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7/30/2019 Breves notas sobre o notrio, chez Argan, de Molire - Ricardo Dip
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Breves notas sobre o notrio, chez Argan,de Molire
(ou melhor: o reencontro de umas fichinhas amarelas)
RICARDO HENRY MARQUES DIP
Nos tempos da brilhantina (ou da gelatina)
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ETRARCA, filho de PETRARCO grande notrio florentino. Foi
assim, na possesso dessa frase cuidadosamente memorizada,
que eu, um moozinho de quinze anos, com cabelos cautelosa
e feiamente empastados deixo dito que pelo menos, ento, cabelos,
por vantagem, feios ou no, eu os tinha, e que, a meu favor, conste ainda
que os livros de notas, naquela poca, tambm eles eram gelatinosos ,
mas, estava a dizer: o rapazote que eu era, com uma sentenasolidamente empossada na memria, preparouse para uma terrvel
paliada: uma prova de literatura portuguesa.
Minha saudosssima professoraGUIOMAR CARAM a quem muito eu
deveria, dois anos mais tarde, o escambo das cadeias orgnicas de
carbono, das estruturas do ribonucleico e da anatomia das patelas por
embargos, anticreses e juzes pedneos tinha o vezo, decerto para l
de anacrnico, de fazer seus alunos estudar, aprender e gostar do que
estudavam, aprendiam e gostavam. E deulhe na idia um dia de pensarque CAMES tinha sido um poeta e que ns todos, os que amos ser
mdicos, engenheiros, fsicos, bilogos e matemticos, teramos de ler
Os Lusadas e saberlhe o nmero de cantos, estncias e versos, destes a
quantidade de slabas e se as dez em cada caso achadas eram de
acentuao sfica ou herica, e de quebra saber ainda o que a propsito
pensava MASSAUD MOISS, a cujo livro, de capa azul, terminvamos por
ento de ser apresentados. E com toda reverncia que, reconhease,
ele bem merecia e ainda a segue merecendo.
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 2)
Dava gosto imaginar que, no futuro, entre um bisturi e um frceps,
eu, que me projetava mdico ( maneira de um novo Thomas Diafoirus),
eu bem que poderia, se a memria no faltasse, declamar uns tantossonetos que aquela minha estimada professora insistia em eleger na
lrica camoniana, fazendonos, pobres alunos, por ali repetilos uns aos
outros, reciprocandonos olhares de pavor. Graas a isso, ao largo de
minhas juvenis e saudveis cardiopatias, sempre achei na memria o
consolo daquela Raquel, serrana bela, ou a raiva contra Labo usando de
cautela, ou ao menos a alegria do ocioso e cego pensamento, a sublime
fantasia em que ainda imagino ser contente... J por isso e se fosse s
por isso, estaria muito agradecido minha querida professora de
literatura, por quem, embora adivinhe ver nos cus, no deixo, porpiedade e tambm por justia, de impetrar freqentemente a
misericrdia de DEUS.
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 3)
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ETRARCA, filho de PETRARCO grande notrio florentino. Cedo
descobri, antes mesmo de saber que raio de coisa era a teoriamnemnica, ser eu capaz de memorizar ordenada e facilmente
ao menos at a augusta quantidade de vinte e dois nomes, contanto que
divididos em dois grupos, a enumerados de um a onze e dispostos sobre
um gramado imaginrio, tudo como se fossem duas equipes de futebol.
No errava um s nome!
Com PETRARCA, porm, foi um tanto diferente. Interesseime por seu
nome mais do que de comum ocorria. verdade que s na exata medida
em que referia o humanismo petrarquiano como precedente mais oumenos remoto da obra de CAMES. Mas certo que me interessava o
pomposo nome do nosso PETRARCA, que alguma vez, em todo caso e para
maior segurana, eu imaginava ser um lbero do catenaccio italiano,
ladeado por VERGILIO e DANTE, este ltimo que, entre um chute e um
lanamento, nos meus jogos fantasiosos, acenava romanticamente para
Beatriz.
Calha que me intriguei particularmente com o fato de PETRARCA serfilho de PETRARCO, pois isso de um parentesco real invadir com similitude
o universo nominal me figurava como uma solenssima extravagncia. De
tanto eu repetir aquela estroinice PETRARCA, filho de PETRARCO e dominar
lhe as letrinhas encadeadas, um dia achei curioso acrescentar s suas
correspondentes oito slabas poticas outras oito extradas de sua
biografia: grande notrio florentino.
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 4)
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lorentino eu at sabia o que era, e ainda hoje, como outrora,
encontro no fundo da alma a esperana de no futuro podercontemplar o Santo Toms de Aquino de FRA ANGELICO, que
imagino deve ficar permanentemente refulgindo nas paredes da Catedral
de Florena, aguardando minha acalentada visita. Que tarda, sabe l DEUS
por qu. Dos meus persistentes cinco sonhos de pintura quero dizer,
de contemplao pictrica faltamme agora ver duas obras: essa de
FRA ANGELICO, de que faz pouco tempo eu tinha uma reproduo, pequena
mas estimada, da qual, por meu ingnuo desaviso, me encontro agora
expropriado, e A Ronda Noturna de REMBRANDT, cuja vista certa vez,
insensato, desprezei em favor de um passeio pelos canais de Amsterdam.Fao constar ainda que renunciei faz tempo a um sexto sonho de pintura:
o de contemplar O Regresso do Filho Prdigo, que desde 1776 se acha
num museu da agora So Petersburgo, graas a uma simptica aquisio
de CATARINA, a Grande. verdade que eu no pisaria em Leningrado, a
no ser compulsoriamente; no menos verdade que, de bom grado,
visitaria a rebatizada So Petersburgo. Se abdiquei do sexto sonho, no
foi, assim, por motivos geogrficos, tursticos e sequer subsistentemente
polticos, mas porque esse Filho Prdigo de REMBRANDT se fez para mimum quadro j com demasiada intimidade, desde que entendi, a seu
propsito, as fulminantes e contrapostas interpretaes de HENRI
NOUWEN. No quero correr o risco de, eu no menos, fascinarme de tal
modo com esse gracioso baile de natureza e arte a ponto de me
esquecer de meus demais sonhos de pintura, includos os trs que eu j
vivi: As Meninas, de VELZQUEZ, SantAna e a Virgem, de BARTOLOM
MURILLO que se acham no Prado, em Madrid e de E L GRECO, o
Enterro do Conde de Orgaz, um conde que no era conde, pintura que se
encontra gloriosamente solitria em Toledo.
