BOURDIEU, Pierre. Entrevista

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  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

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     ntrevist do

     por

    María ndrea Loyol

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    Esta coleção reúne

    entrevistas com cientis

    tas do Brasil e de outros

    países, realizadas para a

    série de televisão Pensa

    mento Contemporâneo,

    transmitida pelo Canal

    Universitário do Rio de

    Janeiro (UTV).

    As entrevistas a-

    presentam a contribuição

    desses intelectuais para o

    desenvolvimento de sua

    própria disciplina e, atra

    vés desta, para um me

    lhor entendimento das

    transformações ocorri

    das nas últimas décadas,

    assim como da maneira

    como elas afetam ou

    podem afe tar nossas

    vidas.

    P e n s a m e n t o

    C o n t e m p o r â n e o

    Pierre Bourdieu

    Entrevistado por

    Maria

     Andrea

     Loyola

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    n É B u

    UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Reitora

    Nilcéa Freire

    Vice-reitor

    Celso Pereira de Sá

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Conselho Editorial

    Afonso Carlos Marques dos Santos

    Elon Lages Lima

    Ivo Barbieri  (Presidente)

    José Augusto Messias

    Leandro Konder

    Luiz Bernardo Leite Araújo

    P e n s a m e n t o

    C o n t e m p o r á n e o

    Pierre ourdieu

    Entrevistado por

    Maria ndrea Loyola

    uerj

    R io

      de Jane iro

    2 0 0 2

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    Copyright © EdUERJ, 2002

    Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade

    do Estado do Rio de Janeiro. A reprodução integral ou parcial do

    texto poderá ser feita mediante autorização da editora.

    EdUERJ

    Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã

    CEP 20550-900 - Rio de Janeiro - RJ

    Tel/Fax: (21) 2587-7788 / 2587-7789

    www2.uerj .br/eduerj

    [email protected]

    Supervisão Editorial  Dau Bastos

    Coordenação de Publicação

      Renato Casimiro

    Coordenação de Produção  Rosania Rolins

    Tradução da Entrevista  Alice Lyra de Lemos

    Revisão Técnica da Entrevista  Marilena Villela Corrêa

    Projeto Gráfico e Capa  Heloisa Fortes

    Diagramação  Gilvan F Silva

    Revisão   Clarissa Plácido e Meichelle Cândido

    Apoio Administrativo

      Maria Fátima de Mattos

    Esta coleção e a série televisiva que lhe deu origem contam com o apoio da

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

    CATALOGAÇÃO NAFONTE

    UERJ/REDE SmiUS/PROTAT

    B769 Bourdieu, Pierre, 1930-

    Pierre Bourdieu en trevistado por Maria Andréa Loyo la. -

    Rio de Janeiro : EdUER J, 2002.

    98 p. - (Pensamento contem porâneo ; 1)

    ISBN85-7511-032-2

    1. Bourdieu, Pierre, 1930- - En trevistas. 2. Sociologia.

    I.

     Loyola, Maria

     Andréa. II.

     Título. III. Série.

    CDU301

    Agradecimentos

    Muitas pessoas e instituições contribuíram

    para a realização desta entrevista: o próprio Pierre

    Bourdieu e sua equipe do Collège de France; Moacir

    Palmeira e Sérgio Miceli; Claire Lapayre e Jean Michel

    Arnold; Abílio Baeta Neves e Luiz Alberto Horta Bar

    bosa; Marilena Villela Corrêa; Pedro Villela Capanema

    Garcia; Tânia Maria Tavares da Costa; Vitor Brasil; o

    Consulado da França, o C entre National de la Recherche

    Scientifique (CNRS) e a Embratel.

    Contribuíram de forma especial: Gabriella

    Dias,  diretora executiva da UTV e supervisora geral do

    programa televisivo, cujo entusiasmo foi decisivo para

    sua realização; Irapuan Portugal, coordenador de produ

    ção,  cuja dedicação garantiu a continuidade do projeto.

    mailto:[email protected]:[email protected]

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    Sumário

    Apresentação 9

    Maria Andréa Loyola

    Entrevista 13

    Depoimentos 57

    Moacir Palmeira  57

    Sérgio Miceli

      59

    Bourdieu e a sociologia 63

    Maria Andréa Loyola

    Biografia 87

    Principais trabalhos 93

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    Apresentação

    Maria Andréa Loyola

    Este livro se articula em torno da entrevista

    que Pierre Bourdieu me concedeu a 27 de

    outubro de 1999. A revisão desta entrevista

    para publicação constitui um dos últimos trabalhos de

    Bourdieu, que morreu a 23 de janeiro de 2002 em Pa

    ris,

      sem ter o prazer, ou o estranhamento, de vê-la

    publicada em português antes de sê-lo em francês. Ela

    é o último diálogo que, percebo agora com grande pe

    sar, mantive com um dos grandes pensadores do século

    XX com o qual tive o privilégio de estudar e conviver

    e que se tornou uma de minhas permanentes referências

    intelectuais e afetivas.

    Meu contato com Bourdieu poderia ter co

    meçado no período de 1969 a 1973, quando fiz meu

    doutorado em sociologia na École Pratique des Sciences

    Sociales, sob a orientação de Alain Touraine. Nesse

    período, pude freqüentar, além dos seminários de meu

    orientador, aqueles de Raymond Aron, Claude Lévi-

    Strauss, Althusser, entre outros; mas não os de Bourdieu,

    restrito a seus orientandos.

    Só conheci Bourdieu pessoalmente no final

    de 1979. Eu tinha acabado de iniciar a análise dos dados

    da pesquisa  Medicina Popular na Baixada Fluminense

    e estava interessada em discuti-la com ele, uma vez que

    9

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    vinha utilizando alguns conceitos seus, como os de

    campo  e  habitus.

    Com uma bolsa ganha em concurso promovi

    do pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais,

    pude fazer um estágio no Centre de Socio logie

    Européenne (CSE), dirigido por Bourdieu. Fui com in

    tenção de passar seis meses - tempo de duração da

    bolsa - e acabei perman ecendo por dois anos, com apoio

    do próprio Bourdieu, que patrocinou o restante de mi

    nha estada.

    O interesse de Bourdieu por meu trabalho

    resultou na publicação de um artigo meu na revista

      Actes

    de la Recherche en Sciences Sociales,

      que ele dirigia,

    e de um livro pelas  Editions de la Maison des Sciences

    de l'Homme.

    1

    Desde então, minha relação com Bourdieu e

    com os pesquisadores de sua equipe nunca foi inter

    rompida. Tive a oportunidade de voltar com relativa fre

    qüência, por períodos de curta ou longa duração, ao

    CSE e posteriormente ao Centre de Sociologie de

    l 'Education et de la Culture (CSEC), fundado por

    Bourdieu. Também recebi no Brasil inúmeros de seus

    pesquisadores. O próprio Bourdieu planejou várias vin

    das que acabaram não ocorrendo; a última para a prima

    vera de 2002.

    Assim, quando o procurei para propor

    entrevistá-lo, aceitou de imediato. Enviei-lhe um rotei-

    1

     Refiro-me aos trabalhos : "Cure des corps, cure des âmes :

    les thérapeutiques populaires à Rio de Janeiro". Actes de la

    Recherche en Sciences Sociales,

     n. 43,1982;

     s L'esprit e t le

    corps, Paris: MSH , 1983. Tradução em português: Médicos

    e curandeiros: conflito social e saúde.  São Paulo: Difel,

    1984.

    io provisório - alertando tratar-se de questões que po

    deriam interessar de modo mais específico ao público

    brasileiro -, que acabou se tornando definitivo, pois

    Bourdieu aceitou-o sem modificações.

    Eu já havia entrado em contato com o diretor

    geral do Serviço de Audiovisual do Centre National de

    la Recherche Scientifique (CNRS), que gentilmente pro

    pos registrá-la. No dia 27 de outubro de 1999, perante

    uma càmera instalada em sua sala no Collège de France

    e na presença de dois técnicos do CNRS, Bourdieu

    passou quase cinco horas falando de si e de seu traba

    lho.

    2

    Percebi que a entrevista tinha sido bem-su-

    cedida pela reação dos técnicos - que disseram nunca

    "ter gravado um Bourdieu tão descontraído" - e do

    próprio Bourdieu durante um almoço que me ofereceu

    depois. Mas, conhecendo seu perfeccionismo, eu sabia

    que o trabalho não terminara ali.

    Depois da transcodificação, transcrição e tra

    dução das fitas, veio a penosa etapa de edição, que

    implicava cortes para reduzir a entrevista a uma hora e

    trinta minutos, incluindo os acréscimos de imagens, in

    formações e os depoimentos de Moacir Palmeira e

    Sérgio Miceli, primeiros professores brasileiros a di

    vulgar o trabalho de Bourdieu em nosso país.

    As f i tas edi tadas foram submetidas a

    Bourdieu, que, ao contrário do que eu podia imaginar,

    não fez objeção à maioria dos cortes, e sim ao artifício

    2

     A entrevista foi integralmente filmada por Pierre Carles,

    que aproveitou parte dela em seu filme La sociologìe, un

    sport de combat  [A sociologia, um esporte de combate],

    exibido durante muitos meses nos cinemas parisienses.

    10

    11

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    técnico de deixar sua imagem em preto e branco en

    quanto eu formulava as questões.

    Feitas as mudanças necessárias e acrescenta

    das as legendas, a fita voltou para sua aprovação defini

    tiva. Ele ainda questionou am bigüidades contidas na tra

    dução e, ao vê-las eliminadas, liberou a fita para exibi

    ção pela UTV - o que acabou ocorrendo somente em

    dezembro de 2000.

    Na entrevista, ele fala de sua trajetória, ex

    põe idéias que desenvolveu em sua imensa obra e abor

    da de forma mais específica temas como globalização,

    neoliberalismo, televisão, dominação masculina, entre

    outros.

    Ao final do volum e, inseri um texto de minha

    autoria que faz um esboço de sua sociologia, expondo

    sua proposta teórica e conceituai, além de considera

    ções sobre a repercussão de seu trabalho no Brasil.

