociedade, no que concerne a reconcepção de um novo Sistema sob os princípios e conceitos como os que aqui são expressos, tem que preceder e embasar qualquer processo operacional de implantação. Discutiremos logo adian-te algumas hipóteses de como isso pode se dar.

Gerenciamento e controle do Sistema. O gerenciamento do Sistema será exercido através de um modelo político e administrativo que será definido sob os novos rumos e princípios. Transitoriamente, poderá ser um modelo similar ao atual modelo de Estado e de governo com o clássi-co sistema de três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) ou poderá ser modelada outra forma, que seja julgada mais consonante com os princípios fundamentais do Sistema, onde impere a cidadania e a demo-cracia. O debate amplo com as forças sociais representativas das maiori-as até então excluídas, indicará o modelo mais adequado.

Em sistemas sócio-político-econômicos como o que estamos vivendo, ba-seados no egoísmo, na ganância, na exploração, na dominação e na alie-nação, é impossível estabelecer mecanismos e formas de controle das re-lações sociais, econômicas e políticas. As razões para tal e as suas con-seqüências foram discutidas nos diagnósticos e análises procedidas nos cadernos anteriores deste ensaio.

Tendo em vista os princípios fundamentais e operacionais que embasam esta teoria e o modelo dela decorrente, é absolutamente previsível e lógi-co que os controles do Sistema serão crescentemente simplificados e, em grande parte, até suprimidos, na trajetória da sua implantação e aperfei-çoamento.

Na perspectiva de que a sociedade absorva cada vez mais os fundamen-tos do Sistema e que as pessoas estejam convencidas de que a sua vida está significativamente melhor do que antes, os “novos cidadãos” estabe-lecerão com naturalidade os contornos dos seus próprios limites individu-ais e, por via de conseqüência, os contornos dos limites sociais, políticos e econômicos do próprio Sistema. Regras comportamentais serão mini-mamente necessárias, dado que estaremos sob novos processos e pa-drões civilizatórios, alguns com sentidos diametralmente opostos aos a-tuais.

Donde advém essas nossas convicções, aparentemente absurdas quando

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vistas sob a ótica e os paradigmas vigentes na ordem atual? Provém da simples e singela constatação de que chegamos ao limite da degeneres-cência e da caducidade do sistema capitalista e ao esgotamento cabal do modelo. E que também chegamos à saturação da nossa tolerância para com ele!

Se é necessária e urgente a substituição do atual sistema por outro, por que não este aqui delineado, na falta de algo melhor?

Arcabouço jurídico e institucional. O arcabouço jurídico e institucional será simplificado de modo significativo em relação aos atuais, tendo em vista os princípios filosóficos e políticos que embasam o novo modelo. Claro está que esses princípios devem estar assumidos pela sociedade, de forma massivamente majoritária, como embasamento de um projeto político nacional sob um nova visão de mundo que busca transformá-lo. Em outras palavras, uma nova utopia, no seu sentido mais amplo e filo-sófico, isto é, um modelo em que as vidas de todos os seres humanos – sem exceção - sejam realmente dignas de serem vividas.

Perspectivas de implantação

Podemos dividir as hipóteses de perspectivas de implantação de um novo Sistema, em substituição ao atual. como decorrentes de dois tipos de si-tuações com seqüências bem diferentes: situações traumáticas e situa-ções naturais.

Por seqüências traumáticas devemos entender situações caóticas, de qualquer natureza, para as quais estejamos despreparados e sem condi-ções de pensar alternativas. Na categoria das seqüências naturais, vamos incluir as situações decorrentes de processos graduais de degenerescên-cia do sistema vigente e de concomitante crescimento de projetos de confronto, articulados e desenvolvidos pelas imensas parcelas e setores das sociedades excluídas pelo mesmo.

Desastre geológico planetário. Uma das possibilidades de ocorrerem profundas modificações no comportamento do planeta pode ser decorren-te do processo chamado precessão dos equinócios, fenômeno explicitado sinteticamente no Caderno 04.

Outras hipóteses podem dizer respeito a fenômenos telúricos, tais como vulcões, tufões, tornados, maremotos, enchentes, temperaturas extre-mas etc., em dimensões, intensidades e freqüências nunca vistas até o momento.

Sabemos que o interior da Terra está dividido em camadas, como uma cebola ou uma alcachofra. A densidade no centro do planeta é 12 mil ve-zes maior do que a da água e a temperatura pode chegar a 5.000 graus Celsius (centígrados), equivalente à temperatura do Sol. A parte central

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tem cerca de 3.500 km de raio e está envolta em outra camada, chama-da manto, com um raio de cerca de 3.000 km. A composição do manto é conhecida através das explosões vulcânicas. Pelo material expelido, sa-be-se que a sua parte superior e composta pelo magma, um material ro-choso liquido. Tudo isso é envolto por uma “fina” capa com espessura en-tre 8 e 15 km que nos isola do terror existente mais em baixo. Os resul-tados visíveis ou perceptíveis de todo esse processo estão representados nos fenômenos telúricos a que nos referimos acima.

A discussão científica sobre a constituição do planeta é encontrada nos compêndios de geologia. Nesta síntese estamos usando dados da crônica A fúria do interior terrestre, de Marcelo Gleiser, publicada na Folha de São Paulo do dia 24/10/99, onde as informações são apresentadas de forma didática, mais adequada a nós, leigos. As observações e conclu-sões expressas a seguir, no entanto, são de nossa exclusiva autoria e responsabilidade.

Todo o conteúdo do interior da Terra e principalmente a verdadeira “cas-ca de ovo” que fica sob nossos pés, como uma frágil cortina de isolamen-to do caos, constitui fonte mais que suficiente para muitos temores. Po-de-se argumentar que, se nada mais dramático aconteceu nos últimos milhares ou milhões de anos, nada deve acontecer amanha. Será isso mesmo? O Homem, conforme temos constatado, tem se esforçado so-bremaneira para dar uma “maozinha” na aceleração do processo. E é bem possível que consiga antecipar a Historia!

Quanto a desajustes de origem extraterrestre podemos relembrar o e-ventual impacto de algum corpo celeste, tipo “Planeta X” do qual já fala-mos antes. Ou algum desajuste não previsto no nosso Sistema solar, ou no sistema galático ou extragalático.

Desastre ecológico planetário. Como foi destacado no Caderno 04, tudo - absolutamente tudo - aquilo que tem existência material no nosso planeta, inclusive os próprios seres humanos, provém dos elementos físi-co-químicos existentes na Terra. Daí, ser exata e profunda a expressão “mãe-terra” e temos que assumir que o nosso planeta é também um sis-tema vivo.

Na discussão lá procedida, demos o nome de Feridas de Gaia a um novo (quinto) Cavaleiro do Apocalipse moderno, o qual corresponde ao conjun-to de todas as ações do Homem que produzem ou contribuem para a destruição do seu ‘habitat’.

Até quando o planeta suportará, de forma paciente, pacifica, prestativa e “maternal”, tanta agressão é uma questão de difícil resposta. Não será absurdo supor que, em algum momento e por alguma forma violenta, ele possa reagir. Um rompimento qualquer na “casca de ovo” com dimensões

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maiores do que uma cratera de vulcão ou um desajuste mais amplo e violento nas placas tectônicas do que as produzem os terremotos que temos visto e... adeus humanidade ou parte dela. E todo o avanço tec-nológico, que foi desenvolvido com tanta presunção e insensibilidade hu-manas, será impotente e inócuo para minimizá-lo ou evitá-lo. É bom re-cordar, ainda, que o desastre planetário ocorrido no período Cretáceo, aquele dos dinossauros, foi devido a uma “pequena perfuração” de 10 km de diâmetro na casca do ovo.

Podemos também interpretar como indicativo e mesmo como início da reação de Gaia, o aumento da freqüência e o agravamento da violência de algumas manifestações telúricas que vem ocorrendo ultimamente. A-lém disso, não se pode esquecer do progressivo aumento do buraco de ozônio, cuja responsabilidade é totalmente debitada à ação humana.

Desastre planetário do capital. São incontáveis os indícios de possibi-lidades de implosão do sistema capitalista, conforme as análises estrutu-rais e conjunturais do capitalismo que vêm sendo feitas, inclusive neste ensaio. Vamos relembrar apenas algumas delas, sucintamente.

I. Os próprios fundamentos da lógica neoliberal têm fontes de incompati-bilidade com uma desejada ordem social justa e democrática que são insanáveis e contêm o germe da autodestruição. A tal ponto que, mesmo o sistema não sendo confrontado pelas imensas massas de ex-cluídos que produziu, cedo ou tarde, essas incompatibilidades causarão o próprio caos, um processo já em andamento.

II. A marcha acelerada das megafusões, que concentra em poucas mãos cada vez mais poder não apenas econômico e financeiro mas também de controle sobre as nações e seus povos oprimidos.

III. A crescente fragilidade dos Estados nacionais da periferia do capita-lismo e a sua submissão e subserviência aos interesses dos paises centrais e suas multinacionais. Esse desequilíbrio na balança da corre-lação de forças é devido unicamente ao peso dos valores econômicos e financeiros. A qualquer momento, porém, as unidades de valor nessa correlação deixarão de ser monetárias e passarão a ser sociais e hu-manas.

IV. A escalada da ganância, da concentração de renda, da exclusão eco-nômica.

V. A financeirização da riqueza, com as moedas adquirindo ‘status’ de mercadoria como se fossem, elas mesmas, bens de troca. A especula-ção desenfreada, a feroz disputa pelo capital, mediante ofertas de ju-ros cada vez maiores.

VI. O capital optando pela forma de moeda na busca do lucro máximo,

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sem se preocupar com a produção de um prego ou um alfinete, se-quer.

VII. A exclusão social, o desemprego, a miséria, a edificação de frontei-ras mais rigorosas entre os países e o medo da migração oriunda dos países periféricos em direção aos países desenvolvidos.

VIII. A escalada do desemprego, com suas múltiplas faces: o desempre-go propriamente dito, o emprego parcial, o subemprego, o emprego temporário, a ocupação informal e tantas outras formas de precari-zaçao do trabalho e de exploração cada vez mais feroz da força de trabalho.

