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BOLETIM DO CEIB Belo Horizonte, Volume 15, Número 48, março/2011 TIPOLOGIAS PRESEPIAIS A PARTIR DE SEUS ELEMENTOS CENOGRÁFICOS *Eliana Ambrosio EDITORIAL A diretoria do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib) continua a programar e encaminhar para instituições e órgãos financiadores projeto sobre o VII Congresso, que será realizado na Casa da Ópera / Teatro Municipal de Ouro Preto, de 25 a 29 de outubro próximo. As conferências serão apre- sentadas por vários professores e pesquisadores indicados por con- ferencistas de congressos anteriores: Dra. Ana Cardona, da Universidade do Porto, Portugal; Dr. Dom Carlos Azevedo, de Lisboa; Dr. Joaquim Garriga Riera, da Universidade de Girona, Espanha; Dra. Mónica Bahamondez, do Centro Nacional de Conservação e Restauração do Chile. Teremos, portanto, conferências de alto nível e, brevemente, estaremos enviando por e-mail o programa preliminar com a ficha de inscrição para os associados, amigos e instituições ligadas ao setor. Esperamos receber bons resumos, resultantes de pesquisas e trabalhos recentes. Vamos, pela segunda vez, ter uma sessão dedicada a posters, e os interessados em apresentá-los já poderão encaminhar o resumo citando essa opção. Em breve, o site do Ceib estará atualizado, com todas as informações sobre o VII Congresso. No início de março en- caminharemos aos associados o boleto com a anuidade de 2011, que, conforme decisão da Assembléia realizada no final do VI Congresso, terá um pequeno aumento. Enviaremos em envelope próprio, para que os sócios possam tomar conhecimento com maior facilidade. Em 2010 esse processo de encaminhamento deu excelentes resultados. Esperamos contar com a presença de um grande número de associados em outubro, no Teatro Municipal de Ouro Preto! Em breve, o site do Ceib estará atualizado, com todas as informações sobre o VII Congresso. Para discutirmos a estrutura compositiva dos presépios e aventarmos diferenciações cenográficas, devemos partir do conceito fundamental que diferencia o presépio das diversas representações da Natividade. Apesar de se referir a uma mesma temática, o presépio é uma manifestação artística ligada ao campo da escultura móvel. Assim, a princípio, excluem-se as pinturas e relevos que tratam do tema do Nascimento de Cristo. Este é um ponto controverso, pois diversos autores partem das primeiras manifestações da Natividade para explicar o fenômeno presepial e consideram todos os diversos campos como um único registro. De fato, ao tratar dos presépios é inevitável observar os desdobramentos da representação da cena da Natividade na pintura, as contribuições das encenações sacras e as discussões no campo da escultura. Contudo, deve-se marcar claramente a distinção da contribuição de cada tipologia específica e se ater ao fato de que o conceito de presépio como escultura autônoma só se desenvolve no início do século XIII, após os acontecimentos da noite franciscana de Greccio. Desde o século VIII até 1207, houve uma crescente valorização das repre- sentações sacras que tratavam o tema da Natividade e da Crucificação através de dramatizações durante as festas litúrgicas. Esses espetáculos favoreceram a integração de elementos profanos nos ritos sagrados, contribuindo para um en- riquecimento de elementos plásticos e teatrais na cena da Natividade. Tamanha laicização levou o papa Inocêncio III, em 1207, a decretar sua proibição dentro do âmbito eclesiástico. Contudo, em 1223, São Francisco de Assis conseguiu uma permissão papal para celebrar o Nascimento. O franciscano propôs reviver a Noite Santa em uma gruta nos arredores de Greccio por meio de uma encenação que não contava com atores para representar São José, a Virgem e o Menino. Apenas uma manjedoura fora colocada para simbolizar a presença de Cristo, e o público atuou como pastores em adoração. Essa interpretação ganhou fama e se permeou de lendas que relatavam a presença de Cristo, revelando- se na manjedoura a São Francisco. Todavia, o que tornou aquele momento memorável foi o fato de os eventos ocorridos serem retratados por Giotto 1 como um acontecimento histórico. Isso estimulou os franciscanos a difundirem o culto à Natividade e perpetuar o gosto pelo presépio por toda a Europa. Figura 2 - Presépio da Igreja de São José, séc. XVIII, Lisboa Foto: Cristine DeCarli Foto: Eliana Ambrosio Figura 1 - Presépio da Catedral de Leon, final do séc XV, Espanha