    12

    Entrevista

    Maria Andrea Loyola

      -  Quando li seu livro

    A reprodução  pela primeira vez, no início dos anos 70,

    eu o considerei um trabalho sociológico verdadeira

    mente político. E lembro ainda de minha frustração

    quando meus alunos da PUC de São Paulo se recusa

    ram a lê-lo, assim como alguns outros trabalhos de

    sua autoria, sob o pretexto de que sua obra era con

    servadora, contra as mudanças e anti-revolucionária.

    Não conheço a opinião deles hoje em dia, mas, mesmo

    considerando que seu trabalho tenha sempre sido

    político, alguma coisa em sua posição ou no senhor

    mudou em relação à política. O que mudou?

    Pierre Bourdieu

      - Com relação ao primei

    ro ponto, seus estudantes não eram os únicos a pensar

    dessa maneira. Muitos sociólogos bem informados, pro

    fissionais, tinham a mesma opinião. Penso em Nicholas

    Graham , soc ió logo ing lês que , jun tam ente com

    Raymond W illiams, contribuiu de forma importante para

    introduzir minha sociologia nos países anglo-saxões.

    Ele escreveu um artigo, apresentado num colóquio so

    bre o meu trabalho ocorrido em Chicago cerca de dez

    anos atrás, para mostrar que minha sociologia era con

    servadora. Para mim, ainda hoje é surpreendente, como

    foi naquela época, que o fato de dizer que uma instân-

    13

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    cia como o sistema de ensino contribui para conservar as

    estruturas sociais, ou dizer que as estruturas tendem a se

    conservar ou se manter - o que é uma constatação -, é

    surpreendente que essa constatação seja percebida como

    uma declaração conservadora. Basta pensarmos um pou

    co para percebermos que o mesmo enunciado sobre a

    existência de mecanismos de conservação pode ter um

    caráter revolucionário. Acho que esse erro de percepção

    de seus alunos é muito significativo, porque evidencia a

    dificuldade de se transmitir um discurso científico sobre

    o mundo social. Quando você diz  as coisas são assim,

    pensam que você está dizendo  as coisas devem ser as

    sim,

      ou

      é bom que as coisas sejam dessa forma,

      ou

    ainda o contrário,

      as coisas não devem mais ser assim.

    Em outras palavras, a maior parte dos discursos sobre o

    mundo social, não só o dos políticos mas também o dos

    intelectuais, dos religiosos (padres, pastores), é um dis

    curso normativo. Na maior parte do tempo, fala-se do

    mundo social para se dizer se ele vai bem ou mal, se deve

    ser conservado ou se deve mudar. Quando o sociólogo

    diz que tal instituição contribui para conservar, imediata

    mente se atribui um juízo de valor ao seu enunciado:

    contribui para conservar

      e isso é bom e eu concordo,

     ou

    contribui para conservar

      e isso é ruim e temos de fazer

    uma revolução.

    A segunda pergunta: será que mudei? Não.

    Continuo a pensar que o sistema de ensino contribui

    para conservar. Insisto sobre o  contribui,  o que é muito

    importante aqui. Não digo

      conserva, reproduz;

      digo

    contribui para conservar.  O sistema de ensino é um

    dos mecanismos pelos quais as estruturas sociais são

    perpetuadas. Existem outros: o sistema sucessório, o

    sistema econômico, a lógica da velha fórmula marxista

    14

    segundo a qual o "capital vai ao capital". Mas, nas so

    ciedades modernas, o sistema de ensino tem um peso

    maior, contribuindo com parte importante daquilo que

    se perpetua entre as gerações. Uma parte importante da

    transmissão do poder e dos privilégios se faz por inter

    medio do sistema escolar, que serve ainda para subsu

    mir outros mecanismos de transmissão, em particular

    os que operam no interior da família. A família é uma

    instância de transmissão muito importante, e o sistema

    escolar a substitui, ratificando a transmissão familiar. O

    sistema escolar vai dizer que tal criança é dotada para

    a matemática, sem ver que existem cinco matemáticos

    em sua árvore genealògica. Ou vai dizer que uma outra

    criança não é dotada para a língua portuguesa ou fran

    cesa, sem ver que ela vem de um meio de imigrantes

    ele. O sistema escolar contribui, então, para ratificar,

    sancionar, transformar em mérito escolar heranças cul-

    turais que passam pela família. Desenvolvi tudo isso em

    meus trabalhos anteriores. Mas a percepção do que fiz

    mudou. Parte dos estudantes que se recusavam a 1er

    meus trabalhos nos anos 70 converteram-se ao neoli-

    beralismo e ao que chamam de globalização;

    3

      estes

    devem pensar que sou revolucionário. Entretanto, sobre

    esses problemas como sobre muitos outros, digo quase

    a mesma coisa que antigamente. A conclusão para mim

    e muito clara: não fui eu que mudei; os intelectuais é

    que mudaram e passaram, em massa, da extrema es

    querda para uma direita mais ou menos temperada -

    tanto na Europa como na América do Sul.

    3

      Duran te a en trev is ta , Bourd ieu emprega o te rmo

    mondialization  (mundialização), utilizado mais freqüente

    mente em língua francesa para nomear o fenômeno da

    globalização. (N. da R.T.)

    15

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    M A -

      O senhor diz que não mudou, que o

    que mudou foi a percepção que temos do senhor.

    Todavia, em sua trajetória política e intelectual é

    possível identificar uma evolução do pessimism o

    para a utopia. E possível dizer que o senhor cons

    truiu sua trajetória no sentido oposto à tendência

    prevalente no tempo? Em um contexto intelectual

    dominado pela utopia marxista transformadora, sua

    obra tendia para uma interpretação de tipo pessi

    mista. Agora, ao contrário, quando o clima ficou

    pessimista e até mesm o fatalista, no contexto da

    inevitável globalização, o senhor se tornou um gran

    de defensor da transformação ?

    PB - Eu não falaria em otimismo e pessi

    mismo. Para mim, são categorias que se projetam so

    bre o trabalho científico. Posso, no plano pessoal, estar

    otimista ou pessimista, dependendo do dia, como todo

    mundo. São propriedades do caráter da pessoa que não

    deveriam intervir no trabalho nem no julgamento sobre

    o trabalho. E claro que minha visão do mundo social

    tem aspectos constantes e, além disso, não sou de fazer

    autocríticas exageradas. Minha autocrítica é feita no

    cotidiano. Quando se é pesquisador, acumula-se conhe

    cimento: por exemplo, há uma relação entre a origem

    social e o sucesso escolar, como existem mecanismos

    sociais que mantêm essa relação. Mas certas coisas

    mudam o tempo todo. Se retomamos meu trabalho,

    desde

      Les héritiers

      [Os herdeiros] até

      La noblesse

    d'Etat

      [A nobreza de Estado], e mesmo num capítulo

    sobre educação em

      A miséria do mundo,

      vemos que

    conceitos mudam o tempo todo em cima de uma base

    de constantes, de conhecimentos que se refinam, tor

    nam-se mais precisos, corrigem-se e se sistematizam.

    Hoje, posso contar o resultado de minhas pesquisas de

    maneira muito mais económica, mais clara, com mais

    domínio, pois me parece que o sistema explicativo, o

    sistema de conceitos é mais coerente e ajustado.

    O que muda também é o mundo, e, como

    você evocou, tenho a tendência de ir contra a maré,

    contra a corrente. Quando todos os intelectuais eram

    marxistas, eu era mais weberiano, porque eles me irri-

    tavam e para irritá-los. E também para defender a auto

    nomia da pesquisa contra modismos. Muitos desses

    marxistas precoces tornaram-se muito conservadores e

    me denunciam, hoje em dia, como o último dos marxis-

    tas, o que nunca fui e nem serei. Esse espírito de con-

    tradição está ligado, sem dúvida, à minha trajetória so

    cial, às minhas origens sociais e mesmo regionais. Acho

    que as pessoas do sudoeste da França são um pouco

    como os irlandeses, que, no mundo anglo-saxão, são

    subversivos, coléricos, descontentes, fizeram revolu

    ções na literatura (penso em Shaw e, sobretudo, em

    Joyce e Beckett). O fato de ser provinciano, de ter

    vindo de uma pequena cidade do interior, de ser mal

    integrado ao mundo parisiense, ao mesmo tempo por

    escolha e por destino, tem muita importância. Tenho

    colegas sociólogos que não posso ouvir sem discordar.

    Seja porque a maneira como falam desmente o que estão

    dizendo, seja porque o que dizem está de fato em con-

    tradição com o que penso.

    M A -

      O senhor acredita que esta é uma

    característica de pessoas da região do Béarn?

    PB - Não nego que, em parte, minhas postu

    ras,

      minhas disposições, minha relação com o mundo

    intelectual vêm do fato de que tenho origem provinci-

    16

    17

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

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    ana, do Béarn; mas evidentemente essas disposições

    são modeladas pela posição que ocupo num certo cam

    po ,  em dado momento. Para responder sua questão e

    evitar falar de mim, vou falar de Foucault e do tipo de

    explicação que, às vezes, é dado às suas preferências

    sexuais. Certos americanos incomodados pelo pensa

    mento de Foucault - por ele ser muito subversivo, muito

    crítico - tentaram demonstrar que seu pensamento po

    deria ser deduzido do fato de ele ser homossexual e

    mesmo sadomasoquista. Penso que se Foucault não ti

    vesse sido homossexual, não teria sido o que foi. Po

    deria ter sido um importante pensador francês, que te

    ria feito uma tese magnífica sobre Kant, mas não teria

    trazido ao mundo a subversão que trouxe. Mas daí a

    deduzir seu pensamento do fato de ele ser homossexual

    é grotesco. Afinal, há m uitos homossexuais, mas só um

    Foucault. Em meu caso, é um pouco assim: sou do

    Béarn e há muitas pessoas do Béarn. Isso significa que

    há uma disposição ligada a uma trajetória, um estilo,

    uma maneira de falar , um tom de voz. Georges

    Canguilhem, um de m eus mestres e a quem eu admirava

    muito, ao falar dava sempre a impressão de estar bri

    gando, os alunos ficavam atenorizados. Às vezes, dizia

    coisas terríveis aos alunos, achava-os muito parisienses.

    Na verdade, sua maneira de ser, de falar, tem a ver, em

    parte, com sua origem no sudoeste. Um dia mandei para

    ele um texto sobre a idéia de região. Era um artigo

    sobre Montesquieu, sobre

      Le Nord et le Midi,

      onde eu

    mostrava que existe um racismo das pessoas do norte

    da França em relação às pessoas do M idi,

    4

      que pode ser

    4

      O Midi é uma região situada no centro da França.