Confronto de projetos. No âmbito genérico e teórico, podemos desta-car a proposta do Novo Projeto Histórico, que o professor Heinz Dieterich delineou no texto “Teoria e práxis do Novo Projeto Histórico”.ii

Conforme Dieterich enfatiza, negar o capitalismo não é suficiente. A exis-tência do conteúdo tem que vir antes da organização porque o princípio material tem que preceder o princípio formal. A conversão da filosofia da práxis em força material é feita pela sua inserção na massa.

Na atual conjuntura, o papel das instituições não está claramente expres-so nem perceptível e a falta de compreensão teórica do presente faz com que tudo pareça confuso e caótico. Todo processo transformador, portan-to, deve começar pelo conhecimento, por parte dos atores sociais, a res-peito da nova concepção de mundo.

Historicamente, a unificação das diversas forças sociais em prol de bene-fícios comuns, tem começado por manifestos programáticos. Exemplos disso são a Tese de Lutero em 1517, a Declaração dos Direitos Humanos em 1776 (EUA) e 1789 (França) e o Manifesto Comunista em 1848. Na atualidade, os ideólogos do Novo Projeto Histórico acreditam que, por e-xemplo, um “Manifesto da Sociedade Democrática Mundial levará à cons-tituição do sujeito de emancipação da aldeia global pós-burguesa”, con-forme é destacado por Dieterich.

Outra função importante do manifesto é a mudança na correlação de for-ças entre o ‘status quo’ e os democratizadores, num processo de ampla conscientização política e cultural por parte das maiorias. Significa obter a transformação das pessoas, que passam de objetos para sujeitos da Historia e da sua própria historia. A soberania popular e a única fonte le-gítima de poder.

Existem três fases a serem cumpridas no desenrolar desse “Novo Proces-so Histórico”:

1. Inicial, ou atual, onde deve ocorrer uma ampla e profunda conscienti-zação das maiorias para mudar a correlação de forças.

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2. Intermediária, ou de coexistência entre dois projetos. Por um lado, a herança da sociedade global burguesa, consubstanciada nas obsoletas estruturas e padrões vigentes no projeto das elites dominantes. De outro, os elementos da nova sociedade pós-burguesa. A transição se dará por um programa de mudanças mediando a superação das es-truturas vigentes através dos objetivos estratégicos do novo projeto.

3. Final, onde e quando emergirá uma sociedade sem economia de mer-cado, sem cultura de exclusão.

Dieterich defende que o manifesto do NPH seja desenvolvido e elaborado de forma democrática e participativa pelas sociedades de todo o mundo. E conclui que:

"O futuro se torna força do presente e o presente se torna passagem para o futuro; realismo e utopia geram programa e prática emancipa-dora".

Como se constata, os aspectos teóricos do NPH têm vários pontos de convergência com os do modelo de Sistema que estamos desenvolvendo neste ensaio. Existem, porém, diferenças importantes. Uma, é que o nosso modelo avança uma proposta objetiva e concreta para a solução da crise civilizatória que estamos atravessando. Outra, é que a nossa pro-posta, que também está embasada em valores e princípios universalistas, pode ser implementada localmente. Basta que, em qualquer sociedade que detenha as condições adequadas para tal, a imensa maioria dos ex-cluídos pelo sistema vigente tome a decisão de fazê-lo. Este, como se vê, é um caminho que pressupõe a existência de condições que, certamente, não estão presentes em todas as sociedades, ao mesmo tempo.

É óbvio que o capitalismo é sistêmico e mundial e que um novo projeto histórico que se contraponha a ele deve ser concebido também em ter-mos mundiais. Deve contemplar soluções sistêmicas para as inquietações e angústias que estão presentes em todas as sociedades, no mundo todo. Contudo, as estratégias e táticas de lutas, os projetos nacionais ou regio-nais terão relativa autonomia para compor de maneira virtuosa os fun-damentos gerais do Sistema com as suas realidades específicas.

No estudo de caso que faremos na seqüência, tomando como exemplo o Brasil, esperamos que fique mais nítido esse ponto, ou seja, na questão que estamos, a dicotomia entre ideal e o possível pode ser apenas apa-rente.

Não devemos esquecer também os exemplos de confrontos já existentes com o neoliberalismo, em andamento na América Latina e em outras re-giões do mundo. Temos os casos de embates armados na Colômbia e no México (Chiapas), cujas perspectivas de tomada do poder não estão mui-to nítidas. No caso do Equador, o confronto ainda está no campo do en-

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frentamento através de movimentos de massa pouco organizados, os quais até conseguiram tomar o poder ainda que por breve tempo. O con-fronto na Venezuela está se desenvolvendo apenas no campo político e institucional, com resultados ainda indefinidos.

Em alguns países da África e da Europa há conflitos armados que apre-sentam conotações diferenciadas mas que, em certos aspectos e ampli-tudes, também confrontam o sistema hegemônico dos países centrais, especialmente os EUA.

As situações de confronto com os projetos das elites sempre conterão pe-culiaridades e singularidades específicas em cada país, que serão deter-minantes para as diferenças de trajetórias dos processos bem como dos resultados. Assim, a marcha do embate do novo Sistema contra o siste-ma vigente pode se dar por vários caminhos, sempre unificados nos prin-cípios e convergentes nos resultados, isto é, a derrota do capitalismo.

Tal como aconteceu com o neoliberalismo nos anos 80, a nova hegemo-nia poderá se espalhar como rastilho de pólvora pelo mundo todo, até que o sistema que nos oprime esteja derrotado completamente em todo o planeta. Por que não?

Ao invés de ficarmos apenas com as perguntas, vamos buscar e dar, nós mesmos, as respostas.

Para concluir, ainda que cientes das nossas precariedades e incompetên-cias pessoais, devemos dizer que esperamos ter cumprido o desafio e o objetivo que constituíram nossa proposta de trabalho: delinear sucinta-mente um Sistema que, submetido a um debate mais amplo e mais pro-fundo, possa ser transformado, real e efetivamente, em um

sistema sociopolítico e econômico que exercita a democracia e re-cupera a essencialidade humana.

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ESTUDO DE CASO

O Brasil e seu caminho para um novo futuro

“Não, eu não tenho um caminho novo,

o que tenho de novo é o jeito de caminhar. Aprendi (o caminho me ensinou)

a caminhar cantando, assim como convém a mim

e aos que vão comigo, pois já não vou mais sozinho.”

Thiago de Mello

No Caderno 02 Brasil, da dependência à subserviência foi feita uma análi-se crítica do Brasil quanto às raízes históricas da formação da nação bra-sileira e de sua construção ainda inacabada. Além dessa análise estrutu-ral foi também abordada a conjuntura atual. Concluímos que, apesar dos pesares, o Brasil tem jeito. Vejamos então, agora, que jeitos podem ser esses.

1 Condições de confronto

No Caderno 04, Tendências e perspectivas, fizemos uma análise teórica das condições para enfrentamento da hegemonia de sistemas políticos e econômicos vigentes – o sistema capitalista neoliberal, no caso - e dis-semos que o confronto só pode acontecer quando ocorrer, de modo itera-tivo, a conjugação de dois processos:

1. a elevação do grau de degenerescência, de contradição e de fragi-lidade do sistema vigente.

2. a mobilização por parte das extensas parcelas da sociedade, atin-gidas pelo processo.

Essa “receita de bolo” serve para o Brasil, integralmente.

Vale também lembrar, de modo genérico, que um processo de confronto de tal natureza passa por cinco fases de preparação: assimilação das informações quanto à situação vigorante; conscientização quanto aos prejuízos que advirão da continuidade dessa situação; preocupação de cada indivíduo pelo que será atingido no seu próprio espaço; indignação com tudo o que está acontecendo; mobilização das massas.

Preenchidos esses pré-requisitos e avaliadas as correlações de força, po-de-se estabelecer as estratégias e táticas de luta. No processo de con-fronto, entretanto, é necessário tomar-se alguns cuidados com os peri-

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gos de uma avaliação equivocada, alguns dos quais são muito comuns. Por exemplo: Sectarismo, Presunção, Aventureirismo e Oportunismo, cu-jos conceitos lá foram explicitados.

De qualquer modo, é sempre problemático tentar o processo de confronto de modo apressado e em circunstâncias inadequadas, sem base concreta, haja visto o que aconteceu recentemente no Equador, por exemplo.

No caso do Brasil, no momento histórico em que escrevemos esta análi-se, é forçoso considerar que as condições de confronto ainda não estão totalmente postas. Por quê?

Porque, se por um lado - o do poder vigente - o processo degenerativo e auto-fragilizante está em marcha, por outro, as massas ainda não estão organizadas.

É extremamente visível e notório o elevado grau de degenerescência do sistema, devido aos resultados econômicos, políticos e sociais que produ-ziu (dependência externa, ganância, corrupção, violência, desemprego, concentração de renda, miséria, exclusão econômica e social, crescimen-to explosivo das regiões urbanas etc.). Estão visíveis também as contra-dições e fragilidades existentes no interior dos centros de poder que co-mandam o sistema. Assim, por esse lado, estão dadas as condições obje-tivas para que essa hegemonia vigorante possa ser enfrentada.

Pelo lado da organização do povo, entretanto, o processo não se explici-tou porque ainda não foi possível obter a mobilização das extensas par-celas da sociedade atingidas pelo processo. Conseqüentemente, nessa dimensão, permanece quase tudo por fazer, porque apenas em âmbitos circunscritos já vinham se dando algumas lutas específicas, como as do MST, dos caminhoneiros, dos funcionários públicos federais e estaduais, etc. Ressalve-se, entretanto, que já começam a existir claros indícios de retomada da conscientização popular, como refletem o Plebiscito das Dí-vidas Externa e Interna e as eleições municipais/2000.

Na nossa visão porém, estruturalmente falando, as extensas parcelas da sociedade, em outras palavras, o povo em geral, se encontra ainda nos estágios 3 e 4 das etapas de preparação acima descritas, isto é, um mis-to de preocupação e de indignação, sem ter assimilado os dois está-gios iniciais necessários à mobilização. Por isso o povo não consegue a-tingir o último estágio, o da mobilização.