BOLETIM DO CEIB · BOLETIM DO CEIB Belo Horizonte, Volume 15 Número 48, março/2011 3 Foto:Eliana Ambrosio vezes com acesso público restrito (FIG . 3). Já em Nápoles, esse tipo

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BOLETIM DO CEIBBelo Horizonte, Volume 15, Número 48, março/2011

TIPOLOGIAS PRESEPIAIS A PARTIR DE SEUSELEMENTOS CENOGRÁFICOS

*Eliana Ambrosio

EDITORIAL

A diretoria do Centro deEstudos da Imaginária Brasileira (Ceib)continua a programar e encaminharpara instituições e órgãosfinanciadores projeto sobre o VIICongresso, que será realizado na Casada Ópera / Teatro Municipal de OuroPreto, de 25 a 29 de outubro próximo.

As conferências serão apre-sentadas por vários professores epesquisadores indicados por con-ferencistas de congressos anteriores:Dra. Ana Cardona, da Universidade doPorto, Portugal; Dr. Dom Carlos Azevedo,de Lisboa; Dr. Joaquim Garriga Riera, daUniversidade de Girona, Espanha; Dra.Mónica Bahamondez, do CentroNacional de Conservação e Restauraçãodo Chile.

Teremos, portanto, conferênciasde alto nível e, brevemente, estaremosenviando por e-mail o programapreliminar com a ficha de inscrição paraos associados, amigos e instituiçõesligadas ao setor.

Esperamos receber bonsresumos, resultantes de pesquisas etrabalhos recentes. Vamos, pela segundavez, ter uma sessão dedicada a posters,e os interessados em apresentá-los jápoderão encaminhar o resumo citandoessa opção.

Em breve, o site do Ceib estaráatualizado, com todas as informaçõessobre o VII Congresso.

No início de março en-caminharemos aos associados o boletocom a anuidade de 2011, que, conformedecisão da Assembléia realizada no finaldo VI Congresso, terá um pequenoaumento. Enviaremos em envelopepróprio, para que os sócios possam tomarconhecimento com maior facilidade. Em2010 esse processo de encaminhamentodeu excelentes resultados.

Esperamos contar com apresença de um grande número deassociados em outubro, no TeatroMunicipal de Ouro Preto!

Em breve, o site do Ceib estaráatualizado, com todas as informaçõessobre o VII Congresso.

Para discutirmos a estruturacompositiva dos presépios e aventarmosdiferenciações cenográficas, devemospartir do conceito fundamental quediferencia o presépio das diversasrepresentações da Natividade. Apesar dese referir a uma mesma temática, o presépioé uma manifestação artística ligada aocampo da escultura móvel. Assim, aprincípio, excluem-se as pinturas e relevosque tratam do tema do Nascimento deCristo. Este é um ponto controverso, poisdiversos autores partem das primeirasmanifestações da Natividade para explicaro fenômeno presepial e consideram todosos diversos campos como um únicoregistro. De fato, ao tratar dos presépios éinevitável observar os desdobramentos darepresentação da cena da Natividade napintura, as contribuições das encenaçõessacras e as discussões no campo daescultura. Contudo, deve-se marcarclaramente a distinção da contribuição decada tipologia específica e se ater ao fatode que o conceito de presépio comoescultura autônoma só se desenvolve noinício do século XIII, após osacontecimentos da noite franciscana deGreccio.

Desde o século VIII até 1207, houveuma crescente valorização das repre-

sentações sacras que tratavam o tema daNatividade e da Crucificação através dedramatizações durante as festas litúrgicas.Esses espetáculos favoreceram aintegração de elementos profanos nos ritossagrados, contribuindo para um en-riquecimento de elementos plásticos eteatrais na cena da Natividade. Tamanhalaicização levou o papa Inocêncio III, em1207, a decretar sua proibição dentro doâmbito eclesiástico. Contudo, em 1223, SãoFrancisco de Assis conseguiu umapermissão papal para celebrar oNascimento. O franciscano propôs revivera Noite Santa em uma gruta nos arredoresde Greccio por meio de uma encenação quenão contava com atores para representarSão José, a Virgem e o Menino. Apenas umamanjedoura fora colocada para simbolizar apresença de Cristo, e o público atuou comopastores em adoração. Essa interpretaçãoganhou fama e se permeou de lendas querelatavam a presença de Cristo, revelando-se na manjedoura a São Francisco. Todavia,o que tornou aquele momento memorávelfoi o fato de os eventos ocorridos seremretratados por Giotto1 como umacontecimento histórico. Isso estimulou osfranciscanos a difundirem o culto àNatividade e perpetuar o gosto pelopresépio por toda a Europa.