    (N. daR . T.)

    18

    encontrado em textos de Montesquieu que já tinham

    sido comentados umas cem vezes sem que isso fosse

    percebido. E junto tinha um texto sobre o regionalismo

    ocitano, que ele leu também e me disse: "Gostei muito

    de seu texto sobre a região, se bem que eu não seja uma

    pessoa que vá colocar um adesivo OC

    5

      no vidro do

    carro". Ele não queria bancar o diferente, fazer um

    gênero subversivo. Essa é uma atitude típica de uma

    certa maneira de ser.

    Sobre minha relação com o mundo intelec

    tual, é verdade que sempre fui um problema para a for

    ma dominante de vida intelectual. Em meu primeiro

    livro imp ortante,  Travail et travailleurs en Algérie  [Tra

    balho e trabalhadores na Argélia], há um longo prefácio

    no qual digo o quanto foi difícil fazer sociologia numa

    situação colonial. Ataquei violentamente Michel Leiris,

    que escrevia o que, aos meus olhos de trinta anos de

    idade, era uma bobagem sobre as bobagens de Sartre

    acerca do destino do colonizado, sobre a liberdade e a

    responsabilidade do colonizador que não pode entender

    o colonizado, blablablá. Enfim, que usava um adesivo

    OC

      no vidro do carro. E eu dizia: é muito difícil, não

    é bem assim, é difícil na prática, mas a gente pode

    ultrapassar esses problemas. Eu não me contentava em

    lomar posições apenas aparentes. Queria ver de perto

    esse problema da colonização e fui à Argélia com meu

    amigo Sayad. E o que se passava lá era terrível, mas

    diferente do que se dizia em Paris.

    Muitas vezes fui considerado suspeito. Uma

    vez voltei a Paris, em 1958, e disse que só uma pessoa

    poderia solucionar a Argélia, e essa pessoa era De

    OC,  de Occitan (ocitano). (N. daR. T.)

    19

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    12/53

    Gaulle. Não era tão difícil; bastava um pouco de refle

    xão.

      Pronto: "Bourdieu se tornou gaulista". Isso é um

    exemplo da forma de raciocínio dos intelectuais fran

    ceses.

      Eu estava dizendo que era necessário refletir

    sobre a situação. Tínhamos um exército nacionalista,

    fascistóide, e seria preciso um general que submetesse

    esse exército, e que esse general não podeira ser qual

    quer pessoa.

    Voltando à questão da educação, é a mesma

    coisa. Eu era visto como conservador, como tendo

    criticado a escola libertária. Todo o Partido Comunis

    ta adorava a idéia da escola libertária. Tinha até uma

    revista chamada Escola Libertária. Na Semana do Pen

    samento Marxista, organizada pelo Partido Comunis

    ta, afirmei: "Aqueles que a escola libertou colocam

    sua fé numa escola libertária que está a serviço da

    escola conservadora". Lembro da frase porque a pro

    nunciei diante de três mil comunistas, e não dá para

    esquecer as vaias que recebi. Hoje, os mesmos que

    me vaiaram há trinta anos repetem o que eu disse;

    finalmente puderam compreender.

    M A -

      Foi nessa época da Argélia que o

    senhor passou da filosofia à sociologia e à etnologia,

    depois à política. Como o senhor vê a passagem por

    esses diferentes domínios?

    PB - Isso se deu pouco a pouco. Eu não diria

    que passei para a política. Continuo a fazer sociologia.

    Só que falo de outra maneira. A pergunta seria: por que

    vemos mudança onde existe continuidade e, por outro

    lado,  quais são as mudanças reais? Bem, com relação à

    mudança real, penso que, nos últimos dez anos mais ou

    menos, as sociedades modernas, especialmente as so

    ciedades européias avançadas, com grande capital so

    cial e histórico, estão em perigo. Lembro que quando

    disse, na Gare de Lyon, em 1995, não recordo exata

    mente a frase, mas sei que usei a palavra

      civilização -

    "é uma civilização que está em perigo" -, pensei:

    "Bourdieu, não é possível, você está exagerando " E,

    como detesto bancar o intelectual que diz grandes fra

    ses,

      eu disse a mim mesmo: "Bourdieu você bancou o

    intelectual, isso é um exagero". Na verdade eu estava

    com muito mais razão do que pensava. Nesse processo,

    estão ameaçados, por um lado, os oito séculos de tra

    balho intelectual que foram necessários para se definir

    o que é um artista, o que é um escritor; por outro, dois

    ou três séculos de luta social, combates, greves e lutas

    sindicais para inventar formas muito complexas de

    regulação das sociedades humanas.

    Recentemente, fui falar a sindicalistas ale

    mães e minha intenção era dizer algo que eles já sa

    biam. Eu não estava indo dar aula, mas sim levar uma

    confirmação autorizada por estudos e pesquisas de ou-

    tros autores. Eu queria dizer: "Vocês possuem tradições

    absolutamente extraordinárias". O sindicalismo alemão

    atual, desenvolvido depois da Segunda Guerra, é muito

    refinado, dos m ais sofisticados do mundo . Para dar peso

    ao que eu dizia, citei os textos políticos de Marcel

    Mauss, sociólogo durkheimiano que me precedeu na

    cadeira do Collège de France e que escrevia também

    para o

      l'Humanité

      (antes da cisão com o PC, ele fazia

    esses atos militantes). Em seus

      Escritos políticos,

      há

    um tema que reaparece o tempo todo, de forma obses

    siva, que é o das cooperativas operárias. Ele conta o

    caso de um congresso no qual as pessoas inventavam

    novas formas de previdência social. Era uma invenção

    2

    21

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    13/53

    tão complicada quanto a máquina a vapor. Seria neces

    sário que intelectuais, juristas, sociólogos, economis

    tas e trabalhadores de todos os países europeus chegas

    sem a um acordo. Estou querendo dizer que muitas

    coisas que nos parecem evidentes - como a previdência

    social, o seguro contra acidentes de trabalho, o seguro

    de saúde - tiveram de ser inventadas, e tudo isso foi

    muito difícil, muito complicado. Não lembro do exem

    plo preciso, era um detalhe que passaria por banal aos

    nossos olhos, mas que provocou discussões interminá

    veis,

      pois não conseguiam solucionar.

    Em nome da globalização, estamos acabando

    com tudo isso. Essas conquistas são vistas como obs

    táculos ao desenvolvimento econômico e à concorrên

    cia, ligadas à inércia dos "parceiros sociais" que se

    agarram a tradições sociais ultrapassadas. São descritas

    como arcaicas, como velharias européias, estão em

    perigo, mas são socialmente tão importantes quanto a

    Nona sinfonia.

      Aqui entra o trabalho do sociólogo (e

    não passei para a política): como profissional inserido

    num campo científico, posso prever, ver coisas que os

    leigos ou mesmo os políticos não enxergam. Existem

    políticos cínicos - nós temos muitos e vocês também

    - que possuem uma cultura científica grande o bastante

    para manipular os fatos, mas não o suficiente para fazer

    o que lhes cabe. O conhecimento do mundo social

    permite ver coisas que os outros não vêem: como a

    precarização, fenômeno que não inventei, mas que con

    tribuí para tornar visível dizendo coisas importantes a

    respeito. Podemos ver as coisas e suas conseqüências

    ocultas. Por exemplo: atualmente, existe a tendência de

    se substituírem os CDI (contratos de trabalho de dura

    ção indeterminada) pelos CDD (contratos de duração

    determinada), os empregos permanentes pelos empre

    gos temporários. São pequenas medidas tomadas todos

    os dias, nos mais diferentes setores. Se as pessoas lu-

    tam, defendem seus di rei tos , são acusadas de

    corporativistas. Na verdade esse tipo de medida terá

    conseqüências que só vão aparecer em 2030. Para quem

    sabe ver, elas já estão presentes no Brasil, por exemplo.

    Neste momento, estão acontecendo na França coisas

    que já foram feitas no Brasil, na Argentina, pelos

      Chi

    cago Boys,

      e vemos as conseqüências: aumento de

    desemprego , v io lênc ia , c r imina l idade , r e l ig iões

    milenaristas, pentecostalistas etc. Essas conseqüências

    são encontradas também nos guetos de Chicago, ao lado

    do campus universitário simpático dos

      Chicago Boys.

    MA -

      O que o senhor chama de

      Chicago

    Boys?

    PB - As pessoas que venderam um modelo

    econômico neoliberal radical, como as que aconselha

    ram Pinochet, e que estimularam a aplicação desse

    modelo. O que digo pode parecer um exagero, mas sei

    que existem economistas, sociólogos, pessoas que es

    tão trabalhando para estabelecer a relação estatística

    entre certas políticas econômicas e as conseqüências

    sociais. Por exemplo: será que existe uma relação en

    tre a política neoliberal radical e o aumento da violên

    cia? Na ciência

      mainstream,

      infelizmente fenômenos

    como esses são estudados por pessoas diferentes. De

    um lado você tem os economistas e de outro os soció

    logos.

      Pede-se aos sociólogos que consertem aquilo

    que não deu certo na ação dos economistas. E se diz

    que os sociólogos são politizados simplesmente por

    que buscam uma verdade produzida pela cegueira dos

    22

    23

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    14/53

    outros. Se parece que mudei, se pareço ter mudado é

    porque estou mais velho, sou mais conhecido, mas tam

    bém porque, quando digo coisas, elas são mais visíveis.

    Mas, sobretudo, como o mundo mudou, como o mundo

    está em perigo, me parece um dever profissional falar.

    Um sociólogo que cala, ou ele não vê, não enxerga, não

    é competente, ou vê e se acomoda. Uma das funções

    que me dou ao tomar a palavra é estimular outras pes

    soas,

     que podem saber mais do que eu, a também tomar

    a palavra. Fiz isso recentemente numa reunião de um

    grupo de especialistas em economia, e que eu esperava

    que fosse uma missão impossível. Tomei a palavra e

    dois economistas  hard  me apoiaram, falaram a meu

    favor, e depois três, quatro, e às três horas da tarde eu

    tinha metade dos participantes do meu lado. Minha fala

    contribuiu para quebrar a censura do que é oficial, ou

    melhor, a aparência de unanimidade que favorece os

    discursos oficiais em situações oficiais.