É como alguém que está cursando a terceira série sem ter passado pela primeira e a segunda. Fatalmente irá ficar patinando e não conseguirá chegar à quarta série, a não ser que se trate de um gênio. Outra metáfo-ra que podemos usar é a da pessoa que tenta fazer andar um automóvel, arrancando na terceira marcha, sem o uso da primeira e da segunda marchas, a não ser que esteja num declive. Talvez esta imagem seja

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bastante apropriada, porque o Brasil tem muita similaridade com um veí-culo desgovernado, andando ladeira abaixo.

Quanto à falta de assimilação das informações, existem duas razões para as nossas dificuldades: a ação ideológica dos meios de comunica-ção e a deficiência dos sistemas de educação, também este um pro-cesso ideologicamente intencional.

Os sistemas de comunicação de massa são controlados pelos centros de poder e se constituem em um braço poderoso desses centros. Estão, por-tanto, a serviço da ideologia capitalista da primazia do mercado. Servem para fazer o jogo do poder político e econômico e também para anestesi-ar e alienar grandes parcelas incultas, acomodadas e submissas da socie-dade. Isso é feito, principalmente, através dos monopólios dos grupos familiares que dominam todas as redes de televisão e alguns grandes jornais do país. Ao longo deste nosso estudo, foram destacados muitos indicativos de que esse processo está, de modo infernal, cotidianamente invadindo nossas vidas durante todos os 86,4 mil segundos de cada dia, onde quer que estejamos.

A educação ou, melhor dizendo, sua antítese (a “deseducação”) é outra dificuldade estrutural para que o povo assimile com clareza as condições em que vive e as causas reais de suas dificuldades.

Para comprovar a afirmação de que este é também um processo da ideo-logia da dominação capitalista, basta lembrar que os nossos modelos e-ducacionais e pedagógicos não seguem padrões embasados nos funda-mentos culturais do nosso povo, como defendia, por exemplo, Paulo Frei-re. São modelos importados, que atendem a processos ideológicos que mais alienam do que incluem as nossas crianças e nossos jovens quanto à nossa cultura e nossos costumes.

O ensino fundamental se universalizou no nosso país, assim como o ensi-no médio está caminhando rapidamente para a universalização. Também no ensino do terceiro grau, a proposta educacional que está sendo im-plantada há cinco anos no Brasil, - que é a mesma de todos os países da América Latina, exceto Cuba -, é alienígena e alienante, pois é cópia de-calcada do documento do Banco Mundial intitulado “Políticas Educacionais para o Ensino Superior”.

O Banco Mundial estabelece que, para a pessoa se inserir hoje no merca-do de trabalho, precisa estar em constante processo de formação, a for-mação contínua, orientada apenas para a disputa do emprego e não para a formação do cidadão. Trata-se da preparação para a “mente-de-obra”, com evolução orientada para agregar também a “mente-de-consumo”, conforme a feliz expressão que o professor Valdo Cavallet, da UFPR, gos-ta de usar e que estamos incorporando.

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Em decorrência desse processo alienante, as camadas populares ainda não conseguiram conceber culturalmente que a educação é um direito e é base fundamental para o uso pleno da cidadania.

As razões para a falta de conscientização estão ligadas à questão ante-rior, ou seja, à falta de democratização dos meios de comunicação e à “deseducação” do povo. São também decorrentes dos processos de ocul-tação, mistificação e empulhação que o ‘markting’ governamental usa pa-ra impedir que as suas políticas verdadeiras sejam conhecidas “por den-tro”, ao invés da imagem virtual que é projetada para a sociedade.

Outro fator importante nesse condicionamento é a herança cultural e his-tórica de submissão e alienação do povo quanto aos processos de decisão relativos ao seu destino. É algo consubstanciado no princípio da “casa grande e senzala”, do “sinhozinho”, do “paínho”, do “Vossa Excelência sabe melhor do que eu o que é bom para mim”, enfim, do paternalismo e do puxa-saquismo.

O paternalismo é um vício político dos mais insidiosos porque compõe e acomoda interesses e vontades - ao mesmo tempo e nos dois sentidos -, adaptando à política duas distorções psicológicas terríveis e muito co-muns: a dominação do “pai” e a submissão e a acomodação do “filho”.

Além disso, a dependência e a submissão sempre foram heranças cultu-rais muito fortes na formação da nossa sociedade. Ora, se fomos capazes de tantas realizações, como podemos ter essa posição de subalternidade, essa postura de rendição? O discurso das elites é muito impregnado da ideologia que chamamos de “ideologia do esculacho” e que patrocina uma inserção cada vez mais submissa e subserviente para o Brasil no contexto mundial. Essa herança permeia toda a sociedade, ideologicamente im-pregnada de uma visão herdada do período colonial e explica a dificulda-de para valorizar o que é nosso e a tendência a supervalorizar o que é dos outros.

Todo esse fascínio idiota pelo que vem de fora, sempre foi algo cultural e ideologicamente induzido. Um exemplo disso foi o que aconteceu a partir da fase da globalização modernizante de Collor quando, de um modo muito mais poderoso do que antes, o país foi inundado pelo delírio do consumo de coisas importadas que a gente é capaz de produzir muito melhor. Isso, de certa forma, tem sido permanente nas classes interme-diárias das pirâmides social e econômica é de difícil eliminação porque o consumismo é uma marca muito forte nesses estratos. Infelizmente.

Já dá para perceber, porém, em várias camadas da sociedade, inclusive nas mais excluídas, a existência de indicativos de um certo fastio, um grande cansaço e um razoável “estar de saco cheio” a respeito de uns tantos conceitos, princípios e modelos prontos e acabados que nos foram

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sendo impingidos de maneira insistente e continuada pelo ‘marketing’ dos apologetas do internacionalismo neoliberal.

Dá também para dizer que a “fratura exposta” continua ainda exposta mas já não está tão fora de lugar e de foco, porque é crescente o número de parcelas da sociedade que começam a entrar na fase da conscienti-zação. Uma adequada assimilação da informação a respeito da sua realidade - o que ainda está difícil - irá melhorar o foco da verdadeira i-magem dessa realidade e eliminará as falsas imagens virtuais que a ideo-logia da dominação e da exploração vem transmitindo por tanto tempo.

O processo de conscientização política, é verdade, apresenta muitas di-ficuldades e empecilhos, mas é um passo decisivo para a mobilização.

Outros dois fatores positivos e importantes no processo de confronto com a hegemonia dominante são “a cidadania desencarnada” e “o espaço li-vre das ruas”, dois conceitos que o sociólogo Léo Lince trabalha muito bem e que nos agradam sobremaneira.

No Brasil, a cidadania às vezes fica ausente por longos períodos, como que desencarnada, pairando em algum lugar desconhecido, à espera de “condições objetivas”. Mas o que importa é que ela existe realmente. Em vários momentos da nossa história ela se “materializou” e foi decisiva nas lutas de massa. Para ficarmos num período histórico mais próximo dos nossos dias, podemos citar os movimentos Diretas já! e Fora Collor!, quando milhões de pessoas se mobilizaram por ideais cidadãos, o que se-ria impossível em um país sem cidadania. A cidadania é, portanto, um a-tributo do nosso povo, algo intrínseco e inalienável.

Já o “espaço livre das ruas” é uma decorrência da democracia. Entretan-to, mesmo quando a democracia não está presente, como no caso da vi-gência das ditaduras, o espaço “não tão livre” das ruas também pode ser ocupado pela “cidadania encarnada”. Exemplos marcantes são os movi-mentos citados, sendo que o “diretas já!” ocorreu no período da ditadura militar de 1964-1985, assim como as manifestações dos estudantes em 1968 e dos trabalhadores do ABC paulista em 1979.

Neste momento, aqui e acolá, começam a surgir movimentos de polariza-ção política, tanto na política, propriamente dita, como nas instituições e nos movimentos sociais. Fica cada vez mais claro que a unificação das elites brasileiras em torno do receituário neoliberal, se não está rompida, está pelo menos corrompida e comprometida. Alguns exemplos indicati-vos que já podem ser notados são:

- as CPIs que, entretanto, ainda apresentam dificuldades de viabiliza-ção em decorrência das estruturas de poder político e econômico vigorantes.

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- a disputa intestina PFL x PSDB, com o PMDB como coringa.

- a retomada dos confrontos produzidos por entidades tais como a CNBB, a OAB, a ABI.

- os permanentes confrontos promovidos pelos trabalhadores sem ter-ra.

- as dúvidas quanto à continuidade da manutenção do apoio econô-mico e político internacional ao governo FHC.

- o esboço do desagrado e mal-estar de alguns meios de comunica-ção.

- os sinais de insatisfação nos meios militares e da classe média.

- a crescente insatisfação popular, manifestada claramente no Plebis-cito da Dívida Externa e nas eleições municipais/2000.

Um dos processos muito significativos de mobilização popular por uma causa concreta foi o “Plebiscito da Dívida Externa”, realizado durante a “Semana da Pátria” de 2000, quando cerca de 6 milhões de pessoas se manifestaram a respeito do rompimento do acordo do Brasil com o FMI e da auditoria nas dívidas interna e externa do Brasil. Mesmo com alguns fatores adversos, tais como a relativa precariedade da organização do processo, o silêncio - na melhor das hipóteses - por parte da mídia e a tentativa de desqualificação por parte do governo, o sucesso do Plebiscito foi extraordinário e superou todas as expectativas de seus organizadores. O resultado da votação foi extremamente favorável ao repúdio ao acordo com o FMI e ao sistema de agiotagem institucionalizado nacional e inter-nacionalmente. Um rotundo Não!, foi expresso com todas a letras por cerca de 95% dos votantes em todo o país.

Quanto ao resultado das eleições municipais de outubro/2000, por consti-tuir um fato tão notório quanto notável, não há como negar que teve o significado de um formidável vendaval esquerdizante que varreu a direita do poder e aprovou o desempenho da esquerda em várias capitais e em importantes cidades médias e grandes.

Entretanto, as cidades menores do interior do Brasil, ainda permanece-ram sob o poder da direita, por suas representações partidárias mais for-tes e expressivas: PFL, PSDB, PMDB e outros. Isso nos leva a concluir que o processo de confronto, pela via eleitoral, com o poder vigente ain-da é um fenômeno predominantemente urbano das grandes metrópoles.