PETRARCA, o filho de um notrio florentino. Florentino, como disse, eu
at sabia o que era. Mas notrio, saber que coisa um notrio, era exigir
demais para um menino de quinze anos, filho de um caixeiroviajante
(que triste coisa ver que ainda agora me di, amarga, a morte de meu
pai: Uma iluso gemia em cada canto,/ Chorava em cada canto uma
saudade). Devo dizer logo que, entre uma e outra de suas viagens, meu
pai certa vez me trouxera um dicionrio, no qual breve aprendi a
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 5)
confortarme de minhas insuficincias, com as quais, em todo caso,
ainda hoje no me resigno. L estava a primeira definio semntica que
encontrei para notrio: pessoa autorizada superiormente a dar f dos
contratos e outros actos (sic) extrajudiciais, em harmonia com as leisestabelecidas e vigentes. Que coisa bonita e digna! Dar f em harmonia
com as leis estabelecidas... Eu teria conferido ainda maior valor a tudo
isso se ento pudesse adivinhar que o mesmo dicionrio andava um
pouco s tontas com o conceito de extrajudicial que nele eu lia
espantado: o que feito fora da vida judicial e, por conseguinte, sem as
formalidades do direito. Por um tempo estive, pois e explicavelmente,
convencido de que o notrio era algum que dava f, em harmonia
com as leis estabelecidas e vigentes, dos atos feitos sem as
formalidades do direito. Ou seja, na minha prosaica linguagemestudantil: o notrio era quem legalizava o que se fazia fora do direito
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 6)
Se eu achasse um notrio (com selo e tudo)
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evo agora confessar que jamais esperei ler o De vita solitaria
de PETRARCA, em que o nosso autor, filho de PETRARCO, o
grande notrio, etc., tratou da solido dos escritores, e,
quela altura, essa minha desesperana de menino era exatamente do
mesmo tipo da que eu tinha de um dia vir a prme frente a frente com
um notrio. Indo p, era manh de chuvisco, para o Carlos
Maximiliano (a tm o nome da escola do moozinho de quinze anos),
fiquei aterrado em concluir que se eu me achasse diante de um notriono saberia como distinguilo de algum trivial, de um mortalzinho
qualquer que no pudesse dar f alguma de coisas feitas sem as
formalidades do direito. Se ao menos levasse o tal notrio, sobre a testa,
pensava eu, um desses misteriosos e burocrticos selos que, mal
proporcionados aos tempos que corriam, pudessem produzir, desvalidos,
um riso saudvel e (para alguns) um certo pejo...
Mas, ento, se ali, meu Deus do cu, numa testa rugosa de notrio,houvesse selos, que seria de meu atual projeto de estudos sobre a
sigilografia ou esfragstica notarial psmoderna? Rectius: uma
srie de estudos fantsticos revelando que, na Insula Agathurica, o
grande Dom Sancho II, o nicobis, estaria ainda agora considerando a
inslita oportunidade de restaurar a tradio do selo, que j fez a
grandeza das aduanas, dos aduaneiros, dos atestados e dos atestadores.
Ah! Como me fez bem saber, por VIANNA MOOG, a relao entre o humor
e a decadncia social: e dizer que isso poderia agora vir adornado com
selo notarial
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 7)
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unca houve ocasio de eu empregar nas provas de literatura
aquele PETRARCA, filho de PETRARCO, grande notrio florentino,mas nunca me esqueci da frase, nem de PETRARCA, nem de
PETRARCO, nem da venturosa fantasia de eu encontrar um notrio selado.
E deuse um dia o caso que, mal ingressando, em 1969, a cursar a
Faculdade de Direito da Universidade que j foi a Catlica de So Paulo,
aproveiteime dessa intrigante semana de dez dias que alguns idealistas
chamam de trduo do carnaval: alguma dessas Raquis serranas belas,
por cujos olhos inutilmente derramei versos ( amada mais que amada/
de mirar encantador/ ama o amor de ser amada/ sofre a dor da minha
dor, etc.), alguma serrana bela me havia feito alguma desfeita e eu,avessado que sempre fui ao carnaval, achei o pretexto de dedicarme
ento a uma leitura desdenhosa e acaso academicamente perdulria:
tratava de saber um pouco da histria do Palcio de El Escorial, que se
construra por ordem e discretas indicaes de FELIPE II, Imperadorcuja
trajetria biogrfica sempre admirei, e que assim agindo cumpria
promessa feita aos cus com a vitria na batalha de San Quintn.