    M A -  No prefácio de seu livro  Contrafogos,

    o senhor diz que tomou algumas posições políticas

    levado pela vontade de romper a aparência de una

    nimidade, elem ento essencial da força simbólica do

    minante. O senhor poderia falar um pouco em que

    consiste a unanimidade desse discurso?

    PB - Isso seria uma análise enorme. Há um

    discurso central, um certo número de proposições fun

    damentais da teoria económica, um certo número de

    princípios coerentes que fundam uma visão de mundo.

    Essa visão coerente de mundo, dominada por um núm e

    ro restrito de pessoas - muito formalizada, muito abs

    trata -, dá aval aos discursos neoliberais produzidos na

    França por políticos que se dizem liberais e defendem

    24

    o retorno ao

      laissez-faire,

      pedem menos Estado, coisas

    assim. Mas é utilizada também por um conjunto de

    ensaístas, jornalistas escritores ou escritores jornalis-

    tas, cujo protótipo é Alain Mine, que tem muitos con

    correntes, os quais, mais ou menos lidos em economia,

    repetem variantes

      softs

      e frouxas do discurso central.

    Esse discurso central é muito importante porque serve

    de caução. E como nas filosofias emanatistas: vai-se de

    Deus à maior imundície pelo fato de que há um Deus

    no fim da cadeia, da Grande Cadeia do Ser. Na econo

    mia, a matemática é muito importante porque confere

    um ar científico a tudo. A força social desse discurso

    rslá na base matemática, científica, e também no con

    senso que se impôs paulatinamente ao conjunto do corpo

    intelectual e mesmo às forças sociais. Quando fazemos

    pesquisa, podemos encontrar nos trabalhadores de base

    os traços, os efeitos do que não está na propaganda,

    mas que vem da opinião comum de seu tempo. Por

    estarem permanentemente expostos ao longo do dia aos

    índices da Bolsa, ao Dow Jones, interiorizaram pouco

    a pouco uma visão de que a proteção social é um obs-

    táculo ao progresso, ou mais precisamente à criação de

    empregos. Essa idéia se tornou uma  doxa,  ou seja, mais

    do que um

     dogma

      (palavra da mesma família que

     doxa):

    um conjunto de crenças que não precisam sequer ser

    enunciadas, que existem por si mesmas. O papel dos

    intelectuais, ao menos dos sociólogos, deveria ser o de

    romper com isso, de quebrar essa chapa transparente de

    evidências que impede que se coloquem questões e que

    se pense.

    M A -

      Tudo isto certamente está ligado ao

    processo de globalização. E possível falar num novo

    25

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    15/53

    modo de dominação? Nesse caso, em que consiste

    esse modo de dominação e qual a diferença em rela

    ção ao antigo?

    PB - Um primeiro problema é a imposição

    quase mundial de uma visão de mundo condensada na

    palavra

      globalização.

      Essa visão tem como centro qua

    tro ou cinco postulados que são formas distorcidas da

    teoria económica. O primeiro postulado é que a econo

    mia é um domínio à parte, separado do mundo social,

    governado por leis naturais, universais, que os governos

    não devem contrariar. O segundo postulado diz que o

    mercado é a instância capaz de organizar de forma óti

    ma as relações sociais, as trocas, a produção etc, e

    também de garantir uma distribuição equitativa. Faz-se

    uma equação entre mercado e democracia. O terceiro

    postulado afirma que a globalização exige a redução das

    despesas do Estado, a diminuição das despesas sociais

    - ou seja, o retorno ao   laissez-faire -  e a supressão de

    tudo o que possa turvar a lógica pura do mercado. Os

    direitos sociais em matéria de emprego, em matéria de

    previdência social , são vis tos como onerosos e

    disfuncionais. Há também todo um discurso segundo o

    qual o

      welfare state

      [estado de bem-estar social] esti

    mula a preguiça, velho discurso americano ligado à tra

    dição calvinista do

      self-help

      [se virar por conta pró

    pria].

      Muitas coisas que nos são vendidas como prove

    nientes da economia pura e universal não passam da

    universalização de uma visão histórica muito precisa: a

    visão de mundo americana. O famoso livro de Max

    Weber

      A ética protestante e o espírito do capitalismo

    começa por um texto de Benjamin Franklin que enun cia

    um certo número de preceitos econômicos que são, ao

    mesmo tempo, preceitos morais. De fato, há uma moral

    26

    americana da poupança, da ascese econômica, que está

    no centro da noção de  self-help.  Nesse momento, no

    inundo inteiro, só se fala em responsabilidade. Eviden

    nente o axioma principal é que o pobre é responsável

    por sua pobreza. Em meu jargão, digo que isso é uma

    sociodicéia,  ou seja, uma narrativa que tem por função

    justificar a sociedade tal como ela é. O pobre é pobre

    e deve ficar contente com isso. Essa visão de mundo se

    uiundializou por mecanismos que já evoquei e, em par

    ticular, por intermédio do  think tanks.

    6

      Vale a pena 1er

    um pequeno livro de Keith Dixon que publicamos,

      Les

    evangelistes du marché  [Os evangelistas do mercado],

    que mostra como se deu a produção quase organizada

    do discurso sobre o mundo social, sobre o mundo eco

    nômico, que foi repassada e difundida por grupos,

    lobbies, jornalistas, tendo, em geral, muito dinheiro por

    trás. Mas existe também uma espécie de dialética, de

    causalidade circular, entre os mecanismos de domina

    ção econômica e os mecanismos de dominação simbó

    lica. Hoje, temos festa de Halloween, McDonald's em

    qualquer bairro de Paris. De onde vem isso? Do impe

    rialismo cultural, que passa pelo imperialismo econô

    mico, que, por sua vez, apóia-se nos efeitos do imperi-

    alismo cultural que se exerce principalmente sobre os

    jovens, por vezes mesmo sobre as crianças.

    Esse processo de globalização dos discursos

    se acompanha de processos reais. Pode-se dizer que a

    globalização é um mito, um instrumento de combate

    ideológico muito forte e funcional para os dominantes,

    6

     Expressão ligada à idéia de interdisciplinaridade. Com o

    substantivo significa instituto, corporação ou grupo orga

    nizado para realização de pesquisa interdisciplinar, seja de

    problemas tecnológicos ou sociais. (N. da R. T.)

    27

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    16/53

    na luta contra as conquistas sociais. Eles dizem: "Vocês

    não podem mais ter tudo isso (os direitos), os coreanos

    não têm, vocês também não; os brasileiros fabricam

    automóveis Toyota mais barato, então não nos aborre

    çam com os direitos dos trabalhadores da Renault". Ao

    mesmo tempo, essa mitologia tem bases objetivas:

    existe de fato uma globalização. De quê? Globalização

    dos capitais, com investimentos diretos no estrangeiro.

    Existe um número cada vez m aior de pessoas que inves

    tem diretamente no estrangeiro, franceses que inves

    tem nos Estados Unidos, brasileiros que investem na

    Guatemala, capital que vai aonde o trabalho é mais ba

    rato.

     Uma das armas reais é a

     deslocalização:

     "Se vocês

    resistem, deslocamos a fábrica para a Coréia, Tunísia,

    Marrocos, onde a mão-de-obra é mais barata". Esse

    processo se acompanha de mudanças jurídico-políticas

    que podem ser reagrupadas sob a rubr ica da

    desregulamentação.

      Desregulamentação, sobretudo, da

    circulação de capitais.

    Por que a sociologia foi levada a imiscuir-se

    em tudo isso? Porque os fatores explicativos são exte

    riores ao que se considera tradicionalmente como so

    ciologia. E um drama para a sociologia e para a econo

    mia que elas tenham deixado que fosse estabelecida

    essa fronteira, implicada naquele primeiro postulado: a

    economia é de uma ordem separada, quase natural, da

    qual o social está excluído. Quando se aceita essa rup

    tura, esse corte, deixa-se de compreender um dos pro

    cessos sociais mais importantes do mundo atual, que é

    a destruição de todos os coletivos. E o Estado, os sin

    dicatos, as associações, a família, as empresas esta

    tais...  Todo o processo de desregulamentação leva à

    pr iva t i zação . Em todas as soc iedades onde o

    28

    neoliberalismo se encontra em estágio avançado, como

    no Brasil, assiste-se à passagem da saúde pública à saú

    de privada, da escola pública à escola privada, com to

    as as conseqüências que essas passagens implicam:

    crescimento das desigualdades, porque a escola é

    reprodutora, mas é ainda mais quando privada ou

    privatizada, submetida aos interesses privados, como é

    o caso cada vez mais freqüente. Passa-se de uma poli-

    cia pública a uma polícia privada, como nos Estados

    Unidos. O caso da medicina é típico: há uma medicina

    de verdade para quem pode pagar e, para os pobres, um

    arremedo de medicina.

    Um grande pesquisador, que foi meu aluno,

    Ives Dezalay, escreveu um livro brilhante sobre a

    globalização do direito. Ele mostra como o direito

    americano, através das

      Law Firms,

      espalhou-se por

    todo o planeta, com enormes conseqüências políticas

    e práticas. Agora ele está preparando um trabalho so

    as organizações não-governamentais para mostrar

    que, sob a aparência de grande generosidade, as ONG s

    sao, muito freqüentemente, o braço esquerdo do FMI.

    De um lado, temos o FMI, que enfraquece os Estados

    (que,  às vezes, mal se constituíram), impõe restrições

    orçamentárias, joga na rua os desempregados (aqui,

    podemos tomar o exemplo do Brasil, onde se registra

    aumento do desemprego, da distância entre ricos e

    pobres, a concentração da riqueza); paralelamente,

    ocorre o desenvolvimento de organizações humanitá

    rias,

      de ONGs que suplementam o Estado, preenchem

    funções que anteriormente pertenciam ao Estado, à

    mao esquerda do Estado. A escola, a saúde e a educa

    o passam a depender cada vez mais de instituições

    humanitárias não-governamentais menos independen-

    29

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    17/53

    tes do que os Estados em relação às forças econômi

    cas mundiais, às intermitencias de suas generosidades e

    às flutuações de suas políticas.