A obviedade e a unanimidade da constatação do avanço das esquerdas perpassaram pelos analistas de todos os matizes ideológicos, mas não se repetiram no que diz respeito à interpretação das razões desse fenômeno político-eleitoral. Abstraídas as paixões e os matizes ideológicos dos pon-

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tos de vista dos analistas, bem como detalhes que ainda produzem deba-tes e embates, no fundo do fundo, a questão se nos afigura extremamen-te clara e simples.

As únicas novidades surpreendentes foram a rapidez e a amplitude com que milhões de eleitores superaram as fases 1 e 2 da seqüência de está-gios para a mobilização. Em outras palavras, foram superadas algumas dificuldades impostas pela ausência de informações adequadas e a decor-rente falta de conscientização, ou seja, um dos mecanismos de alienação política.

Mesmo assim, os dois processos – o plebiscito e as eleições municipais - foram indícios claros de que a disputa está em curso na agenda política, o que é decisivo, porque quem consegue definir a agenda abre espaço efe-tivo para recompor e mudar a hegemonia. E isso só pode ser construído a partir dos conflitos existentes.

As elites têm o seu projeto claro, baseado na onipotência do mercado e no Estado mínimo, sendo que esse Estado deve fazer com que as regras que eles estabeleceram, funcionem apenas na direção dos seus interes-ses.

Enquanto não existir outro projeto capaz de galvanizar a sociedade e construir um obstáculo a essa política, o país continuará seguindo seu curso mesmo tendo perdido a direção. Adaptando a metáfora do “carro chamado Brasil”, podemos dizer que, além estar sem motorista e andar em um declive, mesmo com motor desligado, ele continuará ladeira abai-xo até que alguém mude a sua direção ou apareça um anteparo, um acli-ve ou um precipício. O Brasil atual está assim, exatamente desse jeito.

2 Novo projeto para nova hegemonia

É indispensável ter perfeitamente definido um projeto popular para con-frontar o projeto das elites brasileiras. A existência de um projeto próprio é fundamental para uma disputa competente de hegemonia, com condi-ções e perspectivas de vitória. Ninguém começa a levantar uma parede, fazer uma plantação, construir uma usina hidroelétrica ou uma bicicleta, sem que as idéias estejam claramente expressas, ou seja, sem que tenha um projeto. (*)

Um projeto popular tem que ser uma espécie de plataforma política para conseguir reorganizar a economia a serviço do povo, sob os princípios do sistema aqui descrito. Além desses princípios, deve-se ter por base al-

(*) Para esclarecer um pouco o que é ter um projeto, recorremos, em parte, a al-guns subsídios contidos no texto Um passo à frente na Consulta Popular, Ca-derno n. 10 da Consulta Popular.

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guns objetivos concretos. Assim, destaca-se o estabelecimento de condi-ções de igualdade para todos, em valores fundamentais. Dentre outros, enfatizamos os seguintes: terra, teto, trabalho, alimentação, educa-ção, saúde e meio ambiente adequando e permanente.

O “nosso projeto” deve ser popular porque, se o projeto das minorias dominantes não contempla as necessidades das maiorias, o nosso deve fazer isso com clareza, firmeza e determinação.

A dimensão adequada a esse projeto é a dimensão nacional, já que não pode ser local, estadual ou regional. E tem que ser para o Brasil porque neste momento histórico, mesmo que desejemos um mundo organizado para todas as sociedades do planeta, temos que priorizar a organização da nossa própria sociedade. Sem qualquer sentido de pretenciosidade, podemos admitir que o novo modelo de organização, que vier a ser cons-truído no Brasil sobre as novas bases civilizatórias aqui descritas, pode servir de exemplo para outras sociedades que se encontrem em condi-ções similares.

Para a construção de um projeto popular, a sociedade deve assumir para consigo mesma compromissos que levem a essas transformações. Além de assumir os princípios fundamentais que embasam a proposta de re-construção que desenvolvemos anteriormente, existem outros compro-missos que a sociedade brasileira deve assumir de modo claro e definiti-vo.

1. Compromisso com a soberania, ou seja, a determinação de romper com a dependência externa e ter autonomia decisória.

2. compromisso com o desenvolvimento, ou seja, o fim da tirania do capital financeiro e da condição de economia periférica, mobilizando os nossos recursos e não aceitando imposições políticas e econômicas que frustrem o nosso potencial.

3. compromisso com a sustentabilidade, ou seja, a busca de novo esti-lo de desenvolvimento, socialmente justo, que estabeleça e preserve a qualidade de vida tanto da atual e como das futuras gerações.

4. compromisso com a democracia popular, ou seja, a refundação do nosso sistema político em bases amplamente participativas, que per-mitam o controle efetivo dos centros de decisão e de poder, conforme foi definido neste nosso estudo.

Isso tudo significa um amplo processo de democratização, em quatro pontos fundamentais:

1. Democratizar a terra, que é o principal recurso natural do país, e-liminando a brutal concentração de posse em poucas mãos de lati-fundiários, de modo a preservar a sobrevivência das espécies ve-

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getais e animais, inclusive a humana.

2. Democratizar a riqueza, controlando – até suprimir - a riqueza fi-nanceira, ampliando o acesso ao crédito e aumentando os inves-timentos produtivos prioritários.

3. Democratizar a informação, suprimindo o poder dos grupos que detém o controle e o uso dos meios de comunicação de massa e reduzindo a possibilidade de manipulação da informação, que hoje é total e absoluta.

4. Democratizar a cultura, fator decisivo na construção da cidadani-a. O maior patrimônio de uma nação é o seu próprio povo e o maior patrimônio de um povo é a sua cultura.

A parte estratégica do projeto deve considerar:

1. A elaboração teórica, com a contribuição dos mais notáveis pen-sadores de esquerda que seja possível agregar ao projeto, bem como retomar o pensamento de alguns que já nos deixaram, tais como Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Darci Ribeiro, Paulo Freire e outros. Significa a superação das etapas de assimilação das informações e conscientização, no processo descrito ante-riormente. Para tanto, é necessário estabelecer um processo capi-lar de expansão do conhecimento e da formação política para su-perar as dificuldades apontadas, isto é, o bloqueio da mídia, a “deseducação”, a incultura, a alienação política e todos os meca-nismos do ‘marketing’ ideológico do sistema dominante.

2. A articulação de todos aqueles que têm uma visão clara das prio-ridades sociais, políticas e econômicas das maiorias excluídas do povo brasileiro e lutam por essas prioridades, de alguma forma que esteja ao seu alcance. A articulação desses lutadores do povo deve ser feita com organicidade e sem corporativismos, porque todas as lutas corporativas acabam sendo assimiladas pelas clas-ses dominantes. Equivale a articular todos aqueles que estejam forte e firmemente contaminados pela preocupação e pela in-dignação com a situação vigente.

3. A mobilização de massas, que é a única forma de mudar a cor-relação de forças políticas. Significa cumprir a quinta etapa do processo de mobilização, conforme foi descrito anteriormente.

Todo processo transformador tem muitos inimigos, tanto em termos de dificuldades estruturais quanto de setores dominantes, cujos meca-nismos e espaços de exploração deverão ser suprimidos.

Entre as nossas dificuldades estruturais e conjunturais podemos in-cluir:

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as raízes da construção da nação brasileira, consubstanciadas na dependência externa e na fratura social.

o baixo nível de consciência das massas, a incultura do povo e a sua submissão e dependência com relação ao poder político e econômico.

a enorme concentração urbana, que faz com que o peso dos camponeses seja menor e suas revoltas pouco influam na soci-edade urbanizada.

a parte significativa da classe média das grandes metrópoles que apóia o governo e o modelo vigente.

a adesão de grande parte dos intelectuais ao pensamento neoli-beral.

a unidade das elites em torno da sua hegemonia, que ainda é forte mesmo já apresentando fissuras notórias.

a crise ideológica da esquerda, que perdeu um pouco o rumo a partir de 1989.

o descenso dos movimentos de massas. Rememoremos, suscin-tamente. Entre 1900 e 1935, houve um ascenso nos movimen-tos de massas (a Coluna Prestes, a Aliança Libertadora Nacional, a Intentona Comunista). De 1935 a 1945, o período é de des-censo. De 1945 a 1964 houve um novo Ascenso (as Ligas Cam-ponesas, o ressurgimento do Partido Comunista, as greves ope-rárias, o movimento estudantil). De 1964 a 1979 houve outro período de descenso. De 1979 a 1989, reascendeu novamente (o movimento operário e camponês, as greves, a começar pelo ABC paulista). Em 89, com a derrota eleitoral de Lula e a queda do muro de Berlim, produziu-se um novo descenso, que perma-nece até hoje, mas que já apresenta vários indícios de um novo início de reversão.

Entre os setores dominantes, que farão oposição feroz ao projeto, po-demos citar:

o capital financeiro nacional e internacional

o latifúndio

os meios de comunicação

o empresariado nacional e multinacional

os Estados dos países centrais do capitalismo.

Aprofundemos um pouco mais a abordagem a respeito de alguns desses

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inimigos, tanto em termos de dificuldades estruturais quanto de setores dominantes.

1. Dependência externa. Fizemos uma discussão sobre esse tema na análise da anatomia do Plano Real. Vejamos agora um exemplo bem explícito das nossas dificuldades. O déficit na balança co-mercial nos últimos 5 anos - o período do governo FHC - foi de US$ 125 bilhões; a dívida externa no início era de US$ 148 bi-lhões; a transferência líquida de capital no mesmo período foi de US$ 150 bilhões. Mesmo assim a dívida externa passou a US$ 240 bilhões, o que significa dizer que é crescente e impagável, mesmo que quiséssemos pagá-la. Mas a imensa parcela da sociedade bra-sileira, excluída das decisões e dos benefícios, não admite ter as-sumido qualquer tipo de responsabilidade pela produção da dívida. Conseqüentemente, não deseja pagar por um compromisso que não assumiu. Na recente pesquisa efetivada pelo Plebiscito da Dí-vida Externa, mesmo sem condições plenas de conhecimento quanto à sua gravidade, a sociedade manifestou de forma signifi-cativa o seu repúdio. É fácil imaginar qual teria sido a sua indigna-ção caso houvesse uma compreensão maior a respeito do signifi-cado das dívidas externa e interna bem dos benefícios que resulta-riam da sua redução ou supressão.

