bouyer01

  • Upload
    leandra

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo Foucault

Citation preview

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    64

    OmtododagenealogiaempregadoporFoucaultnoestudodopodersaberpsiquitrico

    ThegenealogicalmethodusedbyFoucaultinthestudyofpsychiatricpowerknowledge

    GilbertCardosoBouyerUniversidadeFederaldeOuroPreto

    Brasil

    ResumoPesquisadores interessados no mtodo genealgico so convidados a buscar pelasdescontinuidadeserupturasnahistria.Logo,esteartigoenfocaomtodogenealgico,usado por Michel Foucault, na anlise do poder psiquitrico no sculo XIX.H algunsmtodosdeFoucaultavaliadosnesteartigo:(a)Anlisedasprticaspsiquitricase(b)Anlise das formaes discursivas respectivamente os mtodos genealgico (a) earqueolgico(b)descritosporFoucault.Osaberpsiquitricodapocaerabaseadoemtratamentomoraldaloucura,punioeoutrastticasdescritasporFoucault.Notermo"genealogia", h a sugesto das origens complexas e mundanas das prticaspsiquitricasnosculoXIX.Oasilofuncionavacomoumespaomdicodemarcadopelopoder.Asquestesdadireoadministrativa,astcnicasdequestionamentoepunioos smbolosdoconhecimentopsiquitrico tornaramsetemasprincipaisnoestudodeFoucault.

    Palavraschave:genealogiapoderpsiquitricoFoucault

    AbstractResearchers interested in the genealogical method are invited to search fordiscontinuitiesandrupturesinthehistory.So,thispaperfocusesthegenealogymethod,usedbyMichelFoucault,intheanalysisofthepsychiatricpowerattheturnoftheXIXcentury.TherearesomemethodsofFoucaultevaluatedinthispaper:(a)Analysisofthepsychiatricpracticesand(b)Analysisofthediscursiveformationsgenealogical(a)andarchaeological (b) methods respectively described by Foucault. The psychiatricknowledge of the time was based on moral treatment of madness, punishment andanother tactics described by Foucault.By the use of the term "genealogy" there is asuggestionofcomplexandmundaneoriginsofthepsychiatricpracticesattheturnoftheXIXcentury.Theasylumhadfunctionedasamedicalspacedemarcatedbypower.Thequestionsofadministrativedirection,thetechniquesofquestioningandpunishmentthesymbolsofpsychiatricknowledgebecomemajorthemesintheFoucaultstudy.

    Keywords:genealogypsychiatricpowerFoucault

    1.IntroduoOobjetivodestetexto,semavaliarnenhumdocumentohistricodapocaestudada,analisar to somente os mtodos utilizados por Foucault no estudo do podersaberpsiquitrico,reproduzindoasanliseseconcluseselaboradasporFoucault(eelucidadasporalgunsdeseuscomentadores).H diferentes formas de reconstituir a histria de umdeterminado saber, sua gnese.MichelFoucaultmarcouahistriadosaberpsiquitricoaoutilizar,noestudohistricodesua gnese e de seu desenvolvimento descontnuo, o mtodo da genealogia, cujasorigensremontamsinflunciasdeNietzschesobreohistoriadorfilsofo(1).A construo genealgica de Foucault, em torno do binmio podersaber, tornousebastanteconhecidaprincipalmentepelassuasfortesinflunciasherdadasdeNietzsche.justamente por se utilizar da genealogia nietzschiana (principalmente cf. Nietzsche,1887/2004)queFoucaultvaisefirmarcomolegtimogenealogista.Ouseja,pordeixardeladoabuscadeumsentidoprofundo,daorigemjustificadoradeumdadosaber,ouda sua finalidadesupostamente calcadanumvalor superior.Noha visodeuma

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    65

    continuidadeou,qui,deumfuncionamentooperantenumainstituioe/ouindivduopsicolgico.Agenealogiaanegaodestespostulados:

    Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar ahistria, em vez de crer nametafsica, o queaprendeele?Que h algo bemdiferente por trs das coisas:no absolutamente seu segredo essencial e sem data,masosegredodequeelassosemessnciaouquesuaessnciafoiconstrudapeaporpeaapartirdefigurasestranhas a ela (Foucault, 1971/2001, p.1006, trad.nossa).

    Nopresentecaso,qualseja,noestudodopodersaberpsiquitrico,issoqueFoucaultvaidemonstrarporviasdagenealogia:Asmarcasdeumsaber(poder...),quaissejam:

    a) Os jogos: como, por exemplo, o que o autor denomina de jogo depunio/remdio:jogodesignificaeseoduplojogodoremdioedapunio(Foucault,1974/2006a,p.231),almdojogodointerrogatriomdiconoinciodosc.XIX

    b) Asregras:como,porexemplo,asquesotcitas,annimas,caracterizadasporFoucaultcomoaquiloqueregeosindivduoseacoletividadeequefazememergiro discurso, seja ele psicolgico ou sociolgico. So, de fato, o que estsubjacenteaosdispositivos,nasformaesdiscursivassobre,nocaso,aloucura,e l j esto dadas essas regras o fundo de uma rede de poder na qualindivduo,grupoe instituioadquirem formaaquiloquea instituiomantmemseufuncionamento

    c) Osdispositivos,astticaseastcnicas:umavezqueaprpriagenealogiaumattica(ouummtodottico...),ogenealogistavaianalisar,porexemplo,aquelastcnicas utilizadas pelo sistema diretivo, as quais visavam fazer agir umaverdade produzida a do outro, e, tambm, visavam fazer agir o poderdisciplinar do regime asilar no corpo do indivduo Nervuras da realidade, outticanalutaasilar,segundoFoucault:SubmissodosinternosaotratamentomoralimposiosobreaconscinciadoindivduodeumarealidadedefinidaporFoucaultcomoavontadedooutro:omdico(Foucault,1974/2006a,p.220)tcnica da anamnese tcnicas relativas ao dinheiro, s necessidades, necessidadedotrabalho,todoosistemadastrocasedasutilidades,aobrigaodeproverassuasnecessidades(Foucault,1974/2006a,p.221)infiltrao,naconscinciadoindivduo,daidiadesuaprpriadoenanocomomolstia,massimcomomaldade,defeito, falha,erro,presuno, faltadeateno, comonoscasosemqueoautordescreveasprticasdeDr.Leuretdotratamentobaseadonaviolnciaenamilitarizaodosdoentes.