Figura 2 - Presépio da Igreja de São José,séc. XVIII, Lisboa

Foto: Cristine DeCarli Foto: Eliana Ambrosio

Figura 1 - Presépio da Catedral de Leon,final do séc XV, Espanha

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BOLETIM DO CEIB2 Belo Horizonte, Volume 15, Número 48, março/2011

Neste ponto, paulatinamente, ocorreuma cisão entre a representação pictóricae a escultórica do tema do Nascimento. Deum lado, perpetua-se toda uma tradição queremonta ao século II com as representaçõespictóricas encontradas nas Catacumbas deSanta Priscila em Roma e, de outro, novassoluções são propostas por meio daambientação cênica das esculturas.

Se nos primórdios da representaçãopresepial existia uma coesa ligaçãoiconográfica entre as soluçõesapresentadas pelas ambientações cênicasdas figuras tridimensionais e as demaisproduções, como pintura, relevos, gravurasque tratavam do tema da Natividade, jádurante o período renascentista esses doiscampos divergem. Nesse momento, eracomum pinturas conterem cenasanacrônicas ao nascimento de Cristo, comepisódios de caçadas, a inclusão demecenas e poderosos no Cortejo dosMagos ou a inserção de monarcas nascenas da Adoração. Por outro lado, essasrenovações iconográficas não foramincorporadas de imediato nas repre-sentações presepiais, levando esses doismeios, pintura e escultura, a traçaremsoluções plásticas diversas.

A princípio, ao invés de diversificaras cenas e incorporar novos personagens,a produção de presépios ligou-se mais ao

campo do teatro e trabalhou no sentido deorganizar os planos e os tamanhos dasfiguras. Como as imagens ganharamautonomia, tinha-se que elaborar a suadistribuição ao longo da profundidade docenário. Geralmente, a Sagrada Família, comdimensão próxima à humana2, era dispostaem primeiro plano dentro de uma gruta. Aofundo, em escala reduzida e por meio derepresentações pictóricas, desenvolvia-seo Anúncio aos Pastores, inserido em umapaisagem montanhosa com árvores. Aarticulação física entre pintura e escultura,que ocorria nos conjuntos, teve umainfluência das inovações cênicas do teatrorenascentista italiano.

Até o renascimento, as apre-sentações teatrais costumavam ocorrer aoar livre. A retomada da antiguidade clássicae a “redescoberta” dos tratados de Vitrúviolevaram à valorização do teatro clássico. Atransladação dos espetáculos paraespaços favoreceu o desenvolvimento dosrecursos cenográficos, particularmente dailuminação e dos cenários. Estes passarama ser projetados com o intuito de se obteruma amplitude espacial, conseguida pormeio da pintura, em especial pela utilizaçãodas técnicas da perspectiva. Assim, cenasbidimensionais, pintadas no fundo dopalco, continham narrativas de ambientesexternos, muitas vezes apoiadas na

representação de arquiteturas para auxiliara criação do plano de fuga e a obtenção daprofundidade.

Através da utilização desse recursoteatral, os presépios ganharamprofundidade. Agora, a problemáticaestava em integrar figura e fundo, em unirelementos tridimensionais aos espaçosbidimensionais. Esse recurso foi utilizadona Natividade da escola de della Robbia,que contém um afresco ao fundo deBenozzo Gozzolli. Outras vezes, esse jogoera feito entre escultura de vulto e relevoao fundo, como percebemos no presépiode Federico Brandani do Oratório de SanGiuseppe em Urbino. Neste exemplo, aarquitetura presente ajuda a criar a noçãode um amplo espaço. Contudo, vemos quea articulação entre os planos intermediáriosainda não estava devidamente elucidada.O primeiro plano encontra-se desarticuladodo plano de fundo, pois não há umapassagem gradual. Isso foi trabalhado noscenários presepiais posteriormente.

