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editado por Paulo Sotero

Brazil Institute

PersPectivas Brasileiras soBre os estados UnidosPromover os estudos dos euA no BrAsilEditado por Paulo Sotero

Janeiro de 2007

Disponvel no Latin American Program e no Brazil Institute Woodrow Wilson International Center for Scholars One Woodrow Wilson Plaza 1300 Pennsylvania Avenue NW Washington, DC 20004-3027 www.wilsoncenter.org

ISBN 1-933549-13-0

o Woodrow Wilson international center for scholars, criado pelo Congressodos Estados Unidos em 1968 e sediado em Washington, D.C., um memorial vivo ao Presidente Wilson, que governou entre 1913 e 1921. A misso do Centro celebrar os ideais e a preocupaes de Woodrow Wilson ao promover uma conexo entre o mundo das idias e o da formulao de polticas pblicas, fomentando a pesquisa, o estudo, a discusso e a colaborao entre um amplo leque de indivduos preocupados com a formulao de polticas e a produo acadmica em questes nacionais e mundiais. Apoiado por fundos pblicos e privados, o Centro uma instituio no partidria engajada no estudo de assuntos nacionais e internacionais. O Centro estabelece e mantm foros de dilogo neutros, abertos e bem informados. Concluses e opinies expressas em publicaes e programas do Centro so dos autores e palestrantes e no refletem necessariamente as vises dos funcionrios, bolsistas, curadores e grupos consultivos do Centro ou de quaisquer indivduos ou organizaes que apiam o Centro financeiramente. O Centro edita The Wilson Quarterly e abriga o Woodrow Wilson Center Press, o programa de rrio e televiso Dialogue e o boletim mensal Centerpoint. Para mais informaes sobre as atividades e publicaes do Centro, por favor visite-nos no seguinte endereo: www.wilsoncenter.org

o Brazil institute foi criado em junho de 2006 a partir da convico de que o Brasil e suasrelaes com os Estados Unidos merecem maior ateno em Washington. A populao, o tamanho e a economia do Brasil, bem como sua posio nica de lder regional e ator global, justificam tal ateno. Parte do Programa Latino-americano do Wilson Center, o Brazil Institute tem qualidades que o diferenciam de outras instituies de Washington: uma abordagem abrangente e em profundidade das questes com que lidam os formuladores de polticas pblicas no Brasil, nos Estados Unidos e nos vrios bancos e organismos internacionais sediados em Washington; apresentaes e publicaes de alto nvel; um foro no partidrio para discusses srias; e a capacidade de abrigar estudiosos de polticas pblicas. As atividades regulares do Instituto incluem seminrios que estimulam a reflexo crtica e no partidria de questes cruciais para o desenvolvimento do Brasil, de suas relaes internacionais, de sua economia e de sua poltica. Esses seminrios apresentam os pontos de vista de estudiosos e formuladores de polticas pblicas de alto nvel, bem como de lderes empresariais e da sociedade civil sobre os vrios desafios e oportunidades com que se defrontam o Brasil e as relaes Brasil-EUA. O Brazil Institute refora o perfil do Brasil em Washington graas presena no Wilson Center de brasileiros e brasilianistas escolhidos entre acadmicos, intelectuais, escritores, jornalistas, ex-diplomatas e ex-altos funcionrios governamentais para realizar pesquisas ou refletir sobre suas experincias. O Instituto tambm organiza e abriga reunies de grupos de alto nvel compostos por pessoas especialmente convidadas formuladores de polticas pblicas, analistas, lderes do setor privado e estudiosos , elevando assim o nvel do debate e da ateno dados ao pas e a seus temas e promovendo relaes mais construtivas e bem informadas entre o Brasil e os Estados Unidos. Os resultados desses encontros e os estudos desenvolvidos em preparao a eles so amplamente disseminados em forma de artigos no website, editoriais, boletins e relatrios e distribudos aos membros da comunidade de formuladores de polticas e aos brasileiros e brasilianistas ativos na moldagem das percepes dos EUA sobre o Brasil. Eventos e programas mais significativos tambm resultam na publicao de livros pela editora Woodrow Wilson Center Press. O Brazil Institute mantm ainda o Portal para o Brasil, uma ferramenta online especializada, com notcias e anlises atualizadas, em ingls e portugus, sobre temas relevantes.

Lee H. Hamilton, President and Director Board of TrusteesJoseph B. Gildenhorn, Chair David A. Metzner, Vice Chair Public members: Joseph B. Gildenhorn, Chair; David A. Metzner, Vice Chair. Public Members: James H. Billington, Librarian of Congress; Allen Weinstein, Archivist of the United States; Bruce Cole, Chair, National Endowment for the Humanities; Michael O. Leavitt, Secretary, U.S. Department of Health and Human Services; Tamala L. Longaberger, Designated Appointee of the President from Within the Federal Government; Condoleezza Rice, Secretary, U.S. Department of State; Lawrence M. Small, Secretary, Smithsonian Institution; Margaret Spellings, Secretary, U.S. Department of Education Private Citizen Members: Carol Cartwright, Robin B. Cook, Donald E. Garcia, Bruce S. Gelb, Sander R. Gerber, Charles L. Glazer, Ignacio Sanchez

Biografias

Roberto Abdenur foi nomeado embaixador do Brasil no Estados Unidos em abril de 2004. Diplomata de carreira, ocupou vrios cargos em mais de quatro dcadas de servios prestados ao Ministrio das Relaes Exteriores. Entre os mais importantes, foi secretrio-geral do Itamaraty e embaixador na ustria, Alemanha, China e Equador. formado em Economia pela London School of Economics e em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Jacques dAdesky pesquisador do Centro de Estudos das Amricas do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes (UCAM). doutor em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo, e licenciado em Cincias Econmicas pela Universidade de Louvain (Blgica). Trabalhou como funcionrio internacional do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento na Repblica Centro-Africana. Foi assessor internacional do Centro Cultural Cndido Mendes e Vice-Diretor Administrativo do Centro de Estudos Afro-Asiticos da UCAM. membro do Conselho Consultivo de Africana: The Encyclopedia of the African and African American Experience. Publicou artigos em revistas acadmicas, livros, o ltimo dos quais, Antiracismo, Liberdade e Reconhecimento, foi lanado recentemente. Carlos da Fonseca diplomata de carreira desde 1996. Trabalhou na Diviso do Mercado Comum do Sul e na embaixada do Brasil em Washington, onde exerceu a funo de primeiro secretrio no setor poltico. Formou-se em Histria na Universit de Paris 1 Panthon Sorbonne, Paris, e na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Tem mestrado em Polticas Pblicas pela Kennedy School of Government da Universidade de Harvard. Publicaes recentes: Deus est do Nosso Lado: Religio e Poltica Externa nos EUA em Contexto Internacional (no prelo); Fora dos Radares de Washington: A Relao EUA-Amrica Latina e a Questo do Dficit de Ateno e Os Think Tanks e a poltica americana, na Revista Poltica Externa. Carlos Eduardo Lins da Silva diretor de relaes institucionais na PATRI, Inc, desde 2004. Formou-se em jornalismo na Faculdade Csper Lbero. mestre em Comunicao pela Michigan State University (como bolsista da Fundao Fulbright) e doutor e livre-docente em Comunicao pela Universidade de So Paulo. Foi diretoradjunto de redao dos jornais Folha de S. Paulo e Valor Econmico e correspondente da Folha em Washington. Lecionou nas universidades de So Paulo, Georgetown, Texas, Michigan State, Rio Grande do Norte, Catlica de Santos e Metodista de So Paulo. Foi scholar do Woodrow Wilson Center e coordenador do Grupo de Estudos de Sociedade e Mdia do Instituto Fernando Henrique Cardoso, em So Paulo.

Cristina Soreanu Pecequilo professora de Relaes Internacionais da UNESP. tambm colaboradora do RELNET/UnB, pesquisadora associada do Ncleo de Estudos de Relaes Internacionais da UFRGS e professora visitante do UNIBERO. Tem doutorado em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo. especialista em poltica externa dos Estados Unidos e autora de estudos de conjuntura sobre o sistema internacional e a poltica externa das grandes potncias, a insero mundial e a poltica externa do Brasil, a histria e a teoria das relaes internacionais. Tem diversos artigos sobre o tema disponveis em sites e revistas especializadas, Publicou os seguintes livros: Os Estados Unidos: Hegemonia e Liderana na Transio, Introduo s Relaes Internacionais, e A Poltica Externa dos Estados Unidos: Continuidade ou Mudana. Paulo Sotero diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson Center. Jornalista desde 1968, foi correspondente em Lisboa e editor-assistente da revista Veja para a Amrica Latina. Em Washington desde 1980, foi correspondente dos jornais Gazeta Mercantil e Estado de S. Paulo. Atuou como comentarista e analista da rdio BBC Brasil, Rdio Frana Internacional e Rdio Eldorado de So Paulo. , desde 2003, professor visitante no departamento de Espanhol e Portugus e no Centro de Estudos da Amrica Latina da Edmund A. Walsh School of Foreign Service da Georgetown University. Tem bacharelado em Histria pela Universidade Catlica de Pernambuco, Brasil, e mestrado em Jornalismo e Polticas Pblicas pela American University, Washington, D.C.

sumrio

Os Desafios de Promover os Estudos dos EUA no Brasil Paulo Sotero

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Projeto Americanistas: Apresentao e Reflexes Iniciais Roberto Abdenur

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Conhecer Bem os EUA Bom para o Brasil Carlos Eduardo Lins da Silva

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Os Estudos Americanistas diante das Relaes Raciais Jacques dAdesky

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De Bush a Bush (9892006): A Poltica Externa dos EUA Cristina Soreanu Pecequilo

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A Poltica Externa Americana e o Papel dos Idelogos: Comparando os Governos Ronald Reagan e George W. Bush Carlos da Fonseca

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os desafios de promover os estudos dos eua no Brasil