    Não sou um "poeta" da restauração do Estado

    a qualquer preço. Sabe-se que as burocracias carregam

    uma enorme possibilidade de vícios, mas é também claro

    que, quando o Estado se retira completamente, o qu e se

    tem é o gueto de Chicago tal como evocamos em

      A

    miséria do mundo:  subúrbios problemáticos, onde não

    há mais escola nem trabalhadores sociais. O setor hu

    manitário que não é Estado é composto de instâncias

    privadas, orientadas por interesses privados, por pes

    soas que visam ao lucro privado e que sabem muito

    bem se servir de subvenções mundiais para fazer valer

    seus interesses. Simplificando bastante as análises de

    Yves Dezalay, podemos dizer que os sujeitos brilhantes

    que saem de Harvard ou de Chicago têm dois caminhos:

    a via do FMI ou a via das ONG s; são pessoas de origem

    social muito alta, cultas, que falam diversas línguas, que

    se aliam às populações locais um pouco marginalizadas

    do ponto de vista escolar; em geral, pessoas que deixa

    ram os estudos, mas que têm capital social ligado às

    suas origens e, dessa forma, conseguem entrar em com

    petição com o sistema escolar, condenado como arcai

    co ,  velho, enquanto que elas são modernas, têm méto

    dos novos etc. Não conheço bem a situação brasileira

    nesse ponto, portanto só posso falar de uma maneira

    abstrata e geral.

    M A -

      Muitos intelectuais se manifestaram

    a favor do racionalismo científico, que inspira tam

    bém a política do FMI e do Banco Mundial. O senhor

    afirma que nenhuma visão de mundo se impõe ou se

    3

    desfaz sem a contribuição dos intelectuais. Como vê

    a contribuição dos intelectuais, em particular a dos

    sociólogos, hoje? Os sociólogos têm, nesse sentido,

    um papel especial?

    PB - Existe o problema geral da contribui

    ção,

     ativa ou passiva, dos intelectuais para a globalização,

    para uma visão do mundo econômico e social, e existe

    o problema particular dos sociólogos, que, caso fizes

    sem seu trabalho, deveriam produzir um discurso muito

    mais dissonante do que o fazem de fato. Os intelectuais

    em sentido amplo, notadamente os filósofos e escrito-

    ees,  não estão necessariamente preparados para com

    preender o que se passa. Eu mesmo tentei mobilizar

    escritores, pessoas eminentes, que admiro muito, mas

    que se mostram incapazes de lidar com o mundo tal

    como ele é. Isso vale também para os grandes cientis-

    las,  os grandes matemáticos, os grandes físicos. E uma

    constatação. Um poeta de vanguarda, por exemplo, tem

    um trabalho tremendo para ficar a par do que está acon

    tecendo, para conhecer o que se faz em seu campo. A

    mesma coisa, no caso do artista ou do historiador. É um

    trabalho em tempo integral. Para entender o silêncio de

    muitos intelectuais, é preciso compreender que eles

    têm muito trabalho. Eles não dispõem do tempo neces

    sário. Alguns deles usam o final de semana para fazer

    um trabalho de cidadania, escrever petições, o que já é

    muito. Existe também o fato de os intelectuais não

    estarem preparados para intervir no mundo político, nem

    preparados nem inclinados. Você poderia dizer que há

    os profissionais do conhecimento, do mundo social, os

    economistas, os sociólogos, os antropólogos, pessoas

    cuja ocupação é estudar o mundo social. Mas isso tam

    bém não se passa dessa maneira. Essas pessoas podem

    31

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    18/53

    estar fechadas em suas pequenas especialidades. Po

    dem estudar, por exemplo, a escolaridade numa favela

    do Brasil, ou o recrutamento social na Universidade de

    Coimbra, ou em T óquio, mas se você pede para fazerem

    uma relação entre aquilo que estudam e o FM I, o Banco

    Mundial, mostrando que o que se passa em Coimbra ou

    em Tóquio, conforme comprovam as estatísticas, só

    pode ser entendido se analisamos o conjunto da evolu

    ção; se você diz esse tipo de coisa, escuta como res

    posta: "Ele é politizado, quer me politizar, quer me tirar

    de minha especialidade".

    Falo de um tipo de reflexividade sobre a

    posição ocupada no mundo científico, que tem também

    suas relações de força e dominação. E é nesse sentido

    que posso convencer as pessoas de boa-fé de que a

    preocupação com os grandes problemas contemporâ

    neos não é uma espécie de luxo, não é assinar uma

    petição para ficar com a consciência tranqüila. Se aos

    outros isso poderia trazer muitas vantagens, para os so

    ciólogos é imperativo. Estou convencido de que pode

    riam compreender melhor aquilo que fazem e, às vezes,

    fazer melhor. Para os sociólogos, é uma questão de

    interesse, é claro. Porque não é possível abstrair tudo

    o que se passa no mundo econômico. Porque se quiser

    mos fazer uma caixa, por menor que seja, de modo a se

    ter certeza de controlar todos os parâmetros, de poder

    medir tudo, contar etc, correremos o risco de fazer

    uma caixa tão pequena que não caberá nada dentro. Penso

    que,

      em sociologia, muita gente trabalha em caixas va

    zias. Porque o essencial dos fatores explicativos está

    do lado de fora, muito longe. Por exemplo: você estuda

    os problemas escolares num subúrbio, mas o problema

    está na Escola Nacional de Administração (ENA). Se

    32

    você estuda violência numa favela ou num subúrbio de

    Amsterdã, o problema pode estar no FMI. Sei que estou

    exagerando, mas acredito que é preciso chamar a aten

    ção para esses fatos.

    Todos os grandes soció logos - Marx ,

    Durkheim, Weber - sabiam disso e levavam esse tipo

    de coisa em conta em sua prática. E, por favor, não

    entenda isso como "holismo" e como se fosse um pe

    cado. Para os economistas, existem os individualistas,

    que explicam as ações humanas a partir de determinantes

    individuais, dos interesses, das paixões, das pulsões; e,

    de outro lado, existem os holistas. Holista é sinónimo

    de marxista, o que engloba também todas as pessoas

    consideradas pouco sérias, que trazem grandes totalida

    des  (holos  significa tudo), totalidades suspeitas, que

    não podem ser reduzidas a variáveis. Holista significa

    tambem que se refere ao "social". Mas, ao contrário de

    um dos dualismos mais potentes do pensamento co

    mum, o todo social não se opõe ao indivíduo. Ele está

    presente em cada um de nós, sob a forma do   habitus,

    que se implanta e se impõe a cada um de nós através da

    educação, da linguagem ... Tudo o que somos é produto

    da incorporação da totalidade. O FMI está em nós.

    Sobretudo naqueles que sofrem mais agudamente as

    conseqüências de sua política. Essa dicotomia puramente

    escolar entre holistas e individualistas, que os profes

    sores repetem, reproduzem, e que lhes permite fazer

    planos de curso (primeira parte: holistas; segunda par

    e: individualistas) é um desastre.

    M A -  No Brasil, isso também se aplica: é

    muito comum dizer-se que a classe média é individu

    lista  e que a classe popular e os operários são

    holistas.

    33

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    19/53

    PB - Eu não sabia. É interessante. Todas as

    oposições - alma/corpo, individual/coletivo, único/co

    mum - são oposições de classe. Diz-se: é único, singu

    lar, inimitável, portanto raro, bom; e, ao contrário, co

    mum, banal, ordinário, médio, na média, logo ruim. A

    sociologia está sempre numa posição de centro e ao

    lado da média. Heidegger, por exemplo, tem um texto

    que se tornou clássico, um dos textos sagrados na filo

    sofia, o texto sobre o "on".

    7

      Esse texto é comentado

    por todos os filósofos sem que eles percebam que o

    que está em jogo é uma questão de meios de comuni

    cação, de transporte em comum e de (previdência) so

    cial. Há uma crítica contra a média identificada ao

    nivelamento. O médio é opaco, obscuro, "os obscuros,

    sem classe". Se você abrir um dicionário e consultar os

    verbetes  um, único,  encontrará como antônimos os ter

    mos

      comum, banal

      etc, e pouco a pouco se constitui

    uma rede com todos os adjetivos, todo o sistema de

    adjetivos no qual o bom está sempre ao lado do

      um

      e

    o ruim ao lado do

      comum.

     E simples. Temos essa estru

    tura na cabeça e ela funciona o tempo todo.

    M A -

      Voltando aos sociólogos, temos hoje,

    no Brasil, uma situação na qual a política neoliberal

    é conduzida por um sociólogo, de um partido social-

    democrata, que se cerca de colaboradores formados

    nas melhores universidades do país. O senhor acredi-

    1

     Bourdieu se refere ao parágrafo 27 de Ser

     e

     tempo, sobre a

    questão da anonimidade ou impessoalidade do cotidiano.

    Em francês,

     on

     é a tradução do pronome alemão

     man,

     que

    caracteriza o sujeito im pessoal. N a falta de um pronome com

    a mesma função, na tradução brasileira foi usado o impessoal

    (Martin Heidegger.

     Ser e

     tempo. Petrópolis: Vozes, 1989. Tra

    dução de Márcia de Sá Cav alcante). (N. da

     R.

     T.)

    34

    la que isso acontece porque, estando no governo, es

    ses intelectuais se vêem obrigados a agir muito mais

    de acordo com a lógica política do que com a lógica

    intelectual? E se usam a lógica política, seria possível

    dizer que possuem uma margem de manobra restrita?

    PB - A questão é muito difícil. Será possível

    explicar a conduta política de um homem pelo campo

    político no qual está inserido ou pelas disposições

    socialmente constituídas que ele carregou para essa

    posição? De fato, os dois, em proporções que cabe

    determinar. Mas penso que se alguém se torna presi

    dente social-democrata a serviço das lógicas dominan-

    les é porque já tinha disposições nesse sentido. De

    qualquer maneira, é claro também que só se pode acei-

    lar a idéia de que ele age pela força de compromissos

    ligados à posição política como uma desculpa. Como

    um álibi. É isso que diz Jospin, é o que diz Schroeder,

    e o que diz Blair, é o que diz Cardoso. Os mesmos que

    me condenam por supostas posições deterministas di-

    zem-se favoráveis à liberdade, ao individualismo, todos

    os bons valores. Um homem político, por mais domi

    nado que seja, por mais que esteja ligado a uma posição

    política dominada, num país dominado, tem uma mar

    gem de liberdade que lhe permite agir. Essa margem de

    liberdade pode consistir em dizer a aqueles que o ele

    geram que existe uma margem de liberdade e que é

    preciso que o apoiem para que ele possa usar essa

    margem de liberdade (ou se servir dessa margem) para

    ampliá-la. Mas o que temos visto é esses políticos

    usarem a vulgata segundo a qual a globalização exclui

    toda a margem de liberdade, para não terem de usar a

    pouca que têm e para privar de liberdade os governados.