2. Capital financeiro. Esse capital move grandes blocos de recursos puramente especulativos, que aterrizam em países em dificulda-des como o Brasil e voam de volta portando o lucro obtido rapi-damente, sem produzir um alfinete ou um prego sequer. Quebrar essa hegemonia é uma tarefa central. Outra tarefa central é o fi-nanciamento do desenvolvimento econômico do país. É preciso acabar com o mito de que o Brasil só consegue montar alternati-vas a partir da poupança externa, porque nenhum país se desen-volve a partir de poupança externa. Ao contrário, um desenvolvi-mento consistente só é obtido a partir da poupança interna, usan-do a externa como complemento. Eis mais um exemplo elucidativo do descompasso entre o capital produtivo e o capital financeiro e especulativo: a Volks (setor produtivo), com 42 fábricas no mundo todo e 250 mil operários teve um lucro de US$ 500 milhões em 99; o Banco Itaú (setor financeiro), um banco sem signifcação em termos mundiais, teve um lucro de US$1,0 bilhão.

3. Meios de comunicação. A justificativa já foi dada, quando da análise das dificuldades do processo de mobilização.

4. Ideologia do “esculacho”. Conforme foi descrito anteriormente, temos a tarefa de deslegitimar ideologicamente todos os discursos hegemônicos que nos bloqueiam a soberania e nos condicionam à

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subserviência, isto é, muito além da simples dependência do po-der econômico e político internacional.

5. Latifúndio. Estamos entrando no século 21 com milhares de fa-mílias clamando por acesso à terra, num país da dimensão do Bra-sil. É uma marca deprimente na nossa trajetória e um dos grandes desafios a enfrentar.

6. Empresariado nacional e multinacional. O empresariado na-cional ainda é um adversário expressivo, mesmo que já esteja so-frendo o “desmame das tetas do governo” e perdendo a condição ostentada e alardeada de ser “nacional”, porque está sendo engo-lido pelo capital internacional. As multinacionais, que desfrutam hoje da condição de supremacia e de domínio econômico absoluto do país, perderão essa condição no “novo Brasil” e reagirão com as tradicionais ameaças de abandonar o país. Muitas, porém, não pretenderão verdadeiramente cumprir a ameaça.

7. Estados dos países centrais. Perderão o domínio político que exercem sobre o Brasil com a supressão dos espaços de que sem-pre dispuseram para a construção da subserviência dos nossos governos.

Dois condicionantes essenciais para o processo do projeto popular são:

• a mudança na prática política com a correção dos desvios, sendo os principais deles o de não saber organizar a sociedade e não superar personalismos e disputas por vaidades pessoais. O centro de poder não pertence a quem se articula mas a quem organiza o povo. É preci-so discernir claramente entre a prática e o discurso.

• a compreensão de que construir um poder popular não é acumular simples vitórias eleitorais. Vitórias eleitorais, desacompanhadas de um projeto popular de nação, profundo e consistente, tornam-se circuns-tanciais e transitórias e não sedimentam o poder popular. Ao contrá-rio, somente criam dificuldades e resistências quanto a essa perspecti-va transformadora.

Em suma, podemos ter a garantia de que será absolutamente possível vencer qualquer desafio sob uma nova ótica em uma nova ordem, onde prevaleça a democracia, a solidariedade, a ética, a cidadania, os interes-ses dos setores hoje excluídos da nação. Ter, enfim, o ser humano como prioridade e ter presente os versos de Thiago de Mello que transcrevemos na epígrafe deste estudo de caso.

3 A aplicação do novo modelo ao Brasil

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Resumo de funcionamento

Conforme vimos na descrição teórica da nossa utopia, o processo cadas-tral dos indivíduos abrangidos pelo sistema será centralizado e integrado nacionalmente. Seu desenvolvimento será feito a partir da reformulação e da integração dos sistemas existentes. No Brasil, temos os cadastros do Imposto de Renda, do INSS, do Superior Tribunal Eleitoral, dos Regis-tros Gerais (estaduais), do Cadastro de Endereçamento Postal, dos cartó-rios de registro civil, do sistema bancário etc., de modo que será muito fácil a construção de um cadastro central confiável.

A renda familiar, também conforme foi visto, será composta de duas par-celas: o rendimento básico e o rendimento variável.

O rendimento básico, sob o princípio “a cada um segundo suas neces-sidades fundamentais”, é uma obrigação do Sistema sendo atribuído a todas as pessoas integrantes do universo considerado, ou seja, a toda a população do país.

A distribuição dos rendimentos básicos é procedida nas proporções e sob as regras que a sociedade definir, soberanamente. Por simplificação, va-mos admitir que os quantitativos sejam estabelecidos nas proporções do exemplo teórico que vimos antes:

-> 100% do módulo de renda mínima atribuído a cada adulto maior de 18 anos.

-> 50% do módulo para cada jovem com idade entre 7 e 18 anos.

-> 25% do módulo para cada criança até 7 anos.

Para exemplificar e na falta de dados mais precisos, vamos supor que a distribuição da população brasileira (aproximadamente 170 milhões de pessoas) seja constituída, dentro da classificação acima, por 50% de a-dultos, 25% de jovens e 25% de crianças. Para os efeitos de comparação com os grandes números do estudo de viabilidade que fazemos a seguir, mesmo que as proporções não sejam exatamente essas, as eventuais di-ferenças não serão significantes.

Assim, a quantidade em milhões de módulos será:

M = (170 x 0,5 x 1,00) + (170 x 0,25 x 0,50) + (170 x 0,25 x 0,25) = 112 milhões

Sendo esse o quantitativo mensal de módulos monetários despendidos, a sua quantidade anual será de aproximadamente 1,3 bilhões de módulos.

Para três hipóteses de valores modulares (R$ 100,00, um Salário Mínimo de R$ 151,00 e US$ 100.00) e admitindo um valor da taxa de câmbio de R$ 1,80/dólar, os valores despendidos anualmente são de R$ 130, 196 e

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234 bilhões, para cada hipótese. Em dólares correspondem, respectiva-mente, a US$ 72, 109 e 130 bilhões anuais. A tabela abaixo explicita os valores dos dispêndios previstos e também expressa alguns comparativos com valores anuais de importantes parâmetros da economia nacional.

Descrição\Módulos R$ 100,00

Salário Mínimo

US$ 100.00

Valor do módulo - R$ 100,00 151,00 180,00

Valor anual - R$ bi 130 196 234

Valor anual - US$ bi 72 109 130

Em relação ao PIB (~US$ 800 bi) 0,09 0,14 0,16

Serviço da D.Externa (~US$ 63 bi) 0,87 0,58 0,48

Serviço da D.Interna (~US$ 28 bi) 0,39 0,26 0,22

Projetos Sociais (~US$ 70 bi) 0,97 0,64 0,54

Previd.Feder.+Estad.(~US$ 50 bi) 0,69 0,46 0,38

Constata-se, então, que os valores das hipóteses acima em relação ao PIB (9%, 14% ou 16%) não são exagerados nem, sequer, significantes tendo em vista os objetivos sociais contemplados por esse componente de rendimento de todos os brasileiros. Além disso, desnecessário será en-fatizar o efeito multiplicador que o giro dos recursos de um fundo público dessa dimensão quantitativa e qualitativa irá exercer na economia do pa-ís.

Constata-se também que somente as despesas atuais com a previdência, adicionadas às do serviço das dívidas externa e interna - desde que se-jam eliminadas - cobrem aos valores previstos para os dispêndios com os rendimentos básicos de toda a população do país.

No que diz respeito à previdência pública, tanto federal quanto estaduais, uma grande parte das suas finalidades atuais será substituída pela distri-buição desse rendimento. Logo, uma parte significativa dos atuais dis-pêndios previdenciários deixará de existir. É preciso, porém, ter claro que o cuidado com os idosos, assim como com as crianças, é uma das ques-tões fundamentais da filosofia e do funcionamento do modelo.

Estudo da FACE/UFMG. É pertinente destacar que, no início dos anos 90, antes do furor privatista se instalar no Brasil, uma equipe da Faculdade de Administração e Ciências Econômicas da UFMG, coordenada pelos e-conomistas e professores Mauricio Borges Lemos e Fernando Damata Pi-mentel, elaboraou um estudo e modelou uma proposta alternativa de sis-

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tema previdenciário para os trabalhadores brasileiros.

Essa proposta era muito criativa e realista do ponto de vista técnico e re-volucionária do ponto de vista político. Porém, como se tratava de uma proposta profundamente contrária ao processo privatizante que estava sendo gestado, sequer sua discussão foi cogitada pelo poder vigente. Pelo lado das esquerdas, ao que nos consta, o modelo foi considerado “não socialista, apenas um ajuste reformista do capitalismo”! Também por es-te lado, portanto, foi jogado no repositório das coisas inservíveis. E to-talmente esquecido.

De nossa parte, porém, a proposta não foi esquecida porque, mesmo de modo solitário, sempre tivemos a convicção de que foi desprezada uma excelente oportunidade para contrapor uma proposta, absolutamente vá-lida, ao processo neoliberal que se instalava no Brasil. Mesmo que fosse para ser derrotada, deveria ter sido debatida com a sociedade. Foi mais uma manifestação de um vício muito comum na esquerda, a presunção, conforme conceituação feita Caderno 04. É bom também recordar que no Caderno 02, quando tratamos das origens das privatizações no Brasil, foi dado destaque para algumas incompetências e equívocos quanto a estra-tégias da esquerda nesse processo tão danoso aos destinos do país.

Eis, a seguir, um breve resumo da proposta dos professores da UFMG pa-ra um novo modelo previdenciário.