Atravessame agora a idia pensar como estranho que a Princesa de
boli ANA MENDOZA DE LA CERDA fosse fisicamente para l de atrativa,quando se observa que ela, piscando um olho, se tornava inteiramente
cega por um instante Vi certa vez um seu retrato, num leo atribudo a
SNCHEZ COELLO, e compreendi logo o motivo da fraqueza temporria de
FELIPE II, um homem de carne e osso que a tempo, contudo, reapareceu
santificado, muito graas ao sofrimento e a seu amor por ISABEL, a
pequena flor de Valois.
Em meio da controvertvel extravagncia de minha pesquisa
alguns amigos impiedosos e de vocao poitica sentenciaram queestudar Direito tinha mesmo de dar nessas singularidades , deparei
com a organizao da Biblioteca do Escorial, que, em determinado
perodo, esteve a cargo de BENITO ARIAS MONTANO, um humanista nascido
em Fregenal de la Sierra (Badajoz), no ano de 1527, perito em exegese
bblica, e com quem, em 1568, FELIPE II se aconselhara acerca da proposta
de PLANTINO, um editor da Anturpia, para a edio de uma nova Poliglota
maior. E, com efeito, entre 1569 e 1572, s expensas do Imperador,
comeou a imprimirse essa obra, tendo ARIAS MONTANO, depois de obter
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de Roma a indispensvel aprovao, publicado vrios de seus tratados no
oitavo dos volumes. Pois bem, para resumir a histria, descobri
surpreendido que ARIAS MONTANO era filho de um notrio. Ou seja:
PETRARCA j no se desolava na memria da descendncia tabelioa:tambm ARIAS MONTANO, eis a, maravilhavame o esprito com ser filho
de notrio.
Essa nova descoberta de filiao notarial, reconduzindome velha
e saudosa recitao Petrarca, filho de Petrarco, instigoume a uma
pesquisa incidental que, felizmente ou no, terminou por clausurar meu
fracassado projeto de estudos sobre o Palcio de San Lorenzo del
Escorial. Resolvi, ento e decididamente, despender o que restava do
longo trduo do carnaval j que meus versos no conseguiramcomover o corao da no sei mais qual intrigante Raquel serrana bela
para perambular pela biografia de escritores espanhis, sempre cata de
notrios e filhos de notrios.
Quero, a propsito, confessar um meu antigo e ainda atualssimo
pecadilho metodolgico, do qual no consigo ter contrio alguma, nem
atrio ao menos: bem sei que, com os recursos da computao e,
especialmente, com o vulto da informao acessvel na Internet, asantigas pesquisas em livros tangidos em papel pelo pobre e solitrio do
pesquisador eram, por certo, muitssimo menos objetivamente
satisfatrias do que as de agora, as que me posso permitir instalado
frente da rapidssima sucesso de letras e nmeros deste meu Hewlett
Packard... Mas que desperdcio! A pesquisa moda antiga tinha um
certo glamour, enchia o corao de um encantamento misterioso; era
muitssimo mais subjetivamente satisfativa: passavamse horas inteiras
folheandose ndices, refrescandose o indicador direito (ao menos o
meu era o direito) numa esponja de gua meio suja, esfolandose ospolegares entre folhas speras, fomentandose os sintomas da rinite,
mas, que posso dizer?, era tudo mais sensvel, parecia mais tangvel,
mais tctil... se convier, mais romntico. Eu me sentia at docemente
vingado da no sei qual Raquel serrana bela, contemplando, com cautela,
a belssima figura de ANA MENDOZA DE LA CERDA.
Apreendi naquela altura algumas informaes, por certo
incompletas, no tenho dvida disso, e tratei de escrevlas numas
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fichinhas amarelas que meu pai encomendava, bem barato, dos retalhos
de uma grfica. Ainda guardo comigo essas fichas, at hoje, com minha
letra que comeava redonda e pedaggica, para acabar garranchosa de
ansiedade e fadiga. Mal lembrado do carnaval que passava, tomavaento noite uma taa de vinho tinto um gosto que herdei de meu
av materno e a que, de quando em quando, ainda me rendo com
temperamento , vinho que, tinto embora, eu em segredo refrescava,
temendo que me acusassem de heresia vincola (mais tarde, em Sevilla,
ensinaramme que era ortodoxo resfrilo). Punhame ento a reler
gostosamente as fichinhas, feliz da vida com meus achados.
Penso, por exemplo, que j pouca gente se recordaria que CERVANTES,
relatando um escrutnio de Don Quijote, louvou e recomendou aconservao da Diana enamorada que escrevera GASPAR GIL POLO, um dos
cultores da temtica pastoral espanhola, esse GIL POLO que, ao largo do
sculo XVI, foi notrio em Valencia. Mas isso, que j quase ningum
recorda, est numa de minhas fichinhas amarelas. Deixei tambm escrito
que um ptico, natural de Crdoba (1591), BENITO DAZA DE VALDS,
escreveu uma obra versando as diferentes maneiras de talhar os cristais
para atender as necessidades das vrias deformaes do globo ocular
(Uso de los anteojos para todo gnero de vistas); pois esse DAZA DE VALDSfoi um notrio sevilhano essa Sevilla, cidade de meus encantamentos.