    Má espaço de liberdade, sim, isso não é utopia.

    35

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    20/53

    M A -  O senhor quer dizer que essas pes

    soas têm limites, mas também margens de manobras.

    Passando desse ponto à relação dessas pessoas com

    a esquerda, no caso de Cardoso, por exemplo. Ele diz

    que a esquerda é neoboba ...

    PB - A força social desse discurso confor

    mista vem do fato de ele colocar o pensamento crítico

    em descrédito. Uma das grandes mudanças da época

    atual é a tendência dominante, mesmo no meio intelec

    tual, ao conformismo. Lembremos um exemplo sim

    ples: quando Sartre foi convidado a almoçar no Palácio

    do Governo dos Élysées e se recusou a ir, ficou ime

    diatamente claro que se tratava de um ato de autonomia

    intelectual. Se um intelectual age dessa maneira hoje, é

    considerado louco ou grosseiro. Vão surgir comentá

    rios do tipo: "Que atitude ultrapassada, isso é uma for

    ma velha de luta". Os intelectuais se acham uma cate

    goria muito livre, mas penso que, na verdade, eles se

    submetem a constrangimentos e conformismos enor

    mes, como o conformismo da boa maneira, do que é ou

    não chique. As pessoas são hábeis em usar e jogar com

    esse tipo de coisa, mostrar medo ou vergonha em um

    ou outro momento, quando é adequado. Dito isso, seria

    possível perguntar se já não haveria na fragilidade da

    sociologia de alguns autores coisas que predisporiam a

    esse tipo de papel.

    M A -  O senhor acredita que exista ou pos

    sa existir um retorno à ética, como propõem certos

    intelectuais, de modo a se reconstituir uma via alter

    nativa a essa racionalização?

    PB - Não. Sou bastante cético, pois é dificí

    limo dar à ética uma força social. Acho que se existisse

    36

    um pouco mais de ética, o mundo intelectual mudaria

    muito. Mas um a ética específica, bem precisa, um a ética

    do rigor. Um belo exemplo é o livro

      Prestiges et

    prodiges de l'analogie  [Prestígios e prodígios da ana

    logia],  no qual Bouveresse faz uma análise dos usos

    laxistas dos modelos científicos no discurso filosófico

    ou nas ciências sociais. Ele toma como exemplo, um

    pouco como bode expiatório, e creio que com razão,

    Régis Debray e os usos que ele faz do teorema de

    Godei. Trata-se de um teorema complexo, que tem

    condições de validade e aplicação muito precisas, cir

    cunscritas aos sistemas formais. E Debray, sem a me

    nor cerimónia, aplica-o ao sistema social com a apro

    vação de Michel Serres, que fala de teorema de Gõdel-

    Debray, o que é absolutamente cómico. Bouveresse

    analisou esse tipo de apropriação, e imediatamente to

    dos os jornalistas franceses o chamaram de velho rabu

    gento, que, do alto do Collège de France, quer dar li

    ções de rigor. Enquanto o que ele diz é que "é preciso

    colocar moral na vida intelectual", e a moral da vida

    intelectual é a lógica.

    Dito isso, aqueles que pregam a moral, ao

    menos na França, nem sempre são os mais virtuosos do

    ponto de vista do que acabo de dizer. Para dar força

    política à ética, é preciso ser competente. Ainda mais

    quando essa ética vai contra as forças do minantes. Creio,

    entretanto, que a exaltação da moral é um álibi, uma

    maneira de não fazer política. Desde o início da entre

    vista, você me pergunta: "Por que a política?" Penso

    que uma das razões importantes de se querer entender

    o mundo é ter interesse político no mundo. O que não

    quer dizer uma tomada de posição política sobre o

    mundo. Nunca tive pertencimento político, nunca fui

    37

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    21/53

    de um partido, sempre achei que ter engajamentos po

    líticos funcionava como substituto de engajamentos

    reais. Contudo, penso que ter um interesse político é

    algo absolutamente fundamental para um intelectual.

    Há uma forma de abordar os problemas, de ver as

    questões, de apreender o mundo que está ligada ao

    interesse político. Isso nos tira da indiferença, deixa

    mos de ser espectadores. O que estou dizendo é abso

    lutamente oposto a um dos preceitos da metodologia

    oficial, colocada na conta de Max Weber e que, a meu

    ver, constitui um paradoxo. Max Weber realmente fa

    lou de neutralidade axiológica, querendo dizer que não

    se deveriam fazer julgamentos de valor; mas nunca

    disse que se deveria ser indiferente ao mundo social.

    Ele foi um pensador engajado em tempo integral. Es

    creveu textos magníficos sobre o papel do intelectual

    em suas relações com a política etc. A pulsão política

    é muito importante. A indiferença política é uma for

    ma de distanciamento do mundo, uma maneira de se

    tratar o mundo social como um espetáculo que se olha

    do alto do pedestal científico. Sobre Foucault, eu dis

    se nesta entrevista que se ele não fosse homossexual,

    com todos os problemas pessoais e políticos implica

    dos, não teria se questionado sobre uma grande quan

    tidade de problemas científicos de primeira ordem.

    Não os teria colocado daquela forma. No que me

    concerne, passei minha vida transformando problemas

    científicos em problemas políticos. A questão é saber

    em que medida somos capazes de fazer isso. Quanto

    mais um problema é político, mais difícil transformá-

    lo .  Luto contra todos que transformam problemas

    políticos em problemas científicos. Para mim, a ética

    é um álibi. As pessoas que na sociologia falam de

    38

    ética nesse momento não têm coragem de ver o mun

    do como ele é e de se verem como são. Falando de

    moral, não falam de política. E isso que está em ques

    tão:  assumem uma posição política mais chique.

    M A -  Falemos de moral de uma outra

    maneira. O senhor acredita que a enorme massa de

    sofrimento

      -

      que no Brasil se expressa em violência,

    miséria, exclusão, insegurança, incerteza sobre o fu

    turo  -  produzida pelo neoliberalismo poderá um dia

    dar origem a um movimento capaz de acabar com

    ele? E as religiões que crescem de forma proporcio

    nal a esse estado de coisas, têm alguma chance de se

    voltar contra a sociedade?

    PB - As situações de crise são situações

    críticas nas quais o mundo cai em pedaços. As pessoas

    perdem as referências, ficam sem instrumentos para

    totalização. Max Weber diz que a função principal da

    religião é dar sentido e coerência prática, não teórica,

    à existência, de modo que a pessoa se encontre, se

    oriente. E dito a ela, por exemplo, o que deve comer,

    como se vestir. Infelizmente, os profetismos religiosos

    costumam se situar na lógica do escapismo  {escapism,

    como dizem os autores anglo-saxões), conduzindo a

    visões milenaristas que se afastam do político no que

    ele tem de brutal e insuportável. Poderíamos nos per

    guntar onde seria possível encontrar forças sociais para

    mudar esse mundo. E uma questão que me coloco, nem

    tanto como pesquisador. Penso que o que está aconte

    cendo é muito grave e que a humanidade está ameaçada.

    Eu gostaria muito de defender um utopismo que fosse

    realista. Mas para fazer isso é necessário conhecer o

    mundo, é preciso ser velho e jovem ao mesmo tempo;

    39

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    22/53

    entusiasta e ingenuo como um jovem, mas também

    ponderado, sério, realista, um pouco pessimista e um

    pouco triste como um velho. Aos 20 anos de idade, se

    me falassem como falo hoje em dia, eu acharia a con

    versa extremamente sinistra, baixo-astral. Arquimedes

    dizia: "Dê-me um ponto e levantarei o mundo". E pre

    ciso encontrar o ponto arquimediano. Quando vou à

    Alemanha, fico pensando: "Pode ser o sindicalismo

    alemão". Falo para eles: "Talvez vocês sejam aqueles

    que vão salvar a Europa social". Ao dizer isso a eles, eu

    me digo que eu talvez consiga reforçar um pouco sua

    crença e isso poderia ajudar...

    Mas você me pergunta também sobre os pre

    gadores. Poderíamos imaginar um caso, bastante im

    provável, de um intelectual muito refinado, extrema

    mente culto, que tivesse interiorizado a sociologia, a

    economia, a filosofia crítica, e que fosse capaz de tor

    nar-se um líder religioso popular. Seria necessário que

    ele apresentasse habilidades contraditórias: que fosse

    muito intelectualizado, um pesquisador etc, e, ao mes

    mo tempo, que não tivesse vergonha de se apresentar

    em público, de subir em palco. Um dos grandes proble

    mas do movimento social é encontrar novas formas de

    luta social. É preciso continuar a fazer manifestações,

    desfilar com bandeirolas, gritar slogans, mas é preciso

    inventar novas formas. No mom ento da Guerra do Vietnã,

    os estudantes americanos foram capazes de inventar um

    monte de coisas: queimaram as carteiras de identidade,

    as bandeiras, pois, sendo intelectuais, tinham capital e

    eram mais livres. Seria preciso encontrar pessoas que,

    em linguagem mais acessível, mais universal, portas

    sem um discurso contra o neoliberalismo - o que falta

    hoje em dia.

    4

    M A -  Recentemente, o senhor escreveu um

    livro sobre a televisão que constitui um reconheci

    mento da importância desse meio de comunicação no

    mundo atual e, ao mesmo tempo, uma crítica quase

    cruel de seus efeitos. O senhor diz, por exemplo, que

    a televisão produz um efeito global de despolitização

    e mais exatamente um desencantamento com a

      polí

    tica. Diz que os jornalistas tendem a produzir uma

    representação instantânea e descontínua do mundo,

    através da qual passam, pouco a pouco, uma filoso

    fia pessimista da história. Poderia nos dar alguns

    exemplos?