Paulo Sotero*

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istoricamente, os Estados Unidos tm sido desproporcionalmente mais relevantes para o Brasil do que o Brasil para os Estados Unidos. Essa assimetria de interesses, verdadeira para a maioria dos pases em relao aos EUA, poderia sugerir que os intelectuais brasileiros estudam de perto as diferentes facetas da realidade americana em seus esforos para influir no debate e influenciar a formulao de polticas pblicas em seu pas. O oposto, no entanto, parece ser verdade. Enquanto que os estudos sobre os Estados Unidos comearam a ganhar algum espao no mundo acadmico brasileiro apenas depois da redemocratizao de 1985, nos ltimos cinqenta anos uma safra crescente de estudiosos americanos continuou a estudar o maior pas da Amrica do Sul, a despeito de seu modesto impacto nos EUA. Conhecidos como brazilianistas, esses acadmicos produziram uma profuso de artigos e livros de histria, economia, cincias polticas e sociais, alguns dos quais foram traduzidos para o portugus e tornaram-se indispensveis aos estudos de temas brasileiros mesmo em universidades do Brasil. No dia 18 de setembro de 2006, o Instituto Brasil do Woodrow Wilson International Center for Scholars e a Embaixada do Brasil em Washington co-patrocinaram uma conferncia para examinar a situao dos estudos dos EUA no Brasil e fazer recomendaes sobre como reforar e aprofundar esse campo de pesquisa. O evento, que marcou o lanamento oficial do Projeto de Estudos dos Estados Unidos, teve como anfitrio o embaixador do Brasil em Washington, Roberto Abdenur. Comeou com um caf da manh de trabalho para cerca de trinta scholars, representantes de instituies relevantes e ex-embaixadores na residncia da embaixada, e concluiu com um seminrio na sede da chancelaria brasileira em Washington. Ao abrir a conferncia, o embaixador Abdenur argumentou que, sem detrimento do trabalho significativo realizado por acadmicos brasileiros sobre os Estados Unidos, os estudos desse pas no Brasil esto necessitados de um estmulo externo. Se, por um lado, existe uma saudvel curiosidade entre os dois pases, os estudos avanados sobre os EUA no Brasil so modestos, na melhor das hipteses. de importncia estratgica que o Brasil compreenda melhor os Estados Unidos: como se d o processo decisrio nos EUA e como o pas encara a Amrica Latina, percebe as relaes raciais e v os investimentos estrangeiros. A conferncia foi, nesse sentido, uma resposta relativa* Diretor do Instituto Brasil do Woodrow Wilson International Center for Scholars

Os Desafios de Promover os Estudos dos EUA no Brasil

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falta de oferta de pesquisas e anlises sobre os Estados Unidos, diante da elevada demanda que a realidade impe. Na seo de trabalho realizada antes do encontro, Philipa Strum, diretora de Estudos dos Estados Unidos no Wilson Center, props com xito uma mudana de nomenclatura, sob o argumento de que o uso de Estudos dos EUA em lugar de Estudos Americanos evita o etnocentrismo. Ela tambm enfatizou a importncia de uma abordagem multidisciplinar nos estudos avanados e pesquisas sobre os Estados Unidos no Brasil. No seminrio, Cynthia Arnson, diretora do Programa Latino-americano do Wilson Center, chamou a ateno para a relativa ambivalncia dos acadmicos brasileiros interessados em estudar os Estados Unidos e sublinhou a importncia da pesquisa como meio de promover uma melhor compreenso sobre os EUA. O conhecimento sobre os Estados Unidos cada vez mais importante para o Brasil, dada a recente insero do pas no sistema global e o fato de que o Brasil um ator internacional mais ativo e construtivo do que a maioria dos pases da mesma estatura econmica. Os participantes do seminrio incluram Eliana Cardoso, da Fundao Getlio Vargas, e Carlos Pio, da Universidade de Braslia. Cristina Pecequilo, da Universidade Estadual de So Paulo, Antonio Pedro Tota, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, e Jacques dAdesky, da Universidade Cndido Mendes, apresentaram trabalhos sobre perspectivas brasileiras a respeito dos Estados Unidos. Este relatrio bilngue um registro parcial da conferncia e inclui trabalhos de outros indivduos que contriburam para a iniciativa. Viabilizado graas ao apoio financeiro da Embaixada do Brasil, o volume comea com uma avaliao do embaixador Roberto Abdenur sobre os Estudos dos EUA no Brasil e a necessidade de buscar e investir mais capital financeiro e intelectual nesse campo de pesquisa. Os Estados Unidos so, desde h muito, e crescentemente nos dias que correm, por demais relevantes no cenrio internacional para que nos possamos dar ao luxo de ignor-los ou desconhec-los, escreve ele. As causas da relativa falta de interesse do Brasil nos estudos sobre os EUA, que ocuparam parte das discusses, so aprofundadas tambm por Carlos Eduardo Lins da Silva. Jornalista, ex-scholar do Woodrow Wilson Center e atual membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasil, Lins da Silva foi quem deu a idia original do projeto de Estudos dos EUA. Carlos Pio procurou explicar a relativa falta de interesse, entre os cientistas sociais do Brasil, pelos Estados Unidos e pases estrangeiros em geral. Ele argumentou que os acadmicos brasileiros no esto negligenciando apenas os estudos dos Estados Unidos, pois no estudam nem seus vizinhos imediatos, e muito menos o resto do mundo. Numa confirmao desta avaliao, em janeiro de 2007 o Itamaraty anunciou uma iniciativa para atrair universidades brasileiras promoo dos estudos da Amrica do Sul, para sanar a relativa falta de conhecimento especializado sobre a regio. O livro contm trs textos apresentados no seminrio. O Imperialismo Sedutor, de Antonio Pedro Tota, aparece aqui pela primeira vez em ingls, em verso abreviada. Publicado em 2000 pela Companhias das Letras (e por esta razo no includo na

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metade em portugus deste volume), o texto relata a histria da bem-sucedida campanha de mdia organizada pelo jovem milionrio republicano Nelson D. Rockefeller em nome da administrao democrata do presidente Franklin Delano Roosevelt para conquistar os coraes e mentes dos brasileiros e assegurar o apoio logstico e de tropas do Brasil s foras Aliadas contra o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial. Jacques dAdesky retraa a histria dos estudos brasileiros sobre raa desde Gilberto Freyre e conclui que os acadmicos do pas raramente buscaram inspirao ou fizeram comparaes com os Estados Unidos porque a tenso nas relaes raciais, historicamente mais alta nos EUA, criou a percepo, entre eles, de que a situao no Brasil era melhor. No momento em que o Brasil debate-se com a implementao de polticas de ao afirmativa claramente inspiradas na experincia dos EUA, DAdesky sustenta que os estudiosos brasileiros das relaes raciais precisam examinar se h lies a aprender com o vizinho ao norte, tal como o fato de que uma classe mdia negra emergiu nos Estados Unidos como resultado, em parte, da adoo de polticas de ao afirmativa. Ao tratar da poltica externa dos EUA, Cristina Soreanu Pecequilo, uma presena destacada na nova gerao de acadmicos brasileiros, argumenta que a Doutrina Bush tirou os Estados Unidos do caminho correto que haviam tomado depois da queda do Muro de Berlim para promover a paz mundial e a estabilidade e seus prprios interesses como a superpotncia remanescente. O pas perdeu credibilidade e fez o jogo de seus inimigos, contribuindo para tornar o mundo mais inseguro. Se essas aes reforaram a hegemonia dos EUA, elas o fizeram de uma forma pouco saudvel e colocaram em questo no s o prolongamento do Segundo Sculo Americano, como a vitalidade da democracia [americana], que precisa voltar a seu passado, a suas melhores tradies, para reaprender e renovar-se, escreve Pecequilo. Como exemplo adicional da produo intelectual brasileira sobre os Estados Unidos, o livro conclui com uma anlise comparativa sobre o papel dos idelogos na formulao da poltica externa nas administraes dos presidentes Ronald Reagan e George W. Bush. O autor, Carlos da Fonseca, pesquisou e escreveu o trabalho como candidato ao ttulo de mestre na Escola de Governo Kennedy da Universidade de Harvard, antes de retornar a Braslia e reassumir sua carreira no ministrio das Relaes Exteriores. Daniel Budny, assistente do programa do Instituto Brasil, contribuiu enormemente para a organizao da conferncia e a edio deste relatrio. Murilo Gabrielli, Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Washington, teve importante participao na produo e coordenao da traduo dos textos para o ingls, feita por Robert Feron, da Embaixada. Em sua misso de promover o debate informado de temas relevantes para o Brasil e as relaes Brasil-EUA, o Instituto Brasil do Woodrow Wilson Center continuar a apoiar e a atuar como facilitador no esforo de fomento dos estudos dos EUA entre acadmicos brasileiros, sob o entendimento de que o impulso intelectual e financeiro subjacente ao projeto vir das instituies acadmicas do Brasil, bem como de fundaes e outras partes interessadas.

Os Desafios de Promover os Estudos dos EUA no Brasil

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projeto americanistas: apresentao e reflexes iniciais

roberto a bdenur*

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s Estados Unidos, com sua vastido geogrfica, sua complexidade social e a singularidade de sua experincia poltica, sempre atraram a curiosidade de estudiosos de todo o mundo. Entre os primeiros a dissecar a nao recmemancipada esteve Alexis de Tocqueville, cuja medular obra Democracy in America ainda hoje referncia em centros acadmicos mundo afora. Entre latino-americanos tivemos Domingo Sarmiento, Jos Mart, e Jos Enrique Rod, do Ariel. Esse interesse tambm atingiu o Brasil, expressando-se na obra de Hiplito Jos da Costa, escrita antes da independncia, em artigos e livros de Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima e Vianna Moog, e mesmo na curiosidade de Dom Pedro II, que realizou longa viagem aos Estados Unidos, em 1876 (uma das primeiras de um Chefe de Estado estrangeiro a este pas), por ocasio do centenrio da independncia americana, e durante anos manteve alentada correspondncia com acadmicos ligados universidade de Harvard, tais como Agassiz e Longfellow1. A esse interesse brasileiro correspondeu, desde cedo, uma curiosidade americana pelo grande e inexplorado vizinho do sul. Levas sucessivas de cientistas, historiadores, socilogos e cientistas polticos escrutinaram o Brasil desde meados do sculo XIX, atrados por suas belezas (e riquezas) naturais, pelo potencial agrcola, pelo passado colonial, pela modernizante experincia republicana, pelo desenvolvimento industrial das primeiras dcadas do sculo XX, pela oscilante poltica de alianas internacionais nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, pela experincia democrtica do imediato psguerra e, pouco depois, sua interrupo durante os anos de chumbo. Centenas de livros e artigos foram publicados nos EUA sobre esses e outros tantos aspectos da realidade brasileira, da lavra de nomes como Charles Wagley, Richard Morse, Thomas Skidmore, Bradford Burns, Robert Levine, Philip Schmitter e, mais recentemente, John Dulles, Margaret Keck, Marshall Eakin, Kenneth Maxwell, Joseph Smith, Barbara Weinstein, entre outros. Centros de estudos foram criados, ctedras inauguradas em universidades, bolsas consumidas em pesquisas de campo, teses defendidas perante bancas a cada dia mais especializadas. Geraes de brazilianistas se vm sucedendo nos EUA, e dando mpeto ao estudo de nosso pas. No obstante os textos de Hiplito Jos da Costa, Oliveira Lima e outros, situao equivalente no chegou a se materializar no Brasil. Se curiosidade ou interesse pelo colosso do Norte sempre houve, mesmo porque os destinos brasileiros* Embaixador do Brasil nos Estados Unidos 2003-2007

