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8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
1/53
ntrevist do
por
María ndrea Loyol
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
2/53
Esta coleção reúne
entrevistas com cientis
tas do Brasil e de outros
países, realizadas para a
série de televisão Pensa
mento Contemporâneo,
transmitida pelo Canal
Universitário do Rio de
Janeiro (UTV).
As entrevistas a-
presentam a contribuição
desses intelectuais para o
desenvolvimento de sua
própria disciplina e, atra
vés desta, para um me
lhor entendimento das
transformações ocorri
das nas últimas décadas,
assim como da maneira
como elas afetam ou
podem afe tar nossas
vidas.
P e n s a m e n t o
C o n t e m p o r â n e o
Pierre Bourdieu
Entrevistado por
Maria
Andrea
Loyola
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
3/53
n É B u
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitora
Nilcéa Freire
Vice-reitor
Celso Pereira de Sá
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Conselho Editorial
Afonso Carlos Marques dos Santos
Elon Lages Lima
Ivo Barbieri (Presidente)
José Augusto Messias
Leandro Konder
Luiz Bernardo Leite Araújo
P e n s a m e n t o
C o n t e m p o r á n e o
Pierre ourdieu
Entrevistado por
Maria ndrea Loyola
uerj
R io
de Jane iro
2 0 0 2
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
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Copyright © EdUERJ, 2002
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. A reprodução integral ou parcial do
texto poderá ser feita mediante autorização da editora.
EdUERJ
Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã
CEP 20550-900 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/Fax: (21) 2587-7788 / 2587-7789
www2.uerj .br/eduerj
Supervisão Editorial Dau Bastos
Coordenação de Publicação
Renato Casimiro
Coordenação de Produção Rosania Rolins
Tradução da Entrevista Alice Lyra de Lemos
Revisão Técnica da Entrevista Marilena Villela Corrêa
Projeto Gráfico e Capa Heloisa Fortes
Diagramação Gilvan F Silva
Revisão Clarissa Plácido e Meichelle Cândido
Apoio Administrativo
Maria Fátima de Mattos
Esta coleção e a série televisiva que lhe deu origem contam com o apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
CATALOGAÇÃO NAFONTE
UERJ/REDE SmiUS/PROTAT
B769 Bourdieu, Pierre, 1930-
Pierre Bourdieu en trevistado por Maria Andréa Loyo la. -
Rio de Janeiro : EdUER J, 2002.
98 p. - (Pensamento contem porâneo ; 1)
ISBN85-7511-032-2
1. Bourdieu, Pierre, 1930- - En trevistas. 2. Sociologia.
I.
Loyola, Maria
Andréa. II.
Título. III. Série.
CDU301
Agradecimentos
Muitas pessoas e instituições contribuíram
para a realização desta entrevista: o próprio Pierre
Bourdieu e sua equipe do Collège de France; Moacir
Palmeira e Sérgio Miceli; Claire Lapayre e Jean Michel
Arnold; Abílio Baeta Neves e Luiz Alberto Horta Bar
bosa; Marilena Villela Corrêa; Pedro Villela Capanema
Garcia; Tânia Maria Tavares da Costa; Vitor Brasil; o
Consulado da França, o C entre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) e a Embratel.
Contribuíram de forma especial: Gabriella
Dias, diretora executiva da UTV e supervisora geral do
programa televisivo, cujo entusiasmo foi decisivo para
sua realização; Irapuan Portugal, coordenador de produ
ção, cuja dedicação garantiu a continuidade do projeto.
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Sumário
Apresentação 9
Maria Andréa Loyola
Entrevista 13
Depoimentos 57
Moacir Palmeira 57
Sérgio Miceli
59
Bourdieu e a sociologia 63
Maria Andréa Loyola
Biografia 87
Principais trabalhos 93
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Apresentação
Maria Andréa Loyola
Este livro se articula em torno da entrevista
que Pierre Bourdieu me concedeu a 27 de
outubro de 1999. A revisão desta entrevista
para publicação constitui um dos últimos trabalhos de
Bourdieu, que morreu a 23 de janeiro de 2002 em Pa
ris,
sem ter o prazer, ou o estranhamento, de vê-la
publicada em português antes de sê-lo em francês. Ela
é o último diálogo que, percebo agora com grande pe
sar, mantive com um dos grandes pensadores do século
XX com o qual tive o privilégio de estudar e conviver
e que se tornou uma de minhas permanentes referências
intelectuais e afetivas.
Meu contato com Bourdieu poderia ter co
meçado no período de 1969 a 1973, quando fiz meu
doutorado em sociologia na École Pratique des Sciences
Sociales, sob a orientação de Alain Touraine. Nesse
período, pude freqüentar, além dos seminários de meu
orientador, aqueles de Raymond Aron, Claude Lévi-
Strauss, Althusser, entre outros; mas não os de Bourdieu,
restrito a seus orientandos.
Só conheci Bourdieu pessoalmente no final
de 1979. Eu tinha acabado de iniciar a análise dos dados
da pesquisa Medicina Popular na Baixada Fluminense
e estava interessada em discuti-la com ele, uma vez que
9
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vinha utilizando alguns conceitos seus, como os de
campo e habitus.
Com uma bolsa ganha em concurso promovi
do pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais,
pude fazer um estágio no Centre de Socio logie
Européenne (CSE), dirigido por Bourdieu. Fui com in
tenção de passar seis meses - tempo de duração da
bolsa - e acabei perman ecendo por dois anos, com apoio
do próprio Bourdieu, que patrocinou o restante de mi
nha estada.
O interesse de Bourdieu por meu trabalho
resultou na publicação de um artigo meu na revista
Actes
de la Recherche en Sciences Sociales,
que ele dirigia,
e de um livro pelas Editions de la Maison des Sciences
de l'Homme.
1
Desde então, minha relação com Bourdieu e
com os pesquisadores de sua equipe nunca foi inter
rompida. Tive a oportunidade de voltar com relativa fre
qüência, por períodos de curta ou longa duração, ao
CSE e posteriormente ao Centre de Sociologie de
l 'Education et de la Culture (CSEC), fundado por
Bourdieu. Também recebi no Brasil inúmeros de seus
pesquisadores. O próprio Bourdieu planejou várias vin
das que acabaram não ocorrendo; a última para a prima
vera de 2002.
Assim, quando o procurei para propor
entrevistá-lo, aceitou de imediato. Enviei-lhe um rotei-
1
Refiro-me aos trabalhos : "Cure des corps, cure des âmes :
les thérapeutiques populaires à Rio de Janeiro". Actes de la
Recherche en Sciences Sociales,
n. 43,1982;
s L'esprit e t le
corps, Paris: MSH , 1983. Tradução em português: Médicos
e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel,
1984.
io provisório - alertando tratar-se de questões que po
deriam interessar de modo mais específico ao público
brasileiro -, que acabou se tornando definitivo, pois
Bourdieu aceitou-o sem modificações.
Eu já havia entrado em contato com o diretor
geral do Serviço de Audiovisual do Centre National de
la Recherche Scientifique (CNRS), que gentilmente pro
pos registrá-la. No dia 27 de outubro de 1999, perante
uma càmera instalada em sua sala no Collège de France
e na presença de dois técnicos do CNRS, Bourdieu
passou quase cinco horas falando de si e de seu traba
lho.
2
Percebi que a entrevista tinha sido bem-su-
cedida pela reação dos técnicos - que disseram nunca
"ter gravado um Bourdieu tão descontraído" - e do
próprio Bourdieu durante um almoço que me ofereceu
depois. Mas, conhecendo seu perfeccionismo, eu sabia
que o trabalho não terminara ali.
Depois da transcodificação, transcrição e tra
dução das fitas, veio a penosa etapa de edição, que
implicava cortes para reduzir a entrevista a uma hora e
trinta minutos, incluindo os acréscimos de imagens, in
formações e os depoimentos de Moacir Palmeira e
Sérgio Miceli, primeiros professores brasileiros a di
vulgar o trabalho de Bourdieu em nosso país.
As f i tas edi tadas foram submetidas a
Bourdieu, que, ao contrário do que eu podia imaginar,
não fez objeção à maioria dos cortes, e sim ao artifício
2
A entrevista foi integralmente filmada por Pierre Carles,
que aproveitou parte dela em seu filme La sociologìe, un
sport de combat [A sociologia, um esporte de combate],
exibido durante muitos meses nos cinemas parisienses.
10
11
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técnico de deixar sua imagem em preto e branco en
quanto eu formulava as questões.
Feitas as mudanças necessárias e acrescenta
das as legendas, a fita voltou para sua aprovação defini
tiva. Ele ainda questionou am bigüidades contidas na tra
dução e, ao vê-las eliminadas, liberou a fita para exibi
ção pela UTV - o que acabou ocorrendo somente em
dezembro de 2000.
Na entrevista, ele fala de sua trajetória, ex
põe idéias que desenvolveu em sua imensa obra e abor
da de forma mais específica temas como globalização,
neoliberalismo, televisão, dominação masculina, entre
outros.
Ao final do volum e, inseri um texto de minha
autoria que faz um esboço de sua sociologia, expondo
sua proposta teórica e conceituai, além de considera
ções sobre a repercussão de seu trabalho no Brasil.
12
Entrevista
Maria Andrea Loyola
- Quando li seu livro
A reprodução pela primeira vez, no início dos anos 70,
eu o considerei um trabalho sociológico verdadeira
mente político. E lembro ainda de minha frustração
quando meus alunos da PUC de São Paulo se recusa
ram a lê-lo, assim como alguns outros trabalhos de
sua autoria, sob o pretexto de que sua obra era con
servadora, contra as mudanças e anti-revolucionária.