    Marcasdeumsaber:Marcasdeumpoderdisciplinar(noasilo...)umsistemadiretivoqueagenoscorposdosdoentestudoissoencontradoedemonstradoporFoucault(noseuemblemadegenealogista)aoinvsdeumsupostocontedoidealepositivodeumasupostacinciapsiquitricaharmnicaecontnua,finalstica.Aocontrriodisso,ela,defato,formal,disciplinaredescontnua,repletaderupturas...

    genealogia podese opor os hinos do progresso oudas finalidades histricas e, contudo, num certosentido,apearepresentadaneste teatro sem lugarsempreamesma:aquelaque repetem infinitamenteosdominantesedominados.Mas,paraogenealogista,este drama no um jogo de significados nem umasimples intensificaodabatalhade sujeitos.,antes,uma emergncia de um campo estrutural de conflitos(Dreyfus&Rabinow,1983/1995,p.122).

    Essas marcas do saber sujeitado vo no apenas dar corpo ao saber mdicopsiquitrico, como permitir que o mdico funcione (no sentido mesmo de funo,funcionamento...naarticulaoda instituiocomo indivduo) comotalno interiordoasilo. A anlise do saber, no mtodo genealgico, jamais descarta os saberes

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    66

    sujeitadosmas,porsuavez,vaicoloclosnocernedainvestigaohistrica.Ouseja,o genealogista almeja desbravar o saber sujeitado, soterrado nos pores da histriaconvencional,contnua,regular,homognea,paraareencontraronoconvencionaldahistria,asdescontinuidadeserupturas,airregularidade,aserupesnadispersoenaheterogeneidade dos acontecimentos e enunciados de um saber desnudado de traosideaisefinalsticosAinsurreiodossaberessujeitados:

    E,porsabersujeitado,entendoduascoisas.Deumaparte, quero designar, em suma, contedos histricosque foram sepultados, mascarados em coernciasfuncionais ou em sistematizaes formais.Concretamente,sepreferirem,no foicertamenteumasemiologiadavidaemhospcio,nofoitampoucoumasociologiadadelinqncia,massimoaparecimentodecontedos histricos o que permitiu fazer, tanto nohospcio como na priso, a crtica efetiva. E pura esimplesmente porque apenas os contedos histricospodem permitir descobrir a clivagem dosenfrentamentos e das lutas que as ordenaesfuncionais ou as organizaes sistemticas tiveramcomo objetivo, justamente, mascarar. Portanto, ossaberessujeitadossoblocosdesabereshistricosqueestavam presentes e disfarados no interior dosconjuntosfuncionaisesistemticos,equeacrticapdefazer reaparecer pelos meios, claro, da erudio(Foucault,1976/2005a,p.11).

    Tratase deste reaparecer enquanto emergncia num jogo de foras. Saber que sadquire corpona prpria presena do corpo fsico domdico no asilo. Eis amarca deFoucault O Genealogista na sua viso sobre o poder psiquitrico, marcado pelaonipresena da figura domdico em corpo fsico como o verdadeirocorpus dessepodersaberpsiquitricoase imporcomo realidadeobjetivaaos internos.Aocorpodomdicodeveriasesubmeterocorpododoente:

    Oasiloo corpodopsiquiatra,alongado,distendido,levado s dimenses de um estabelecimento,estendido a tal ponto que seu poder vai se exercercomo se cada parte do asilo fosse umapartedo seuprprio corpo, comandada por seus prprios nervos.De formamaisprecisa,direiqueessaassimilaodocorpo do psiquiatra/lugar asilar se manifesta dediferentesmaneiras.(...)Essecorpodeveseimporaodoentecomorealidadeoucomoaquiloatravsdequevaipassararealidadedetodasasoutrasrealidades.a esse corpo que o doente deve ser submetido(Foucault,1974/2006a,p.227).

    2.Desenvolvimentodotema2.1.MtodosdePesquisaOpresentetextooresultadodeumaconciliaodediferentesmtodosdepesquisaosquais,emseuconjunto,buscamestudaroprpriomtodoarqueolgicodadenominadaarqueologia do saber de Michel Foucault (Foucault, 1969/2002 Dreyfus & Rabinow,1983/1995) aliado ao mtodo de estudar os mtodos foucaultianos de anlise dasprticassociaisdescritasporFoucaultnumaespciedegenealogiadagenealogia...dopodersaber psiquitrico aqui esboada sob inspirao das prprias genealogiasrealizadasporMichelFoucaultemsuaobra:[1dopodereseufuncionamentonocampode uma microfsica (Foucault, 1979/1993) 2 do regime asilar com sua tcnica dedireoeseusistemadiretivo(Foucault,1974/2006a,p.225) 3dopoderdisciplinar,dossuplcios,daspuniesedamutaohistricadopoderdesoberania(visibilidade