Projeto Americanistas: Apresentao e Reflexes Iniciais

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freqentemente a ele estiveram associados, no redundaram no desenvolvimento de rea acadmica especfica, ctedra ou centro de pesquisa. No se produziu, no Brasil, uma tradio de americanismo. Entendo ser do interesse brasileiro que tal realidade mude. Os Estados Unidos so, desde h muito, e crescentemente nos dias que correm, por demais relevantes no cenrio internacional para que nos possamos dar ao luxo de ignor-los ou desconhec-los. Mais do que isso, importante para o Brasil conhecer e entender as vrias realidades norte-americanas na medida em que essas incidem sobre o nosso relacionamento bilateral um relacionamento que, nos dias de hoje, atinge densidade indita - , e tambm sobre mltiplos temas e questes da pauta regional e da agenda internacional em geral. De fato, nos ltimos anos, a parceria brasileiro-americana multiplicou-se em iniciativas que do alento novo a uma relao historicamente harmnica, embora no desprovida de atritos. mutualidade do dilogo aberto e franco e defesa tradicional de valores compartilhados de democracia e liberdade somou-se uma convergncia de interesses concretos em diferentes aras2. A intensificao desse relacionamento traz naturalmente em sua esteira a probabilidade de discordncias. Apesar de serem ambos democracias multitnicas, afinadas na defesa dos princpios de liberdade e justia, Brasil e Estados Unidos no esto imunes s divergncias. Choques so inevitveis, mas por vezes resultam at produtivos, na medida em que levam a um maior entendimento do outro e a um amadurecimento da relao. Tais divergncias podem simplesmente emanar de um desencontro de interesses. Elas podem tambm resultar de posturas diferentes em relao ao mundo. Afinal, se os Estados Unidos so hoje determinantes na introduo de temas na agenda internacional, o fato que o Brasil desempenha papel importante e s vezes at mesmo decisivo - na definio dos termos em que esses temas so tratados. Entender a natureza dessa relao bilateral, suas convergncias e divergncias, sua comunho e seus choques de interesses, depende de uma melhor compreenso no Brasil da realidade americana. Entender o papel dos Estados Unidos no mundo, sua ao construtiva - ou desestabilizadora -, depende de uma mais clara e objetiva viso da realidade americana. exatamente com o intuito de estimular essa compreenso, atravs do fomento dos estudos brasileiros sobre os Estados Unidos, que a Embaixada do Brasil em Washington lana hoje o projeto Americanistas.

um IntereSSe IntereSSado preciso que fique claro desde j que o que se prope aqui o desenvolvimento do americanismo e no do americanofilismo ou, naturalmente, da americanofobia. No se trata de estudar os Estados Unidos movidos meramente pelo fascnio, mas sim de faz-lo guiados por um sentido de interesse que, se inclui a admirao, tambm no descarta a crtica. Mais do que isso, trata-se de faz-lo com a conscin-

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cia de que se est atendendo a um imperativo de sentido estratgico para o Brasil. Estudar os Estados Unidos indispensvel, pois permite compreender mecanismos e motivaes de um ator fundamental no cenrio internacional de hoje. Um cujas aes atingem-nos a todos, queiramos ou no. Essa conscincia de self-interest prevaleceu em momentos importantes do desenvolvimento do brasilianismo, quando pesquisadores americanos estudaram nosso pas motivados por legtimos interesses acadmicos, mas ao mesmo tempo estimulados por um governo que considerava estratgica a compreenso das diferentes regies e pases da Amrica Latina. No por acaso, o brasilianismo prosperou em momentos como os anos 1940, no contexto da Good Neighbor Policy, quando interessava aos Estados Unidos atrair a boa vontade dos pases da regio contra o nazi-fascismo, bem como garantir o aprovisionamento de produtos primrios estratgicos em tempos de guerra, como a borracha, no caso brasileiro. Datam desse perodo o envio ao Brasil de misses acadmicas voltadas para o levantamento do potencial econmico nacional (Misso Cooke, por exemplo), bem como convites a intelectuais brasileiros para visitarem universidades americanas e ali proferirem palestras sobre o pas (rico Verssimo, que dessa experincia extrair a obra Gato Preto em Campo de Neve, e Gilberto Freyre, que ter traduzida para o ingls Casa Grande e Senzala e editar, na forma de livro, uma srie de palestras sobre o Brasil Brazil: An Interpretation). Dcadas mais tarde, a guerra fria foi outro importante estmulo estratgico impulso dos estudos latino-americanos nos Estados Unidos. Em alguns crculos latino-americanistas, chega-se, em tom de ironia, a sugerir fosse erigida esttua a Fidel Castro, cuja revoluo em Cuba levou o governo americano a abrir seus cofres para o financiamento de programas acadmicos voltados para a regio. Entre latino-americanos, o interesse pelo vizinho do norte desenvolveu-se em contexto diferente. A partir da segunda metade do sculo XIX, na obra de pensadores como o argentino Domingo Faustino Sarmiento (Facundo e Argirpolis), o cubano Jos Mart (Nuestra America e Escenas Americanas), o uruguaio Jos Enrique Rod (Ariel) e o brasileiro Manoel de Oliveira Lima (Nos Estados Unidos), a curiosidade pelos Estados Unidos surgiu do debate entre americanfilos e americanfobos, entre os que viam naquele pas modelo de civilizao a ser reproduzido no resto do continente, como forma de combater a barbrie local, e os que defendiam solues prprias, mestias e latinizadas. O debate fazia sentido ento, no momento em que os pases latino-americanos, emancipados do controle da metrpole europia e, no caso brasileiro, refundado no republicanismo, buscavam modelo novo de ordenamento poltico e social. Em tal contexto, diferentes correntes modernizadoras, representadas em alguns dos escritos aqui referidos, defendiam a impossibilidade de fundarem-se comunidades nacionais independentes em bases que remetessem ao passado das ex-colnias. Seria preciso, para atingirem-se os nveis de desenvolvimento, estabilidade e prosperidade das naes mais avanadas, adotar seus prprios modelos e esquemas de organizao

Projeto Americanistas: Apresentao e Reflexes Iniciais

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scio-poltico-econmica 3. Inspiradas no arielismo de Rod e no modelo autctone de Mart, outros grupos, ao contrrio, ocupavam-se em revalorizar a histria e a cultura ibricas, criticando a opo de certas elites por uma Amrica deslatinizada por vontade prpria () regenerada imagem e semelhana do arqutipo do Norte4. Tal debate naturalmente ocioso nos dias de hoje. O modelo brasileiro j h muito definiu-se e amadureceu, em que pese aos bices que diariamente se apresentam sua realizao. No , portanto, nesse contexto que se sugere uma retomada do esforo de compreenso dos Estados Unidos iniciado por Hiplito da Costa e Oliveira Lima. Trata-se, como j disse, de compreender os Estados Unidos pela importncia cada dia maior que assumem no cenrio internacional. Trata-se de entend-los em razo de nossa rica e densa agenda bilateral, dos interesses que compartilhamos e daqueles que temos, ns brasileiros, investidos em sua economia e seu comrcio. Tratase, finalmente, de estud-los pelo que podem contribuir para a compreenso de nosso prprio pas, cuja trajetria histrica foi, e em muitos sentidos ainda , parecida.

algumaS obServaeS Sobre oS eStudoS doS eStadoS unIdoS no braSIl falta de dados mais consistentes sobre o americanismo no Brasil, os quais, a meu conhecimento, nunca foram devidamente compilados e analisados ( diferena do fenmeno do brasilianismo, objeto de livros e teses), ofereo, a ttulo de introduo ao debate que se prope avivar com esta iniciativa, comentrios sucintos e sugestes iniciais sobre o tema. Uma histria do americanismo no Brasil, se comparada do brasilianismo nos Estados Unidos, destacar-se-ia pela conciso. Poucos foram, nas ltimas dcadas, os esforos de autores brasileiros de explicar os Estados Unidos. Uma pesquisa sumria em arquivos bibliogrficos brasileiros e americanos (Biblioteca Nacional e Library of Congress) revelam escassos ttulos publicados nas primeiras dcadas do sculo XX. Alm de Nos Estados Unidos, de Oliveira Lima, editado na virada do sculo, temos relatos de Monteiro Lobato (Amrica, 1929), rico Verssimo (Gato Preto em Campo de Neve, 1941 e A Volta do Gato Preto, 1946), Hildebrando Accioly (O Reconhecimento do Brasil pelos Estados Unidos da Amrica, 1945), Tristo de Athayde Alceu Amoroso Lima (Pela Amrica do Norte, 1955), Clodomir Vianna Moog (Bandeirantes e Pioneiros: Paralelos entre duas Culturas, 1955), Nelson Werneck Sodr (Quem Matou Kennedy, 1964) e Gerson Moura (Tio Sam Chega ao Brasil, 1984), entre outros. Em anos mais recentes, aumentou o volume de livros centrados em temas norteamericanos. Levantamento feito junto Biblioteca Nacional revela, por exemplo, a existncia de pouco mais de 60 ttulos de autoria brasileira publicados entre 1994 e 2006 (Anexo 2). Esse incremento foi naturalmente animado por um equivalente aumento no nmero de teses de doutorado dedicadas aos Estados Unidos (algumas dessas teses tendo sido transformadas posteriormente em livros). Cerca de 50 teses, em diferentes reas de ensino, foram, segundo a CAPES, produzidas entre 1996 e 2004 (Anexo 3).

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Esse incremento da produo acadmica e literria americanista est, sem dvida, relacionado ao despertar da academia brasileira para a importncia do estudo das relaes internacionais, fenmeno que se registra especialmente a partir de meados da dcada de 1970. De fato, segundo os levantamentos disponveis5, at aquele perodo, o estudo de temas internacionais recebeu muito pouca ateno, especialmente quando comparado a outras reas. A parca produo acadmica da rea, ademais, centravase, por razes compreensveis para a poca, em temas relacionados Amrica do Sul, com nfase especial para a Bacia do Prata. A mudana de tratamento do tema, com a diversificao das reas de estudo e, sobretudo, sua sistematizao, deu-se somente no final da primeira metade da dcada de 1970. As primeiras disciplinas (optativas) intituladas Relaes Internacionais, por exemplo, passaram a ser oferecidas em 1973 na USP e na PUC/SP. Em 1974, a UnB dava passo alm, oferecendo curso de graduao em R.I. De l para c a situao mudou sobremaneira. Multiplicaram-se os cursos de relaes internacionais, poltica externa e comrcio exterior, em nvel de graduao e ps-graduao, impulsionados por fatos como a globalizao, a nova projeo externa do Brasil e o Mercosul. O Itamaraty, de sua parte, tem procurado estimular e apoiar a ampliao do estudo e da pesquisa na rea de relaes internacionais, mediante ativo dilogo com a comunidade acadmica. Aumentou tambm grandemente o nmero de bolsas ps-graduao concedidas a estudantes brasileiros que optaram por concluir cursos de especializao, mestrado ou doutorado no exterior, muitos deles em reas afetas ao relacionamento externo do Brasil (cincia poltica/ relaes internacionais, histria, economia, etc.). Dados da CAPES (anexo 4) comprovam que a maioria absoluta desses estudantes preferem os centros acadmicos norte-americanos. No obstante essa evoluo, constata-se que a ateno dada aos Estados Unidos continua relativamente pequena entre acadmicos brasileiros. Poucas so ainda as disciplinas dedicadas a temas norte-americanos. Menos ainda os programas de ensino ou centros de pesquisa especializados. As razes para tal escassez podero ser muitas. As respostas a tal situao tambm. A ttulo de contribuio para o debate, alinho a seguir algumas perguntas e respostas iniciais. Possveis Obstculos ao Desenvolvimento de Estudos sobre os Estados Unidos no Brasil: Falta de centros especializados, de cursos e disciplinas; Dificuldade em publicar teses sobre o assunto; Dificuldade em realizar pesquisa de campo por falta de bolsas; Dificuldade em realizar pesquisa de campo por problemas de concesso de visto (especialmente aps o 11 de setembro); Desinteresse ou vis contrrio de setores da academia; Desinteresse ou vis contrrio da populao (leitores);