Não conheço a opinião deles hoje em dia, mas, mesmo
considerando que seu trabalho tenha sempre sido
político, alguma coisa em sua posição ou no senhor
mudou em relação à política. O que mudou?
Pierre Bourdieu
- Com relação ao primei
ro ponto, seus estudantes não eram os únicos a pensar
dessa maneira. Muitos sociólogos bem informados, pro
fissionais, tinham a mesma opinião. Penso em Nicholas
Graham , soc ió logo ing lês que , jun tam ente com
Raymond W illiams, contribuiu de forma importante para
introduzir minha sociologia nos países anglo-saxões.
Ele escreveu um artigo, apresentado num colóquio so
bre o meu trabalho ocorrido em Chicago cerca de dez
anos atrás, para mostrar que minha sociologia era con
servadora. Para mim, ainda hoje é surpreendente, como
foi naquela época, que o fato de dizer que uma instân-
13
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9/53
cia como o sistema de ensino contribui para conservar as
estruturas sociais, ou dizer que as estruturas tendem a se
conservar ou se manter - o que é uma constatação -, é
surpreendente que essa constatação seja percebida como
uma declaração conservadora. Basta pensarmos um pou
co para percebermos que o mesmo enunciado sobre a
existência de mecanismos de conservação pode ter um
caráter revolucionário. Acho que esse erro de percepção
de seus alunos é muito significativo, porque evidencia a
dificuldade de se transmitir um discurso científico sobre
o mundo social. Quando você diz as coisas são assim,
pensam que você está dizendo as coisas devem ser as
sim,
ou
é bom que as coisas sejam dessa forma,
ou
ainda o contrário,
as coisas não devem mais ser assim.
Em outras palavras, a maior parte dos discursos sobre o
mundo social, não só o dos políticos mas também o dos
intelectuais, dos religiosos (padres, pastores), é um dis
curso normativo. Na maior parte do tempo, fala-se do
mundo social para se dizer se ele vai bem ou mal, se deve
ser conservado ou se deve mudar. Quando o sociólogo
diz que tal instituição contribui para conservar, imediata
mente se atribui um juízo de valor ao seu enunciado:
contribui para conservar
e isso é bom e eu concordo,
ou
contribui para conservar
e isso é ruim e temos de fazer
uma revolução.
A segunda pergunta: será que mudei? Não.
Continuo a pensar que o sistema de ensino contribui
para conservar. Insisto sobre o contribui, o que é muito
importante aqui. Não digo
conserva, reproduz;
digo
contribui para conservar. O sistema de ensino é um
dos mecanismos pelos quais as estruturas sociais são
perpetuadas. Existem outros: o sistema sucessório, o
sistema econômico, a lógica da velha fórmula marxista
14
segundo a qual o "capital vai ao capital". Mas, nas so
ciedades modernas, o sistema de ensino tem um peso
maior, contribuindo com parte importante daquilo que
se perpetua entre as gerações. Uma parte importante da
transmissão do poder e dos privilégios se faz por inter
medio do sistema escolar, que serve ainda para subsu
mir outros mecanismos de transmissão, em particular
os que operam no interior da família. A família é uma
instância de transmissão muito importante, e o sistema
escolar a substitui, ratificando a transmissão familiar. O
sistema escolar vai dizer que tal criança é dotada para
a matemática, sem ver que existem cinco matemáticos
em sua árvore genealògica. Ou vai dizer que uma outra
criança não é dotada para a língua portuguesa ou fran
cesa, sem ver que ela vem de um meio de imigrantes
ele. O sistema escolar contribui, então, para ratificar,
sancionar, transformar em mérito escolar heranças cul-
turais que passam pela família. Desenvolvi tudo isso em
meus trabalhos anteriores. Mas a percepção do que fiz
mudou. Parte dos estudantes que se recusavam a 1er
meus trabalhos nos anos 70 converteram-se ao neoli-
beralismo e ao que chamam de globalização;
3
estes
devem pensar que sou revolucionário. Entretanto, sobre
esses problemas como sobre muitos outros, digo quase
a mesma coisa que antigamente. A conclusão para mim
e muito clara: não fui eu que mudei; os intelectuais é
que mudaram e passaram, em massa, da extrema es
querda para uma direita mais ou menos temperada -
tanto na Europa como na América do Sul.
3
Duran te a en trev is ta , Bourd ieu emprega o te rmo
mondialization (mundialização), utilizado mais freqüente
mente em língua francesa para nomear o fenômeno da
globalização. (N. da R.T.)
15
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M A -
O senhor diz que não mudou, que o
que mudou foi a percepção que temos do senhor.
Todavia, em sua trajetória política e intelectual é
possível identificar uma evolução do pessimism o
para a utopia. E possível dizer que o senhor cons
truiu sua trajetória no sentido oposto à tendência
prevalente no tempo? Em um contexto intelectual
dominado pela utopia marxista transformadora, sua
obra tendia para uma interpretação de tipo pessi
mista. Agora, ao contrário, quando o clima ficou
pessimista e até mesm o fatalista, no contexto da
inevitável globalização, o senhor se tornou um gran
de defensor da transformação ?
PB - Eu não falaria em otimismo e pessi
mismo. Para mim, são categorias que se projetam so
bre o trabalho científico. Posso, no plano pessoal, estar
otimista ou pessimista, dependendo do dia, como todo
mundo. São propriedades do caráter da pessoa que não
deveriam intervir no trabalho nem no julgamento sobre
o trabalho. E claro que minha visão do mundo social
tem aspectos constantes e, além disso, não sou de fazer
autocríticas exageradas. Minha autocrítica é feita no
cotidiano. Quando se é pesquisador, acumula-se conhe
cimento: por exemplo, há uma relação entre a origem
social e o sucesso escolar, como existem mecanismos
sociais que mantêm essa relação. Mas certas coisas
mudam o tempo todo. Se retomamos meu trabalho,
desde
Les héritiers
[Os herdeiros] até
La noblesse
d'Etat
[A nobreza de Estado], e mesmo num capítulo
sobre educação em
A miséria do mundo,
vemos que
conceitos mudam o tempo todo em cima de uma base
de constantes, de conhecimentos que se refinam, tor
nam-se mais precisos, corrigem-se e se sistematizam.
Hoje, posso contar o resultado de minhas pesquisas de
maneira muito mais económica, mais clara, com mais
domínio, pois me parece que o sistema explicativo, o
sistema de conceitos é mais coerente e ajustado.
O que muda também é o mundo, e, como
você evocou, tenho a tendência de ir contra a maré,
contra a corrente. Quando todos os intelectuais eram
marxistas, eu era mais weberiano, porque eles me irri-
tavam e para irritá-los. E também para defender a auto
nomia da pesquisa contra modismos. Muitos desses
marxistas precoces tornaram-se muito conservadores e
me denunciam, hoje em dia, como o último dos marxis-
tas, o que nunca fui e nem serei. Esse espírito de con-
tradição está ligado, sem dúvida, à minha trajetória so
cial, às minhas origens sociais e mesmo regionais. Acho
que as pessoas do sudoeste da França são um pouco
como os irlandeses, que, no mundo anglo-saxão, são
subversivos, coléricos, descontentes, fizeram revolu
ções na literatura (penso em Shaw e, sobretudo, em
Joyce e Beckett). O fato de ser provinciano, de ter
vindo de uma pequena cidade do interior, de ser mal
integrado ao mundo parisiense, ao mesmo tempo por
escolha e por destino, tem muita importância. Tenho
colegas sociólogos que não posso ouvir sem discordar.
Seja porque a maneira como falam desmente o que estão
dizendo, seja porque o que dizem está de fato em con-
tradição com o que penso.
M A -
O senhor acredita que esta é uma
característica de pessoas da região do Béarn?
PB - Não nego que, em parte, minhas postu
ras,
minhas disposições, minha relação com o mundo
intelectual vêm do fato de que tenho origem provinci-
16
17
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11/53
ana, do Béarn; mas evidentemente essas disposições
são modeladas pela posição que ocupo num certo cam
po , em dado momento. Para responder sua questão e
evitar falar de mim, vou falar de Foucault e do tipo de
explicação que, às vezes, é dado às suas preferências
sexuais. Certos americanos incomodados pelo pensa
mento de Foucault - por ele ser muito subversivo, muito
crítico - tentaram demonstrar que seu pensamento po
deria ser deduzido do fato de ele ser homossexual e
mesmo sadomasoquista. Penso que se Foucault não ti
vesse sido homossexual, não teria sido o que foi. Po
deria ter sido um importante pensador francês, que te
ria feito uma tese magnífica sobre Kant, mas não teria
trazido ao mundo a subversão que trouxe. Mas daí a
deduzir seu pensamento do fato de ele ser homossexual
é grotesco. Afinal, há m uitos homossexuais, mas só um
Foucault. Em meu caso, é um pouco assim: sou do
Béarn e há muitas pessoas do Béarn. Isso significa que
há uma disposição ligada a uma trajetória, um estilo,
uma maneira de falar , um tom de voz. Georges
Canguilhem, um de m eus mestres e a quem eu admirava
muito, ao falar dava sempre a impressão de estar bri
gando, os alunos ficavam atenorizados. Às vezes, dizia
coisas terríveis aos alunos, achava-os muito parisienses.
Na verdade, sua maneira de ser, de falar, tem a ver, em
parte, com sua origem no sudoeste. Um dia mandei para
ele um texto sobre a idéia de região. Era um artigo
sobre Montesquieu, sobre
Le Nord et le Midi,
onde eu
mostrava que existe um racismo das pessoas do norte
da França em relação às pessoas do M idi,
4
que pode ser
4
O Midi é uma região situada no centro da França.
(N. daR . T.)