Elaborado com base em análises econométricas dos regimes de financia-mento de um sistema de previdência, dos índices de crescimento das po-pulações ativas e inativas, dos parâmetros de desconto nas folhas de pa-gamento, das taxas de capitalização etc., o modelo se baseava nos se-guintes princípios:

a) o sistema de saúde deve ser público, de responsabilidade do Esta-do, separado da previdência.

b) a assistência social, reformulada, deve ser responsabilidade do Es-tado.

c) o Estado deve também manter a seu cargo o estoque cessante - tendente a se esgotar totalmente ao fim de certo período de tempo - de pensões e aposentadorias já concedidas, isto é o INSS.

d) deve ser constituído um fundo de capitalização que: • seja público mas não estatal • seja administrado pelos trabalhadores • seja financiado sob novos padrões e parâmetros • assuma, a partir de um determinado instante, todas as novas

aposentadorias ocorridas bem como os seguros por morte, inva-lidez e acidentes de trabalho.

e) para a transição ao novo modelo, isto é, para cobrir a assunção pe-lo Fundo das aposentadorias daqueles que não tivessem completa-

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do o tempo definido para capitalização (nos primeiros 35 anos, p.ex.), o Estado deveria aportar ao Fundo recursos, que avaliados para um valor presente da época, ficariam entre US$ 54 bilhões e US$ 81 bilhões, dependendo das três hipóteses estudadas. Esses recursos poderiam ser repassados ao Fundo através da passagem do patrimônio de algumas estatais do Setor Produtivo do Estado, ainda existentes na época: Eletrobrás(US$ 50 bi), Petrobrás(20 bi), Telebrás(10 bi), BB(5 bi), Vale do Rio Doce(5 bi) e Siderbras (CSN+CST+Cosipa=5 bi), num total estimado de US$ 95 bilhões, expurgado dos valores da dívida externa dessas empresas (US$ 30 bi), a qual seria absorvida pelo Governo.

O valor médio anual das responsabilidades totais remanescentes do Esta-do (INAMPS, INSS e complementação para o Fundo) foi avaliado em cer-ca de 5% do PIB, algo em torno de US$ 30 bilhões, na época. Compare-se com o Chile, modelo tão decantado pelos nossos neoliberais, onde o Estado tinha desembolsado até 18% do PIB para a mesma finalidade.

As taxas de capitalização usadas nas hipóteses de cálculo foram previstas entre 5% e 6% ao ano, acima da inflação, sendo extremamente modes-tas em relação aos valores reais praticados no mercado financeiro nacio-nal, porém coerentes com os valores internacionais. Os próprios fundos de pensão, mesmo com as exigências legais de distribuição do patrimô-nio, inclusive em títulos públicos, são capitalizados a taxas médias acima de 10% a.a.

As hipóteses de cálculo tomavam como base 35 anos de contribuição e uma expectativa de vida de 24 anos após a aposentadoria. Foram feitas simulações para cenários de aposentadorias nas seguintes condições:

1. com salários médios: a) integrais; b) 80%; c) 70% do valor.

2. com o último salário corrigido apenas pela inflação, sob as mes-mas hipóteses a), b) e c).

3. idem item 2. mais o crescimento real dos salários em 4% a.a, por 18 anos.

4. idem item 2. mais o crescimento real dos salários em 4% a.a, por 35 anos.

As contribuições necessárias, nas condições estabelecidas e sob as taxas de capitalização de 6%, 5,5% ou 5%, ficaram dentro dos valores míni-mos e máximos de 7,9% e 32,3% de contribuição sobre os salários cor-respondendo, respectivamente, à condição 1.c) para a taxa de 6% e à condição 4.a) para a taxa de 5% de capitalização.

O estudo mostrava, então, que é possível ter-se aposentadorias com va-lores reais muito superiores aos atuais - inclusive com salários integrais -

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com taxas de desconto sobre a folha de salários (trabalhadores + empre-gadores) bem menores que os valores atuais (cerca de 40%, com o INSS, Finsocial, Pis/Pasep, Contribuição sobre o Lucro etc.).

Como conclusão, constata-se facilmente a confirmação da nossa afirmati-va inicial, isto é, de que a inviabilização do debate de tal proposta foi de-vida tão somente a questões de ordem estritamente política, jamais por razões de natureza lógica, técnica, econômica, financeira ou operacional.

Sob a ótica do modelo econômico e social que estamos desenvolvendo e propondo, é fácil constatar que são notórios vários pontos de contato en-tre o estudo supra, dos professores da UFMG, e a nossa proposta. Quan-do - e se - ocorrer o detalhamento da proposta, isto é, por ocasião de sua transformação em plano real para um novo projeto de hegemonia, por certo esse estudo será de real valia.

Sem pretender avançar qualquer detalhamento, vamos destacar apenas alguns parâmetros balizadores da questão da previdência, sob o novo Sistema. Obviamente, os rendimentos básicos das pessoas que deixam de trabalhar, sob qualquer circunstância, continuam a ser pagos porque são vitalícios. A aposentadoria, então, assumirá um novo conceito e, provavelmente, receberá uma nova denominação para não ser confundi-da com conceito atual. Dirá respeito apenas à questão da remuneração variável, que a pessoa deixa de perceber quando não está trabalhando por qualquer razão, inclusive por incapacidade definitiva para o trabalho.

Assim, as pessoas construirão ao longo do seu período de trabalho ativo um fundo pessoal voluntário, mais ou menos nos moldes dos atuais fun-dos de pensão. Esse fundo servirá como renda suplementar em qualquer circunstância.

De qualquer modo, porém, o Sistema assegurará a assistência aos inca-pacitados para o trabalho, na forma que a sociedade entender adequada e conveniente, dentro do novo modelo e dos seus novos princípios baliza-dores.

Estudo do IPEA. Também como subsídio à discussão do modelo sistêmico que estamos propondo, cremos ser pertinente destacar um estudo(∗) ela-borado por especialistas do Ipea (Fundação Instituto de Pesquisa Econô-mica Aplicada), órgão subordinado ao Ministério da Fazenda, que põe em relevo alguns parâmetros significativos:

♦ 30% da população brasileira (cerca de 50 milhões de pessoas) “vive” com menos de um salário mínimo por mês ‘per capita’.

♦ em média, são necessários cerca de R$ 800,00 mensais para necessi-

(∗) Cf. resumo publicado na Folha de São Paulo de 13/06/99.

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dades mínimas.

♦ o Brasil não é pobre, em termos mundiais: 78% da população mundial vive em países com renda média ‘per capita’ inferior à brasileira.

♦ o Brasil é injusto, também em termos mundiais: com a nossa renda média deveríamos ter no máximo 10% de pobres e não 30%.

♦ a média dos rendimentos dos 10% mais ricos no Brasil é 30 vezes a média dos 40% mais pobres; na Argentina é 10 vezes e no mundo é 5 vezes.

♦ o Brasil gasta R$ 130 bilhões por ano em projetos sociais; ¼ disso se-ria suficiente para erradicar a pobreza.

♦ se for usado apenas o crescimento econômico para reduzir a pobreza, é necessário que o PIB cresça 7,5% ao ano por 10 anos ou 4,5% por 20 anos para reduzí-la pela metade, ou seja, de 30% para 15%.

O estudo, explicitamente, reforça duas verdades que já estamos cansa-dos de saber: 1a que a pobreza no Brasil é erradicável; 2ª que é sufici-ente decidir que é isso que se quer.

É realmente espantoso que estudos e conclusões dessa natureza sejam procedidos dentro do poder político-econômico do país e fique por isso mesmo. Desconfiamos que o grupo de pesquisadores que elaborou tal es-tudo tenha sido demitido! Um indício sério para tal desconfiança é o fato de que o estudo não consta no rol dos ‘papers’ que o Ipea divulga na In-ternet e nossa solicitação de cópia completa do mesmo não foi atendida.

Retomando o desenvolvimento do modelo, relembremos que foi estabele-cido nos critérios gerais do Sistema que o valor monetário do módulo se-rá reavaliado periodicamente levando em consideração o tamanho e o crescimento da economia do país, sendo determinado sob os princípios da ciência atuarial, assim como em função do valor total do fundo público que o sustenta.

Numa fase de transição do atual sistema para o novo, o valor do módulo eventualmente poderá ser menor do que os valores usados no cálculo dos exemplos. Esse valor, no entanto, crescerá na medida em que o fundo que o suporta se consolide e seja incrementado o seu valor global.

Como vimos também no modelo teórico desenvolvido anteriormente, o sistema de financiamento desse benefício será decorrente da arrecadação de uma taxa percentual única, aplicada sobre o valor dos bens e serviços transacionados no processo mercantil de trocas, sob os novos conceitos de mercado e de moeda. Será um fundo público, na acepção mais ampla e pura do termo, sob administração participativa da sociedade, devendo fazer inversões nos processos produtivos e alavancar poderosamente o

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desenvolvimento econômico da nação. Essas inversões não terão qual-quer sentido especulativo porque a acumulação de capital estará, por princípio, abolida. Todo o resultado financeiro dos investimentos reverte-rá para o crescimento do fundo e, conseqüentemente, para a valorização do módulo. Em outras palavras isso significa que o esforço de toda a so-ciedade se transforma em retorno direto e uniformemente distribuído em benefício da mesma sociedade, como um todo. É bom destacar que a administração do fundo poderá ser distribuída regionalmente e/ou setori-almente.

Como exemplo de cálculo desse rendimento básico para o caso do Brasil, vamos supor a mesma formação das famílias do exemplo do Quadro 01, cujos dados vamos recuperar para servir de base na montagem do Qua-dro 03, a seguir.

Quadro 03

Composição das famílias

Quantida-de

de módu-los

Módulo = R$ 100,00

Módulo = R$ 151,00

Módulo = US$

100.00

Família A - total (3 adultos, 2 jo-vens e 1 criança)

4,25

425,00 641,75 765,00

Família B – total (2 adultos, 1 jo-vem e 2 crianças)

3,00 300,00 453,00 540,00

Família C – total (2 adultos, 2 jo-vens e 2 crianças)

3,50 350,00 528,50 630,00

Família D – total (2 adultos, 1 jo-vem e 1 criança)

2,75 275,00 415,25 495,00

Família E – total (3 adultos, 1 jo-vem e 1 criança)

3,75 375,00 565,25 675,00

Rendimento variável. O rendimento variável é representado pela re-muneração do trabalho e se dará sob o princípio: “a cada um segundo sua capacidade individual de trabalho”. Os princípios e critérios gerais já foram estabelecidos na parte inicial deste Caderno.