Um historiador godo, JORNANDES isso tambm est l, numa das
admirveis fichinhas amarelas , que viveu no sculo VI e parte de cuja
obra resumiu CASSIODORO, foi notrio do rei dos alanos. Autor de um
manual de cortesania, El Galateo Espaol, LUCAS GRACIN DANTISCO, nascido
em Valladolid em 1543, foi notrio em Madrid. JOS CAMERINO, autor de
novelas cortess (La Dama Beata) e que morreu no sculo XVII, foi
tambm notrio. VASCO EGIDIO APONTE, que, no sculo XVI, escreveu sobre
genealogia, foi notrio em Granada. FRANCESC DE SALES MASPONS I LABRS,o folclorista de La pagesia catalana e dos Quentos populars catalans, um
notrio em Barcelona.
Deixei tudo isso alinhavado nas fichinhas amarelas, ainda que a falta
de remisso s fontes documentais, por minha imprevidncia e
inexperincia, faa severa censura a meu passado de estudante e
pesquisador. De quando em quando, achase naquelas fichas um
sinalzinho qualquer, uma cicatriz mais ou menos indecifrvel, dando
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testemunho de meu transitrio desdm pela vida fora das bibliotecas:
um coraozinho ali, um outro pequeno corao acol, uma setas que os
partiam, as iniciais de meu nome enganchadas com outras de no sei
quem, etc. Em todo caso, se um dia, pensei, se um dia se desse amisteriosa ocasio de eu encontrar realmente um notrio, assim de
carne, osso, rugas e, acaso, selos, tencionava dizerlhe que era honraria
sua ser colega de JORNANDES, de DAZA DE VALDS, de GRACIN DANTISCO e GIL
POLO, de ARIAS MONTANO, de JOS CAMERINO e MASPONS I LABRS,de CRISTBAL
MORALES, o grande msico de Sevilla.
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o. Pensei melhor, ao nico notrio que eu, por sorte,
encontrasse em toda vida, falaria a esse que eu achasse: eisa vossa memria: sois colega de PETRARCO, o pai de PETRARCA.
Mas, no posso silenciar este fato, intrigavame ao mesmo tempo saber
o que eu diria quando algum, empeonhando minha esperana, me
dissesse que esse notrio, herdeiro oficial de PETRARCO, podia, no custico
dizer de um dicionrio, dar srdida f do que se fizesse sem as
formalidades do direito
Para sorte dos meus desvalidos neurnios, breve povooume o
esprito a opinio de quepossivelmente meu prezado dicionrio estivessecontaminado de ambigidades, de metforas e termos equvocos... A
razo da novidade crtica foi um desses achados fulmneos: num belo dia
26 de maio, eu me estava pondo a percorrer circunstancialmente a
hagiografia, e, no calendrio prconciliar, era ento data do msico,
poeta e santo FELIPE NRI, que, para mais e tal como PETRARCA, era tambm
filho de um notrio florentino.
Pois bem,florentino, eu continuava a saber o que era. Santo, porm,isso era outra coisa que j no compreendia mais ao certo, porque eu
vinha de um tempo que me diziam inteiramente ultrapassado, embora
nunca me tenham feito a generosidade de esclarecer quem ou o que
ultrapassara as verdades que antes me haviam ensinado. Que bela culpa
a minha! ser de um tempo em que, a cada domingo, me cabia, com a
melhor roupa que tinha, assistir reverentemente, sob os vigilantes
olhares de minha me, a missa ento celebrada por um padre e em latim.
Sbito, na minha primeira mocidade, passaram a censurarme o
vocabulrio, os conceitos e os juzos: missa no se assiste, seu moo:
participase da mesma(corrijo eu: dela); em latim no, meu rapaz; em
vernculo, por favor. E alguma vez batendo palmas, como num estdio
de futebol, outras dandose as mos, maneira da ciranda, cirandinha
que eu vira minhas primas danando no tempo da minha infncia, mas
que parece retornada moda, ainda que possivelmente em hora e lugar
errados. Fizeramme saber tambm que a nova missa presidida pelo
padre e concelebrada pelo seu Joo e pela dona Joanete, que no sabem
patavina de teologia, mas tm timos rudimentos de sociologia, quero
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dizer: vivncia de socializao. Que coisa! Ser que o Padre Eugnio,
fico eu a pensar, aquele bom padre que me deu a primeira comunho e
me fez repetir em latim, eu que usava calas curtas, o Dominus, non sum
dignus ut intres sub tectum meum, estar, conta desse latinrio, fadados baixezas do inferno? Ser que a minha querida Walderez, fazendo
com que eu memorizasse uma a uma as respostas do CATECISMO DE SO PIO
X, ser que ela, por culpa de sua catequese demode, estar vivendo
agora em companhia eterna do pobre Iscariotes? Entrego isso ao cuidado
dos telogos e, pour cause, dos socilogos, pois no fui eu foi SO PIO
V quem imps a missa velha (e foi canonizado). O que importa dizer
aqui que na minha pobre cabea de acadmico de Direito no entrava
ento a idia de que o bom DEUS fosse dar a um santo de tanta F na
Verdade, como foi FELIPE NRI, um pai que, por ofcio, torpemente dessef ao que sabia no ser verdade. No, um notrio no pode ter a vileza
oficial de legalizar o que no justo.
Minhas fichinhas amarelas permaneceram fiis e recatadas por
longos vinte e nove anos. Como eu tambm, a despeito de minhas
falncias, permaneci recatado e fiel mesma doutrina que a seu tempo
me ensinaram piedosamente meus pais, minha tia Walderez e o Padre
Eugnio.
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 13)
Na La Barca, reencontrando Molire
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inte e nove anos depois: janeiro de 1998. Chovia outra vez.