18
encontrado em textos de Montesquieu que já tinham
sido comentados umas cem vezes sem que isso fosse
percebido. E junto tinha um texto sobre o regionalismo
ocitano, que ele leu também e me disse: "Gostei muito
de seu texto sobre a região, se bem que eu não seja uma
pessoa que vá colocar um adesivo OC
5
no vidro do
carro". Ele não queria bancar o diferente, fazer um
gênero subversivo. Essa é uma atitude típica de uma
certa maneira de ser.
Sobre minha relação com o mundo intelec
tual, é verdade que sempre fui um problema para a for
ma dominante de vida intelectual. Em meu primeiro
livro imp ortante, Travail et travailleurs en Algérie [Tra
balho e trabalhadores na Argélia], há um longo prefácio
no qual digo o quanto foi difícil fazer sociologia numa
situação colonial. Ataquei violentamente Michel Leiris,
que escrevia o que, aos meus olhos de trinta anos de
idade, era uma bobagem sobre as bobagens de Sartre
acerca do destino do colonizado, sobre a liberdade e a
responsabilidade do colonizador que não pode entender
o colonizado, blablablá. Enfim, que usava um adesivo
OC
no vidro do carro. E eu dizia: é muito difícil, não
é bem assim, é difícil na prática, mas a gente pode
ultrapassar esses problemas. Eu não me contentava em
lomar posições apenas aparentes. Queria ver de perto
esse problema da colonização e fui à Argélia com meu
amigo Sayad. E o que se passava lá era terrível, mas
diferente do que se dizia em Paris.
Muitas vezes fui considerado suspeito. Uma
vez voltei a Paris, em 1958, e disse que só uma pessoa
poderia solucionar a Argélia, e essa pessoa era De
OC, de Occitan (ocitano). (N. daR. T.)
19
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
12/53
Gaulle. Não era tão difícil; bastava um pouco de refle
xão.
Pronto: "Bourdieu se tornou gaulista". Isso é um
exemplo da forma de raciocínio dos intelectuais fran
ceses.
Eu estava dizendo que era necessário refletir
sobre a situação. Tínhamos um exército nacionalista,
fascistóide, e seria preciso um general que submetesse
esse exército, e que esse general não podeira ser qual
quer pessoa.
Voltando à questão da educação, é a mesma
coisa. Eu era visto como conservador, como tendo
criticado a escola libertária. Todo o Partido Comunis
ta adorava a idéia da escola libertária. Tinha até uma
revista chamada Escola Libertária. Na Semana do Pen
samento Marxista, organizada pelo Partido Comunis
ta, afirmei: "Aqueles que a escola libertou colocam
sua fé numa escola libertária que está a serviço da
escola conservadora". Lembro da frase porque a pro
nunciei diante de três mil comunistas, e não dá para
esquecer as vaias que recebi. Hoje, os mesmos que
me vaiaram há trinta anos repetem o que eu disse;
finalmente puderam compreender.
M A -
Foi nessa época da Argélia que o
senhor passou da filosofia à sociologia e à etnologia,
depois à política. Como o senhor vê a passagem por
esses diferentes domínios?
PB - Isso se deu pouco a pouco. Eu não diria
que passei para a política. Continuo a fazer sociologia.
Só que falo de outra maneira. A pergunta seria: por que
vemos mudança onde existe continuidade e, por outro
lado, quais são as mudanças reais? Bem, com relação à
mudança real, penso que, nos últimos dez anos mais ou
menos, as sociedades modernas, especialmente as so
ciedades européias avançadas, com grande capital so
cial e histórico, estão em perigo. Lembro que quando
disse, na Gare de Lyon, em 1995, não recordo exata
mente a frase, mas sei que usei a palavra
civilização -
"é uma civilização que está em perigo" -, pensei:
"Bourdieu, não é possível, você está exagerando " E,
como detesto bancar o intelectual que diz grandes fra
ses,
eu disse a mim mesmo: "Bourdieu você bancou o
intelectual, isso é um exagero". Na verdade eu estava
com muito mais razão do que pensava. Nesse processo,
estão ameaçados, por um lado, os oito séculos de tra
balho intelectual que foram necessários para se definir
o que é um artista, o que é um escritor; por outro, dois
ou três séculos de luta social, combates, greves e lutas
sindicais para inventar formas muito complexas de
regulação das sociedades humanas.
Recentemente, fui falar a sindicalistas ale
mães e minha intenção era dizer algo que eles já sa
biam. Eu não estava indo dar aula, mas sim levar uma
confirmação autorizada por estudos e pesquisas de ou-
tros autores. Eu queria dizer: "Vocês possuem tradições
absolutamente extraordinárias". O sindicalismo alemão
atual, desenvolvido depois da Segunda Guerra, é muito
refinado, dos m ais sofisticados do mundo . Para dar peso
ao que eu dizia, citei os textos políticos de Marcel
Mauss, sociólogo durkheimiano que me precedeu na
cadeira do Collège de France e que escrevia também
para o
l'Humanité
(antes da cisão com o PC, ele fazia
esses atos militantes). Em seus
Escritos políticos,
há
um tema que reaparece o tempo todo, de forma obses
siva, que é o das cooperativas operárias. Ele conta o
caso de um congresso no qual as pessoas inventavam
novas formas de previdência social. Era uma invenção
2
21
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13/53
tão complicada quanto a máquina a vapor. Seria neces
sário que intelectuais, juristas, sociólogos, economis
tas e trabalhadores de todos os países europeus chegas
sem a um acordo. Estou querendo dizer que muitas
coisas que nos parecem evidentes - como a previdência
social, o seguro contra acidentes de trabalho, o seguro
de saúde - tiveram de ser inventadas, e tudo isso foi
muito difícil, muito complicado. Não lembro do exem
plo preciso, era um detalhe que passaria por banal aos
nossos olhos, mas que provocou discussões interminá
veis,
pois não conseguiam solucionar.
Em nome da globalização, estamos acabando
com tudo isso. Essas conquistas são vistas como obs
táculos ao desenvolvimento econômico e à concorrên
cia, ligadas à inércia dos "parceiros sociais" que se
agarram a tradições sociais ultrapassadas. São descritas
como arcaicas, como velharias européias, estão em
perigo, mas são socialmente tão importantes quanto a
Nona sinfonia.
Aqui entra o trabalho do sociólogo (e
não passei para a política): como profissional inserido
num campo científico, posso prever, ver coisas que os
leigos ou mesmo os políticos não enxergam. Existem
políticos cínicos - nós temos muitos e vocês também
- que possuem uma cultura científica grande o bastante
para manipular os fatos, mas não o suficiente para fazer
o que lhes cabe. O conhecimento do mundo social
permite ver coisas que os outros não vêem: como a
precarização, fenômeno que não inventei, mas que con
tribuí para tornar visível dizendo coisas importantes a
respeito. Podemos ver as coisas e suas conseqüências
ocultas. Por exemplo: atualmente, existe a tendência de
se substituírem os CDI (contratos de trabalho de dura
ção indeterminada) pelos CDD (contratos de duração
determinada), os empregos permanentes pelos empre
gos temporários. São pequenas medidas tomadas todos
os dias, nos mais diferentes setores. Se as pessoas lu-
tam, defendem seus di rei tos , são acusadas de
corporativistas. Na verdade esse tipo de medida terá
conseqüências que só vão aparecer em 2030. Para quem
sabe ver, elas já estão presentes no Brasil, por exemplo.
Neste momento, estão acontecendo na França coisas
que já foram feitas no Brasil, na Argentina, pelos
Chi
cago Boys,
e vemos as conseqüências: aumento de
desemprego , v io lênc ia , c r imina l idade , r e l ig iões
milenaristas, pentecostalistas etc. Essas conseqüências
são encontradas também nos guetos de Chicago, ao lado
do campus universitário simpático dos
Chicago Boys.
MA -
O que o senhor chama de
Chicago
Boys?
PB - As pessoas que venderam um modelo
econômico neoliberal radical, como as que aconselha
ram Pinochet, e que estimularam a aplicação desse
modelo. O que digo pode parecer um exagero, mas sei
que existem economistas, sociólogos, pessoas que es
tão trabalhando para estabelecer a relação estatística
entre certas políticas econômicas e as conseqüências
sociais. Por exemplo: será que existe uma relação en
tre a política neoliberal radical e o aumento da violên
cia? Na ciência
mainstream,
infelizmente fenômenos
como esses são estudados por pessoas diferentes. De
um lado você tem os economistas e de outro os soció
logos.
Pede-se aos sociólogos que consertem aquilo
que não deu certo na ação dos economistas. E se diz
que os sociólogos são politizados simplesmente por
que buscam uma verdade produzida pela cegueira dos
22
23
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14/53
outros. Se parece que mudei, se pareço ter mudado é
porque estou mais velho, sou mais conhecido, mas tam
bém porque, quando digo coisas, elas são mais visíveis.
Mas, sobretudo, como o mundo mudou, como o mundo
está em perigo, me parece um dever profissional falar.
Um sociólogo que cala, ou ele não vê, não enxerga, não
é competente, ou vê e se acomoda. Uma das funções
que me dou ao tomar a palavra é estimular outras pes
soas,
que podem saber mais do que eu, a também tomar
a palavra. Fiz isso recentemente numa reunião de um
grupo de especialistas em economia, e que eu esperava
que fosse uma missão impossível. Tomei a palavra e
dois economistas hard me apoiaram, falaram a meu
favor, e depois três, quatro, e às três horas da tarde eu
tinha metade dos participantes do meu lado. Minha fala
contribuiu para quebrar a censura do que é oficial, ou
melhor, a aparência de unanimidade que favorece os
discursos oficiais em situações oficiais.