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    67

    dosoberano)aopoderdisciplinar(invisibilidadedomecanismodepoderevisibilidadeplenadoobjeto sobreoqualagepelomodelodoPanopticondeBentham) (Foucault,1975/2004a,1976/2005a) 4dopodersaberpsiquitrico(2)(Foucault,1974/2006a)5 da diversidade de referentes e significados sob o , varivel emutante,segundoMichelFoucault,emdiferentesepistmes(Foucault,1961/2005b)6daantomopoltica(3)docorpohumano,anovatecnologiadopoder:obiopoder.Por algo como ummtodo de reviso dos textos, discursos, entrevistas do pensador(como ele fazia ao aplicar omtodo arqueolgico... em seus objetos de estudo...), opresente texto fruto de cinco anos de estudos baseados em: a pesquisasbibliogrficas b leituras sistemticas das principais obras c anlise de documentos,entrevistas,matriasjornalsticasealgumasgravaesdanlisesistemticadevriosperidicos originalmente escritos em lngua francesa, muitos deles reunidos nascoletneasDitsetcrits...(pelaGallimard)(Foucault,2001), tendocomofocootermopodersaber psiquitrico buscou avaliar os mtodos de Foucault no estudo dasformaes discursivas presentes no saber psiquitrico dos sculos XVIII e XIX, emdestaque, os saberes e o poder exercido no sculo XIX, com seus conjuntos deenunciadosdispersosquenomeavam,recortavam,descreviameexplicavam(Foucault,1969/2002, p. 36) as prticas e terapias psiquitricas e de internamento dos asilosnestes perodo histrico. Como estes saberes tiveram sua gnese fomentada pelodispositivodepoderasilar?Comonoatingemonveldaverificao,dademonstraoeda validao dos modelos cientficos positivos contemporneos? Como permanecemcomoumsaberdetratamentomoraldaloucura,pormeiodaviolnciaedapunio?EisasquestesqueoestudodomtododeanlisedasprticasestudadasporFoucaultbuscarespondernestetrabalho.Foipossvel,poresteroteiroinspiradonomtodogenealgico,adentrarostextosdeFoucaultedeseuscomentadores,verificandonelesosjogosderegrasquedefiniramastransformaesdessesaberaolongodotempo,bemcomoasrupturasnelepresentese,tambm,asdescontinuidadesinternasaeleprprio.Nesta empreitada de uma reviso em formade genealogia da genealogia do saberpsiquitrico,ofocofoiapontadoparaostextosdeFoucaultquedescrevemasprticaspsiquitricas em si, como aquelas mais violentas adotadas por Leuret e Pinel (4)(Foucault, 1974/2006a, p. 185), por exemplo.Objetivouse, assim, a compreenso doprpriosistemadeprticasarticuladonoespaoasilarsuarelaocomoexercciodopoder mdico e a constituio (ou emergncia) de um saber gerado (no sentido degnese) de uma matriz de poder disciplinar e de represso. O objetivo era, ento,compreenderocampodebatalhatravadoentremdicoepacientenoespaoasilar,ecompreendlotalqualsemanifestavanestasprticas,emsuarelaocomaformaodosenunciadospsiquitricosedeumcampodesaberaindadesconectadodosmodelosde verificao, validao e demonstrao hoje amplamente vigentes nos modelos dascinciasmdicasatuais.Emsntese,naconstituiodopresenteestudo,omtododa arqueologia..., (aonosdebruarmos sobre os textos, entrevistas, artigos, livros, etc. do prprio MichelFoucault...)focouaanlisedasdiscursividadeslocais(noasilo),eumolhargenealgicobuscou enxergar, nestes mesmos materiais (de Foucault e comentadores), as tticasligadasaossaberesdessujeitadosnouniversopsiquitricodadonoespaoasilar.Estesdois mtodos so descritos como complementares no estudo do dispositivo de podercomo instncia produtora (poder que produz) da prtica discursiva (Foucault1974/2006a,p.16).

    2.2.ResultadoseDiscussoA tcnica mdica asilar, vazia de um contedo de cientificidade e saber baseado naspositividades como as que se assemelham s cincias da natureza, era, na viso deFoucault, uma prtica da direo (Foucault, 1974/2006a, p. 217), de repartio doespao intraasilar tcnica de um regime disciplinar exercido pelomdico e seusauxiliares.Aqui,temse,ento,umfortetraodoestilode{Foucaultgenealogista}.

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    68

    Ele encontra na histria do podersaber psiquitrico no uma origem abundante emproduopositivadeconhecimentos,e tcnicasde investigaocientfica,verificaoevalidaodeumaaosobreadoenaemsuanosografia,emsuaetiologia,isoladosdeumtratamentomoralepunitivo.Aoinvsdessecontedopositivo,agenealogia,emsuaanlisehistrica,emseurecuono tempo histrico da psiquiatria encontra, antes, aqueles saberes sujeitados,imiscudosnumconjuntodetcnicaseprticasquenopossuem ligaodireta comabuscaporconheceradoenaemseucontedoprofundo:

    (...) saberes ingnuos, saberes hierarquicamenteinferiores,saberesabaixodonveldoconhecimentooudacientificidaderequeridos.Efoipeloreaparecimentodesses saberes de baixo, desses saberes noqualificados, desses saberes desqualificados mesmo,foi pelo reaparecimento desses saberes: o dopsiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o domdico,masparaleloemarginalemcomparaocomo saber mdico, o saber do delinqente, etc. (...)desses saberesdesqualificados,que foi feitaa crtica.(Foucault,1976/2005a,p.12).

    H,antesdemais,abuscapordisciplinareenquadrarodoentenaverdadedooutro.Adoenanooobjeto,odoentesim.Estetipodeesvaziamento,deencontrocomumaausnciadeumafinalidadenobre,repletadevaloresnobresumacaractersticatpicadagenealogianietzschiana,vistoque:

    A genealogia no pretende recuar no tempo paraestabelecer uma grande continuidade para alm dadispersodoesquecimento suatarefanomostrarque o passado est ainda ali, bem vivo no presente,animandoo ainda em segredo, aps ter imposto atodososobstculosdepercursoumaformaesboadadesde o incio. Nada que se assemelharia evoluodeumaespcie,aodestinodeumpovo.Seguirofilocomplexodaprovenincia,pelocontrrio,manteropassadocomodispersoqueaeleprpria situarosacidentes,os nfimosdesviosou,pelo contrrio,as completas inverses os erros, as falhas deapreciao,osclculoserrneosquefizeramnasceroqueexistee temvalorparansdescobrirque,naraizdaquiloqueconhecemosedoquesomos,nohabsolutamenteaverdadeeoser,masaexterioridadedoacidente(Foucault,1971/2001,p.1009).