Sbito abria um sol esperanoso e, logo, outra chuva, num
penduleio aborrecido que punha prova a virtude da
pacincia. Com o pretexto de no esfriar estes meus ossos j antiquados
e ultimamente meio descados, entrei na La Barca numa galeria da
Mitre pela no sei que vez em uma semana. Sabia onde os donos, dois
de meus bons amigos livreiros, ali ordenavam cada obra. Ano aps ano
tenho freqentado aquelas estantes. Que fazer nas frias de janeironuma cidade que deveria ser feita s de neve e que vivia num vero,
pois, pois, sem neve e, por no sei que deslize, com chuva? Nesse dia, ali
fiquei revisitando CHESTERTON e HILLAIRE BELLOC, folheando uma gramtica
tupac amaru e divertindome com uma curiosa histria ou estria dos
buriloches, at que deparei, a espreitarme do canto em que se
amontoara, uma traduo espanhola, uma verso castelhanssima de
MOLIRE.
Lembreime pronto e terrivelmente das palavras custicas de um
bom amigo, JOS RONALDO CURI, com quem, no Crculo Argentino, faz tanto
tempo, compartilhei algum estudo de literatura hispnica: que
arbtrio!. Eu de minha parte rematava: mas !que diverso!. Pibes,
querem aprender castelhano? Pois, digam rpido ento: La gaviota de
la novia estaba en la feria del barrio Era o que chamvamos, para
horror de nossa guapa e argentinssima professora, um mero
cambalache de letrinhas: isto , o mais desatento dos alentejanos saberia
conaturalmente falar o idioma de Castilla: bastarlheia proceder trocade posio de umas tantas letrinhas Gaivota no, gaviota; noiva no,
novia; feira no,feria; bairro no, barrio Pibes, no se preocupem: com
esse portugus de solecismos esto a falar o castelhano quando erram
num idioma, acertam noutro.
Nessa agora veraniega San Carlos de Bariloche, no haveria coisa
mais divertida do que ler Las Mujeres Sabihondas de MOLIRE ao invs de
revisitar Les femmes savantes que eu lera na mocidade longnqua, El
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 14)
Mdico a Palos e no Le mdecin malgr lui. Minha admirada lngua
castelhana: pese aqui a descoberto a razo pela qual a cachorrinha
que minhas filhas me foraram a comprar se chama Hechizera (vulgo
Hechi). Que arbtrio e diverso! No deixava de alcovitarme a idia deque Toinette, la servante de Le malade imaginaire, terminaria por ser
como de fato o foi la sirvienta Antonia de El Enfermo Imaginario.
Comprei a obra. No poderia deixar de fazlo. Carregueia sob a chuva,
mais agasalhada do que meus ossos. Aquilo era uma ocasional
preciosidade. Nem o sol, que logo veio e ficou mais tempo a tentarme
com uma visita ao cerro Campanario, me faria j sair do quarto do hotel,
contanto que eu me pudesse divertir com um MOLIRE toreado. Dessa
vez, nem as justssimas queixas de minha mulher, pacientemente
resignada a meu lado num quarto do Edelweiss, torpedearam minhadivertida leitura de El Enfermo Imaginario
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(Breves notas sobre o notrio, chezArgan, de Molire RHMD - 15)
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eencontrei ento Argan, Bline e Anglique, ou melhor: Argn,
Belisa e Anglica. E dei de cara com Monsieur Bonnefoy (esdecir, el seor Bonaf), o notrio de Le malade imaginaire.
Minhas fichinhas! Onde estariam aquelas companheiras de pesquisa,
exatamente agora, vinte e nove anos depois, que eu de novo as poderia
ir preenchendo? Lamenteilhes a falta. Deime ocasio de referilas
largamente minha mulher e a mais pequena de minhas filhas. S no
fiz, por discrio, referncia alguma s antigas Raquis serranas belas,
que hoje, suspeito, beiram o risco de ser respeitveis avs. Mais de mil
quilmetros me convenceram de que seria possvel dessa vez ceder, sem
possvel desonor, ao vrtice dos tempos: quero dizer, comprei umasfichinhas psmodernas, para mais argentinas e ao gosto de minha filha
mais nova. Pouparamme essas fichas o desgosto de no tomar nota de
coisa alguma, por mais que no me agradasse, em todo caso, escrever
em fichinhas verdes. De novo, minha letra comeou redonda e
pedaggica, terminando, como sempre, garranchenta. Bonnefoy, digo:
Bonaf, no perdia por esperar.
Devo admitir que durante boa parte de minha vida corri o srio riscode alistarme, a exemplo de Argan, o malade imaginaire, entre as vtimas
propiciatrias de tipos como Diafoirus, Purgon e Fleurant. Penso mesmo
que se hoje pareo livrarme dessa propenso s enfermidades
fantasiosas exatamente por um pice paradoxal de minhas doenas
imaginrias. Deixemme explicar um pouco o assunto. verdade que
outrora essas minhas molstias imaginativas se atenuavam sem muito
estrpito, custa de seu insistente dinamismo: isso eu devia, com efeito,
impressionante e suponho inominada doena da sucesso de minhas
enfermidades. Quero dizer, nem bem eu me podia acostumar, porexemplo, em descobrirme molesto por uma gravssima tenossinovite e
j a relaxava em proveito de uma disacusia neurossensorial repentina e
incurvel que, dois dias depois de manifesta e definitivamente instalar
se em minha vida (digo melhor: em minhas orelhas), cedia por sua vez
lugar a trs doloridos clculos biliares, sucedidos de logo por um ameao
tenebroso de pneumonia, que dava azo a uma temvel e fulminante
silicose, suplantada sempre por uma generosa e saborosssima costela de
porco, causa invarivel e deliciosa com que minha me me propiciava
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freqentes e decisivas cistercicoses. um mistrio que eu ainda esteja
vivo para contar a sucesso de minhas tantas afeces e quantos
achaques e relatar tudo o mais que eu padecia sem ter, de resto e
minimamente, ocasio at para umas medicinas curativas, pois quesempre elas tarde chegariam, apanhandome quando j eu tivesse
mudado de doena. E nada pior e de mais desdouro do que enfermar
me adicionalmente com remdios j inapropriados doena do dia.