    PB - E muito difícil, pois eu teria de tomar

    o exemplo de um jornal televisivo brasileiro e fazer

    uma análise detalhada. E certo que teríamos uma série

    de eventos sem ligação entre si, sem lógica interna,

    acerca dos quais não saberíamos de onde vêm nem para

    onde vão. Exceto no caso da mídia voltada para o públi

    co culto, escolarizado, mas, mesmo nesse caso, os jor

    nais televisivos são atemporais, a-históricos. A única

    regra é que as notícias veiculadas devem ser as mais

    frescas possíveis; não tem muito sentido, portanto, fa

    zer retrospectivas. Mas nessa hora, sim, deveria produ

    zir-se "globalização", ligar os fatos, relacioná-los. Se

    um jornalista fizesse isso, seria acusado de estar fazen

    do política, de estar tomando uma posição. Na lógica da

    televisão, ao contrário, o que ele deve fazer é mostrar

    imagens e nada além de imagens. Sabemos que as ima

    gens podem ser manipuladas por um determinado

    enquadramento ou por uma determinada técnica. O mais

    grave, porém, é o fato mesmo de se isolar a imagem

    daquilo de que ela é o complemento, de todo o contex-

    to na qual ela adquire sentido e que a torna inteligível.

    41

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    23/53

    As pessoas dizem: "Chega de humanitarismo, é muito

    triste, não posso mais olhar para isso". E pior do que a

    despolitização. Expulsam-se pessoas do m undo, de tudo

    o que é importante, de tudo o que é sério. Existe uma

    lógica do mundo jornalístico - e em particular da tele

    visão - que tende a apresentar um mundo absurdo,

    anedótico, sem pé nem cabeça.

    M A -  M as a TV já não é globalizada?

    Quando acontece um fato importante, todos os ca

    nais mostram exatamente as mesmas imagens. O se

    nhor acredita que isso possa ter um efeito sobre o

    imaginário das pessoas?

    PB - Não temos muito como saber isso. O

    problema se coloca por estar no debate público: será

    que a violência na televisão provoca violência na vida?

    Mas eu não aceitaria colocar as coisas dessa forma. É

    um exemplo típico do que eu disse há pouco: temos um

    problema social do qual fazemos um problema socioló

    gico. No plano das lutas políticas, escutaríamos: "Exis

    te violência porque existe violência na televisão; supri

    mam a violência na televisão e não haverá mais violên

    cia". Isso não é sério E então vai se solicitar o parecer

    dos intelectuais sobre o problema. Não acredito que se

    possa recortar o problema dessa maneira. A violência é

    um problema com múltiplas causas, e a televisão pode

    ser uma. Ela pode fornecer idéias de como exercer a

    violência; dessa ou daquela outra forma. Há uma enor

    midade de coisas que ainda não podemos estudar cien

    tificamente. Uma coisa que constatei por meio de en

    trevistas é o fato de um certo desprezo pela política

    resultar, em parte, do efeito produzido pela televisão,

    em particular o mundo político visto pela televisão, ou

    42

    seja, reduzido a pequenas frases. Os jornalistas políti

    cos despolitizam quando aparentemente politizam de

    terminado assunto. Eles dizem: "Isso é porque M.

    Strauss-Khan faz oposição a M. Fabius", quando pode

    ser que existam aí problemas de verdade, que um dis

    corde do outro porque um é a favor da redução de

    impostos e o outro, do aumento. Mas, como é mais

    difícil compreender os problemas dos quais os políti

    cos falam do que entender as relações entre os políti

    cos,  os jornalistas preferem contar sua historinha das

    relações entre políticos, apresentar como um fato po

    lítico o equivalente à fofoca. E mais fácil que estudar

    o processo. E é mais um fator de despolitização.

    MA -

      O senhor diz que um dos efeitos mais

    nefastos do neoliberalismo é a destruição das bases

    econômicas e sociais das conquistas mais raras da

    humanidade, da autonomia do universo da produção

    cultural em relação ao mercado. O senhor indica como

    um dos fenômenos mais importantes da atualidade a

    extraordinária extensão da influência da televisão

    sobre o conjunto das atividades culturais, incluindo

    a produção científica e artística. A televisão e os meios

    de comunicação tenderiam a se constituir, cada vez

    mais, em instâncias de consagração de numerosas

    atividades culturais, inclusive das científicas? Como

    o senhor definiria a relação do jornalista e do pro

    dutor de televisão com os intelectuais? A heteronomia

    tende a se tornar uma característica do campo da

    produção cultural?

    PB - Sim, eu disse que se sabe muito pou

    co sobre a violência, pois é difícil medir seus efeitos.

    Nesse caso, o efeito que a televisão exerce sobre o

    43

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    24/53

    jornalismo e sobre o conjunto das práticas jornalísticas

    é passível de ser medido e observado, e que atinge

    também a produção cultural em suas diferentes for

    mas, o direito, a arte, a filosofia, a literatura etc. O

    veredicto midiático, o julgamento midiático pesa cada

    vez mais, mesmo sobre universos mais autônomos,

    mais fechados em si mesmos e sobre suas próprias

    tradições, como o mundo científico. Há um certo tipo

    de notoriedade científica que se adquire pela mídia e

    que permite aos indivíduos que não são necessaria

    mente os melhores do ponto de vista do universo in

    telectual obterem vantagens competitivas, como di

    zem os economistas: subvenções, créditos, honras etc.

    Isso é possível em função do uso hábil que fazem da

    mídia. Em outros universos, isso fica ainda mais cla

    ro :  em muitos países, o mundo jurídico é cada vez

    mais penetrado pela mídia. O sucesso midiático de

    alguns advogados, de alguns juízes leva-os, primeira

    mente, a fazer coisas que não fariam se não existisse

    a busca pelo sucesso e a intervenção do julgamento

    midiático, que tende a modificar a hierarquia profis

    sional . Outro exemplo é o da fi losofia. Jacques

    Bouveresse, sem dúvida o maior filósofo francês vivo,

    aquele que escreve as coisas mais interessantes, é muito

    menos conhecido do que Bernard-Henry Levy ou Régis

    Debray. É assombroso. Pode-se dizer que um afasta

    mento entre a vanguarda e a visão comum sempre

    existiu; mas hoje em dia atinge proporções considerá

    veis porque essas pessoas, através de seu poder na

    mídia, fundado na conivência e na sol idariedade

    jornalístico-intelectual, podem controlar a produção

    através da certeza do sucesso de alguns livros. Todo o

    universo da produção é cada vez mais dominado pela

    44

    comercialização, que por sua vez é dominada pela crí

    tica, e toda essa articulação se dá de forma quase or

    questrada. Na França, existem espécies de lobbies reu

    nindo intelectuais medíocres e grandes jornalistas que,

    como demonstra Serge Halimi em seu l ivro

      Les

    nouveaux chiens de garde  [Os novos cães de guarda],

    têm efeitos sobre o mundo intelectual e político. A

    própria política é muito dominada. Talvez Cardoso diga

    o que diz para ser bem-visto pelas pessoas da televi

    são.  E nesse sentido que a perda de independência

    passa, em parte, pela questão da mídia. Hoje,

      la

    revolución  passa menos pelo Chiapas do que pelas

    salas de redação: um dos lugares mais importantes de

    poder simbólico e mesmo político e econômico, pois

    é aí que se criam as idéias-força, as idéias fortes.

    M A -  O senhor acredita que as televisões

    poderiam passar de um papel de despolitização, de

    alienação das pessoas, a um papel de reforço à de

    mocracia?

    PB - Teoricamente, sim. Mas as condições

    sociais para que isso aconteça não existem no momen

    to .  As pessoas podem promover um  happening,  invadir

    a televisão durante um programa ao vivo, o que durará

    três segundos, tempo para que sejam colocadas porta

    afora. O problema é: seria possível existir televisão

    livre? Quem cria os instrumentos de uma democracia

    de base local?

    M A -

      As televisões universitárias, por

    exemplo...

    PB - Sim, é possível. Um dos filmes de

    Pierre Carles foi censurado pela própria televisão que

    45

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    25/53

    o encomendou. E possível que ele venha a ser exibido,

    mas vai levar tempo. Evidentemente, se existissem cir

    cuitos independentes de televisão, financiados por as

    sociações, se houvesse circuitos de distribuição de ci

    nem a. .. Uma coisa m uito importante na produção c ul

    tural é que, cada vez mais, a distribuição comanda a

    produção. Essa é uma proposição terrível que indica

    que estamos no reino do comercial. Mesmo editoras

    independentes - como Seuil, Gallimard - devem levar

    em conta, em sua escolha de tradução e de edição, o

    destino comercial de uma parte cada vez maior de seus

    livros.  E os que fazem a distribuição - os grandes gru

    pos como Hachette, Havas - vão exercer uma pressão

    seletiva, uma censura aos livros. No cinema, isso já

    está feito, já está pronto.

    M A -  Vou formular a mesma questão de

    outra forma. Segundo o senhor, existe a possibilida

    de de um universitário, pesquisador ou professor, com

    meios econômicos e técnicos limitados, desafiar as

    grandes redes milionárias de distribuição e interpre

    tação da realidade?

    PB - É preciso tentar sempre. Acho que em

    casos nos quais as relações de força são muito desi

    guais,  é preciso tentar aproveitar cada ocasião. Os eco

    nomistas chamam esse tipo de espaço de nicho: um

    produtor que, graças a um produto absolutamente origi

    nal,

      pode resistir à concorrência. O mundo da cultura

    está repleto de nichos. Ainda existem editores de van

    guarda que publicam livros com tiragem reduzida e con

    seguem se virar, mesmo que se auto-explorem um

    pouquinho. Por estranho que pareça, acho que o futuro

    está nessa lógica do nicho. Na medida em que algo que

    46

    não deveria ser dito encontra uma forma de ser dito,

    isso é importante: haverá sempre alguém que vai escu

    tar, e isso poderá ressurgir dez anos depois. Parte im

    portante do que se escreve não teria sentido caso não

    acreditássemos nisso. Existe uma margem de liberdade

    real, realista, que tem a ver com isso. Há públicos po

    tenciais, por vezes póstumos. Se tivéssemos apenas o

    mercado atual, imediato, a maior parte das coisas inte

    ressantes seriam arrasadas de saída. Então é preciso

    lutar para que o mercado não destrua todos os nichos e

    para que haja espaço para mercados interiores. O siste

    ma escolar continua sendo um dos nichos possíveis,

    apesar da concorrência do privado: ele oferece a dedi

    cação, pessoas que acreditam, além de recursos, certa

    mente não muito grandes, mas que permitem que se

    façam coisas.