    O passado do saber psiquitrico, ao olhar dagenealogia, umconjunto de eventos eacontecimentos dispersos um conjunto de acidentes, desvios, erros, falhas (comoabundamnasprticasdoregimeasilar)essesturbilhesviolentos,acidentais,deumaverdadeira lutaentrearazoeadesrazono interiormesmodoespaoclnicoquefizeramnascerosaberpsiquitricoquehojeexisteenaformacomopraticado.Naraizdo que se conhece como psiquiatria no est uma verdade advinda da pesquisa e daprocuraporumsaberisentodevestgiosmorais,masestaexterioridadedoacidente,otratamentomoral do louco, a exterioridade das tcnicas e tticas do regime asilar, osistema diretivo (as prticas de direo...): a exterioridade de uma cura vista comoprocessodesujeiofsicaqueproduzumindivduosujeitadotidocomocurado.Esteesvaziamentodetodoidealismodosaberpsiquitrico,detodohumanismoatribudoa Pinel ou a Esquirol, um elemento tpico do mtodo genealgico em Foucault naanlisedosaberpsiquitrico.Nohaviaa cura comoprocessodeaniquilaodeumagente causador da doena ou enquanto combate a um complexo causal patognico(quer por tratamento, por aconselhamento, pela escuta ou pela medicao pelasdiferentesformasdeterapia...).Agenealogiadosaberpsiquitricomostraqueoquese

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    69

    tinha como cura era uma adequao a uma matriz disciplinar. Curar era fazerenquadrar,moldar,conformar,disciplinar...enfim,sujeitar:

    A cura o processo de sujeio fsica cotidiana,imediata, realizada no asilo, que vai constituir comoindivduo curado o portador de uma qudruplarealidade.Eessaqudruplarealidadedequeoindivduodeveserportador,querdizer,deveserreceptor,aleido outro, a identidade a si, a noadmissibilidade dodesejo, a insero da necessidade num sistemaeconmico. So esses quatro elementos que, quandotero sido efetivamente admitidos pelo indivduotratado, vo qualificlo como indivduo curado.Qudruplo sistema de sujeio, que, em si, por suaefetivao, cura, restitui o indivduo (Foucault,1974/2006a,p.222).

    Portanto,acura,nesteenfoquedagenealogiadopodersaberpsiquitrico,umanooepistemologicamentefrgiledisforme,inseridanumjogodeforasquesedebatiamnointeriordoasilo.Numagenealogia,ohistoriadordescrevee caracterizaumembatedeforas.Michel Foucault, o genealogista do poder,defineo, na aula de 07 de Janeiro de 1976(CollgedeFrance)comoaquiloquenosed,nemsetroca,nemseretoma,masquese exerce e s existe em ato. Dispomos igualmente desta outra afirmao, de que opodernoprimeiramentemanutenoereconduodasrelaeseconmicas,mas,emsimesmo,primariamente,umarelaodefora(Foucault,1976/2005a,p.21).No caso da genealogia dopodersaber psiquitrico, a fora do paciente (de impor sualoucura)confrontadacomaforadomdico(deimporsuadisciplina)aforadadesrazodaloucuraembatidapelaforadarealidadeproduzidapelomdicoaforadoser da loucura atropelada pela fora da microfsica disciplinar que compele suamanifestaoeimpedeoseuprprioseraforadoindivduointernadonoasilo,dotadode vontade e desejo, atropelada pela fora que sujeita esta vontade vontade domdico: vontade que deve ser apagada, esfacelada do quadro do asilo com seusinterstcioscapilaresdeumpoder(emsuamicrofsica...)quesedevevoltarcontraestavontade A vontade do mdico , ento, a vontade soberana, que, com sua fora,converteodesejodosujeitoemobjetodavontadedooutroindividuaodisciplinarobjetificao (transformao em objeto...) do sujeito internado no espao asilar eindividualizadodentrodoesquadrinhamento(doespaofsico)porumsistemadiretivo.Falardevontade,(sobinspiraodanoodevontadedepotncianietzschianaemMichel Foucault), na genealogia do podersaber psiquitrico, significa caracterizar arealidadedo internamento comoum jogocomplexoeparticularde forasqueagemereagementresi(forasportodaparte...,ummardeforastempestuandoaquieali,como filosofara Nietzsche (Nietzsche, 1999)...) incessantemente uma multiplicidadetpicadeuma legtimavontadedepoder, sem finalidade,expressademododeclarado(uma vez que funciona paralela ao quadro rarefeito das nosografias, etiologias, dosestudos ...anatomopatolgicos sobre as correlaes orgnicas possveis da doenamental e, por outro lado, o conjunto desses fenmenos tticos da direo (Foucault,1974/2006a,p.224)conjuntooqualacabaporprevalecersobreaincipientetentativade um estudo calcado no objetomrbidoemsi. Vontade, portanto, queno podesertomadacomo causaassimcomoopodernopode,noprismagenealgico,servistoapenascomoumpoderfinalstico.Afunodagenealogia,enquantomtododeconstruodahistriadeumdeterminadoobjeto,mostraraemergnciadeumdeterminadoacontecimento(geralmentesituadono campo da raridade) enquanto resultado de um determinado estado de foras. exatamenteoqueseverificanagenealogia feitaporFoucaultdobinmiopodersaberpsiquitrico:

    A genealogia restabelece os diversos sistemas desubmisso: no absolutamente a potncia

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    70

    antecipadora de um sentido, mas o jogo causal dasdominaes. A emergncia sempre se produzemumdeterminadoestadodeforas.AanlisedaEntstehungdevemostrar seu jogo omodo pelo qual elas lutamumas contra as outras, ou o combate que travamdiante de circunstncias adversas, ou ainda suatentativadividindosecontrasimesmasdeescapar degenerescncia e recobrar o vigor a partir de seuprprio enfraquecimento (Foucault, 1971/2001, p.1011).