Li, por bvios motivos, os dois valiosssimos volumes do Professor
MAFFEI e elegi um livro de cabeceira de cabeceira, pois que era
acamado, sobretudo, que eu, um doente estvel, permanecia, salvo
quando, por exigncias do senso comum, originadas as afeces de uma
insistente postura ortosttica, eu, advertido da universal relao decausalidade, punha logo em ato a causativa correspondente: ficar de p.
Como eu ia dizendo, minha leitura preferencial, por essa altura, isto , o
meu livro de cabeceira, era o de MAX BRSCHNEIDER, Diagnsticos Clnicos,
que eu freqentava como se fosse o Livro das Horas. Foi durante uma
crise de hipoacusia, quando ento passei a ler o magnfico Tratado de
Audiologia Clnica do Professor HUNGRIA, que se deu um acontecimento
mpar e de soberba importncia na minha vida: descobri, j no me
lembro como, que era estatisticamente confirmvel a tendncia dosjuristas em conviver com afeces imaginrias. E essa maravilhosa
descoberta a de uma certa intimidade entre os entendudos do Direito
e as doenas fantasiosas levoume exaltao de minha hipocondria,
que eu, por certo, anelava fosse a melhor e mais completa manifestao
de uma temvel, definitiva e decisiva enfermidade. Foi ento que
consegui padecer da mais bvia das doenas que me podia em vida
atingir: deuse que minha hipocondria se fixou em, de modo anmalo,
fugir das estatsticas confiveis, evadir os nmeros que eram sinal de
normalidade. Para ser, enfim, mais hipocondraco resolvi, gloriosamente,que padeceria eu de uma doena mais grave que a de todos: a doena de
no ter, como tinham todos os juristas normais, umas dois ou trs
doencinhas No! Um jurista hipocondraco que se respeite deve ser
um combalido fundamental, e a nica forma estatisticamente respeitvel
de ser um jurista verdadeiramente adoentado est em ser sadio. O mais
verdadeiro, pois, e completo jurista achacadio deve queixarse de no
sofrer de nenhuma doena.
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Essa explicao torpe e larga, que pode at parecer um excurso, tem
aqui uma patente razo de ser: foi necessrio esclarecer o motivo pelo
qual tenho tamanha simpatia por Argan, Diafoirus, Purgon e Fleurant.
Porque eles so personagens de um mundo prximo e enfermado ao queme cabe viver neste sculo XX.
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Dando de cara com Bonnefoy
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verdade que, no quarto do hotel, em Bariloche, ao ler o MOLIRE
toreado, eu j antes tivera a dita de conhecer grandes notrios,
sem nenhum selo colado testa, mas com um selo fundo e
identificador da grandeza de um ofcio. Doulhes exemplos com JUAN
VALLET DE GOYTISOLO e AUGUSTO FIRMO DA SILVA. Aquele notrio catalo, a
quem me apresentara, fazia muitos anos, nosso amigo comum e meu
grande mestre que foi JOS PEDRO, desvendarame, em profundssimos
estudos, o mtodo sobretudo notarial da determinao consensualdo direito. Entre os da hispanidade de c, AUGUSTO FIRMO eu tive a feliz
ocasio de conhecer pessoalmente e de assistilo interromper por
generosidade e em meu apoio uma pequena palestra que eu perpetrava
faz tempo em So Paulo: foi magnfico ouvilo vindicar a honra da
instituio. Mas nada disso me tirava o gosto de reencontrar, chez
Argan, o notrio Bonnefoy
Por esta vez, s desta vez, a imaginao ao poder, ou melhor: aoescrever. Rdeas soltas louca da casa: instalome primeiro, verdade,
por questes de simpatia, ao lado, provisria e respeitavelmente, de
Anglique, com suposta licena de Clante (se ele a negasse, eu o
excluiria da histria). Anglique: aqui a retrato, em minhas fantasias,
como certa vez aventei a mais amvel das serranas belas, aquela que um
dia, encontrada por sorte no mundo real, se mostrou ainda mais amvel
e surpreendente. MOLIRE a designou Anglique; eu, se pudesse,
preferiria chamla ingenuamente princesa ou rainha e, se calhasse, em
latim, Regia Virgo ou, simplesmente, Regina. Mas, deixada parte afantasiosa descrio esttica, pelas suaves mos da personagem da
pequena Louison que me vejo invadindo a sala onde se acham Argan,
Bline e nosso Bonnefoy. Cativame essa Louison, porque a imagino qual
uma realssima e pequena azmola, rindose inocentemente das
parvoces de Fleurant e da custosa credulidade de Argan: pareceme v
la trs vezes bater levemente na fronte (stupid, stupid, stupid), dizendo
em seguida e graciosamente: dirty, kidirty, kidirdirdirty, nerd, ki
nerd, kinernernerd
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Misteriosamente, eles no se do conta de minha incmoda
presena: descobri que para isso conspiram favoravelmente as
circunstncias, pois eu me meti na cena IX do primeiro ato, como constada traduo espanhola, ao passo que na realidade francesa tudo se passa
na cena VII daquele ato. Suspeito que essa discrepncia seja apenas uma
etapa a mais de um compreensvel enfado hispnico, que muito bem
exprimiu a confisso de um honrado espanhol: yo ser espaol, mientras
tengamos un sol distinto del sol de Francia Por algo, em todo caso,
como descobri num dos artigos reunidos por PAUL JOHNSON em seuTo Hell
with Picasso,resolveu ele mais no beber champagne francs: que lhe
trouxessem o vinho espanhol ou italiano.