    Tudo o que fiz ao longo da vida repousa so

    bre essa espécie de economia anti-econômica. Por

    exemplo: fazemos uma revista sem subvenção que de

    pende de pessoas que não são remuneradas pelo traba

    lho que fazem, que se dedicam. Uma parte enorme das

    boas coisas são produzidas fora da lei do mercado. A

    questão é saber por quanto tempo conseguiremos ter

    pessoas que trabalham sem mercado, que acreditam o

    suficiente para trabalhar sem mercado. E um dos gran

    des problemas.

    M A -  Mudando completamente de assunto,

    falemos de mulheres. O senhor utiliza com muita fre

    quência o conceito de violência simbólica. Dentre os

    mais significativos exemplos de violência simbólica,

    o senhor cita a dominação masculina, discutida em   A

    dominação masculina,  recentemente publicado. Como

    47

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    26/53

    acontece freqüentemente em sua obra, o livro provo

    cou uma grande polêmica. O senhor poderia falar

    um pouco sobre ele?

    PB - O que quis fazer foi dar coerência teó

    rica a observações feitas por etnólogos, sociólogos,

    economistas etc, que mostram que, com muita freqüên

    cia, as mulheres ocupam uma posição dominada. Penso,

    por exemplo, num ótimo trabalho que citei de uma

    socióloga americana que estudou o uso diferencial do

    telefone por homens e mulheres. Ela mostra que as

    mulheres utilizam muito mais o telefone do que os

    homens . Cos tuma-se d izer que as mulheres são

    faladeiras, que passam uma parte considerável de seu

    tempo ao telefone, e ela explica que tal fenômeno está

    relacionado à divisão do trabalho doméstico, na qual as

    mulheres têm uma função, admitida inconscientemente,

    de manter e zelar pelas relações familiares. Isso é o

    que chamo de capital social da família, do conjunto da

    família, e cabe à mulher cuidar não apenas das relações

    com sua própria família, mas também com a de seu

    marido. São elas que dão telefonemas, compram pre

    sentes, organizam festas de aniversário, que se lem

    bram das datas. Eis um pequeno exemplo de um bom

    trabalho. Infelizmente não é o que fazem as feministas

    francesas, que fazem mais teoria, em geral de baixa

    qualidade, do que trabalhos empíricos fundamentados.

    Tentei mostrar que o princípio de coerência

    entre todas aquelas observações é que a dominação

    masculina é uma dominação de tipo particular que, por

    mais que se diga o contrário, não repousa sobre a vio

    lência física. E claro que existem mulheres vítimas de

    violência, e conheço as estatísticas. A dominação não

    repousa apenas na violência econômica, no fato de as

    48

    mulheres ganharem menos e, portanto, serem menos

    livres para sair de casa, se separar etc. Ela repousa sobre

    o que chamei de violência simbólica, ou seja, a violên

    cia que resulta do fato de as pessoas terem na cabeça

    princípios de percepção, maneiras de ver que são pro

    duto da relação de dominação. Dito de outra forma,

    elas colaboram, entre aspas, com sua própria domina

    ção.  Isso não significa que as mulheres sejam idiotas,

    fracas, submissas; quer dizer que as estruturas sociais

    levam-nas - desde a infância, na família, na escola - a

    incorporar, interiorizar um tipo de relação masculino-

    feminino através, por exemplo, do sistema de adjetivos,

    como falei no livro. Referi-me também ao trabalho de

    uma socióloga americana que mostrou que a distinção

    entre

      hard

      e

      soft,

      entre

      hardware

      e

      software,

      entre as

    ciências duras e as ciências moles, é masculino-femi-

    nino.  Quanto mais nos aproximamos das ciências mo

    les,  mais elevada é a proporção de mulheres encontra

    das e inversamente para os homens. Se as coisas se

    passam dessa forma, não é porque dirigimos as mulhe

    res para o social, para o feminino, para as belas-artes,

    enquanto os homens ficam com as matemáticas, a físi

    ca; é também porque as mulheres pensam que não são

    dotadas para essas matérias, que são feitas para as pri

    meiras, que as últimas não lhes interessam.

    Tentei analisar tudo isso e mostrar que se

    trata de uma dominação muito difícil de ser modifica

    da, pois não basta que se faça uma revolução econômi

    ca; é preciso também uma revolução simbólica, nas

    cabeças. (Seria a mesma coisa no caso da dominação

    étnica entre brancos e negros). É preciso que a pessoa

    se dê conta do fato, para poder encontrar meios de

    subverter essa relação. Onde isso se reproduz? Na Igre-

    49

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    27/53

    ja, na escola, no Estado. Portanto, os lugares de luta

    não se reduzem ao plano doméstico. Descobri um exem

    plo disso muito recentemente, após ter escrito meu

    livro. Digo sempre que há uma mão direita e uma mão

    esquerda do Estado. A mão direita do Estado é a das

    finanças, do orçamento, tudo o que é soberano, tudo o

    que é masculino; a mão esquerda, tudo o que é femini

    no :

      hospitais, creches, escola. Evidentemente, na hie

    rarquia dos ministérios o masculino domina o femini

    no ,  o Ministério das Finanças domina o Ministério de

    Assuntos Sociais. Isso quer dizer que o setor público

    que se pretende destruir atualmente é aquele no qual

    trabalham mulheres (escolas, hospitais etc.) e do qual

    as mulheres são as principais beneficiárias (serviços

    sociais, assistência às creches etc). Isso oferece uma

    linha política de atuação para um movimento feminista

    que tenha consciência de estar comprometido com o

    Estado Social de uma forma dupla.

    M A -

      A Assemb léia N acional Francesa

    acaba de adotar o Pacto C ivil de Solidariedade

    (PaCS).

      Isso lhe parece um avanço importante no

    campo social? Que efeitos pode ter sobre a sexuali

    dade? O senhor acha que poderá haver efeitos tam

    bém sobre a lógica da reprodução social?

    PB - Se houve tantas batalhas, é porque é

    importante. O PaCS muda a visão, quebra a idéia de

    natural, da família como pertencente a uma ordem na

    tural, situada na lógica do natural. Cada vez que se diz

    é natural,

      há manipulação, dominação. O discurso do

    minante naturaliza as coisas como elas são. Diz-se:

      é

    deste jeito, sempre foi deste jeito.

      O fato de quebrar a

    imagem comum, admitida, adquirida, natural, do casal,

    5

    da procriação, da reprodução etc. é muito importante

    simbolicamente. Temos sociólogos que ficam doentes

    com isso, sobretudo os que participam da

      Esprit,

      revis

    ta espiritualista fundada por Mounier, um dos lugares

    de onde partem muitas balas que caem sobre nossas

    pobres cabeças. Alguns sociólogos ficaram realmente

    perdidos: o PaCS deixou-os literalmente malucos por

    que sua proposta toca na ordem burguesa e familiar.

    Nesse sentido, é indiscutível a importância do PaCS.

    M A -  Embora tenha sido convidado diver

    sas vezes, o senhor ainda não foi ao Brasil. Entretan

    to,

      desde os anos 70 seu trabalho influencia as ciên

    cias sociais em nosso país, por meio de obras

    traduzidas para o português e, sobretudo, de pesqui

    sadores brasileiros que o senhor recebe sistematica

    mente no Centre de Sociologie Européenne e da visita

    ao Brasil de quase toda sua equipe de pesquisadores.

    PB - Sim, exceto eu mesmo; tenho vergonha.

    M A -

      Não vou perguntar se o senhor virá

    um dia porque estou cansada de fazer isso. M as,

    mesmo assim, vou perguntar o seguinte: que visão o

    senhor tem do Brasil e dos intelectuais brasileiros?

    PB - É muito difícil responder. Tudo o que

    posso dizer é que, no combate que se trava no momen

    to ,  e que é preciso ser travado, o Brasil faz parte dos

    países com os quais conto. É isso. É estranho falar

    nesses termos, mas acredito que atualmente estamos

    engajados num combate, em defesa de uma civilização,

    e penso que, por razões históricas, o Brasil, que sofreu

    a política neoliberal completa, com uma violência ex

    trema, mas que ao mesmo tempo tem grandes recursos

    51

  • 8/18/2019 BOURDIEU, Pierre. Entrevista

    28/53

    culturais, históricos, pode ser um dos lugares de resis

    tência. Penso que a resistência não pode mais ser nacio

    nal.

      Há uma espécie de processo de colonização na

    América Latina. É uma forma completamente nova de

    colonização, uma colonização dos cérebros que tam

    bém está atingindo a Europa. Estranhamente, a Europa

    não pode se salvar se esquecer de países como o Brasil,

    com grande tradição cultural, com capital histórico.

    Hesito em falar dessa forma por medo que pensem que

    estou saindo de meu papel de pesquisador e me fazendo

    de profeta político. O Brasil é um país no qual foram

    desenvolvidas uma sociologia e uma antropologia mui

    to boas, com poucos recursos econômicos mas sobre

    uma base de recursos históricos. Tivemos pessoas como

    Bastide, Braudel, Lévi-Strauss, Foucault e tantas outras

    que foram ao Brasil. Todo esse capital faz com que o

    Brasil tenha guardado uma autonomia considerável re

    lativamente às forças mundiais. Escrevi, juntamente com

    Loie Wacquant, um artigo intitulado "Les ruses de la

    raison impérialiste" [As astúcias da razão imperialista],

    no qual tentamos mostrar que a visão de mundo domi

    nante (uma forma de violência simbólica) se impõe

    através da imposição de problemáticas e de categorias

    do pensamento. Há uma passagem, escrita por Loie

    Wacquant, sobre a maneira pela qual a visão da divisão

    étnica ou racial americana tende a impor-se, por inter

    médio de categorias do pensamento, ao conjunto dos

    países sul-americanos e, em particular, ao Brasil. Da

    mesma forma, todos os conceitos dos quais falamos

    hoje, como a globalização, todos esses conceitos cir

    culam, freqüentemente mal traduzidos, no mundo intei

    ro ,

      tornando-se problemáticas impostas. Isso porque têm

    ar de universais, quando, na verdade, universalizam par-

    52

    ticularidades americanas. Por exemplo, a dicotomia

    negro/branco, que adquire uma forma histórica particu