Projeto Americanistas: Apresentao e Reflexes Iniciais

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Inexistncia ou inoperncia de associaes de estudos americanos (a exemplo, nos EUA, da Latin American Studies Association ou da Brazilian Studies Association); Inexistncia de conferncias especficas que renam especialistas no tema; Dificuldade para intercmbio de estudantes, bolsas-sanduche, etc.; Sugestes Iniciais para Remediar o Problema: Criao de centros de estudos/ pesquisa (think tanks), etc; Criao de programas de estudos e disciplinas em instituies de ensino superior; Estabelecimento de uma associao de pesquisadores americanistas, vinculada a entidades como a Associao Brasileira de Relaes Internacionais (ABRI), a Associao Brasileira de Cincia Poltica (ABCP) ou a Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Cincias Sociais (Ampocs); Realizao peridica de conferncias no Brasil sobre temas afetos aos Estados Unidos; Criao de prmio para teses/ artigos/ papers sobre temas afetos aos Estados Unidos; Gesto junto a entidades norte-americanas com vistas concesso de bolsas de estudos ou pesquisa para brasileiros interessados em temas afetos aos Estados Unidos; Participao de fundaes norte-americanas em projetos que visem a fomentar o estudo sobre os Estados Unidos no Brasil (Tinker Foundation, Ford Foundation, Fullbright Foundation, etc.); Desenvolvimento de projetos de estudos comparados, com envolvimento de entidades de pesquisa brasileiras e americanas.

notaS1. Dom Pedro II visitou a exposio universal de Filadlfia, cidades como Nova York e Boston, atraes tursticas como Niagara Falls, alm de Harvard, onde se encontrou com o naturalista Louis Agassiz e o poeta Henry Wadsworth Longfellow, ento professor de lnguas na universidade. A respeito, ver Roderick J. Barman, Citizen Emperor Pedro II and the Making of Brazil, 1825-1891, Stanford University Press, 1999; e Lilia Moritz Schwarz, As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um Monarca nos Trpicos, So Paulo, Companhia das Letras, 1999. 2. Dos encontros entre os Presidentes Lula e Bush, em junho de 2003 (Washington) e novembro de 2005 (Braslia), resultou o estabelecimento de mecanismos de cooperao nas reas de cincia e tecnologia, educao, sade, meio ambiente e promoo do comrcio e de investimentos, que se somaram aos j existentes nos campos de agricultura, energia e crescimento econmico. 3. A respeito, ver Oliveira, Lcia Lippi: Dilogos intermitentes: relaes entre Brasil e Amrica Latina, in Sociologias, 2005, no. 14, pp. 110-129. 4. Rod, J.E. Ariel. Campinas, UNICAMP 1991, p. 70. 5. A respeito, ver Cheibub, Z. B. 1981 Bibliografia brasileira de relaes internacionais e poltica externa, Rio de Janeiro, IUPERJ, Mimeo; Cheibub, Z. B. e Lima, M. R. S. de. 1983 Relaes Internacionais e Poltica Externa Brasileira: Debate Intelectual e Produo Acadmica, Rio de Janeiro, IUPERJ, Mimeo; Lima, M.R.S. de e Moura, G. 1981 BrasilArgentina: uma Bibliografia Comentada Revista Brasileira de Poltica Internaciona, Rio de Janeiro, XXIV, p. 163-184; Miyamoto, S. 1999 O Estudo das Relaes Internacionais no Brasil: O Estado da Arte, Revista de Sociologia e Poltica, N 012, Junho 1999, pp. 83-98.

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Roberto Abdenur

conhecer Bem os eua Bom para o Brasil

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oste-se ou no, o fato que todas as naes do mundo no comeo do sculo 21, especialmente as do hemisfrio ocidental, tm sua economia, processo de deciso geopoltica e mesmo seu comportamento scio-cultural marcadamente influenciado pelo que ocorre nos Estados Unidos.O fim da Guerra Fria e o incio da Guerra contra o Terror desencadearam uma situao inusitada no cenrio internacional: uma s grande potncia global, indiscutivelmente superior a todos os outros pases em todas as esferas: militar, financeira, produtiva, tecnolgica, criativa. evidente, como se tem comprovado no complicado processo da interveno no Iraque, que este poder est longe de ser ilimitado e livre de fortes contestaes. Washington no capaz de impor sua vontade, mesmo que o queira. Mas nenhum pas pode deixar de lev-la em considerao no seu prprio processo de formulao de polticas pblicas domsticas e externas. Conhecer a sociedade americana, sua lgica coletiva, motivaes comuns, mecanismos decisrios, estrutura administrativa, valores compartilhados, contradies internas, mecanismos econmicos, caractersticas culturais ou deveria ser prioritrio para qualquer nao empenhada em programar-se internamente para o futuro, concorde ou no com as polticas postas em prtica pelos responsveis momentneos pelo governo dos EUA. Sem esse conhecimento aprofundado, enorme a chance de um pas errar nos prognsticos sobre como podem comportar-se os EUA em uma situao determinada em que seu prprio interesse estratgico esteja envolvido. E, com isso, aumentam as possibilidades de tal pas tomar decises que, ao fim, lhe sero prejudiciais. Nesse raciocnio, evidentemente, deve ser includo o Brasil, que divide o mesmo hemisfrio em que se localizam os EUA. A geografia, a histria, a cultura aproximam as duas naes desde sempre e desse destino nenhuma das duas pode escapar. No preciso enfatizar como os EUA so importantes para o Brasil, econmica, poltica, cientfica e culturalmente. Em todos esses aspectos, os americanos tm sido sem nenhuma dvida o principal parceiro do Brasil desde que em 1824 os EUA entraram para a nossa histria como o primeiro pas a reconhecer a independncia brasileira. No entanto, impressionante como o Brasil conhece pouco e mal os EUA, ainda que isso parea um paradoxo quando se constata como enorme a presena americana no cotidiano dos brasileiros, mesmo os mais simples. At nos crculos mais requintados de acadmicos, empresrios, jornalistas, impressiona como se ignoram os* Diretor da Patri Relaes Governamentais & Polticas Pblicas.

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meandros da vida americana e como sobressaem lugares-comuns e falsas concepes quando se fala sobre ela. Um exemplo banal dessa ignorncia foi a surpresa da elite brasileira diante da eleio e reeleio de George W. Bush. Para quase todos os brasileiros que se interessam pelo tema eleitoral americano, eram absolutamente claras a superioridade sob todos os pontos de vista de Al Gore e (ainda que de maneira menos enftica) John Kerry e a vantagem de sua vitria sobre Bush para os interesses da prpria sociedade americana. Era-lhes simplesmente inconcebvel que o resultado no fosse a derrota de Bush. No entanto, mesmo um brasileiro intelectualmente humilde mas politicamente perceptivo, que estivesse vivendo por alguns anos nos EUA e acompanhasse ainda que no em detalhes as eleies, seria capaz de reconhecer a alta probabilidade de Bush ganhar os dois pleitos e at explicar as razes por que isso poderia se dar. Por que? Porque a intelligentzia brasileira no tem sido capaz de produzir conhecimento adequado para dar conta das complexidades da vida americana. As causas podem ser diversas: falta de condies materiais, desinteresse, preconceito, ausncia de canais apropriados, acomodamento s idias consagradas, receio de desafiar o status-quo, foco em outros temas e regies do mundo. verdade que muitos intelectuais brasileiros de porte produziram estudos ou realizaram anlises sofisticadas sobre os EUA. Neste mesmo volume, o embaixador Roberto Abdenur menciona diversos deles. Exemplos similares de esforos mais contemporneos feitos por estudiosos brasileiros para compreender os EUA podem ser oferecidos. Na Universidade de So Paulo, o Grupo de Anlise de Conjuntura Internacional Gacint rene-se quinzenalmente e tem dois de seus integrantes encarregados de examinar e relatar aos demais as implicaes dos acontecimentos polticos e econmicos que se desenrolam nos EUA. No Rio, o Centro Brasileiro de Relaes Internacionais CEBRI constituiu em 2002 e em 2006 foras-tarefas para realizar estudos de flego sobre o estado das relaes bilaterais Brasil-EUA, com resultados de grande envergadura. O Instituto de Estudos Econmicos e Internacionais IEEI , tambm de So Paulo, outra entidade que tem direcionado parte de seus recursos intelectuais para o exame mais acurado de aspectos especficos da realidade americana e prepara-se para, a partir deste ano, dedicar-se ainda mais a isso. Na Cmara Americana de Comrcio em So Paulo, o comit de negociaes internacionais deve comear a divulgar em 2007 um termmetro das relaes Brasil-EUA a partir de uma base de dados produzida ao longo de 12 meses com bom suporte acadmico.Entretanto, apesar desses projetos meritrios e de peso, indiscutvel que no h no Brasil empreendimentos suficientes para produzir sistematicamente conhecimento de qualidade sobre o que so, como funcionam e para onde caminham os EUA, em volume compatvel com a importncia do pas. L, ao contrrio, embora o Brasil tenha influncia comparativa muito menor para os EUA do que vice-versa, os estudos brasilianistas so muito mais profcuos e alentados,

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como se denota da prpria existncia da vigorosa Brasa (Brazilian Studies Association) e dos inmeros centros ou institutos dedicados apenas aos temas brasileiros em diversas entidades acadmicas de prestgio como o Woodrow Wilson International Center for Scholars, Harvard, Stanford, Columbia, Georgetown, Pittsburgh, Johns Hopkins, Texas, para citar apenas algumas. Evidentemente, essa disparidade se explica pelos mais bvios motivos: a riqueza material da atividade universitria nos EUA e a penria de sua correspondente no Brasil, a robustez acumulada por sculos de centros de estudos (think tanks) l e a fragilidade dessa tradio ainda quase incipiente aqui, a diversidade e relativa abundncia de fontes de doaes financeiras para o desenvolvimento de pesquisas de que dispem os intelectuais americanos e a escassez de recursos com que se defrontam os brasileiros. Esses problemas so de difcil resoluo, j que dependem basicamente de o Brasil conseguir alcanar ndices de crescimento de sua economia capazes de faz-la atingir escala minimamente volumosa para dar conta de atividades suprfluas (se comparadas s necessidades bsicas de infra-estrutura, sade, educao que o pas ainda no supriu), como o trabalho acadmico para conhecer bem outras sociedades. Mas a realidade, ainda que em ritmo muito mais lento do que o indispensvel, vai se alterando e aponta para uma direo em que o estudo detalhado da realidade americana (e de outras naes) se tornar impositivo. Aumentam rapidamente, por exemplo, os investimentos brasileiros no exterior e os EUA tm sido no surpreendentemente, dado o dinamismo do seu mercado consumidor um dos destinos mais relevantes para esses investimentos. O pragmatismo intrnseco lgica capitalista com certeza tornar os empresrios brasileiros mais suscetveis ao apelo dos pesquisadores por verbas para a realizao de trabalhos que permitam saber melhor como opera a sociedade americana quando os seus interesses estiverem empenhados em volume considervel l. Nem s obstculos materiais se interpem, no entanto, realizao desses estudos americanistas to e cada vez mais necessrios ao Brasil. H uma carga de preconceito acumulado contra os EUA e contra o financiamento de pesquisa por empresas em setores muito abrangentes da intelectualidade brasileira, que trava o desenvolvimento desse tipo de estudo. Talvez seja mais difcil superar essas barreiras do que as de ordem financeira. No entanto, tambm neste caso h perspectivas de mudanas no horizonte. Nos ltimos 15 a 20 anos, proliferaram os cursos de relaes internacionais pelo pas afora. A maioria absoluta, seguramente, de qualidade acadmica muito baixa e motivao empreendedora pouco cvica. Ainda assim, provvel que desse universo caudaloso de escolas, professores e estudantes saia um contingente pequeno mas expressivo de indivduos desprovidos de intolerncia em relao aos EUA e capacitados para iniciar estudos relevantes. De modo similar, at nas universidades pblicas e privadas de excelncia, onde o rano antiamericano e antiempresarial costuma ser mais intenso, mesmo nos tempos atuais em que se discute a morte da ideologia, possvel sentir que a resistncia pro-