M A - No prefácio de seu livro Contrafogos,
o senhor diz que tomou algumas posições políticas
levado pela vontade de romper a aparência de una
nimidade, elem ento essencial da força simbólica do
minante. O senhor poderia falar um pouco em que
consiste a unanimidade desse discurso?
PB - Isso seria uma análise enorme. Há um
discurso central, um certo número de proposições fun
damentais da teoria económica, um certo número de
princípios coerentes que fundam uma visão de mundo.
Essa visão coerente de mundo, dominada por um núm e
ro restrito de pessoas - muito formalizada, muito abs
trata -, dá aval aos discursos neoliberais produzidos na
França por políticos que se dizem liberais e defendem
24
o retorno ao
laissez-faire,
pedem menos Estado, coisas
assim. Mas é utilizada também por um conjunto de
ensaístas, jornalistas escritores ou escritores jornalis-
tas, cujo protótipo é Alain Mine, que tem muitos con
correntes, os quais, mais ou menos lidos em economia,
repetem variantes
softs
e frouxas do discurso central.
Esse discurso central é muito importante porque serve
de caução. E como nas filosofias emanatistas: vai-se de
Deus à maior imundície pelo fato de que há um Deus
no fim da cadeia, da Grande Cadeia do Ser. Na econo
mia, a matemática é muito importante porque confere
um ar científico a tudo. A força social desse discurso
rslá na base matemática, científica, e também no con
senso que se impôs paulatinamente ao conjunto do corpo
intelectual e mesmo às forças sociais. Quando fazemos
pesquisa, podemos encontrar nos trabalhadores de base
os traços, os efeitos do que não está na propaganda,
mas que vem da opinião comum de seu tempo. Por
estarem permanentemente expostos ao longo do dia aos
índices da Bolsa, ao Dow Jones, interiorizaram pouco
a pouco uma visão de que a proteção social é um obs-
táculo ao progresso, ou mais precisamente à criação de
empregos. Essa idéia se tornou uma doxa, ou seja, mais
do que um
dogma
(palavra da mesma família que
doxa):
um conjunto de crenças que não precisam sequer ser
enunciadas, que existem por si mesmas. O papel dos
intelectuais, ao menos dos sociólogos, deveria ser o de
romper com isso, de quebrar essa chapa transparente de
evidências que impede que se coloquem questões e que
se pense.
M A -
Tudo isto certamente está ligado ao
processo de globalização. E possível falar num novo
25
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
15/53
modo de dominação? Nesse caso, em que consiste
esse modo de dominação e qual a diferença em rela
ção ao antigo?
PB - Um primeiro problema é a imposição
quase mundial de uma visão de mundo condensada na
palavra
globalização.
Essa visão tem como centro qua
tro ou cinco postulados que são formas distorcidas da
teoria económica. O primeiro postulado é que a econo
mia é um domínio à parte, separado do mundo social,
governado por leis naturais, universais, que os governos
não devem contrariar. O segundo postulado diz que o
mercado é a instância capaz de organizar de forma óti
ma as relações sociais, as trocas, a produção etc, e
também de garantir uma distribuição equitativa. Faz-se
uma equação entre mercado e democracia. O terceiro
postulado afirma que a globalização exige a redução das
despesas do Estado, a diminuição das despesas sociais
- ou seja, o retorno ao laissez-faire - e a supressão de
tudo o que possa turvar a lógica pura do mercado. Os
direitos sociais em matéria de emprego, em matéria de
previdência social , são vis tos como onerosos e
disfuncionais. Há também todo um discurso segundo o
qual o
welfare state
[estado de bem-estar social] esti
mula a preguiça, velho discurso americano ligado à tra
dição calvinista do
self-help
[se virar por conta pró
pria].
Muitas coisas que nos são vendidas como prove
nientes da economia pura e universal não passam da
universalização de uma visão histórica muito precisa: a
visão de mundo americana. O famoso livro de Max
Weber
A ética protestante e o espírito do capitalismo
começa por um texto de Benjamin Franklin que enun cia
um certo número de preceitos econômicos que são, ao
mesmo tempo, preceitos morais. De fato, há uma moral
26
americana da poupança, da ascese econômica, que está
no centro da noção de self-help. Nesse momento, no
inundo inteiro, só se fala em responsabilidade. Eviden
nente o axioma principal é que o pobre é responsável
por sua pobreza. Em meu jargão, digo que isso é uma
sociodicéia, ou seja, uma narrativa que tem por função
justificar a sociedade tal como ela é. O pobre é pobre
e deve ficar contente com isso. Essa visão de mundo se
uiundializou por mecanismos que já evoquei e, em par
ticular, por intermédio do think tanks.
6
Vale a pena 1er
um pequeno livro de Keith Dixon que publicamos,
Les
evangelistes du marché [Os evangelistas do mercado],
que mostra como se deu a produção quase organizada
do discurso sobre o mundo social, sobre o mundo eco
nômico, que foi repassada e difundida por grupos,
lobbies, jornalistas, tendo, em geral, muito dinheiro por
trás. Mas existe também uma espécie de dialética, de
causalidade circular, entre os mecanismos de domina
ção econômica e os mecanismos de dominação simbó
lica. Hoje, temos festa de Halloween, McDonald's em
qualquer bairro de Paris. De onde vem isso? Do impe
rialismo cultural, que passa pelo imperialismo econô
mico, que, por sua vez, apóia-se nos efeitos do imperi-
alismo cultural que se exerce principalmente sobre os
jovens, por vezes mesmo sobre as crianças.
Esse processo de globalização dos discursos
se acompanha de processos reais. Pode-se dizer que a
globalização é um mito, um instrumento de combate
ideológico muito forte e funcional para os dominantes,
6
Expressão ligada à idéia de interdisciplinaridade. Com o
substantivo significa instituto, corporação ou grupo orga
nizado para realização de pesquisa interdisciplinar, seja de
problemas tecnológicos ou sociais. (N. da R. T.)
27
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
16/53
na luta contra as conquistas sociais. Eles dizem: "Vocês
não podem mais ter tudo isso (os direitos), os coreanos
não têm, vocês também não; os brasileiros fabricam
automóveis Toyota mais barato, então não nos aborre
çam com os direitos dos trabalhadores da Renault". Ao
mesmo tempo, essa mitologia tem bases objetivas:
existe de fato uma globalização. De quê? Globalização
dos capitais, com investimentos diretos no estrangeiro.
Existe um número cada vez m aior de pessoas que inves
tem diretamente no estrangeiro, franceses que inves
tem nos Estados Unidos, brasileiros que investem na
Guatemala, capital que vai aonde o trabalho é mais ba
rato.
Uma das armas reais é a
deslocalização:
"Se vocês
resistem, deslocamos a fábrica para a Coréia, Tunísia,
Marrocos, onde a mão-de-obra é mais barata". Esse
processo se acompanha de mudanças jurídico-políticas
que podem ser reagrupadas sob a rubr ica da
desregulamentação.
Desregulamentação, sobretudo, da
circulação de capitais.
Por que a sociologia foi levada a imiscuir-se
em tudo isso? Porque os fatores explicativos são exte
riores ao que se considera tradicionalmente como so
ciologia. E um drama para a sociologia e para a econo
mia que elas tenham deixado que fosse estabelecida
essa fronteira, implicada naquele primeiro postulado: a
economia é de uma ordem separada, quase natural, da
qual o social está excluído. Quando se aceita essa rup
tura, esse corte, deixa-se de compreender um dos pro
cessos sociais mais importantes do mundo atual, que é
a destruição de todos os coletivos. E o Estado, os sin
dicatos, as associações, a família, as empresas esta
tais... Todo o processo de desregulamentação leva à
pr iva t i zação . Em todas as soc iedades onde o
28
neoliberalismo se encontra em estágio avançado, como
no Brasil, assiste-se à passagem da saúde pública à saú
de privada, da escola pública à escola privada, com to
as as conseqüências que essas passagens implicam:
crescimento das desigualdades, porque a escola é
reprodutora, mas é ainda mais quando privada ou
privatizada, submetida aos interesses privados, como é
o caso cada vez mais freqüente. Passa-se de uma poli-
cia pública a uma polícia privada, como nos Estados
Unidos. O caso da medicina é típico: há uma medicina
de verdade para quem pode pagar e, para os pobres, um
arremedo de medicina.
Um grande pesquisador, que foi meu aluno,
Ives Dezalay, escreveu um livro brilhante sobre a
globalização do direito. Ele mostra como o direito
americano, através das
Law Firms,
espalhou-se por
todo o planeta, com enormes conseqüências políticas
e práticas. Agora ele está preparando um trabalho so
as organizações não-governamentais para mostrar
que, sob a aparência de grande generosidade, as ONG s
sao, muito freqüentemente, o braço esquerdo do FMI.
De um lado, temos o FMI, que enfraquece os Estados
(que, às vezes, mal se constituíram), impõe restrições
orçamentárias, joga na rua os desempregados (aqui,
podemos tomar o exemplo do Brasil, onde se registra
aumento do desemprego, da distância entre ricos e
pobres, a concentração da riqueza); paralelamente,
ocorre o desenvolvimento de organizações humanitá
rias,
de ONGs que suplementam o Estado, preenchem
funções que anteriormente pertenciam ao Estado, à
mao esquerda do Estado. A escola, a saúde e a educa
o passam a depender cada vez mais de instituições
humanitárias não-governamentais menos independen-
29
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
17/53
tes do que os Estados em relação às forças econômi
cas mundiais, às intermitencias de suas generosidades e
às flutuações de suas políticas.