    Verificamse as caractersticas acima citadas pela reconstituio do universo asilar.Inicialmente, o prprio asilo um sistemade submisso, um meio fechado, (...) umpoder absoluto (Foucault, 1974/2006a, p. 219). A noo de direo, adotada porFoucaultao longodesuasaulasnocursoconsagradoaoPoderpsiquitrico(Foucault(2006a), sintetiza esse jogo de foras como regime, domnio, regularidade e luta(Foucault,1974/2006a,p.218),emquesetravamcombatesemcircunstnciasadversasabundantes de pontos de apoio tticos, elementos estratgicos,manobras, intenes,nsnasrelaesentreopacienteeaprpriaestruturaasilar(Foucault,1974/2006a,p.208).Adisciplinanoasilo, instrumentodecura,portanto,compostapor fora foraqueimpeumarealidadequeladointernado.Sobesteroteirogenealgico,oquesignificaacura?Significa,antesdecombatedoena,combateaoindivduointernado:Forarlhe(nosentidode,pelafora,imporlhe...)umarealidadequenocondizcomsuarealidadedelouco.Umarealidademaisforteque,pelasprticasdosistemadedireo(diretivo),do regime disciplinar, sujeitam e conformam a uma nova realidade. Esta, uma vezpassivamenteabsorvidasignifica,aosolhosonipotentesdomdico,oefeitoalmejado,eporestedenominadodecura.Curarserenunciaraalgoparaaceitaravontadedooutro,ouseja,umaoutrarealidadeimposta.Nada de um conhecimento cientfico calcado em uma medicina investigativa. Aepistmedapocanoenxergavaoquehojesetemcomoumexercciodemedicina.Curar era to somente convencer, lutar contra uma vontade tida como onipotente,errnea, imoral, impura, obstinada, indisciplinada, arredia, etc. E, portanto, apsiquiatriaviacomocuraoprocessodereduodestavontadeindomvelvontadedo mdico, qual seja, de gerar disciplina, resignao, submisso, passividade. Oindivduoquesedobraoindivduocuradonoolhardosaberpsiquitriconoquadrodaepistmemdicapintadopelagenealogia foucaultiana. Ogenealogistavo real emseu nu, cru de valores nobres, de ideais idneos de construo de um saberhumanitrioebenficoepistemologiapsiquitrica.Observese:

    Ser adaptado ao real, renunciar onipotncia daloucura, querer sair do estado de loucura precisamenteaceitarumpoderquesereconhececomoinsupervel, e renunciar onipotncia da loucura.Deixar de ser louco aceitar ser obediente poderganharavida, reconhecersena identidadebiogrficaqueformamdevocsparardesentirprazercomaloucura. De modo que, como vocs esto vendo, oinstrumento pelo qual se reduz a loucura, essesuplemento de poder acrescentado realidade paraque ela domine a loucura, esse instrumento aomesmotempoocritriodacura,ouentoocritriodacuraoinstrumentopeloqualsecura.Logo,podesedizerque h umagrande tautologia asilarnamedidaem que o asilo o que deve proporcionar umaintensidade suplementar realidade e, ao mesmotempo, o asilo a realidade em seu poder nu, arealidademedicalmenteintensificada,aaomdica,

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    71

    opodersabermdicoquenotemoutrafunoalmdeseroagentedaprpriarealidade.(...)Adisciplinaasilar ao mesmo tempo a forma e a fora darealidade.(Foucault,1974/2006a,p.206).

    Omtododagenealogiavaialmdeumaanlisedodiscurso(conformenomtododachamada arqueologia do saber...). Dreyfus e Rabinow (1983/1995) definem agenealogiacomoaquiloque:

    condiciona, limita e institucionaliza as formaesdiscursivas (genealogia) (Dreyfus & Rabinow,1983/1995,p.116).

    Mas, em Foucault, o mtodo por ele cunhado como arqueologia... (anlise dasdiscursividades...), emseuprojetodeelaboraragenealogiadopodersaber,quer sejaeleumpodersaberdisciplinar,polticooupsiquitrico,caminhajuntocomoseumtodogenealgicoinspiradoporNietzsche:

    A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto deuma insero dos saberes na hierarquia do poderprprio da cincia, uma espcie de empreendimentopara dessujeitar os saberes histricos e tornloslivres, isto, capazesdeoposioede lutacontraacoero de um discurso terico unitrio, formal ecientfico.Areativaodossabereslocaismenores,talvez dissesse Deleuze contra a hierarquizaocientfica do conhecimento e seus efeitos de poderintrnsecos esse o projeto dessas genealogias emdesordem e picadinhas. Eu diria em duas palavras oseguinte: a arqueologia seria o mtodo prprio daanlise das discursividades locais, e a genealogia, atticaque faz intervir,apartir dessasdiscursividadeslocais assim descritas, os saberes dessujeitados quedasedesprendem.Issoparareconstituiroprojetodeconjunto(Foucault,1976/2005a,p.15).

    Seagenealogia,emdadosmomentos,voltaseparaa formaododiscurso (apoiadapelaarqueologia...,comopororanoestudodaformaododiscursopsiquitrico)vai,porm,ampliarsuaanliseparaocampodasprticasnodiscursivas:

    No nvel genealgico, aps mostrar que no h algosubjacente s aparncias e que ametafsica acabou,Foucaultparece chegarconclusodequenada temsignificado nem srio. Isto conduz a uma atitudeestranhae complexa:temosqueconsideraromundodos discursos seriamente, primeiro porque nosdivorciamosdele,eemsegundolugarporqueelenofundamentado (Dreyfus & Rabinow, 1983/1995, p.117).

    EistojustamentenosdemonstradoporFoucaultaoaplicaragenealogiaaoestudodopodersaber psiquitrico. Este no guarda nada de metafsico , ao contrrio, bemoperante no domniomesmo dos corpos concretos, corpos sujeitados a ele no espaoasilar.No h um significado pleno a ser desdobrado pelo saber psiquitrico de Pinel,Esquirol ou Leuret. O que h, longe de um significado da loucura ou uma estruturacientificamente reconstruda em sua seriedade, um exerccio de conformao, desujeio ao sistema diretivo, de enquadramento do indivduo e infiltrao, nascapilaridades via uma microfsica de poder, deste poder disciplinar que sustenta oregimeasilar.