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gramtica tanto ao estudo dos EUA quanto possibilidade de esse estudo ser financiado por capital particular tende a ceder, ainda que devagar e minoritariamente. Nas instituies universitrias outros estorvos no materiais a serem superados so: a burocracia, o corporativismo, o paroquialismo departamental, o apadrinhamento e demais vcios do gnero que talvez tenham sido mais perniciosos produo intelectual do pas do que muitos empecilhos econmicos e polticos aos quais costumeiramente se atribuem as desgraas da atividade acadmica brasileira. Essas barreiras, com certeza, sero as que exigiro mais persistncia, determinao e empenho, entre todas, para serem vencidas. Para ampliar significativamente a produo brasileira de estudos de qualidade sobre a sociedade, a economia, a poltica e a cultura americanas, diversas iniciativas concomitantes, independentes e intercomplementares devem ser tomadas. Uma delas, j real, a que deu origem a este livro, a partir de uma reunio de acadmicos brasileiros interessados nos EUA promovida pela Embaixada do Brasil em Washington em setembro de 2006 e que poder resultar em alguma espcie de entidade que teria um suporte nos EUA possivelmente ancorado pelo Woodrow Wilson Internacional Center for Scholars e outro, no Brasil, ancorado em alguma universidade. Mas importante que se dissemine pelo pas a idia de que conhecer bem os EUA bom para o Brasil. Mais do que bom, necessrio, quase imprescindvel. Entender um pas no significa apoi-lo. Mesmo para combater um pas preciso saber o que ele , o que significa, como funciona.Est claro agora que a principal causa do fracasso da interveno militar americana no Iraque foi a profunda ignorncia que seus arquitetos tinham do pas objeto de sua invaso. Por no terem estudado o Iraque, os EUA se atolaram nele e enfrentam hoje uma guerra para a qual no h desfechos favorveis vista. A realidade impe ao Brasil a tarefa de conhecer bem os EUA. Realizar tal tarefa fundamental para a manuteno de uma relao poltica estvel, produtiva e mutuamente vantajosa entre os dois pases, para a superao rpida e equilibrada de inevitveis divergncias em questes comerciais, para a ampliao recproca de investimentos e do acesso a mercados, mas acima de tudo para o Brasil poder se posicionar geopoliticamente da maneira mais propcia promoo de seus interesses nacionais no cenrio mundial. Seguramente sero as necessidades dos negcios privados que construiro os instrumentos capazes de permitir a realizao dessa tarefa, desembaraando as amarras antes citadas que tm, ao longo das dcadas, impedido a sua concretizao. Foi assim que o Mercosul se constituiu de fato: embora a vontade poltica tenha sido essencial no primeiro momento para lanar a idia, foi a vitalidade dos investimentos, do comrcio, dos negcios entre os setores privados do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai que deram vio ao Mercosul nos seus melhores anos. E foram as conseqncias negativas de crises econmicas sucessivas sobre esses mesmos negcios que fragilizaram posteriormente o projeto de integrao do Cone Sul.

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Enquanto a dinmica dos negcios no se fizer plenamente presente nas relaes econmicas entre Brasil e EUA mesmo para que ela ocorra em breve , ser necessria uma espcie de pregao por parte de atores mltiplos que j se convenceram da importncia dessa tese nos veculos de comunicao de massa, nos governos, nas empresas, nas universidades, nas organizaes no governamentais, nos sindicatos, nas entidades de classe, nos institutos de pesquisa, nos centros de estudos, nas instituies diplomticas.

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os estudos americanistas diante das relaes raciaisJaCqueS da deSky*

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s EUA so uma referncia para se compreender a realidade do mundo atual. Certamente, isso no significa que os Estados Unidos sejam o espelho de nosso futuro. Tampouco, no mostram hoje o que seremos necessariamente amanh. O resto do mundo, e o Brasil, em particular, tm as suas particularidades e sua prpria histria. Mas, se a sociedade americana fascina tanto, porque representou a primeira democracia moderna, combinando, sob o regime constitucional, a representao popular com a limitao dos poderes dos governantes e o respeito aos direitos individuais. Ao tornar-se uma sociedade compsita e multirracial, antecipou-se, num determinado territrio, o que poderiam ser o encontro enriquecedor de culturas, mas tambm os conflitos tnicos e tenses resultantes de choques de civilizaes do mundo globalizado do sculo 21. Estudar a histria da sociedade americana e comparar a sua poltica, o seu desenvolvimento econmico, as suas manifestaes culturais, literrias, bem como as suas relaes tnico-raciais com as de outras sociedades um meio de a discernir melhor, assim como de prever ou antecipar as suas eventuais transformaes. Servir-se do espelho da anlise comparativa tambm uma boa maneira de conhecer a si mesmo. Mas, diante do potencial comparativo das relaes raciais americanas com as brasileiras, foroso constatar que o reflexo do espelho apresentado at a dcada de sessenta no foi usado de modo muito apropriado. A realidade das relaes raciais americanas era, em geral, desconsiderada, por ser vista como uma imagem oposta brasileira. Os estudos americanistas referentes ao tema racial nunca foram assunto predominante nas universidades brasileiras. No decorrer do sculo vinte, observa-se o interesse de alguns pesquisadores que tentaram, mediante estudos comparativos entre os Estados Unidos e o Brasil, compreender a realidade racial brasileira. Gilberto Freyre, quando em sua passagem pelo Sul dos Estados Unidos se indagava por que l os negros eram vtimas de linchamento, fato que no ocorria no Brasil, na realidade tentava compreender mais o seu pas do que os Estados Unidos. No buscava no outro pas o seu prprio reflexo, mas a constatao de que era diferente culturalmente, que existiam diferenas, denotando uma alteridade. Certamente, a famosa tipologia formulada por Oracy Nogueira de que o preconceito racial americano de origem (ascendncia), enquanto o brasileiro de marca (aparncia), continua ajudando a esclarecer a realidade brasileira de hoje1. Enquanto o sistema americano tende, segundo Oracy Nogueira, para a classificao nica e direta, no admitindo gradaesou* Pesquisador do Centro de Estudos das Amricas do IH/UCM.

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voc branco, ndio ou negrono Brasil o ponto-chave precisamente a possibilidade de mudar de classificao com base na cor da pele, no tipo de cabelos, de lbios, etc., mas tambm com base nos critrios do dinheiro ou do poder que permitem classificar socialmente um preto como mulato, e este ltimo como branco! 2 Fortalecendo a tese de que o standard norte-americano oposto e simtrico ao modelo brasileiro, Roberto DaMatta aponta no seu livro Relativizando: uma Introduo Antropologia Social a inexistncia (nos EUA) de um tringulo de raas como no Brasil. Segundo ele, esse mito permite ao homem comum, aos intelectuais, aos polticos conceber uma sociedade altamente dividida por hierarquizaes como uma totalidade integrada por laos humanos, dados como sexo e os atributos raciais complementares. essa fbula que possibilita visualizar a sociedade brasileira como algo singular. Enquanto o credo racista norte-americano situa as raas como sendo realidades individuais, isoladas e que correm de modo paralelo, jamais devendo se encontrar, no Brasil elas esto frente a frente, de modo complementar, como os pontos de um tringulo onde o branco est sempre em cima, enquanto o negro e o ndio formam as duas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo e sistematicamente abrangidos pelo branco. L, para manter o princpio de que todos so iguais perante a lei, o racismo determinou que os negros livres fossem considerados humanos, mas diferentes, o que possibilitou o uso da frmula: separados, mas iguais. Em contraste, no Brasil a tradio cultural de matriz ibrica, ao ensejar a proximidade e convivncia, resultou num sistema profundamente antiigualitrio, baseado na lgica de um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar3. Outra forma de debater a situao racial norte-americana foi levantada por numerosos historiadores brasileiros que estudaram o trfico negreiro transatlntico, comparando a escravido norte-americana com a brasileira, em busca de diferenciaes que pudessem ajudar a compreender melhor o modo de formao poltica, econmica e cultural do pas. Grande parte deles apontou que a escravido no Brasil teria sido mais benigna em razo da premncia da religio catlica e da propenso do colonizador portugus em misturar-se com a populao indgena e escravizada. Tais caractersticas explicariam o elevado grau de miscigenao no Brasil, que no se encontraria nos Estados Unidos, considerados puritanos e avessos ao intercurso entre pessoas de origem racial diferente4. Ao observarmos nesses ltimos cinqenta anos a produo acadmica brasileira em referncia temtica racial norte-americana, podemos afirmar que foi episdica, no tendo criado nas universidades brasileiras uma rea especfica de estudo, nem impulsionado o advento de americanistas especializados nessa temtica. Tampouco, conseguiu alcanar o mesmo patamar de atividades dos brasilianistas que se empenharam em desvendar as especificidades das relaes raciais no Brasil, tais como Donald Pierson, Carl Degler e Thomas Skidmore, cujos trabalhos se tornaram referncias. Alm do mais, possvel constatar, a partir da dcada de noventa, o surgimento de uma nova leva de brasilianistas, que vm se dedicando ao tema das relaes raciais brasileiras.