Não sou um "poeta" da restauração do Estado
a qualquer preço. Sabe-se que as burocracias carregam
uma enorme possibilidade de vícios, mas é também claro
que, quando o Estado se retira completamente, o qu e se
tem é o gueto de Chicago tal como evocamos em
A
miséria do mundo: subúrbios problemáticos, onde não
há mais escola nem trabalhadores sociais. O setor hu
manitário que não é Estado é composto de instâncias
privadas, orientadas por interesses privados, por pes
soas que visam ao lucro privado e que sabem muito
bem se servir de subvenções mundiais para fazer valer
seus interesses. Simplificando bastante as análises de
Yves Dezalay, podemos dizer que os sujeitos brilhantes
que saem de Harvard ou de Chicago têm dois caminhos:
a via do FMI ou a via das ONG s; são pessoas de origem
social muito alta, cultas, que falam diversas línguas, que
se aliam às populações locais um pouco marginalizadas
do ponto de vista escolar; em geral, pessoas que deixa
ram os estudos, mas que têm capital social ligado às
suas origens e, dessa forma, conseguem entrar em com
petição com o sistema escolar, condenado como arcai
co , velho, enquanto que elas são modernas, têm méto
dos novos etc. Não conheço bem a situação brasileira
nesse ponto, portanto só posso falar de uma maneira
abstrata e geral.
M A -
Muitos intelectuais se manifestaram
a favor do racionalismo científico, que inspira tam
bém a política do FMI e do Banco Mundial. O senhor
afirma que nenhuma visão de mundo se impõe ou se
3
desfaz sem a contribuição dos intelectuais. Como vê
a contribuição dos intelectuais, em particular a dos
sociólogos, hoje? Os sociólogos têm, nesse sentido,
um papel especial?
PB - Existe o problema geral da contribui
ção,
ativa ou passiva, dos intelectuais para a globalização,
para uma visão do mundo econômico e social, e existe
o problema particular dos sociólogos, que, caso fizes
sem seu trabalho, deveriam produzir um discurso muito
mais dissonante do que o fazem de fato. Os intelectuais
em sentido amplo, notadamente os filósofos e escrito-
ees, não estão necessariamente preparados para com
preender o que se passa. Eu mesmo tentei mobilizar
escritores, pessoas eminentes, que admiro muito, mas
que se mostram incapazes de lidar com o mundo tal
como ele é. Isso vale também para os grandes cientis-
las, os grandes matemáticos, os grandes físicos. E uma
constatação. Um poeta de vanguarda, por exemplo, tem
um trabalho tremendo para ficar a par do que está acon
tecendo, para conhecer o que se faz em seu campo. A
mesma coisa, no caso do artista ou do historiador. É um
trabalho em tempo integral. Para entender o silêncio de
muitos intelectuais, é preciso compreender que eles
têm muito trabalho. Eles não dispõem do tempo neces
sário. Alguns deles usam o final de semana para fazer
um trabalho de cidadania, escrever petições, o que já é
muito. Existe também o fato de os intelectuais não
estarem preparados para intervir no mundo político, nem
preparados nem inclinados. Você poderia dizer que há
os profissionais do conhecimento, do mundo social, os
economistas, os sociólogos, os antropólogos, pessoas
cuja ocupação é estudar o mundo social. Mas isso tam
bém não se passa dessa maneira. Essas pessoas podem
31
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
18/53
estar fechadas em suas pequenas especialidades. Po
dem estudar, por exemplo, a escolaridade numa favela
do Brasil, ou o recrutamento social na Universidade de
Coimbra, ou em T óquio, mas se você pede para fazerem
uma relação entre aquilo que estudam e o FM I, o Banco
Mundial, mostrando que o que se passa em Coimbra ou
em Tóquio, conforme comprovam as estatísticas, só
pode ser entendido se analisamos o conjunto da evolu
ção; se você diz esse tipo de coisa, escuta como res
posta: "Ele é politizado, quer me politizar, quer me tirar
de minha especialidade".
Falo de um tipo de reflexividade sobre a
posição ocupada no mundo científico, que tem também
suas relações de força e dominação. E é nesse sentido
que posso convencer as pessoas de boa-fé de que a
preocupação com os grandes problemas contemporâ
neos não é uma espécie de luxo, não é assinar uma
petição para ficar com a consciência tranqüila. Se aos
outros isso poderia trazer muitas vantagens, para os so
ciólogos é imperativo. Estou convencido de que pode
riam compreender melhor aquilo que fazem e, às vezes,
fazer melhor. Para os sociólogos, é uma questão de
interesse, é claro. Porque não é possível abstrair tudo
o que se passa no mundo econômico. Porque se quiser
mos fazer uma caixa, por menor que seja, de modo a se
ter certeza de controlar todos os parâmetros, de poder
medir tudo, contar etc, correremos o risco de fazer
uma caixa tão pequena que não caberá nada dentro. Penso
que,
em sociologia, muita gente trabalha em caixas va
zias. Porque o essencial dos fatores explicativos está
do lado de fora, muito longe. Por exemplo: você estuda
os problemas escolares num subúrbio, mas o problema
está na Escola Nacional de Administração (ENA). Se
32
você estuda violência numa favela ou num subúrbio de
Amsterdã, o problema pode estar no FMI. Sei que estou
exagerando, mas acredito que é preciso chamar a aten
ção para esses fatos.
Todos os grandes soció logos - Marx ,
Durkheim, Weber - sabiam disso e levavam esse tipo
de coisa em conta em sua prática. E, por favor, não
entenda isso como "holismo" e como se fosse um pe
cado. Para os economistas, existem os individualistas,
que explicam as ações humanas a partir de determinantes
individuais, dos interesses, das paixões, das pulsões; e,
de outro lado, existem os holistas. Holista é sinónimo
de marxista, o que engloba também todas as pessoas
consideradas pouco sérias, que trazem grandes totalida
des (holos significa tudo), totalidades suspeitas, que
não podem ser reduzidas a variáveis. Holista significa
tambem que se refere ao "social". Mas, ao contrário de
um dos dualismos mais potentes do pensamento co
mum, o todo social não se opõe ao indivíduo. Ele está
presente em cada um de nós, sob a forma do habitus,
que se implanta e se impõe a cada um de nós através da
educação, da linguagem ... Tudo o que somos é produto
da incorporação da totalidade. O FMI está em nós.
Sobretudo naqueles que sofrem mais agudamente as
conseqüências de sua política. Essa dicotomia puramente
escolar entre holistas e individualistas, que os profes
sores repetem, reproduzem, e que lhes permite fazer
planos de curso (primeira parte: holistas; segunda par
e: individualistas) é um desastre.
M A - No Brasil, isso também se aplica: é
muito comum dizer-se que a classe média é individu
lista e que a classe popular e os operários são
holistas.
33
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
19/53
PB - Eu não sabia. É interessante. Todas as
oposições - alma/corpo, individual/coletivo, único/co
mum - são oposições de classe. Diz-se: é único, singu
lar, inimitável, portanto raro, bom; e, ao contrário, co
mum, banal, ordinário, médio, na média, logo ruim. A
sociologia está sempre numa posição de centro e ao
lado da média. Heidegger, por exemplo, tem um texto
que se tornou clássico, um dos textos sagrados na filo
sofia, o texto sobre o "on".
7
Esse texto é comentado
por todos os filósofos sem que eles percebam que o
que está em jogo é uma questão de meios de comuni
cação, de transporte em comum e de (previdência) so
cial. Há uma crítica contra a média identificada ao
nivelamento. O médio é opaco, obscuro, "os obscuros,
sem classe". Se você abrir um dicionário e consultar os
verbetes um, único, encontrará como antônimos os ter
mos
comum, banal
etc, e pouco a pouco se constitui
uma rede com todos os adjetivos, todo o sistema de
adjetivos no qual o bom está sempre ao lado do
um
e
o ruim ao lado do
comum.
E simples. Temos essa estru
tura na cabeça e ela funciona o tempo todo.
M A -
Voltando aos sociólogos, temos hoje,
no Brasil, uma situação na qual a política neoliberal
é conduzida por um sociólogo, de um partido social-
democrata, que se cerca de colaboradores formados
nas melhores universidades do país. O senhor acredi-
1
Bourdieu se refere ao parágrafo 27 de Ser
e
tempo, sobre a
questão da anonimidade ou impessoalidade do cotidiano.
Em francês,
on
é a tradução do pronome alemão
man,
que
caracteriza o sujeito im pessoal. N a falta de um pronome com
a mesma função, na tradução brasileira foi usado o impessoal
(Martin Heidegger.
Ser e
tempo. Petrópolis: Vozes, 1989. Tra
dução de Márcia de Sá Cav alcante). (N. da
R.
T.)
34
la que isso acontece porque, estando no governo, es
ses intelectuais se vêem obrigados a agir muito mais
de acordo com a lógica política do que com a lógica
intelectual? E se usam a lógica política, seria possível
dizer que possuem uma margem de manobra restrita?
PB - A questão é muito difícil. Será possível
explicar a conduta política de um homem pelo campo
político no qual está inserido ou pelas disposições
socialmente constituídas que ele carregou para essa
posição? De fato, os dois, em proporções que cabe
determinar. Mas penso que se alguém se torna presi
dente social-democrata a serviço das lógicas dominan-
les é porque já tinha disposições nesse sentido. De
qualquer maneira, é claro também que só se pode acei-
lar a idéia de que ele age pela força de compromissos
ligados à posição política como uma desculpa. Como
um álibi. É isso que diz Jospin, é o que diz Schroeder,
e o que diz Blair, é o que diz Cardoso. Os mesmos que
me condenam por supostas posições deterministas di-
zem-se favoráveis à liberdade, ao individualismo, todos
os bons valores. Um homem político, por mais domi
nado que seja, por mais que esteja ligado a uma posição
política dominada, num país dominado, tem uma mar
gem de liberdade que lhe permite agir. Essa margem de
liberdade pode consistir em dizer a aqueles que o ele
geram que existe uma margem de liberdade e que é
preciso que o apoiem para que ele possa usar essa
margem de liberdade (ou se servir dessa margem) para
ampliá-la. Mas o que temos visto é esses políticos
usarem a vulgata segundo a qual a globalização exclui
toda a margem de liberdade, para não terem de usar a
pouca que têm e para privar de liberdade os governados.