Outro ponto a ser esclarecido sãoas tipologias que a representação daNatividade adquire ao passar do relevo paraos cenários com figuras independentes. Emum primeiro momento, os relevosdestacam-se de seus painéis e surgemcenas compostas por figuras de vultoconectadas entre si através de uma baseou dos próprios elementos cenográficos(FIG. 1). Gradualmente, as figuras libertam-se de uma estrutura de apoio e ganhamautonomia. Contudo, não deixam de contarcom o auxílio de uma ambientação cênica.Uma tipologia intermediária entre ospresépios com figuras de vulto fixas e osgrandes cenários são as caixas-oratório, asquais apresentam figuras isoladasposicionadas em um local predeterminadodo cenário (FIG. 2). Esses grupos, feitospara manterem o mesmo arranjo,permanecem intactos e inalterados, salvointervenções posteriores de seus donos.Por fim, a grande maioria dos presépiosconta com cenários, muitas vezes efêmeros,que a cada ano sofrem modificaçõesmediante o acréscimo de personagens,detalhes cênicos ou variações doposicionamento e distribuição das figuras.Esses conjuntos permitem grandevariabilidade e foram os responsáveis peladiversificação que os núcleos ganharam.A liberdade de a cada ano introduzir novoselementos difundiu o uso de diversosmateriais e proporcionou a incorporação decostumes locais, levando o presépio a seruma espécie de registro descritivo regional.

Considerando o presépio dentro dosaspectos ligados à diversificação cênica e

Figura 3 – Sala do Presépio Exemplo de um presépio erudito e narrativo destinado às ordens religiosas.

(Convento da Madre de Deus, Lisboa).

Foto: Eliana Ambrosio

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BOLETIM DO CEIB Belo Horizonte, Volume 15 Número 48, março/2011 3

Foto:Eliana Ambrosio

vezes com acesso público restrito (FIG. 3).Já em Nápoles, esse tipo esteve relacionadoaos núcleos com figuras em escalahumana, sem grande variedade de cenas eque eram regularmente expostos emambientes públicos da igreja, como altarese retábulos, ou confeccionado para osmonastérios masculinos. De outro lado,temos o presépio votivo ou oratório,destinado ao culto doméstico e à devoçãofeminina conventual; ligado às práticasdomésticas vinculadas aos ex-votos, aos

oratórios, à escultura processional de vestire à manipulação concreta da imagem sacradentro do âmbito do culto familiar. Suanarrativa costuma ser limitada ao grupo daNatividade, por vezes com a presença dealguns pastores. Contudo, está aberta acontaminações diversas e pode apresentargrupos destinados à representação deeventos do cotidiano. Dentro da idéia daoferta votiva, seu cenário pode serornamentado com flores, frutas e demaisminiaturas de objetos (FIG. 4). Em Portugal,essa tradição deu origem às caixas depresépio, miniaturas das composiçõesmonásticas. Em Nápoles, foi dentro dosconventos femininos que surgiram asvariações cênicas, a diminuição do númerode personagens e as demais inovações quepermitiram a criação do presépiosetecentista, marcado pela contaminaçãoe descrição de cenas do cotidiano. Alémdessas duas tipologias, Nápolesdesenvolveu uma cultura presepialparticular no século XVIII que opesquisador Raffaello Causa1 denominoucomo uma produção de corte. Mais do queobjetos de culto, esses presépios eram umdivertimento para a corte, que se deliciavaem reproduzir os pormenores da sociedade.Assim, diferentemente dos primeirospresépios eclesiásticos de cunho didático,esses conjuntos setecentistas napolitanoscontinham um forte apelo pela cultura laica,além de contar com o apoio régio, o queproporcionou um refinamento artístico aosconjuntos, ao promover sua fatura porintermédio dos grandes escultores, querealizavam conjuntos marmóreos, e sua

à incorporação de pormenores regionais, asolução napolitana do século XVIII é umareferência, devido a sua tendêncianaturalística e teatral de representar, em umamplo cenário, diversas cenas docotidiano. Todavia, a produção napolitanatraçou um longo percurso antes deconsolidar essa estrutura. Suas primeirasmanifestações foram fruto da divulgaçãofranciscana pelo culto presepial e ocorriamem ambientes sacros através da montagemde complexos contendo figuras em escalahumana nas igrejas. Paulatinamente, seuculto difundiu-se no âmbito doméstico eteve seu esplendor com o reinado de CarlosIII, quando as figuras já adquiriramarticulações, uma menor dimensão, epassaram a figurar os pormenores da vidacotidiana.

A existência de presépios, tanto noambiente doméstico quanto nos locaissacros, direcionou o desenvolvimento deduas categorias básicas. De um lado, temoso presépio erudito e narrativo destinado àsordens religiosas. Nele há uma prevalênciadidático-pedagógica, uma influência doteatro de marionetes e das máquinasfestivas e uma ligação com as esculturasreligiosas devocionais, tais como o retábuloou as vias sacras. Sua narrativa épredominantemente bíblica, dentro de umcenário que articula a cena da Natividadecom outros episódios da infância de Cristo,como ocorre nos presépios ibéricos.