Considerando o exemplo desenvolvido no Quadro 02 e compondo com os dados do Quadro 03, acima, podemos montar o resumo a seguir.

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Famí-lias

Renda do trabalho

Renda to-tal I

Renda to-tal II

Renda total III

A 585,00 1.010,00 1226,75 1350,00 B 918,00 1.218,00 1371,00 1458,00 C 945,00 1.295,00 1473,50 1575,00 D 954,00 1.229,00 1369,25 1449,00 E 738,00 1.113,00 1303,25 1629,00

Observa-se que o ‘gap’ (= amplitude entre a maior e a menor) das remu-nerações do trabalho (rendimento variável) é de cerca de 60%, mas o ‘gap’ dos rendimentos totais familiares é bem menor (cerca de 20%). O rendimento básico familiar desempenha, portanto, um papel fundamental na equalização da remuneração e na distribuição mais eqüitativa e mais socialmente justa da renda.

Perspectivas de implantação

A análise das perspectivas de implantação de um novo modelo genérico já foi feita anteriormente, em termos gerais. As perspectivas no Brasil não são diferentes.

Caso venha a ocorrer uma situação traumática de âmbito planetário, é evidente que o nosso país será também atingido. Então, o que restar do Brasil, assim como do planeta, certamente será reconcebido sob novas bases e princípios civilizacionais, mais humanos, fraternos, democráticos e libertários. Nessa hora, talvez nossa proposta possa ser aproveitada! Essa é uma hipótese possível mas que todos esperamos que não venha a ocorrer!

Também já vimos que, para situações de confronto com o projeto das eli-tes, existirão peculiaridades e singularidades específicas em nosso país que serão determinantes para diferenciações nas trajetórias do processo de confronto, bem como nos resultados, em relação aos processos de ou-tras sociedades.

Já discutimos rapidamente, em outros pontos deste estudo, possíveis si-milaridades e dissimilaridades entre situações no Brasil e em outros paí-ses, em especial da América Latina. Com vistas às nossas próprias condi-ções de confronto com o projeto das elites, vamos agora aprofundá-las um pouco mais.

O diagnóstico explicitou muitas fragilidades que o sistema dominante a-presenta no Brasil. Não explicitou todas e nem poderia faze-lo porque, entre outras razões, o processo político e econômico é extremamente di-nâmico. Apesar dessas e de outras limitações naturais da análise, não foi

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difícil concluir que as condições de fragilidade do projeto das elites são concretas e notórias.

A primeira condição fundamental para o confronto está posta, mas falta a segunda, tão essencial como a primeira, ou seja, a organização das mas-sas populares. Além disso, existem inimigos potentes no caminho do de-senvolvimento de um projeto popular. Em suma, as elites têm fragilida-des e contradições, mas ainda possuem aliados poderosos. Isso, entre-tanto, não é obstáculo intransponível para o nosso projeto, mas essa questão tem que ser considerada com cuidados especiais.

Um significante processo da afronta que as elites estão fazendo aos mo-vimentos sociais de maior expressão, como o MST, está explícito nas ten-tativas palacianas de isolar e criminalizar esse movimento. Somente no ano 2000 foram assassinados mais de uma dezena de líderes dos traba-lhadores sem terra, vários continuam presos e quase duas centenas es-tão sendo processados. Porém, ao invés de prender e punir os culpados, o governo arma uma cortina de fumaça acusando o MST de cobrar taxas sobre os recursos recebidos pelos assentados. A direção do movimento contrapõe o argumento de que a taxa, onde existe, é espontânea e de-mocraticamente decidida pelos próprios trabalhadores. No entanto, todos os argumentos dos sem terra deixam de ser considerados pelo governo e pela mídia, o que nos traz à memória aquela conhecida fábula infantil do lobo e do cordeiro.

Caso os poderes dominantes consigam desmontar os movimentos sociais organizados, passará a existir a perspectiva da ocorrência de ações de-sordenadas e muito mais radicais, como conseqüência do agravamento crescente da pobreza no campo e nas cidades. Será a barbárie, que po-derá adquirir contornos similares a processos que já estão em andamento no México (selva de Lacadona, Chiapas), no Equador e na Colômbia.

Essa possibilidade coloca o governo FHC e seus asseclas do poder domi-nante sob um dilema, na verdade uma sinuca de bico: 1 - ir em frente na radicalização e produzir o caos; 2 - permitir os avanços das organizações e dos processos sociais e políticos. Em qualquer dessas situações, seu poder acabará a curto ou médio prazos. Alternativas de contemporização existem, mas são praticamente inviáveis, tendo em vista a falência finan-ceira do governo e o avanço do processo degenerativo, amplo e envol-vente, em que se embrenharam as mais importantes estruturas detento-ras de poder em nosso país.

Sob o ponto de vista de um projeto popular de confronto com o projeto das elites, esse contexto coloca na agenda política algumas hipóteses de cenários alternativos para o estabelecimento de disputas de hegemonia.

A primeira hipótese tem como ponto de partida o modelo de construção

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do confronto consubstanciado numa profunda e abrangente formação po-lítica das massas desassistidas e excluídas pelo sistema vigente, apoiada em uma consistente organização interna, própria. Somente depois que esse processo estiver firmemente consolidado, pode-se tentar a disputa da hegemonia. A forma para tal ruptura não está pré-estabelecida. Deve ser uma conseqüência do processo histórico que se desenrolará como de-corrência natural das circunstâncias supervenientes. Em outras palavras, será um processo revolucionário – na acepção filosófica do termo – que pouco diferirá de outros processos históricos que produziram transforma-ções profundas na história da humanidade.

O horizonte de tempo para essa hipótese é indeterminado, sendo depen-dente da correlação de forças que possa ser estabelecida para o confron-to.

A segunda hipótese – que não pode ser descartada a priori – considera que o Brasil pode passar por um processo de transformação profunda tal que atravesse a via institucional, mesmo com as instituições vigentes, montadas a serviço do sistema capitalista. Também estas, subseqüente-mente, serão submetidas a fortíssimas e profundas transformações.

Em síntese, esse seria um modelo tipo um “mix” virtuoso entre o “modelo venezuelano chavista” e o “jeito petista de governar”.

Já foi destacado no capítulo sobre as eleições de 1998 que FHC obteve apenas 34% dos votos do total dos eleitores cadastrados no TSE. Os candidatos de oposição obtiveram 30% e os restantes 36% constituíram a soma dos votos brancos e nulos, mais as abstenções. Ou seja, dois ter-ços dos eleitores não validaram o projeto continuista de Fernando Henri-que. Esse fato nunca foi, convenientemente, destacado pelos analistas e pela mídia, assim como o significado das vitórias realmente oposicionistas em alguns estados.

Entretanto, aqueles que, como diria o Padre Vieira tinham “olhos de ver e ouvidos de ouvir” o recado das urnas, puderam perceber a possibilidade de um futuro confronto eleitoral, em outras bases e condições. As elei-ções de outubro/2000 vieram reforçar essa possibilidade e, mais do que isso, puxaram a hipótese para o terreno das probabilidades porque servi-ram para validar e ampliar a abrangência dos modelos de gestão real-mente democrática, popular, participativa e transparente. Tanto que mui-tos prefeitos de esquerda foram eleitos, reeleitos ou elegeram sucessor.

Esses modelos – que batizamos de “modo petista de governar” mas que não são privilégio nem prerrogativa exclusiva do PT - já estão em pleno exercício no Brasil, no nível municipal desde 1988 (gestão Olívio Dutra em Porto Alegre) e no nível estadual desde 1998, sem esquecer a gestão Cristóvam Buarque no Distrito Federal, de 1995 a 1998.

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Por outro lado, conforme foi visto, o “modelo chavista” ainda está em es-tágio probatório na Venezuela, mas pode se constituir realmente num re-ferencial importante quanto às perspectivas e condições de confronto com o modelo neoliberal. É verdade que Chávez enfrenta dificuldades de ordem interna e externa. Internamente, a carência de instituições parti-dárias fortes para sustentação política de seu governo faz com que ele se apóie no populismo, o que é um processo frágil e pode se tornar perigo-so. Externamente, Chaves deverá enfrentar óbvias restrições e bloqueios de vários centros de poder econômico, financeiro e político.

A vantagem relativa das condições políticas do Brasil em relação à Vene-zuela, para esta hipótese em análise, é representada pela nossa melhor estratificação de apoio partidário e político a um projeto de tal natureza e envergadura, apesar das fragilidades ainda existentes. Daí, então, ser di-fícil mas não absurda a perspectiva de que possa existir uma conjugação virtuosa das duas condições acima descritas, na aplicação da hipótese que estamos discutindo.

A consecução dessa perspectiva no Brasil, entretanto, terá de passar por alguns condicionantes, como premissas básicas, tais como:

1. O processo de conscientização das massas tem que avançar no sentido do aprofundamento e da organicidade, eliminando-se o voluntarismo e a improvisação.

No processo eleitoral de outubro/2000, as únicas novidades surpreen-dentes foram a rapidez e a amplitude com que milhões de eleitores superaram as fases 1 e 2 do processo teórico de mobilização de des-crevemos anteriormente. Ou seja, a assimilação das informações quanto à situação vigorante e a conscientização quanto aos prejuízos que advirão da continuidade da situação. Em outras palavras, um sig-nificativo número de pessoas passou por uma rápida superação parcial do processo de alienação política que lhes vem sendo impingido cotidi-anamente, durante todos os 86,4 mil segundos de cada dia.

2. Numa eleição presidencial, no entanto, terá de sair vitorioso um proje-to transformador bastante abrangente e radical que confronte e afron-te de modo claro o projeto das elites. A vitoria tem de ser por larga margem de votos. Margens da ordem de 51% contra 49% não ser-vem, somente no nível de 2/3 ou mais. Essa mudança de rumo certa-mente também se refletirá nas eleições para o Congresso Nacional e para vários governos estaduais. Essa base política é que poderá permi-tir o início de um processo concreto de transformações institucionais na direção da nova ordem social, política e econômica.