Má espaço de liberdade, sim, isso não é utopia.
35
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
20/53
M A - O senhor quer dizer que essas pes
soas têm limites, mas também margens de manobras.
Passando desse ponto à relação dessas pessoas com
a esquerda, no caso de Cardoso, por exemplo. Ele diz
que a esquerda é neoboba ...
PB - A força social desse discurso confor
mista vem do fato de ele colocar o pensamento crítico
em descrédito. Uma das grandes mudanças da época
atual é a tendência dominante, mesmo no meio intelec
tual, ao conformismo. Lembremos um exemplo sim
ples: quando Sartre foi convidado a almoçar no Palácio
do Governo dos Élysées e se recusou a ir, ficou ime
diatamente claro que se tratava de um ato de autonomia
intelectual. Se um intelectual age dessa maneira hoje, é
considerado louco ou grosseiro. Vão surgir comentá
rios do tipo: "Que atitude ultrapassada, isso é uma for
ma velha de luta". Os intelectuais se acham uma cate
goria muito livre, mas penso que, na verdade, eles se
submetem a constrangimentos e conformismos enor
mes, como o conformismo da boa maneira, do que é ou
não chique. As pessoas são hábeis em usar e jogar com
esse tipo de coisa, mostrar medo ou vergonha em um
ou outro momento, quando é adequado. Dito isso, seria
possível perguntar se já não haveria na fragilidade da
sociologia de alguns autores coisas que predisporiam a
esse tipo de papel.
M A - O senhor acredita que exista ou pos
sa existir um retorno à ética, como propõem certos
intelectuais, de modo a se reconstituir uma via alter
nativa a essa racionalização?
PB - Não. Sou bastante cético, pois é dificí
limo dar à ética uma força social. Acho que se existisse
36
um pouco mais de ética, o mundo intelectual mudaria
muito. Mas um a ética específica, bem precisa, um a ética
do rigor. Um belo exemplo é o livro
Prestiges et
prodiges de l'analogie [Prestígios e prodígios da ana
logia], no qual Bouveresse faz uma análise dos usos
laxistas dos modelos científicos no discurso filosófico
ou nas ciências sociais. Ele toma como exemplo, um
pouco como bode expiatório, e creio que com razão,
Régis Debray e os usos que ele faz do teorema de
Godei. Trata-se de um teorema complexo, que tem
condições de validade e aplicação muito precisas, cir
cunscritas aos sistemas formais. E Debray, sem a me
nor cerimónia, aplica-o ao sistema social com a apro
vação de Michel Serres, que fala de teorema de Gõdel-
Debray, o que é absolutamente cómico. Bouveresse
analisou esse tipo de apropriação, e imediatamente to
dos os jornalistas franceses o chamaram de velho rabu
gento, que, do alto do Collège de France, quer dar li
ções de rigor. Enquanto o que ele diz é que "é preciso
colocar moral na vida intelectual", e a moral da vida
intelectual é a lógica.
Dito isso, aqueles que pregam a moral, ao
menos na França, nem sempre são os mais virtuosos do
ponto de vista do que acabo de dizer. Para dar força
política à ética, é preciso ser competente. Ainda mais
quando essa ética vai contra as forças do minantes. Creio,
entretanto, que a exaltação da moral é um álibi, uma
maneira de não fazer política. Desde o início da entre
vista, você me pergunta: "Por que a política?" Penso
que uma das razões importantes de se querer entender
o mundo é ter interesse político no mundo. O que não
quer dizer uma tomada de posição política sobre o
mundo. Nunca tive pertencimento político, nunca fui
37
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
21/53
de um partido, sempre achei que ter engajamentos po
líticos funcionava como substituto de engajamentos
reais. Contudo, penso que ter um interesse político é
algo absolutamente fundamental para um intelectual.
Há uma forma de abordar os problemas, de ver as
questões, de apreender o mundo que está ligada ao
interesse político. Isso nos tira da indiferença, deixa
mos de ser espectadores. O que estou dizendo é abso
lutamente oposto a um dos preceitos da metodologia
oficial, colocada na conta de Max Weber e que, a meu
ver, constitui um paradoxo. Max Weber realmente fa
lou de neutralidade axiológica, querendo dizer que não
se deveriam fazer julgamentos de valor; mas nunca
disse que se deveria ser indiferente ao mundo social.
Ele foi um pensador engajado em tempo integral. Es
creveu textos magníficos sobre o papel do intelectual
em suas relações com a política etc. A pulsão política
é muito importante. A indiferença política é uma for
ma de distanciamento do mundo, uma maneira de se
tratar o mundo social como um espetáculo que se olha
do alto do pedestal científico. Sobre Foucault, eu dis
se nesta entrevista que se ele não fosse homossexual,
com todos os problemas pessoais e políticos implica
dos, não teria se questionado sobre uma grande quan
tidade de problemas científicos de primeira ordem.
Não os teria colocado daquela forma. No que me
concerne, passei minha vida transformando problemas
científicos em problemas políticos. A questão é saber
em que medida somos capazes de fazer isso. Quanto
mais um problema é político, mais difícil transformá-
lo . Luto contra todos que transformam problemas
políticos em problemas científicos. Para mim, a ética
é um álibi. As pessoas que na sociologia falam de
38
ética nesse momento não têm coragem de ver o mun
do como ele é e de se verem como são. Falando de
moral, não falam de política. E isso que está em ques
tão: assumem uma posição política mais chique.
M A - Falemos de moral de uma outra
maneira. O senhor acredita que a enorme massa de
sofrimento
-
que no Brasil se expressa em violência,
miséria, exclusão, insegurança, incerteza sobre o fu
turo - produzida pelo neoliberalismo poderá um dia
dar origem a um movimento capaz de acabar com
ele? E as religiões que crescem de forma proporcio
nal a esse estado de coisas, têm alguma chance de se
voltar contra a sociedade?
PB - As situações de crise são situações
críticas nas quais o mundo cai em pedaços. As pessoas
perdem as referências, ficam sem instrumentos para
totalização. Max Weber diz que a função principal da
religião é dar sentido e coerência prática, não teórica,
à existência, de modo que a pessoa se encontre, se
oriente. E dito a ela, por exemplo, o que deve comer,
como se vestir. Infelizmente, os profetismos religiosos
costumam se situar na lógica do escapismo {escapism,
como dizem os autores anglo-saxões), conduzindo a
visões milenaristas que se afastam do político no que
ele tem de brutal e insuportável. Poderíamos nos per
guntar onde seria possível encontrar forças sociais para
mudar esse mundo. E uma questão que me coloco, nem
tanto como pesquisador. Penso que o que está aconte
cendo é muito grave e que a humanidade está ameaçada.
Eu gostaria muito de defender um utopismo que fosse
realista. Mas para fazer isso é necessário conhecer o
mundo, é preciso ser velho e jovem ao mesmo tempo;
39
8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
22/53
entusiasta e ingenuo como um jovem, mas também
ponderado, sério, realista, um pouco pessimista e um
pouco triste como um velho. Aos 20 anos de idade, se
me falassem como falo hoje em dia, eu acharia a con
versa extremamente sinistra, baixo-astral. Arquimedes
dizia: "Dê-me um ponto e levantarei o mundo". E pre
ciso encontrar o ponto arquimediano. Quando vou à
Alemanha, fico pensando: "Pode ser o sindicalismo
alemão". Falo para eles: "Talvez vocês sejam aqueles
que vão salvar a Europa social". Ao dizer isso a eles, eu
me digo que eu talvez consiga reforçar um pouco sua
crença e isso poderia ajudar...
Mas você me pergunta também sobre os pre
gadores. Poderíamos imaginar um caso, bastante im
provável, de um intelectual muito refinado, extrema
mente culto, que tivesse interiorizado a sociologia, a
economia, a filosofia crítica, e que fosse capaz de tor
nar-se um líder religioso popular. Seria necessário que
ele apresentasse habilidades contraditórias: que fosse
muito intelectualizado, um pesquisador etc, e, ao mes
mo tempo, que não tivesse vergonha de se apresentar
em público, de subir em palco. Um dos grandes proble
mas do movimento social é encontrar novas formas de
luta social. É preciso continuar a fazer manifestações,
desfilar com bandeirolas, gritar slogans, mas é preciso
inventar novas formas. No mom ento da Guerra do Vietnã,
os estudantes americanos foram capazes de inventar um
monte de coisas: queimaram as carteiras de identidade,
as bandeiras, pois, sendo intelectuais, tinham capital e
eram mais livres. Seria preciso encontrar pessoas que,
em linguagem mais acessível, mais universal, portas
sem um discurso contra o neoliberalismo - o que falta
hoje em dia.
4
M A - Recentemente, o senhor escreveu um
livro sobre a televisão que constitui um reconheci
mento da importância desse meio de comunicação no
mundo atual e, ao mesmo tempo, uma crítica quase
cruel de seus efeitos. O senhor diz, por exemplo, que
a televisão produz um efeito global de despolitização
e mais exatamente um desencantamento com a
polí
tica. Diz que os jornalistas tendem a produzir uma
representação instantânea e descontínua do mundo,
através da qual passam, pouco a pouco, uma filoso
fia pessimista da história. Poderia nos dar alguns
exemplos?