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Em relao anterior, a nova gerao de brasilianistas tm defendido nos campos da sociologia e da antropologia abordagens inovadoras sobre as desigualdades raciais. Ela tm tambm apresentado trabalhos que descreve o movimento negro - um grupo social antes despercebido, desconsiderado ou minimizado nas suas aes - como um ator relevante da luta contra o racismo. interessante observar que essa nova gerao de brasilianistas manifesta preocupaes abrangentes, englobando desigualdades que atingem negros e povos indgenas5. Poderamos, sem dvida, nos questionar: por que no existe uma tradio de estudos americanistas no Brasil que focalize a questo racial norte-americana? Ou por que essa abordagem foi sempre espordica na agenda dos intelectuais e universitrios brasileiros? Conforme indicado no incio deste trabalho, esses estudos foram geralmente empreendidos em termos comparativos. Ao querer compreender a realidade racial norte-americana, os estudos iniciais tendiam antes de tudo a desvelar as relaes raciais brasileiras. Como sublinhamos acima, esse exerccio dialtico tem sido realizado por historiadores, socilogos e antroplogos e tem tido o mrito de apontar as eventuais semelhanas existentes, mas, sobretudo, a de evidenciar as diferenas. Nesse sentido, ao se buscar uma resposta, no tanto na realidade de l, mas em contraposio com a situao daqui, a abordagem comparativa pode ter gerado uma idia equivocada, ou seja, que a situao brasileira seria mais satisfatria. Em suma, ao debruar-se sobre o modelo americano de relaes raciais, se este no podia servir de inspirao, ao menos podia servir para demonstrar que o Brasil teria resolvido a integrao racial, na medida em que os negros no eram vtimas do tipo de violncias explcitas praticado nos Estados Unidos. Portanto, esse exerccio, no mximo, servia de consolo, ao mostrar que, quanto a essa questo, a situao era bem melhor em casa. Ao aceitarmos essa argumentao, poderemos considerar que os estudos americanistas sobre a questo racial foram motivados pelo interesse de marcar diferenciaes e especificidades da situao racial brasileira, vista a priori como sendo melhor. Na medida em que se formou no meio da intelectualidade brasileira, nos anos 50, um consenso de que existiria no Brasil uma democracia racial, perdeu-se o estmulo para compreender profundamente as relaes raciais norte-americanas, consideradas cada vez mais como a anttese do modelo brasileiro. Nessa poca, at mesmo os dois lderes principais do Teatro Experimental do Negro, Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos, usavam nos seus escritos a expresso democracia racial, vista como saudvel padro brasileiro, ainda que denunciassem ao mesmo tempo a existncia de preconceito de cor e a sobrevivncia de alguns restos de discriminao no Brasil6. Mais tarde, nas dcadas de sessenta e setenta, Abdias adotar uma postura radical de denncia do racismo brasileiro, chegando a repudiar totalmente a expresso. O standard binrio e exclusivo que caracterizava at recentemente a sociedade norte-americana era o oposto da identidade brasileira, pois fragmentava o iderio da mestiagem, ao reconhecer a pertinncia das diferenas raciais. No houve no Brasil impedimento legal ou social que obrigasse uma pessoa de origem africana a declarar-

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se preto ou pardo. Nos Estados Unidos, pessoas de pele clara com ascendncia africana eram consideradas negras. um padro rgido que surgiu durante a escravido. Foi tambm um fator importante na elaborao de uma tradio estatstica, fundamentalmente binria, que distinguia os descendentes de europeus dos outros habitantes. Evidentemente, os Estados Unidos, assim como outras sociedades que receberam escravos da frica, tiveram casamentos inter-raciais e chegaram at mesmo a conhecer, em alguns casos, casamentos legalmente reconhecidos. Mas, ao longo do sculo vinte, a sociedade americana conseguiu reduzir gradualmente o espao social que existia em certas regies do Sul, nomeadamente as que tiveram forte influncia francesa ou espanhola, impedindo que as crianas nascidas de unio mista fossem reconhecidas como pertencendo a uma categoria distinta7. A caracterstica do sistema estatstico norte-americano era a impossibilidade, at abril de 2000, de conceber categorizaes multirraciais, ou seja, a possibilidade de se identificar como de origem mista. Se, por um lado, nos censos de 1850 at 1880, os indivduos negros podiam ser diferenciados em dois grupos (black e mulatto) e, no censo de 1890, em quatro grupos (black, mulatto, quadroon e octoroon), todos ficavam restritos dentro dos limites da populao negra e os mais claros no ocupavam de modo algum uma posio intermediria entre as duas raas (white e black). A partir do censo de 1930, e at 1960, passou a constar apenas como opo para os negros - a categoria black -, sendo que as outras (mulatto, quadroon e octoroon) desaparecem diante da estrita obrigatoriedade do one drop rule, regra vinda dos estados escravocratas mais rgidos, segundo o qual bastava uma gota de sangue negro para definir legalmente um indivduo como negro8. O standard binrio no possibilitava, at 2000, atravessar a linha da cor, a no ser para aqueles que usavam o subterfgio do passing (passar por brancos) ou reivindicavam pertencer a outras categorias, como latino ou havaiano. Atualmente, o censo dos EUA oferece a opo de escolher uma ou mais categorias para indicar sua identidade racial. A modificao que proporciona repostas mltiplas no quesito racial reflete, segundo Jos Luis Petrucelli, a preocupao pblica dos norte-americanos com diversidade racial e tnica derivada do incremento dos casamentos inter-raciais e da crescente imigrao em anos recentes9. Face ao padro norte-americano, o modelo brasileiro se contrape como uma sociedade mais fluida e inclusiva, em termos de reconhecimento de categorias de cor e raa. O modelo brasileiro tem raiz na fuso e na assimilao, pois, inversamente situao norte-americana, pessoa de ascendncia africana com pele clara no Brasil pode legitimamente reconhecer-se e afirmar-se branco. Da mesma forma, rabes ou judeus que em pases europeus podem sofrer discriminaes por motivos religiosos ou por serem vistos como imigrantes, so equiparados aos brancos no Brasil, ainda que preservem valores culturais especficos. Pela fluidez dessas classificaes e pela reduzida taxa de tenses tnico-raciais, o Brasil tornou-se referncia aos olhos do mundo, logo aps da Segunda Mundial. Era visto, na poca, como um pas singular e bem-sucedido no campo das relaes raciais.

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Suscitou a ateno da Unesco, que chegou a patrocinar em 1951 e 1952 uma srie de estudos visando a verificao desta realidade, com a perspectiva de tornar universal o que se acreditava ser singular. Conhecemos os desapontamentos causados pelas concluses dos relatrios da Unesco, que no deixaram de reconhecer as profundas desigualdades sociais entre brancos e negros, bem como a existncia do preconceito de cor. O resultado frustrante do chamado Projeto Unesco no serviu de libi para atrair as atenes de socilogos ou antroplogos brasileiros sobre a realidade racial norteamericana. O modelo das relaes raciais norte-americanas parecia de pouco interesse, ao ser comparado com o modelo brasileiro, julgado como de maior propriedade e qualidade moral. No podia servir de inspirao a integrao racial no Brasil onde dos negros no sofriam de violncias como nos Estados Unidos. A interpretao dominante era de que as desigualdades raciais no Brasil eram apenas reminiscncia do passado colonial e deveriam desaparecer mediante o desenvolvimento econmico-industrial do pas. Essa viso otimista foi reforada durante o perodo do regime militar. Falar da existncia de racismo e de discriminao racial no Brasil era visto, de acordo com Carlos Hasenbalg, como um ato antipatritico, como algo inconcebvel e assunto importado. Mesmo assim, algumas vozes contrrias assinalaram que a discriminao racial tinha uma especificidade relacionada ao contexto da sociedade contempornea e no se explicava, portanto, somente pelo passado colonial. Esta viso de harmonia e de cordialidade no campo das relaes raciais permanecer intocada at o final dos anos 70, quando o consenso em relao ao iderio da democracia racial veio a ser questionado cada vez mais pelo Movimento Negro que emergiu nas grandes cidades brasileiras, denunciando o racismo e a discriminao racial de que so vtimas os membros da comunidade afro-brasileira. Na dcada de oitenta, com a consolidao do regime democrtico no Brasil, o Movimento Negro, nessa poca caracterizado pela informalidade de seus ativistas e intelectuais, transformou-se numa rede de organizaes e associaes que se espalharam por todo o pas. Tambm na dcada de oitenta, mas sobretudo a partir dos 90, as denncias viro acompanhadas de dados estatsticos comprovando a desigualdade que atinge desproporcionalmente os negros, em comparao com os brancos, em termos de renda, de expectativa de vida ou de acesso universidade. Ao reivindicar o estabelecimento de polticas de promoo da igualdade de oportunidades para a populao afro-descendente, o Movimento Negro tem questionado implicitamente a idia da mestiagem como o antdoto mgico para o racismo e a discriminao racial. Tem, ao mesmo tempo, mostrado que a existncia da mestiagem no isenta, por si s, a sociedade brasileira do racismo, do preconceito e da discriminao racial. interessante relembrar, a esse respeito, que o socilogo Nelson Mello e Souza j previa, em 1969, a ecloso de luta racial no Brasil do ano 2000, ao comparar a situao dos negros na sociedade norte-americana com a dos negros no Brasil. Afirmava ele que os anos 80 e, principalmente, os anos 90, encontrariam os negros em posio de reivindicar trnsito livre por reas at ento fechadas. Ainda que a luta racial no Brasil

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no deva ter o colorido selvagem do racismo norte-americano, (Mello e Souza antecipou que) estar ligada prpria possibilidade de ascenso social do negro, contida na evoluo da riqueza, da industrializao e da urbanizao no Brasil 200010. Podemos convir que Nelson Mello e Souza acertou parcialmente no seu exerccio de futurologia. Expandiu-se uma pequena classe mdia negra que alimentou o Movimento Negro de lderes e ativistas. Estes no cessaram de reivindicar plena cidadania para os afro-brasileiros, bem como igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e no acesso universidade. Suas reivindicaes incluam o reconhecimento de uma imagem adequada do negro na mdia, assim como melhor representao poltica do negro no Congresso Nacional, entre outras. No que diz respeito luta racial, esta no eclodiu, ainda que certos intelectuais ligados ao Movimento Negro vejam os distrbios e atos de vandalismo realizados pelo trfico de drogas nas grandes cidades do Brasil como o preldio de um possvel conflito racial aberto, ao levar em conta que os chefes do crime organizado so na sua grande maioria negros originrios das favelas e periferias urbanas onde se concentra a populao afro-descendente. Nas dcadas de oitenta e noventa, uma ateno maior passou a ser dada, no mbito do Movimento Negro, situao dos negros norte-americanos. A imagem de que eles estariam num patamar scio-econmico bem melhor, de longe, ao dos afrobrasileiros, comeou a tomar forma. A despeito da existncia de um racismo mais aberto, a percepo que se tem a de que a sociedade norte-americana estaria oferecendo maiores oportunidades de ascenso social, ao observar-se a existncia de uma burguesia e de uma expressiva classe mdia afro-americana. Essas constataes levaram lideranas do Movimento Negro a exigir a implementao de polticas pblicas em prol da populao negra nos nveis federal, estadual e municipal. Isso comeou a ocorrer nos anos 80 com a criao da Fundao Cultural Palmares pelo presidente Jos Sarney, assim como de conselhos de defesa e/ou promoo da comunidade afrobrasileira em vrios municpios e Estados da federao. Foram possivelmente essas exigncias que conduziram o presidente Fernando Henrique Cardoso a tomar, em 2001, as primeiras medidas de ao afirmativa no Brasil, iniciativa que no tem precedentes em qualquer governo brasileiro no Sculo XX. Tendo estudado na dcada de cinqenta as relaes raciais no Brasil, foi provavelmente mais fcil para Cardoso reconhecer, logo no incio de seu governo, em 1995, a existncia do racismo no pas. A sua perspiccia e a sua viso do futuro o levaram a admitir que o Brasil no poderia ser um pas justo sem resolver a sua dvida em relao populao afro-brasileira. Em julho de 1996, na abertura do Seminrio Internacional Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ao Afirmativa nos Estados Democrticos Contemporneos, ele desafiou os intelectuais presentes a apresentar solues adequadas ao pas, visando assegurar maior integrao dos negros. No mesmo seminrio internacional, o vice-presidente Marco Maciel sugeriu que o exame da experincia americana, a partir de alguns de seus marcos mais significativos, sirva de inspirao, a fim de que possamos transitar do campo sempre frtil das