Achome, pois, sentado confortavelmente ao lado de Monsieur de
Bonnefoy. Verifico, sem surpresa alguma, que ele no leva nenhum selo
na fronte. Argan havia feito antes muitas contas: verdade que Fleurant,
seu espertssimo boticrio, manipulava corretamente as prescries
poderia Argan lembrarse, ao acaso, da eficcia da medicao a que se
referia o item vinte e seis da largussima conta: um clister carminativo,
pour chasser les vents, digo: para expulsar las flatuosidades , mas,
cobrando Fleurant to custosamente como o fazia, on ne poudra plustre malade, digo: no podr nadie ponerse enfermo. Toinette parece ter
razo: com tantas fantasias de enfermidade, Argan, o pobre achacadio,
se convertera, para seu mdico Purgon e para Fleurant, numa bonssima
vache lait. Se fossem s problemas de contas e de remdios sem fim,
v l, mas alm disso Argan enfrentava as insistentes artimanhas de sua
segunda mulher, Bline (ou Belisa), que ansiava por encaminhar suas
bellesfilles Anglique e Louison vida religiosa, para com isso
empossarse do dinheiro de Argan. Contra esse objetivo da madrasta,
Anglique se v destinada pelo pai a casarse com Thomas Diafoirus,futuro mdico e filho de outro mdico que cunhado de Monsieur
Purgon, mdico tambm: Argan deseja um genro mdico e, para mais,
parente de mdicos. Vaise alm, pois Anglique, apaixonada por
Clante, no parece ter mnima vocao para o convento, se que ora
ainda se autorizam critrios de outros tempos, porque MOLIRE no se
aventurou a inquirir acerca de alguma participao efetiva de Anglique
em movimentos polticos, participao que, hoje, para alguns, se tomaria
como um reluzente indcio de sua inteira e acabada adequao vida
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religiosa. Tambm h o dinheiro de Purgon, que, solteiro, suspeitase
que vai deixlo para o sobrinho (Toinette, a propsito, no resiste:
quanta gente Purgon haver matado para ter enriquecido tanto!). Bline
encontrase com Argan, que anela compensarlhe a solicitude amorosae se declara disposto a faire son testament. No falemos disso, eu vos
peo, respondelhe de imediato a mulher, acrescentando prontamente:
o s vocbulo testamento fazme estremecer de angstia. Argan
retruca: Eu vos tinha dito que avisasse nosso notrio, e Bline, aquela
que no podia sequer sem miservel sobressalto ouvir a palavra
testamento, diz logo que chamara j o notrio: Eilo a dentro, eu o
trouxe comigo.
nesse exato momento que intervenho na economia da comdia,guiado, como disse, pelas mos da doce Louison, e na qualidade de
simples observador. Argan sada Monsieur de Bonnefoy, referindose
lhe honorabilidade, a ele noticiada por Bline. Insiste em que se
elabore um testamento. O notrio ento o adverte de que nada poderia
deixar ele mulher em testamento, porque assim o impediam os
costumes. Argan lastimase e declara que deseja consultar seu advogado
para ver como solucionar a questo. Bonnefoy retoma a palavra:
No preciso recorrer a advogados, que de ordinrio so severos nessescasos e imaginam que um grande crime dispor em fraude lei. Vemdificuldades em tudo e ignoram as sutilezas da conscincia. Deveisconsultar a outras pessoas mais acomodatcias, que tm expedientes paraladear habilmente a lei, convertendo em justo o proibido; pessoas quesabem aplainar as dificuldades de um assunto e acham meios para iludiros costumes por algum procedimento. Se no se pudesse fazer assim,onde iramos parar? preciso facilitar as coisas; de outro modo nofaramos nada e eu no daria uma s moeda por meu ofcio.
Proclama ento Argan que Monsieur de Bonnefoy um homem
muito hbil e muito honesto: fort habile, et fort honnte homme. Pobre
Argan, um completo malade da imaginao
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eria eu muito gosto em permanecer na companhia de Argan,
Bline e Bonnefoy, ao menos para poder reencontrarme comAnglique e Louison, se no me tivesse comprometido a
escrever umas breves notas como reza o ttulo desse artigo , notas
que, disto me vou dando conta, se esto alargando mais do que o
conveniente. Em todo caso, no quero ultimar estas pequenas reflexes
sem considerar um pouco o fato de que as sobreditas palavras de
Monsieur de Bonnefoy soam aos meus ouvidos como uma exatssima
confirmao do meu velho dicionrio. Um jurista acomodatcio que tem
expedientes para marginar habilmente a lei, transformando em justo o
proibido: eis o notrio, selon Bonnefoy. E assim como Fleurant nopassa da figura de um apothicaire espertalho, Bonnefoy no passa ele
prprio do modelo de um notaire perverso e corrompido. Quer dizer: o
notrio, conformado ao figurino de Bonnefoy, quem por ofcio legaliza
o torto, quem d aparncia de legalidade ao que se faz fora do direito,
algum que perverte, por ofcio, e corrompe o direito
Se fosse assim, para o cu iria o autor do meu dicionrio e, para o
inferno, Petrarco e o pai de Felipe Nri.