PB - E muito difícil, pois eu teria de tomar
o exemplo de um jornal televisivo brasileiro e fazer
uma análise detalhada. E certo que teríamos uma série
de eventos sem ligação entre si, sem lógica interna,
acerca dos quais não saberíamos de onde vêm nem para
onde vão. Exceto no caso da mídia voltada para o públi
co culto, escolarizado, mas, mesmo nesse caso, os jor
nais televisivos são atemporais, a-históricos. A única
regra é que as notícias veiculadas devem ser as mais
frescas possíveis; não tem muito sentido, portanto, fa
zer retrospectivas. Mas nessa hora, sim, deveria produ
zir-se "globalização", ligar os fatos, relacioná-los. Se
um jornalista fizesse isso, seria acusado de estar fazen
do política, de estar tomando uma posição. Na lógica da
televisão, ao contrário, o que ele deve fazer é mostrar
imagens e nada além de imagens. Sabemos que as ima
gens podem ser manipuladas por um determinado
enquadramento ou por uma determinada técnica. O mais
grave, porém, é o fato mesmo de se isolar a imagem
daquilo de que ela é o complemento, de todo o contex-
to na qual ela adquire sentido e que a torna inteligível.
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23/53
As pessoas dizem: "Chega de humanitarismo, é muito
triste, não posso mais olhar para isso". E pior do que a
despolitização. Expulsam-se pessoas do m undo, de tudo
o que é importante, de tudo o que é sério. Existe uma
lógica do mundo jornalístico - e em particular da tele
visão - que tende a apresentar um mundo absurdo,
anedótico, sem pé nem cabeça.
M A - M as a TV já não é globalizada?
Quando acontece um fato importante, todos os ca
nais mostram exatamente as mesmas imagens. O se
nhor acredita que isso possa ter um efeito sobre o
imaginário das pessoas?
PB - Não temos muito como saber isso. O
problema se coloca por estar no debate público: será
que a violência na televisão provoca violência na vida?
Mas eu não aceitaria colocar as coisas dessa forma. É
um exemplo típico do que eu disse há pouco: temos um
problema social do qual fazemos um problema socioló
gico. No plano das lutas políticas, escutaríamos: "Exis
te violência porque existe violência na televisão; supri
mam a violência na televisão e não haverá mais violên
cia". Isso não é sério E então vai se solicitar o parecer
dos intelectuais sobre o problema. Não acredito que se
possa recortar o problema dessa maneira. A violência é
um problema com múltiplas causas, e a televisão pode
ser uma. Ela pode fornecer idéias de como exercer a
violência; dessa ou daquela outra forma. Há uma enor
midade de coisas que ainda não podemos estudar cien
tificamente. Uma coisa que constatei por meio de en
trevistas é o fato de um certo desprezo pela política
resultar, em parte, do efeito produzido pela televisão,
em particular o mundo político visto pela televisão, ou
42
seja, reduzido a pequenas frases. Os jornalistas políti
cos despolitizam quando aparentemente politizam de
terminado assunto. Eles dizem: "Isso é porque M.
Strauss-Khan faz oposição a M. Fabius", quando pode
ser que existam aí problemas de verdade, que um dis
corde do outro porque um é a favor da redução de
impostos e o outro, do aumento. Mas, como é mais
difícil compreender os problemas dos quais os políti
cos falam do que entender as relações entre os políti
cos, os jornalistas preferem contar sua historinha das
relações entre políticos, apresentar como um fato po
lítico o equivalente à fofoca. E mais fácil que estudar
o processo. E é mais um fator de despolitização.
MA -
O senhor diz que um dos efeitos mais
nefastos do neoliberalismo é a destruição das bases
econômicas e sociais das conquistas mais raras da
humanidade, da autonomia do universo da produção
cultural em relação ao mercado. O senhor indica como
um dos fenômenos mais importantes da atualidade a
extraordinária extensão da influência da televisão
sobre o conjunto das atividades culturais, incluindo
a produção científica e artística. A televisão e os meios
de comunicação tenderiam a se constituir, cada vez
mais, em instâncias de consagração de numerosas
atividades culturais, inclusive das científicas? Como
o senhor definiria a relação do jornalista e do pro
dutor de televisão com os intelectuais? A heteronomia
tende a se tornar uma característica do campo da
produção cultural?
PB - Sim, eu disse que se sabe muito pou
co sobre a violência, pois é difícil medir seus efeitos.
Nesse caso, o efeito que a televisão exerce sobre o
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jornalismo e sobre o conjunto das práticas jornalísticas
é passível de ser medido e observado, e que atinge
também a produção cultural em suas diferentes for
mas, o direito, a arte, a filosofia, a literatura etc. O
veredicto midiático, o julgamento midiático pesa cada
vez mais, mesmo sobre universos mais autônomos,
mais fechados em si mesmos e sobre suas próprias
tradições, como o mundo científico. Há um certo tipo
de notoriedade científica que se adquire pela mídia e
que permite aos indivíduos que não são necessaria
mente os melhores do ponto de vista do universo in
telectual obterem vantagens competitivas, como di
zem os economistas: subvenções, créditos, honras etc.
Isso é possível em função do uso hábil que fazem da
mídia. Em outros universos, isso fica ainda mais cla
ro : em muitos países, o mundo jurídico é cada vez
mais penetrado pela mídia. O sucesso midiático de
alguns advogados, de alguns juízes leva-os, primeira
mente, a fazer coisas que não fariam se não existisse
a busca pelo sucesso e a intervenção do julgamento
midiático, que tende a modificar a hierarquia profis
sional . Outro exemplo é o da fi losofia. Jacques
Bouveresse, sem dúvida o maior filósofo francês vivo,
aquele que escreve as coisas mais interessantes, é muito
menos conhecido do que Bernard-Henry Levy ou Régis
Debray. É assombroso. Pode-se dizer que um afasta
mento entre a vanguarda e a visão comum sempre
existiu; mas hoje em dia atinge proporções considerá
veis porque essas pessoas, através de seu poder na
mídia, fundado na conivência e na sol idariedade
jornalístico-intelectual, podem controlar a produção
através da certeza do sucesso de alguns livros. Todo o
universo da produção é cada vez mais dominado pela
44
comercialização, que por sua vez é dominada pela crí
tica, e toda essa articulação se dá de forma quase or
questrada. Na França, existem espécies de lobbies reu
nindo intelectuais medíocres e grandes jornalistas que,
como demonstra Serge Halimi em seu l ivro
Les
nouveaux chiens de garde [Os novos cães de guarda],
têm efeitos sobre o mundo intelectual e político. A
própria política é muito dominada. Talvez Cardoso diga
o que diz para ser bem-visto pelas pessoas da televi
são. E nesse sentido que a perda de independência
passa, em parte, pela questão da mídia. Hoje,
la
revolución passa menos pelo Chiapas do que pelas
salas de redação: um dos lugares mais importantes de
poder simbólico e mesmo político e econômico, pois
é aí que se criam as idéias-força, as idéias fortes.
M A - O senhor acredita que as televisões
poderiam passar de um papel de despolitização, de
alienação das pessoas, a um papel de reforço à de
mocracia?
PB - Teoricamente, sim. Mas as condições
sociais para que isso aconteça não existem no momen
to . As pessoas podem promover um happening, invadir
a televisão durante um programa ao vivo, o que durará
três segundos, tempo para que sejam colocadas porta
afora. O problema é: seria possível existir televisão
livre? Quem cria os instrumentos de uma democracia
de base local?
M A -
As televisões universitárias, por
exemplo...
PB - Sim, é possível. Um dos filmes de
Pierre Carles foi censurado pela própria televisão que
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o encomendou. E possível que ele venha a ser exibido,
mas vai levar tempo. Evidentemente, se existissem cir
cuitos independentes de televisão, financiados por as
sociações, se houvesse circuitos de distribuição de ci
nem a. .. Uma coisa m uito importante na produção c ul
tural é que, cada vez mais, a distribuição comanda a
produção. Essa é uma proposição terrível que indica
que estamos no reino do comercial. Mesmo editoras
independentes - como Seuil, Gallimard - devem levar
em conta, em sua escolha de tradução e de edição, o
destino comercial de uma parte cada vez maior de seus
livros. E os que fazem a distribuição - os grandes gru
pos como Hachette, Havas - vão exercer uma pressão
seletiva, uma censura aos livros. No cinema, isso já
está feito, já está pronto.
M A - Vou formular a mesma questão de
outra forma. Segundo o senhor, existe a possibilida
de de um universitário, pesquisador ou professor, com
meios econômicos e técnicos limitados, desafiar as
grandes redes milionárias de distribuição e interpre
tação da realidade?
PB - É preciso tentar sempre. Acho que em
casos nos quais as relações de força são muito desi
guais, é preciso tentar aproveitar cada ocasião. Os eco
nomistas chamam esse tipo de espaço de nicho: um
produtor que, graças a um produto absolutamente origi
nal,
pode resistir à concorrência. O mundo da cultura
está repleto de nichos. Ainda existem editores de van
guarda que publicam livros com tiragem reduzida e con
seguem se virar, mesmo que se auto-explorem um
pouquinho. Por estranho que pareça, acho que o futuro
está nessa lógica do nicho. Na medida em que algo que
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não deveria ser dito encontra uma forma de ser dito,
isso é importante: haverá sempre alguém que vai escu
tar, e isso poderá ressurgir dez anos depois. Parte im
portante do que se escreve não teria sentido caso não
acreditássemos nisso. Existe uma margem de liberdade
real, realista, que tem a ver com isso. Há públicos po
tenciais, por vezes póstumos. Se tivéssemos apenas o
mercado atual, imediato, a maior parte das coisas inte
ressantes seriam arrasadas de saída. Então é preciso
lutar para que o mercado não destrua todos os nichos e
para que haja espaço para mercados interiores. O siste
ma escolar continua sendo um dos nichos possíveis,
apesar da concorrência do privado: ele oferece a dedi
cação, pessoas que acreditam, além de recursos, certa
mente não muito grandes, mas que permitem que se
façam coisas.