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promessas para o terreno mais promissor das realizaes, das conquistas, pois j no h mais como postergar. Todos temos de convir que a excluso social, embora dramtica sob o ponto de vista da desigualdade de oportunidades que se cristaliza como o marco diferencial de nossa civilizao, gerou conseqncias que contribuem para agravar a discriminao racial. uma espiral perversa que no ser vencida se nos ativermos s conseqncias sem remover as causas11. Marco Maciel estava convicto de que medidas compensatrias em favor dos negros no representavam apenas uma etapa da luta contra a discriminao, mas o fim da era da desigualdade e da excluso, se pretendermos uma sociedade igualitria e mais justa. Tambm afirmava que, comparativamente experincia americana, o Brasil tem a vantagem de no precisar superar os mecanismos da segregao e da separao, cuja eliminao tanto esforo custou sociedade americana. Apesar das expectativas criadas por Fernando Henrique Cardoso e seu vice, Marco Maciel, o seminrio internacional no resultou em nenhum plano de aes polticas concretas, nem proporcionou uma reflexo profunda sobre a adequao ou no de polticas de ao afirmativa no Brasil. No se chegou a um consenso sobre uma possvel poltica de discriminao positiva que garantisse ao negro um tratamento mais eqitativo no presente, e que, ao mesmo tempo, servisse como compensao discriminao sofrida no passado por seus ancestrais. Certamente, o seminrio internacional serviu para proporcionar a tomada de conscincia definitiva, no nvel do poder executivo, sobre a necessidade de instaurar medidas pblicas em prol da populao afro-brasileira. Isso veio a ser implementado, como sublinhamos acima, em 2001, quase de maneira concomitante com a realizao da Conferncia Mundial da ONU sobre o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada em Durban (frica do Sul). Ainda que no haja uma relao evidente de causa e efeito com o seminrio internacional, observa-se, entretanto, a multiplicao, a partir de 1997, de estudos, trabalhos e publicaes sobre a temtica da ao afirmativa, tendo como base comparativa de anlise a experincia norte-americana. Entre os trabalhos publicados, podemos mencionar o livro Ao Afirmativa e Princpio Constitucional da Igualdade, de Joaquim Barbosa Gomes, que se tornou uma fonte de referncia na rea jurdica brasileira, por descrever e analisar de maneira abrangente todo o processo de jurisdicionalizao da luta pela igualdade na sociedade norte-americana12. Pelo carter comparativo sobre o tema da ao afirmativa e as formas como a lei foi utilizada nos Estados Unidos e no Brasil, o livro Na Lei e na Raa, de Carlos Alberto Medeiros, mostra como nas ltimas quatro dcadas a realidade racial norte-americana alterou-se significativamente e tornou-se mais nuanada13. Vale tambm assinalar, a publicao do relatrio Para alm do racismo, que resultou de um empreendimento coletivo realizado no ano 2000, visando comparar as relaes raciais no Brasil, frica do Sul e Estados Unidos. um trabalho que contou com a coordenao de Lynn Huntley, da Southern Education Foundation, e a colaborao de pesquisadores e estu-

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diosos brasileiros como Paulo Srgio Pinheiro, Edna Roland e Ana Maria Brasileiro, entre outros. Num captulo de seu livro mais recente, Jos Augusto Lindgren Alves aborda tambm a situao racial norte-americana, destacando que o tempo da segregao legal j est distante, sendo que a sociedade atual tem proporcionado aos afro-americanos maiores oportunidades de acesso s universidades, participao na economia e nos processos decisrios. Comenta Lindgren Alves que essa nova situao levou alguns estudiosos americanos a proporem a idia de que o padro racial norteamericano estaria se brasilianizando, situao que pode ser compreendida como uma demonstrao de que a segregao racial ostensiva foi substituda pela clivagem de classe social14. Estes textos, que podem ser classificados como estudos americanistas dedicados s relaes raciais, revelam toda a importncia de um campo potencial de pesquisa que poderia dedicar-se compreenso da realidade norte-americana do fim do sculo 20, bem como dos desafios existentes no sculo 21. Mostram, tambm, que o padro racial norte-americano mudou drasticamente. Entre 1945 e 1980, o racismo aberto e a discriminao legal diminuram de maneira espetacular. O sistema econmico americano entrou plenamente na fase da modernidade, na qual o critrio de raa perde a sua importncia, possibilitando que os negros qualificados e instrudos venham a ter oportunidades sem precedentes, com a expanso do emprego na funo pblica e nas grandes empresas. Ainda que esses dados numricos no estejam em paridade com os da classe mdia branca, constata-se que o tero mais rico entre os negros tornouse muito mais prspero, o que nunca tinha acontecido na histria americana. Mas, simultaneamente, o tero mais pobre entre os negros empobreceu, tornando-se mais pobres do que os pobres brancos. Some-se a isso o fato de que uma proporo crescente de pessoas negras de sexo masculino est desempregada, presa ou totalmente fora da populao ativa. Devido a esta mudana, o standard racial americano no pode mais ser considerado a anttese brasileira e, desta forma, continuar a ser ignorado pelos intelectuais brasileiros, como aconteceu anteriormente nos estudos comparativos entre os dois paises. Ademais, esses estudos americanistas fazem falta precisamente no momento em que se debate a implementao de polticas de ao afirmativa no Brasil15. Observe-se que essa nova realidade norte-americana tem sido ocultada pelos opositores da ao afirmativa, os quais distorcem os debates ao usarem uma imagem ultrapassada das relaes raciais norte-americanas, recorrendo muitas vezes suposta possibilidade de que tal poltica em prol dos negros viesse a acirrar o dio racial no Brasil. Ao mesmo tempo, difcil para eles admitir que ao lado da abolio das famosas leis Jim Crow, por decises da Suprema Corte, a adoo da ao afirmativa nos Estados Unidos contribuiu decisivamente para o surgimento e consolidao de uma classe mdia negra forte e de uma burguesia que influem significativamente na conduo do pas. Por outro lado, esses estudos desvelam implicitamente que o modelo racial brasileiro no conseguiu elevar a populao afro-descendente ao mesmo patamar relativo que

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os negros americanos, em termos econmicos e na vida poltica do pas. A despeito da industrializao, vista como um fator integrador na sociedade brasileira, os estudos comparativos evidenciam tambm que as chamadas polticas universalistas no proporcionaram a realizao no Brasil de uma verdadeira igualdade para todos. Ao espelhar a situao racial brasileira no contexto racial atual norte-americano, tornase evidente que no mais possvel afirmar que o padro brasileiro de cordialidade racial, de fluidez, visto como virtude maior da brasilidade, seja suficiente para assegurar aos negros uma participao igualitria na economia e no processo decisrio da vida poltica. Quanto brasilianizao das relaes raciais norte-americanas, pouco provvel que venha a concretizar-se integralmente. Mesmo que a discriminao racial se torne nos Estados Unidos mais sutil e velada, foroso constatar que o standard americano, ao tornar-se menos rgido, no implica necessariamente numa convergncia linear com o padro brasileiro. As diferenas de contexto scioeconmico, de cultura e de histria so imensas. Cada pas , a seu modo, profundamente diferente em relao questo racial. Ainda que o peso relativo da populao afro-americana seja bem menor diante em comparao populao afro-brasileira, a primeira goza de maior influncia econmica, poltica e na mdia. No Brasil, formada principalmente por empresrios de pequeno porte, sem influncia decisiva no meio empresarial, a burguesia negra quase inexistente,16. No mbito da poltica, constata-se uma situao parecida no Congresso Nacional, onde o nmero de deputados e senadores negros mnimo. No quarto poder, comparado s extensas atividades da mdia afro-americana, constata-se a inexistncia no Brasil de negros possuidores de mdia expressiva ( jornal, revista, rdio, TV). A exceo a recm criada TV da Gente, do cantor-empresrio Netinho, que no alcana todo o territrio nacional. Ao compartilhar um modelo democrtico, baseado no respeito ao valor da dignidade humana, o Brasil e os Estados Unidos podem ser levados a inspirar-se mutuamente nas formas de combate discriminao racial e de promoo do ideal da igualdade para todos. Sob o prisma da consolidao da democracia no Brasil, concordamos com a afirmao de Marco Maciel, segundo a qual erradicar as formas ostensivas e disfaradas do racismo, que permeiam a sociedade brasileira h sculos, sob a complacncia geral e a indiferena de quase todos, responsabilidade de todos17. Talvez, o debate atual acerca das polticas de ao afirmativa que promovem o acesso eqitativo universidade para a populao afrodescendente e povos indgenas seja um passo positivo ao lado das polticas universalistas para garantir a igualdade de oportunidades que , em tese, assegurada pela Constituio brasileira. O carter bidimensional da discriminao social e racial da qual os negros so vtimas exige conceber polticas pblicas especficas e diferenciadas que levem em conta as disparidades oriundas do passado, bem como as desigualdades produzidas no presente e que alimentam e reproduzem as desigualdades.