3. O governo eleito, já a partir da primeira hora após a posse, deverá a-plicar alguns “canetaços”, constitucionalmente embasados, para solu-

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ção imediata de questões estratégicas e fundamentais, dentro do pro-jeto de governo aprovado nas urnas. Isso irá demonstrar para toda a sociedade e para o mundo que as mudanças aprovadas eleitoralmente começaram para valer e que o processo transformador das condições de vida das maiorias do povo brasileiro foi instalado de modo real e ir-reversível.

4. Essa nova ordem deverá ter o apoio das forças militares, o que se a-presenta como algo difícil – mas não impossível - de ser concretizado. Diferentemente do exército venezuelano, que tem tradição democráti-ca e popular espelhada em Simon Bolivar, o exército brasileiro tem como referência figuras como Caxias, Floriano e outros similares, que não são bons exemplos de garantias para o exercício da democracia.

5. Alguns falsos mitos e falácias do discurso neoliberal globalizante terão de ser, a priori, desmontados. Por exemplo, além de alguns mais ge-néricos que foram destacados no Caderno 01, podemos acrescentar os seguintes, que são muito repetidos pelas nossas elites:

I. “A crise é mundial e sistêmica e não pode ser resolvida no âmbito de um país”. É verdade que a crise é mundial e sistêmica – supo-mos que este estudo mostrou isso com clareza – mas também é verdadeiro que vários aspectos da crise são localizados e podem ser corrigidos, pelo menos em boa parte, a curto ou médio prazo: cor-rupção, desmandos políticos e administrativos, impunidade, miséria generalizada, desemprego, bloqueios no acesso à terra, à alimenta-ção, à saúde, à educação, à habitação, à justiça, à cidadania. So-mente para citar os principais.

II. “O grupo que disputa o poder não tem experiência executiva”. Os governos populares e democráticos que já estão no efetivo exercício do poder municipal e estadual têm que continuar mostrando capa-cidade política e administrativa de forma muito competente ao lon-go dos próximos anos.

III. “O capital internacional abandonará o país, maciçamente. É ótimo que o capital especulativo vá embora, o que já se faz tarde! O capi-tal produtivo, entretanto, para onde irá? Onde poderão existir pos-sibilidades de crescimento econômico, similares às de um novo Bra-sil, quando aqui for possível oferecer condições de vida digna para as pessoas que nunca as possuíram? Exceção feita talvez à China e à Índia, em qual país “emergente” existirão 100 milhões de consu-midores potenciais? Além disso, dizer-se que o desenvolvimento e-conômico só pode ser realizado com capital externo é outra falácia que não tem base de sustentação prática, em âmbito mundial.

IV. “Um rompimento com o FMI fechará as portas do acesso ao capital

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internacional”. Países como a Rússia, a Coréia, o Japão, a Malásia, a China, a Índia não seguiram totalmente a receita do FMI. São paí-ses que têm demonstrado soberania e continuam a ser cortejados pelo capital internacional.

V. “As empresas multinacionais sairão do Brasil”. No genérico, a res-posta dada ao item III serve para esta questão, adaptativamente, já que o princípio do questionamento é o mesmo. De qualquer mo-do, para aquelas empresas que se sentirem desconfortáveis com as novas regras, só restará dizer adeus. E que o seu espaço será ocu-pado por outras empresas. Brasileiras, de preferência.

VI. Sofreremos represálias se houver a suspensão do pagamento da Dívida Externa”. Essa empulhação pressupõe um país sem sobera-nia. Na verdade, é o que somos hoje, mas que deixaremos de ser no novo modelo. A Rússia, por exemplo, com todas as suas dificul-dades políticas e econômicas, declarou moratória em 1998 e nada aconteceu, exceto alguns tremores nas bolsas de valores. Pouca gente sabe, no entanto, que os credores acabaram aceitando as condições impostas pelo governo russo. E até o FMI foi obrigado a admitir o início da sua recuperação econômica. “Mas a Rússia é a Rússia!” Ah, sim, mas o Brasil é o Brasil! Com uma certa diferença, que é a bomba. Porém, quem ainda acredita em bombas, hoje em dia?

A lista não pretende ser exaustiva nem abranger todos os mitos possíveis e prováveis que poderão ser levantados pelas forças da reação, do con-servadorismo e do poder vigente, tal o desespero que sempre se apodera das classes dominantes diante de uma real possibilidade de perda de he-gemonia.

Quanto ao horizonte de tempo para concretizar esta hipótese de confron-to, não é totalmente descabido acreditar que possa estar calibrado para outubro/2002. Para tal, no entanto, devemos considerar alguns entraves muito fortes. Por exemplo:

1. A direita conservadora e reacionária vem perdendo espaço mas ainda detém o poder na maioria das cidades menores do país, principal-mente onde impera o colonialismo, o compadrio e a despolitização das massas.

2. Os partidos de esquerda priorizam a disputa eleitoral e, para tal, vale qualquer tipo de aliança e de discurso. O PT, por exemplo, agora nem sempre exibe o vermelho como sua cor-símbolo. Em muitas situações passou a usar, para a estrela e para a bandeira, também outras co-res do arco-íris: amarelo, verde, azul e até o rosa-choque...

3. Algumas vitórias da esquerda nas eleições para governos estaduais

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em 1998 não se consolidaram como processos transformadores e al-guns de seus líderes transitaram rapidamente para o centro e até mesmo para a direita. É de se supor que algo semelhante possa o-correr com alguns prefeitos eleitos em 2000.

4. Não há lideranças partidárias visíveis que personifiquem e polarizem, em âmbito nacional, um projeto mais radical com vistas a um verda-deiro confronto eleitoral com o atual projeto das elites.

5. Até 2002, as elites dominantes tentarão recuperar o terreno perdido, mediante a tentativa de três movimentos principais no xadrez políti-co: a) afrouxar o torniquete, que garroteia a população mais pobre, com medidas pseudo-sociais (aumentos mais significativos no Salário Mínimo, por exemplo); b) cooptar os governos de esquerda, especi-almente aqueles sem grandes firmezas nas concepções ideológicas; c) isolar, combater e/ou aterrorizar os movimentos sociais mais au-tênticos, atuantes e combativos, tais como o MST.

6. O sistema eleitoral montado no Brasil, com o uso da urna eletrônica, é absolutamente passível de fraude, especialmente nas eleições ma-joritárias principais, para presidente da república e para governado-res estaduais, onde os interesses das elites são imensos e os recur-sos envolvidos são fantásticos. Caso esse sistema não seja revisto para permitir a transparência democrática e o controle social do mesmo, não serão possíveis as vitórias, pela via eleitoral, da esquer-da nesses níveis maiores da hierarquia da administração pública bra-sileira. A menos que as votações nos candidatos populares sejam a-vassaladoras e superem, de plano, qualquer processo ou tentativa de fraude.

As questões acima são exemplos de um contraponto – uma antítese – à tese da existência de perspectivas de conquista de poder através de um projeto que radicalize o debate e possa ter êxito pela via institucional. Em outras palavras, um modelo que combine o “modelo chavista” com o “jeito petista de governar” (aquele “jeito mais puro”, evidentemente!).

Dialeticamente falando, então qual é a síntese para uma ação exitosa? Na verdade, é difícil saber. Acreditamos que essa percepção venha a as-somar durante o desenrolar do próprio processo político superveniente, tal como tem ocorrido no campo social e político no mundo todo, em to-dos os tempos.

É evidente que nossas dúvidas não se situam no campo das idéias trans-formadoras, tais como as que embasam a nossa proposta de Sistema al-ternativo ao capitalismo. Nossa dificuldade de percepção é pontual e diz respeito apenas às táticas e estratégias da ação, não ao seu conteúdo e à sua diretriz fundamental, que é a supressão total do capitalismo e a re-

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versão dos seus primados.

De qualquer modo, entretanto, se o Brasil conseguir realizar a proeza de concretizar a hipótese delineada acima – a segunda -, independentemen-te de que isso ocorra em 2002 ou não, alguns fenômenos aflorarão for-temente. Por exemplo: 1 – nosso modelo se tornará referência mundial; 2 - muitas teorias, regras e princípios políticos, sociológicos ou mesmo filosóficos – tanto à direita quanto à esquerda - terão de ser revistos, pa-ra desespero de tantos e tantos pensadores e teorizadores dessas ques-tões. Dentre esses, muitos fatalmente passarão a vasculhar bibliotecas e livrarias numa busca inútil por explicações e atualizações. Alguns, além disso, irão congestionar as agendas das clínicas psicológicas e ocupar por muitas horas os divãs dos analistas...! Em outras palavras, poderão o-correr crises intelectuais e existenciais muito profundas!

Claro está que, dependendo das condições supervenientes, poderão sur-gir outras hipóteses derivadas, intermediárias ou complementares às que aqui discutimos. Os pressupostos básicos e os resultados esperados, po-rém, serão os mesmos que foram fixados na discussão deste ensaio.

Se o caminho para o futuro do Brasil for o de um confronto mais radical com o projeto neoliberal, a trajetória para essa hipótese será longa e difí-cil. Mas terá de ser enfrentada.

Em suma, podemos reafirmar que o Brasil tem jeito. E que os jeitos são muitos. O que está faltando para superar nossas dificuldades, se resume em uma única condição primordial: tomar a decisão de superá-las. O resto será fácil e virá por decorrência, bastando conjugar o denodo, o es-pírito de luta, a criatividade e a competência que o brasileiro tem de-monstrado no enfrentamento de tantos e tantos desafios, grandes e pe-quenos, inclusive o da sua própria sobrevivência individual no dia a dia.

Para concluir, podemos parafrasear o general Ozório (“É fácil comandar homens livres; basta mostra-lhes o caminho do dever”), dizendo que:

É fácil orientar a luta de pessoas livres; basta indicar-lhes um caminho para a cidadania, para a democracia e para a liberdade. Basta, enfim, indicar-lhes um novo caminho para um novo futuro!

NOTAS

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i Ver LÖWY, Michel, Ideologias e ciências sociais - Elementos para uma análise marxista ii Ver DIETERICH, Heinz, et. al., Fim do capitalismo global - O novo projeto histórico