Tudo o que fiz ao longo da vida repousa so
bre essa espécie de economia anti-econômica. Por
exemplo: fazemos uma revista sem subvenção que de
pende de pessoas que não são remuneradas pelo traba
lho que fazem, que se dedicam. Uma parte enorme das
boas coisas são produzidas fora da lei do mercado. A
questão é saber por quanto tempo conseguiremos ter
pessoas que trabalham sem mercado, que acreditam o
suficiente para trabalhar sem mercado. E um dos gran
des problemas.
M A - Mudando completamente de assunto,
falemos de mulheres. O senhor utiliza com muita fre
quência o conceito de violência simbólica. Dentre os
mais significativos exemplos de violência simbólica,
o senhor cita a dominação masculina, discutida em A
dominação masculina, recentemente publicado. Como
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acontece freqüentemente em sua obra, o livro provo
cou uma grande polêmica. O senhor poderia falar
um pouco sobre ele?
PB - O que quis fazer foi dar coerência teó
rica a observações feitas por etnólogos, sociólogos,
economistas etc, que mostram que, com muita freqüên
cia, as mulheres ocupam uma posição dominada. Penso,
por exemplo, num ótimo trabalho que citei de uma
socióloga americana que estudou o uso diferencial do
telefone por homens e mulheres. Ela mostra que as
mulheres utilizam muito mais o telefone do que os
homens . Cos tuma-se d izer que as mulheres são
faladeiras, que passam uma parte considerável de seu
tempo ao telefone, e ela explica que tal fenômeno está
relacionado à divisão do trabalho doméstico, na qual as
mulheres têm uma função, admitida inconscientemente,
de manter e zelar pelas relações familiares. Isso é o
que chamo de capital social da família, do conjunto da
família, e cabe à mulher cuidar não apenas das relações
com sua própria família, mas também com a de seu
marido. São elas que dão telefonemas, compram pre
sentes, organizam festas de aniversário, que se lem
bram das datas. Eis um pequeno exemplo de um bom
trabalho. Infelizmente não é o que fazem as feministas
francesas, que fazem mais teoria, em geral de baixa
qualidade, do que trabalhos empíricos fundamentados.
Tentei mostrar que o princípio de coerência
entre todas aquelas observações é que a dominação
masculina é uma dominação de tipo particular que, por
mais que se diga o contrário, não repousa sobre a vio
lência física. E claro que existem mulheres vítimas de
violência, e conheço as estatísticas. A dominação não
repousa apenas na violência econômica, no fato de as
48
mulheres ganharem menos e, portanto, serem menos
livres para sair de casa, se separar etc. Ela repousa sobre
o que chamei de violência simbólica, ou seja, a violên
cia que resulta do fato de as pessoas terem na cabeça
princípios de percepção, maneiras de ver que são pro
duto da relação de dominação. Dito de outra forma,
elas colaboram, entre aspas, com sua própria domina
ção. Isso não significa que as mulheres sejam idiotas,
fracas, submissas; quer dizer que as estruturas sociais
levam-nas - desde a infância, na família, na escola - a
incorporar, interiorizar um tipo de relação masculino-
feminino através, por exemplo, do sistema de adjetivos,
como falei no livro. Referi-me também ao trabalho de
uma socióloga americana que mostrou que a distinção
entre
hard
e
soft,
entre
hardware
e
software,
entre as
ciências duras e as ciências moles, é masculino-femi-
nino. Quanto mais nos aproximamos das ciências mo
les, mais elevada é a proporção de mulheres encontra
das e inversamente para os homens. Se as coisas se
passam dessa forma, não é porque dirigimos as mulhe
res para o social, para o feminino, para as belas-artes,
enquanto os homens ficam com as matemáticas, a físi
ca; é também porque as mulheres pensam que não são
dotadas para essas matérias, que são feitas para as pri
meiras, que as últimas não lhes interessam.
Tentei analisar tudo isso e mostrar que se
trata de uma dominação muito difícil de ser modifica
da, pois não basta que se faça uma revolução econômi
ca; é preciso também uma revolução simbólica, nas
cabeças. (Seria a mesma coisa no caso da dominação
étnica entre brancos e negros). É preciso que a pessoa
se dê conta do fato, para poder encontrar meios de
subverter essa relação. Onde isso se reproduz? Na Igre-
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ja, na escola, no Estado. Portanto, os lugares de luta
não se reduzem ao plano doméstico. Descobri um exem
plo disso muito recentemente, após ter escrito meu
livro. Digo sempre que há uma mão direita e uma mão
esquerda do Estado. A mão direita do Estado é a das
finanças, do orçamento, tudo o que é soberano, tudo o
que é masculino; a mão esquerda, tudo o que é femini
no :
hospitais, creches, escola. Evidentemente, na hie
rarquia dos ministérios o masculino domina o femini
no , o Ministério das Finanças domina o Ministério de
Assuntos Sociais. Isso quer dizer que o setor público
que se pretende destruir atualmente é aquele no qual
trabalham mulheres (escolas, hospitais etc.) e do qual
as mulheres são as principais beneficiárias (serviços
sociais, assistência às creches etc). Isso oferece uma
linha política de atuação para um movimento feminista
que tenha consciência de estar comprometido com o
Estado Social de uma forma dupla.
M A -
A Assemb léia N acional Francesa
acaba de adotar o Pacto C ivil de Solidariedade
(PaCS).
Isso lhe parece um avanço importante no
campo social? Que efeitos pode ter sobre a sexuali
dade? O senhor acha que poderá haver efeitos tam
bém sobre a lógica da reprodução social?
PB - Se houve tantas batalhas, é porque é
importante. O PaCS muda a visão, quebra a idéia de
natural, da família como pertencente a uma ordem na
tural, situada na lógica do natural. Cada vez que se diz
é natural,
há manipulação, dominação. O discurso do
minante naturaliza as coisas como elas são. Diz-se:
é
deste jeito, sempre foi deste jeito.
O fato de quebrar a
imagem comum, admitida, adquirida, natural, do casal,
5
da procriação, da reprodução etc. é muito importante
simbolicamente. Temos sociólogos que ficam doentes
com isso, sobretudo os que participam da
Esprit,
revis
ta espiritualista fundada por Mounier, um dos lugares
de onde partem muitas balas que caem sobre nossas
pobres cabeças. Alguns sociólogos ficaram realmente
perdidos: o PaCS deixou-os literalmente malucos por
que sua proposta toca na ordem burguesa e familiar.
Nesse sentido, é indiscutível a importância do PaCS.
M A - Embora tenha sido convidado diver
sas vezes, o senhor ainda não foi ao Brasil. Entretan
to,
desde os anos 70 seu trabalho influencia as ciên
cias sociais em nosso país, por meio de obras
traduzidas para o português e, sobretudo, de pesqui
sadores brasileiros que o senhor recebe sistematica
mente no Centre de Sociologie Européenne e da visita
ao Brasil de quase toda sua equipe de pesquisadores.
PB - Sim, exceto eu mesmo; tenho vergonha.
M A -
Não vou perguntar se o senhor virá
um dia porque estou cansada de fazer isso. M as,
mesmo assim, vou perguntar o seguinte: que visão o
senhor tem do Brasil e dos intelectuais brasileiros?
PB - É muito difícil responder. Tudo o que
posso dizer é que, no combate que se trava no momen
to , e que é preciso ser travado, o Brasil faz parte dos
países com os quais conto. É isso. É estranho falar
nesses termos, mas acredito que atualmente estamos
engajados num combate, em defesa de uma civilização,
e penso que, por razões históricas, o Brasil, que sofreu
a política neoliberal completa, com uma violência ex
trema, mas que ao mesmo tempo tem grandes recursos
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8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista
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culturais, históricos, pode ser um dos lugares de resis
tência. Penso que a resistência não pode mais ser nacio
nal.
Há uma espécie de processo de colonização na
América Latina. É uma forma completamente nova de
colonização, uma colonização dos cérebros que tam
bém está atingindo a Europa. Estranhamente, a Europa
não pode se salvar se esquecer de países como o Brasil,
com grande tradição cultural, com capital histórico.
Hesito em falar dessa forma por medo que pensem que
estou saindo de meu papel de pesquisador e me fazendo
de profeta político. O Brasil é um país no qual foram
desenvolvidas uma sociologia e uma antropologia mui
to boas, com poucos recursos econômicos mas sobre
uma base de recursos históricos. Tivemos pessoas como
Bastide, Braudel, Lévi-Strauss, Foucault e tantas outras
que foram ao Brasil. Todo esse capital faz com que o
Brasil tenha guardado uma autonomia considerável re
lativamente às forças mundiais. Escrevi, juntamente com
Loie Wacquant, um artigo intitulado "Les ruses de la
raison impérialiste" [As astúcias da razão imperialista],
no qual tentamos mostrar que a visão de mundo domi
nante (uma forma de violência simbólica) se impõe
através da imposição de problemáticas e de categorias
do pensamento. Há uma passagem, escrita por Loie
Wacquant, sobre a maneira pela qual a visão da divisão
étnica ou racial americana tende a impor-se, por inter
médio de categorias do pensamento, ao conjunto dos
países sul-americanos e, em particular, ao Brasil. Da
mesma forma, todos os conceitos dos quais falamos
hoje, como a globalização, todos esses conceitos cir
culam, freqüentemente mal traduzidos, no mundo intei
ro ,
tornando-se problemáticas impostas. Isso porque têm
ar de universais, quando, na verdade, universalizam par-
52
ticularidades americanas. Por exemplo, a dicotomia
negro/branco, que adquire uma forma histórica particu