    Nessaatividade,quesepode,pois,dizergenealgica,vocs vem que, na verdade, no se trata de formaalguma de opor unidade abstrata da teoria amultiplicidadeconcretadosfatos(...).Portanto,no

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    72

    um empirismo que perpassa o projeto genealgiconotampoucoumpositivismo,nosentidocomumdotermo, que o segue. Tratase, na verdade, de fazerque intervenham saberes locais, descontnuos,desqualificados, no legitimados, contra a instnciatericaunitriaquepretenderia filtrlos,hierarquizlos, ordenlos em nome de um conhecimentoverdadeiro,emnomedosdireitosdeumacinciaqueseria possuda por alguns. As genealogias no so,portanto,retornospositivistasaumaformadecinciamaisatentaoumaisexata.Asgenealogiasso,muitoexatamente,anticincias. (...)Trataseda insurreiodos saberes. (...) exatamente contra os efeitos depoder prprios de um discurso considerado cientficoque a genealogia deve travar combate (Foucault,1976/2005a,p.1314).

    Oquehdeserseriamenteconsideradonodiscursopsiquitricoestudadopelomtodogenealgico,precisamente,segundoFoucault,suatotalausnciadefundao,ouseja,uma lacuna de cientificidade do discurso, em outras palavras, a prpria ausncia defundao emum saber cientfico.Ele umdiscurso de poder.O ttulo dado aoCurso(Foucault(2006a)oferecidonoCollgedeFrancenoperodode19731974jdemonstraclaramenteisso.Ora, a escolha do tema podersaber psiquitrico para o presente dossi foi,precisamente, pela razo de, nesta altura da obra deMichel Foucault, emmeados dadcada de 70, mostrarse mais ntido o mtodo genealgico, conforme tambmregistradonestasanlisesdeDreyfus&Rabinow(1983/1995,p.113).Eainda:

    A elaborao da genealogia de Foucault foi o maiorpasso em direo a uma complexa anlise de poder,maissatisfatriaeautoconsciente.Eledeuestepassonumensaiopublicadoem1971, intitulado Nietzsche,aGenealogia,aHistria.Conformeacabamosdever,FoucaultexplicaemAOrdemdoDiscurso (Foucault(2004b),escritonamesmapoca,queagenealogiacomplementada e suportada pela arqueologia....Assim, a apresentao da genealogia no deve serconsiderada como incluindo todo o instrumentalmetodolgicodeFoucault.Porm,noserianecessriosuperestimar a importncia do ensaio paracompreenderoprogressodaobraqueseseguiutodasassementesdotrabalhodeFoucaultdosanossetentapodem ser encontrados nesta discusso sobreNietzsche(Dreyfus&Rabinow,1983/1995,p.118).

    EssesautoresvoatoferecerumaclaradefiniodagenealogiaenquantomtododeFoucaultps70:

    Mas, o que genealogia? A genealogia se ope aomtodohistrico tradicionalseuobjetivo assinalara singularidade dos acontecimentos, fora de todafinalidade montona. Para a genealogia, no hessnciasfixas,nemleissubjacentes,nemfinalidadesmetafsicas. A genealogia busca descontinuidades alionde desenvolvimentos contnuos foram encontrados.Ela busca recorrncias e jogo ali onde progresso eseriedade foram encontrados. Ela recorda o passadodahumanidadeparadesmascararoshinossolenesdoprogresso. A genealogia evita a busca daprofundidade. Ela busca a superfcie dos

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    73

    acontecimentos, os mnimos detalhes, as menoresmudanas e os contornos sutis. Ela evita aprofundidade dos grandes pensadores que nossatradio produziu e reverenciou seumaior inimigo Plato(Dreyfus&Rabinow,1983/1995,p.118).

    3.ConclusoOqueagenealogiaencontranopodersaberpsiquitrico?Nadaqueseassemelheaumprogressocontnuodeumsaberconstrudo,passoapasso,pelaanlise,pelainvestigaominuciosadeseuobjeto,pelaspositividades.Elaencontraum conjunto de acontecimentos dispersos (lembrese das duchas frias aplicadas porLeuret, das privaes, da vigilncia e das tcnicas de Pinel (cadeira fixa..., cadeiramvel...,algemas...,roupaemformadededodeluva...,osesquifesdevime...,coleirasdecachorrocompontasembaixodoqueixo...Todaumainteressantssimatecnologiadocorpo, cuja histria talvez devesse ser feita reinscrevendoa em toda a histria geraldessesaparelhoscorporais(Foucault,1974/2006a,p.131))quevisavam,peladisciplina,subjugar a loucura, como no trecho em que Foucault descreve a ao de um pajenmusculososobreumloucoquesejulgavaumreinosilncioemquenadadito,opajenodomina,olimpaeolanasobrecolchescomumolhardedominao(Foucault,1974/2006a,p.26).No h a continuidade de um saber psiquitrico e sim as descontinuidades de umainteressantssimatecnologiadocorpocujahistria,peculiarmente,reconstrudapelomtododagenealogia.Tecnologia disciplinar e suas descontinuidades bem distintas da homogeneidade e doidealismoplatnicodeumsabercontnuoeprogressivamenteconstrudo.Ahistriadosaberpsiquitricodesmascaraqualqueridealismodeumsaber,defato,construdopelojogo de foras do regime asilar, nada solene, nada sublime, sem uma profundidaderedentora do tipo pelo bem do louco, pelo bem da sociedade, mas pelo poder domdico,pelasuaonipresena,pelasuaforadeimporsecontraavontadedolouco.Oesforogenealgicoporconhecerosaberpsiquitricoemsuapossvelenvergaduracientficamostraqueodiscursopsiquitricoatreladoaosaberdoasilonopossuiestaossaturade racionalidadecientfica. Suasproposieseenunciadosnoderivaramdealgo como aquilo que as atuais cincias (numa certa epistme e sob um dadocogitatum cientficos...) conhecem por verificaes e demonstraes. O mdicopsiquiatradoasilofaziaoutracoisa.Ele jogava com as foras de poder, com o poder dos jogos de foras e seu discursoemergia,assim,comoumdosefeitosdepodernoburburinhodofermentoasilar.Eisagenealogiadopodersaberpsiquitrico.Opodersaberqueestnasuperfciedosacontecimentos(comonastcnicasdePinelanteriormentedescritasounaconfissosobcoero,nosbanhosfriosaosquaisLeuretsubmetiaoSr.Duprparasubjugloaumaverdadedomdico(Foucault,1974/2006a,p.196)opodersaberqueestnosmnimosdetalhes penria e sistema de carncias (Foucault, 1974/2006a, p. 194) paraconvencer,inculcarumarealidadeefazerconfrontarcomarealidadedaprprialoucura:elevaiperceberagora,nomaisarealidadedomundoexterior,masarealidadedasuaprpria loucura atravs do sistema de carncias que estabelecem em torno dele(Foucault,1974/2006a,p.195).Sobestavisogenealgica,desfazsea imagemclssicadouniversalhumanismodePinel libertador dos internados acorrentados um acontecimento passa, ento, a servislumbradocomooresultadodaemergnciacontingentedeinterpretaesimpostas.A histria do humanismo, numa genealogia do saber psiquitrico, vem desmascararumahistriadopodermdicocomsua