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notaS1. Nogueira, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relaes raciais. T. A Queiroz, So Paulo, 1985. 2. Talvez possamos reconhecer na tipologia de Oracy Nogueira a fonte de argumentao daqueles que proclamam, diante das recm-criadas polticas brasileiras de ao afirmativa, que no possvel determinar quem negro no Brasil! Entretanto, necessrio observar que , para o negro, o status de ser classificado como branco no sempre permanente no tempo e no espao. Em caso de conflito ou de desavena, no mbito social e at mesmo familiar, muitas vezes o mulato aceito como branco desqualificado com o diminutivo de mulatinho, enquanto o negro considerado socialmente como branco volta a ser visto pejorativamente como negro mediante insultos ou ofensas que o retratam como preto ignorante, negro sujo, negro safado, etc. 3. Roberto DaMatta. Uma Introduo Antropologia Social. Vozes, Petrpolis, pp.58-85, 1984. 4. Diante da idia de que a escravido brasileira teria sido uma mansido, vrios autores brasileiros contemporneos, entre os quais Jacob Gorender, Flvio Gomes, Luiz Felipe de Alencastro e Maria Sylvia Carvalho, tm contestado essa viso, considerada por eles muito romntica. 5. Entre estes, podemos citar: Edward Telles, Michael Hanchard e Jonathan Warren. 6. Ver, por exemplo, a coluna Democracia Racial que constava no jornal Quilombo cujo diretor-responsvel era Abdias do Nascimento (Ano I, n 1, 9/12/1948; n 2, 9/5/1948), bem como o texto de Alberto Guerreiro Ramos Poltica de relaes de raa no Brasil (13 de maio de 1955), Introduo crtica sociologia brasileira. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1995. 7. Ver Paul Schor, Le mtissage invisible. Lhritage de lesclavage dans les catgories du recencesement amricain, in Patrick Weil e Stphane Dufoix (Dir.). Lesclavage, la colonisation, et aprs... PUF, Paris, 2005. 8. Paul Schor. Ibidem, pp. 308-309. 9. Jos Luis Petrucelli Raa, etnicidade e origem nos censos de EUA, Frana, Canad e Gr-Bretanha, Estudos Afro-Asiticos. Ano 24, n 3, CEAA/UCAM/Pallas Editora, 2002, pp. 533-562. 10. Freitas, Jos Itamar de. Brasil ano 2000. O futuro sem fantasia. Biblioteca do Exrcito, Editora Monterrey Ltda, pp. 87, 92 e 93, Rio de Janeiro, 1969. 11. Souza, Jos (org.), et alii. Multiculturalismo e racismo: o papel da ao afirmativa nos Estados democrticos contemporneos. Ministrio da Justia/PNUD, pp. 19-21, Braslia, 1997. 12. Gomes, Joaquim Barbosa. Ao afirmativa e princpio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformao social. A experincia dos Estados Unidos. Renovar, Rio de Janeiro, 2001. Na poca, o autor era professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Ministrio Pblico Federal. Desde 2004, ministro no Tribunal Supremo Federal. 13. Medeiros, Carlos Alberto. Na lei e na raa. Legislao e relaes raciais, Brasil-Estados Unidos. DP&A Editora Ltda, Rio de Janeiro, 2004. 14. Ver Jos Augusto Lindgren Alves. Os direitos humanos na ps-modernidade. Editora Perspectiva, So Paulo, 2005, pp. 65-88. 15. A Rede de Estudos de Ao Afirmativa (REAA), com sede atual no IUPERJ, trabalha precisamente com base no mtodo comparativo ao escolher como referncias para o Brasil as experincias de ao afirmativa nos Estados Unidos, na ndia e na frica do Sul. 16. Sobre este assunto, ler o relatrio de anlise Pesquisa de empresas afro-brasileiras no Estado do Rio de Janeiro, 2004/2005, Crculo Olympio Marques (COLYMAR). 17. Marco Maciel, Ibidem, p. 19.

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r efernCIaS bIblIogrfICaSAlves, Jos Augusto Lindgren. 2005. Os Direitos Humanos na ps-modernidade. (So Paulo: Editora Perspectiva). Degler, Carl. 1976. Nem preto nem branco. Escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos (Editorial Labor do Brasil). Fry, Peter. 2005. A persistncia da raa. Ensaios antropolgicos sobre Brasil e frica do Sul. (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira). Gomes, Joaquim Barbosa. 2001. Ao afirmativa e principio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformao social. A experincia dos Estados Unidos. (Rio de Janeiro: Renovar). Gorender, Jacob. 2000. Brasil em preto e branco (So Paulo: Editora Senac). Guimares, Antonio Srgio Alfredo. 1999. Racismo e anti-racismo no Brasil. (So Paulo: Editora 34). Hanchard, Michael George. 2001. Orfeu e o poder. Movimento Negro no Rio e So Paulo (1945-1988) (Rio de Janeiro: Editora UERJ). Matta, Roberto da. Relativizando: uma introduo antropologia social. Vozes, Petrpolis, 1984; Medeiros, Carlos Alberto. 2004. Na lei e na raa. Legislao e relaes raciais. Brasil-Estados Unidos. (Rio de Janeiro: DP&A Editora). Nogueira, Oracy. 1985. Tanto preto quanto branco: estudos de relaes raciais (So Paulo: T. A Queiroz). Petrucelli, Jos Luis. 2002. Raa, etnicidade e origem nos censos de EUA, Frana, Canad e GrBretanha, Estudos Afro-Asiticos. Year 24, No. 3 (CEAA/UCAM/Pallas Editora). Schor, Paul. 2005. Le mtissage invisible. Lhritage de lesclavage dans les catgories du recensement amricain, in Patrick Weil, Stphane Dufoix, ed, Lesclavage, la colonisation, et aprs... (Paris: PUF). Souza, Jos (Org.). 1997. Multiculturalismo e racismo: o papel da ao afirmativa nos Estados democrticos contemporneos. (Braslia: Ministrio da Justia / PNUD). Ramos, Alberto Guerreiro. 1995. Introduo crtica sociologia brasileira (Rio de Janeiro: Editora UFRJ). Relatrio. 2001. Para alm do racismo. Abraando um futuro interdependente. Brasil, frica do Sul, Estados Unidos (Atlanta: The Southern Education Foundation, Atlanta). Relatrio de anlise. 2004-2005. Pesquisa de empresas afro-brasileiras no Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Colymar).

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de Bush a Bush (19892006): a poltica externa dos eua

CrIStIna Soreanu PeCequIlo*

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m 1945, a ascenso dos EUA como a potncia hegemnica do sistema internacional marcou o nascimento do Sculo Americano e de um novo estilo de liderana. Sustentada nos princpios do Internacionalismo Multilateral, esta liderana visava a promoo de uma ordem poltica, econmica e social liberal, inspirada na Repblica Americana e nos ideais de cooperao e multilateralismo do wilsonianismo1. Caracterizado por uma mescla de poderes tradicionais e renovados, o comando norte-americano destes fluxos externos era ainda acompanhado pela conteno de um rival sistmico, o comunismo sovitico que funcionava como contraponto a este modelo ocidental. Com o fim da Guerra Fria, muitos foram aqueles que anunciaram no s o prolongamento deste Sculo Americano, mas a sua extenso at uma nova era das relaes internacionais. Na realidade, logo que o Muro de Berlim caiu em 1989, anunciou-se o nascimento de um Segundo Sculo de Liderana, avanando a Pax Americana a partir do desaparecimento do inimigo comunista. Todavia, mais do que certezas, uma era de transio prolongada iniciava-se tanto dentro quanto fora dos EUA. Quase duas dcadas depois do encerramento da bipolaridade e passados cinco anos do 11 de Setembro, observa-se uma acelerao cada vez maior dos processos histricos e das oscilaes internas e externas da Amrica.

I. buSh

e o

StatuS quo PluS (1989/1992)

Definido por analistas norte-americanos como um homem da Guerra Fria, George H. Bush chegou presidncia dos EUA em um momento no qual o conflito j aparentava sinais claros de desgaste. Ambos, EUA e URSS, apresentavam problemas econmicos relacionados aos esforos de uma guerra prolongada, e pela reintensificao do conflito promovida por Reagan nos anos 1980. Associada fraqueza poltica e econmica sovitica, esta reintensificao, baseada no aumento de gastos militares2, apoio a grupos insurgentes anti-comunistas ( freedom fighters) e projetos de mudana de regime, trouxe presses adicionais sobre a URSS de Gorbachev, fragilizando-a ainda mais. Ao mesmo tempo, porm, este aumento de gastos somado ao neoliberalismo da Reaganomics baseada no corte de impostos, tambm trouxe prejuzos aos EUA, levando mudana na relao com a URSS e uma fase de reaproximao.* Professora de Relaes Internacionais UNESP.

De Bush a Bush (19892006): A Poltica Externa dos EUA

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Quando o primeiro Bush subiu ao poder em janeiro de 1989, a expectativa corrente era de que um novo condomnio de poder entre as superpotncias seria estabelecido, lembrando a aliana da Segunda Guerra Mundial. Apesar de rivais, Bush e Gorbachev sinalizavam a importncia de uma frente conjunta na administrao do sistema internacional, dando continuidade transformao da relao bilateral e da ao das superpotncias no mundo. Contudo, esta agenda ressentia-se cada vez mais da fraqueza sovitica na Europa Oriental, que gradualmente passara a distanciar-se da rbita da URSS, principalmente aps a retirada das tropas do Pacto de Varsvia da regio, e a realizao de eleies em diversos pases, culminando com a destruio do Muro. Tanto soviticos quanto americanos assistiram a esses acontecimentos, que, como ressaltado no incio do texto, foram vistos como prova da fora da hegemonia. Contudo, a maioria destes processos possua uma lgica prpria, no sendo produto de uma ao direta norte-americana. Adicionalmente, a partir deste momento a transio e as dificuldades iniciaram-se para todos, perdedores e vencedores. Mesmo sendo a nica superpotncia remanescente, os EUA tambm sofriam problemas sociais e econmicos que resultavam de mais de quatro dcadas de guerra. Embora a flexibilidade e maior complexidade do sistema norte-americano garantissem uma integridade maior ao pas, no levando ao seu desmoronamento como fora o caso da URSS, o momento era de crise relativa. Igualmente, o fim de qualquer conflito em larga escala produz um processo normal de reconfigurao de poder e o repensar de estratgias internas e externas. Afinal, se a conteno guiara os rumos do pas desde 1947, uma vez alcanados seus objetivos, quais seriam as novas prioridades? E, mais ainda, a crise relativa representaria o declnio da hegemonia? Ou apenas mais uma renovao? Comeando pela anlise do debate relativo s razes do poder americano, questionava-se a longevidade, possibilidade e vontade de os EUA manterem-se como a potncia hegemnica. Para os declinistas, os custos financeiros e polticos da Guerra Fria, associados a uma superextenso de compromissos externos, levara ao desgaste dos recursos, corroendo as bases do poder. Desta forma, seria necessrio uma retirada do sistema e um maior investimento na poltica domstica, abdicando da hegemonia e aceitando a formao de um mundo multipolar. Os renovacionistas reconheciam esses desgastes, discordando de seus efeitos. Reajustes internos e externos seriam necessrios, mas a hegemonia permaneceria sem contestao, bastando reformular-se. Por sua vez, as discusses entre os defensores do Isolacionismo e do Internacionalismo referiam-se ao tipo de papel que os EUA deveriam desempenhar no mundo com o desaparecimento do rival comunista. Dentro do Isolacionismo duas correntes podiam ser percebidas: uma radical, que pregava o pleno desengajamento do sistema e uma volta para casa, e outra, neoconservadora, defendia uma reforma no carter do Internacionalismo Multilateral. Para os defensores deste Internacionalismo Multilateral, corrente moderada da qual Bush fazia parte, a hegemonia deveria reordenar suas prioridades, mas sem abandonar seu carter liberal.

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Cristina Soreanu Pecequilo

Apesar de parecer uma contradio em termos, os isolacionistas de perfil neoconservador eram ainda internacionalistas, medida que no pregavam o fim da participao norte-americana no sistema, mas a reavaliao de posturas, visando no s consolidar, mas expandir a hegemonia no ps-Guerra Fria 3. Tal postura foi inicialmente expressa em um documento original do Pentgono, o Defense Planning Guidance (DPG) de 1992, que estabelecia a necessidade de reviso do engajamento externo com base na nova realidade de poder que emergira com o desaparecimento da antiga URSS: a do momento unipolar4. De aco