No. O senso comum adverte que no pode ser assim: no se trata
s de eu ter lido e admirado o tanto que escreveu VALLET sobre a funo
notarial e ouvido e admirado o quanto falou AUGUSTO FIRMO defendendo a
instituio. No. Eu tenho mais a fundada esperana de que o notrio
latino seja o melhor, o mais srio dos prudentes elaboradores negociais
da res justa. No pode ser ele, maneira de Bonnefoy, um profissional
do Direito que valha algumas moedas porque tenha a habilidade de
contornar a lei e bastardar o direito. No se trata a s de uma possvel ehumanamente miservel deficincia pessoal. MOLIRE, por exemplo, em
Lcole de maris, diz que Sganarelle ouve de um comissrio a
observao de que certa personagem, notrio real, era, de plus, homem
honrado. Isso acrscimo pode ser compreendido de maneira pontual
fruto da deficincia humana, herana do pecado original ou em sua
essncia: o notrio, na figurao de MOLIRE, no , em princpio, um
homem honrado. Aqui antes e essencialmente est a versarse um
modelo, um paradigma de notrio, cujo ofcio honesto e no o
T
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sordidamente proclamado por Bonnefoy vale infinitamente mais do
que uma simples moeda ou, por acaso, do que trinta delas, essa
quantidade histrica da traio e da injustia. , mais alm desse
nivelamento patrimonial, um ofcio que no se conta realmente pormoedas.
Moedas Que significam verdadeiramente elas? Outro dia, passava
na esquina da Florida com a Crdoba e ao meu encontro veio uma pobre
velha, pedindome una moneda, por favor. Deilhe a que tinha por ento
no bolso e ela, para minha surpresa, recompensoume com um pequeno
e delicioso poema: Una moneda, pap/ Una moneda, pap/ Pa que la
qu, pa que la qu/ Paga, paga, caf, caf/ Pero, pap, esa moneda/
Que al pobre d/ Con ella, a Dios paga, a Dios paga isso a: a moedapode ser de fato um instrumento do egoismo o meu paga, paga,
caf, caf ou ser um meio de a Dios paga, uma certa paga de
justia e de piedade.
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ensei outro dia em fazer com que a Cludia Colau e as duas
Fiorotto a Daniela e a Marcela , minhas estimadas amigase discpulas, no passassem pelas amargas dvidas juvenis que
passei sobre o conceito e a realidade do notrio. Que no fossem atrs
de dicionrios velhos, nem, o que seria possivelmente frustrneo, atrs
de dicionrios novos. Que sobretudo no ficassem meditando sobre
notrios com selo na testa. Pensei logo em levlas a conhecer algum
notrio de carne e osso, um notrio duma grande cidade. Lembreime de
***, homem honrado, a quem me envaidece a considerao, um notrio
de longa data em uma grande cidade. Relateilhe a pretenso
pedaggica, e ele me desanimou de realizla na cidade grande. Vejabem, disseme ele com intocvel sinceridade, estaramos a correr um
grave risco: suas alunas, vindo a meu cartrio (acentuou o tom ao
pronunciar essa palavra), veriam logo dezenas de afanosos juristas,
aconselhando partes, examinando documentos, estudando leis e
contratos, elaborando minutas, corporificando escrituras, lendoas a
outorgantes e testemunhas, etc. Isso : perceberiam uma atuao
notarial. Mas, prosseguiu meu considerado notrio, essas alunas,
decerto, tratariam de perguntar: so eles os notrios? Que bela coisapara indagar de um amigo! No, senhoras, no so juridicamente os
notrios. O notrio da cidade grande, pibes, ao menos ele, no passa em
geral de ser um subscritor de papis e recibos autorizado, no se nega,
de todo autorizado algum que o competitivo mercado jurdico
negocial levou tarefa fatigante e quase exclusiva de ocuparse em locar
mesas e cadeiras, em locar papis e telefones, em locar uma
denominao e clips, furadeiras, borrachas, lpis e canetas, gua, caf e,
mais que tudo, um lugarzinho ao sol e, no vero, sombra , para
aquelas dezenas de pressurosos juristas que, de fato, lhe fazem as vezes.A esse notrio cabe ainda receber a moeda das locaes e parte da
moeda dos negcios instrumentados Pois, que tempo teria ele para o
respondere e o cavere que fazem a essncia de sua funo jurdica? No
h hiptese, no h minimamente pensar, ao menos nas grandes
cidades, que, diante da realidade da estrutura cartorial do notariado
brasileiro, possa o pobre do notrio, queira ou no, ocuparse em ser
notrio Os afadigados juristas que estariam as alunas a ver
P
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trabalhando, meros prepostos dos notrios, aqui para ns (confidenciou
ruborizado meu pobre amigo), acabam sendo eles notrios de fato.
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hez Argan, Monsieur Bonnefoy dizia torpemente as coisas com
todas as letras. E o ingnuo malade imaginaire imaginava poracrscimo que aquele Bonnefoy era um homem honesto
fort honnte homme. De minha parte, eu que no passo de ser um
homem comum e defectivo, no posso dar f pblica mas, por acaso,
posso ir dizendo as verdades que entendo, o que como dar moedaspa
Dios paga. Pois que as anotara nas velhas fichinhas amarelas e um
pouco nas verdes psmodernas, ento as disse neste artigo, pa Dios
paga.
(S.Parnaba, 29 de julho de 1998).
C