    malcia mesquinha, das interpretaes violentamenteimpostas, das intenes viciosas, das narrativasgloriosas que mascaram as razes mais vis. Para ogenealogista nietzschiano, o fundamento damoralidade, pelo menos desde Plato, no deve ser

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    74

    buscado na verdade ideal. Ele deve ser buscado napudenda origo: baixas origens, lutas maldosas,crueldadesmenores,infindveisconflitosdevontades.Ahistriadahistriaadosacidentes,dadisperso,dos acontecimentos casuais, das mentiras no odesenvolvimentograndiosodaVerdadeouacompletaencarnao da Liberdade. Para Nietzsche, ogenealogistaporexcelncia,ahistriadaverdadeahistria do erro e da arbitrariedade (Dreyfus &Rabinow,1983/1995,p.120).

    Aobjetividadedeumsaberpsiquitricoemergeatreladaamotivaessubjetivas,numespaodasprticas(ofocodatticaedomtodogenealgicose,maisespecificamente,deFoucault,ogenealogista,arquivistaearquelogodosaber).No podersaber psiquitrico, no h primazia da origem (e a genealogia vem apontarisso: o que se sabe, hoje, sobre a doena no temuma origem demarcada por umaracionalidade cientfica da verificao e da demonstrao como alvos do conhecer, esimumconjuntodeobjetoseinstrumentos(i.e.tcnicasdisciplinares,represseseseusefeitos, tecnologia disciplinar microcapilarizada no corpo individual do internado microfsicadopoder...).Osaberpsiquitrico,soboprismadomtodogenealgico,surgedas falhas,dosimprevistos,dosacontecimentosabruptos,dasrupturas...Da,emergiuesse saber psiquitrico empurrado para fora da dobra do real (como dizia GillesDeleuze (Deleuze (2005) por umamatriz de poder. A histria (genealgica...) de umsaberpsiquitricoumahistriadepoder:sujeio,dominaoelutanoespaoasilarcomseusistemadiretivoouprticasdedireo(Foucault,1974/2006a,p.217)eseuregimedisciplinar.

    De acordo com Foucault, a tarefa do genealogista destruir a primazia das origens, das verdadesimutveis. Ele tenta derrubar as doutrinas dodesenvolvimento e do progresso. Uma vez destrudasas significaes ideais e asverdades originais, ele sevoltaparaojogodasvontades.Sujeio,dominaoelutasoencontradasem todaparte.Ondese faladesignificado e valor, virtude e divindade, Foucaultprocura estratgias de dominao. (...) Em vez deorigens, significados escondidos ou intencionalidadeexplcita,Foucault,ogenealogista,vrelaesdeforafuncionando em acontecimentos particulares,movimentoshistricosehistria (Dreyfus&Rabinow,1983/1995,p.121).

    No espao asilar, campo demanobras sociais que afetam a todos nele envolvidos, agenealogia do podersaber psiquitrico no tem a pretenso de descobrir entidadessubstanciais(sujeitos,virtudes,continuidade,progressocientfico,idealhumanista...).Agenealogiabuscadelinearosurgimentodeumcampodebatalha(expressocunhadapelosirmosDreyfussobreoplanodeobservaonomtodogenealgicofoucaultiano)que situa um espao de foras, vontades e jogos de poder (no seu espao de umamicrofsicaatuantesobreoscorpos).

    So manobras sociais relevantes para todos aquelesenvolvidosnestecampo.Ogenealogistanopretendedescobrir entidades substanciais (sujeitos, virtudes,foras) nem revelar suas relaes com outrasentidades deste tipo.Ele estuda o surgimentode umcampo de batalha que definee esclarece umespao.Os sujeitos no preexistem para, em seguida,entrarem em combate ou em harmonia. Nagenealogia, os sujeitos emergem num campo debatalhaesomenteaquedesempenhamseuspapis.

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    75

    O mundo no um jogo que apenas mascara umarealidademaisverdadeiraexistenteportrsdascenas.Eletalqualaparece.Estaaprofundidadedavisogenealgica(Dreyfus&Rabinow,1983/1995,p.122).

    neste campo de batalha que tem lugar a emergncia do indivduo sujeitado, comoprodutomesmodeste campodebatalha conformedemonstraanoodecuraemLeuret e Pinel: Internado curado aquele que se individualizou, sujeitouse foisujeitadotornousedcil(docilizado,comonostextosdeSurveiller...(Foucault,2004a),obediente e resignado frente vontade do outro Sujeio ao poder disciplinar, aoregimeasilar,aosistemadiretivocomseusjogosdeforaseemergnciadeumnovoindivduocujavontadereprimidaedominadapelavontadedooutro.Portanto, a genealogia opera umadesmistificao do progresso e da continuidade.Nocasodopodersaberpsiquitrico,violnciaedominaohistoricamenteestiveramladoaladocomasnosografiaseetiologiasdadoenamentalnosculoXIX.

    A humanidade no progride lentamente, de combateemcombate,atumareciprocidadeuniversal,naqualas regras substituiriam, para sempre, a guerra elainstalacadaumadessasviolnciasemumsistemaderegras, e prossegue assim de dominao emdominao.(...)elaspodemserburladasaosabordavontadedeunsedeoutros...(Foucault,1971/2001,p.1013,trad.nossa).

    Referncias

    Deleuze, G. (2005). Foucault (C. S. Martins, Trad.). So Paulo: Brasilense. (Originalpublicadoem1986)

    Dreyfus, H. L., & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault, uma trajetria filosfica: paraalmdoestruturalismoedahermenutica(V.P.Carrero,Trad.)(ColeoCampoTerico).RiodeJaneiro:ForenseUniversitria.(Originalpublicadoem1983)

    Foucault, M. (1993). Microfsica do poder (11a ed.) (R. Machado, Trad.) (ColeoBiblioteca de Filosofia e Histria das Cincias, 7). So Paulo: Graal. (Originalpublicadoem1979)

    Foucault,M.(2001).Nietzsche,lagnalogie,lhistoire.EmM.Foucault,Ditsetcrits,I,[19541975](pp.10041024).Paris:Gallimard.(Originalpublicadoem1971)

    Foucault,M. (2002).A arqueologia do saber (6a ed.) (L. F. B.Neves, Trad.) (ColeoCampo Terico). Rio de Janeiro: Forense Universitria. (Original publicado em1969)

    Foucault, M. (2004a). Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard.(Originalpublicadoem1975)

    Foucault, M. (2004b). A Ordem do discurso: aula inaugural no Collge de France,pronunciada em02 de Dezembro de 1970 (10a ed.) (L. F. A. Sampaio, Trad.)(ColeoLeiturasFilosficas).SoPaulo:EdiesLoyola.(Originalpublicadoem1970)

    Foucault,M.(2005a).Emdefesadasociedade:cursodadonoCollgedeFrance(19751976) (M. E. Galvo, Trad.) (Coleo Tpicos). So Paulo: Martins Fontes.(Originalpublicadoem1976)

    Foucault,M.(2005b).Histriadaloucuranaidadeclssica(8aed.)(J.T.C.Neto,Trad.)

  • Bouyer,G.C. (2009).OmtododagenealogiaempregadoporFoucault noestudodopodersaberpsiquitrico. Memorandum, 16, 6476. Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    Memorandum16,abril/2009BeloHorizonte:UFMGRibeiroPreto:USP

    ISSN16761669http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf

    76

    (ColeoEstudos,61).SoPaulo:Perspectiva.(Originalpublicadoem1961)

    Foucault, M. (2006a). O poder psiquitrico: curso dado no Collge de France (19731974)(E.Brando,Trad.)(ColeoTpicos).SoPaulo:MartinsFontes.(Originalpublicadoem1974)

    Foucault,M. (2006b).Eu souumpirotcnico.EmR.PolDroit (Org.).Michel Foucault:entrevistas(V.P.Carrero&G.G.Carneiro,Trad.)(pp.67100).SoPaulo:Graal.(Originalpublicadoem2004)

    Nietzsche,F.(1999).Oeternoretorno,avontadedepotncia:textosde1884a1888.EmNietzsche (R.R.T.Filho,Trad.) (ColeoOsPensadores) (pp.439462).SoPaulo:NovaCultural.(Originalpublicadoem1888)

    Nietzsche, F. (2004). Genealogia da moral: uma polmica (P. C. Souza, Trad.). SoPaulo:CompanhiadasLetras.(Originalpublicadoem1887)

    Notas(1)NaterceiraentrevistadeMichelFoucaultnacoletneadeRogerPolDroit,intituladaTerceiraentrevista:EusouumPirotcnico,Foucaultrejeitaottulodehistoriadoredefilsofonestaentrevista,eleseautodenominaumpirotcnicoqueconstruiuumaobradiferente...Vide:Foucault(2006b).(2)Objetoespecficodopresenteartigo.(3) A expresso antomopoltica, referindose a uma nova tecnologia do poder obiopoder pode ser lida, literalmente, na pg. 289, penltimo pargrafo de: Foucault(2005a).(4)Emespecial,sobreosinstrumentosfsicosdecoeroeumaespciedemedicaopsicofsica punitiva e teraputica..., vide pginas 179180 Mais detalhadamente, oritualgeraldoasilopodesermelhorcompreendidopelaleituraatentadaspginas182e 183. Sobre os saberes de violncia paraminar a onipotncia da loucura, vide aspginas 184 a 185 Sobre a excessiva violncia de Leuret (sob o ponto de vista deMichel...) Agresso e violncia nas palavras do prprio Foucault, especial atenodeveserdadapgina186.Sobreasprticasdesubmisso,sugeresealeituradastcnicas... detalhadas na pgina 189. Sobre os saberes relativos a instituio de umestadodecarncianopaciente,videpginas190a192Asimpressionantestcnicasdaducha fria de Leuret e da teraputica da confisso sob coero encontramse,respectivamente,detalhadasnaspginas196e198.Sobreamquinaasilarprodutoradeformaesdiscursivas,aintensificaodarealidade,jogosdeverdadeeatcnicaquepartedarealidadebiogrficadopaciente,muitointeressanteaexplanaodeFoucaultnapg.201,oqueculminacomasformaesdiscursivasdissecadasnapg.205:Ouseja,segundooautor,afaceprodutivadopoder:Produododiscursomdico.

    Notasobreoautor:GilbertCardosoBouyerestudiosodefilosofiamestreemEngenhariadeProduopelaUFMG,DoutorandodaUSPSPemEngenhariadeProduo,ProfessorEfetivodaUFOP,bolsistadoProgramadeAperfeioamentoaoEnsinoPAE/CapespelaUSPSP,criadordoGrupo Sociedade Autopoiese de Conhecimento Transdisciplinar www.sociese.com.Contacto:[email protected]

    Dataderecebimento:05/ 03/ 2007Datadeaceite:10/ 10/ 2008