Em Portugal, essa tipologia estevepresente nos grandes conjuntos edificadosno interior de mosteiros e conventos, muitas

Figura 4 - Detalhe do Presépio Equatoriano Escola Quitenha do século XVIII/XIX. Exemplo de um presépio votivo ou oratório.

(São Paulo, Museu de Arte Sacra de São Paulo).

Foto: Eliana Ambrosio

Figura 5 - Pormenor do Presépio Cuciniello. (Nápoles, Museo Nazionale de San Martino).

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BOLETIM DO CEIB4 Belo Horizonte, Volume 15, Número 48, março/2011

montagem por famosos pintores earquitetos. De certa forma, realizar figuraspara presépio era uma oportunidade paraos artistas exercitarem estudosvolumétricos e de expressões faciais,tipologias humanas, além de estudos paraplanejamento da concepção espacial para aarticulação de grupos.

Nesse ponto, cabe uma comparaçãocom os presépios portugueses, quetambém envolveram renomados escultoresdo mármore na produção de suas figurasem terracota. Tal como em Nápoles, osexemplares portugueses eram montados emcenários amplos, contendo centenas defiguras distribuídas em planos pers-pectivados, muitas vezes contando com umaambientação cenográfica amparada pelosaspectos da geografia local e com apresença de figuras ligadas à representaçãode tipos e tradições regionais. É comumencontrarmos personagens como o tocadorde sanfona, o grupo dos cegos1, a matançado porco e a velha corcovada, assim como,em Nápoles, observamos episódios docotidiano urbano, tais como o grupo depessoas à mesa jogando, comendo oubebendo, a fonte com namorados.

Todavia, as semelhanças entre aprodução desses dois centros encerram-seaí. Enquanto em Nápoles a representaçãoda Natividade é tratada como um eventopertencente ao cotidiano da cidade, nospresépios portugueses, além das tipologiaslocais que se dirigem à cena da Natividade,articulam-se pelo cenário diversas cenasbíblicas narrativas da infância de Cristo. Sãofrequentes cenas como a ‘Fuga para oEgito’, a ‘Matança dos Inocentes’ e, porvezes, episódios do Antigo Testamento,como registrado no Presépio do Bussaco1,fatos que não ocorrem na produçãonapolitana.

Outro ponto iconográfico importanteé o posicionamento do grupo dos Magos.Se nos presépios napolitanos eles aparecemjunto ao Menino, em um momento deAdoração, nos conjuntos lusitanos elesraramente se encontram nessa posição1,ficando relegados aos planos posterioresda composição, onde tratam do episódio docaminhar em direção à gruta e são realçadospela presença do cortejo que os segue.Nesse sentido, a valorização napolitanapelo grupo do Cortejo dos Magos advémde seu patrocínio pela aristocracia.

Por priorizarem os eventos sacros, acenografia dos conjuntos lusitanos enfatizaa Natividade e, por consequência, a gruta éposicionada no ponto de convergênciacentral dos demais grupos. Nos presépiosnapolitanos, o jogo cênico é outro. O eventodo nascimento de Cristo mistura-se aos

demais acontecimentos cotidianos dacidade (FIG. 5). Isso está diretamente ligadocom os propósitos de cada um dessesnúcleos. Nos presépios portugueses, aspassagens cotidianas servem comoexemplo para impulsionar os fiéis, arrebatarsuas emoções e funcionar como elementospedagógicos. Em Nápoles, seu intuito liga-se mais ao mecenato e à competiçãoburguesa em possuir belos núcleos paramarcar sua posição social dentro de umambiente devocional. Após meados doséculo XVIII, os núcleos napolitanosampliaram as composições e passaram a seruma verdadeira enciclopédia de tipos ecostumes, contando inclusive comdescrições caricatas.

Todavia, o fator determinante para adiferença de concepções entre os doislugares, dentre outras causas, advém dopróprio material com o qual que as peçasforam feitas.

Enquanto em Portugal as figurascontinham posições rígidas, por seremmodeladas em terracota, em Nápoles, desdea passagem do século XVII para o XVIII, aspeças eram compostas por manequinsarticulados com ferro e estopa, quepermitiam um amplo jogo cênico entre asfiguras (FIG. 6 e7). Entretanto, a solução dautilização de manequins articulados não éuma invenção napolitana. Ela surgiu naAlemanha no início do século XVII.

Além da variabilidade teatral nascomposições, a introdução dos manequinsarticulados trouxe outra contribuição. Aliada

à antiga tradição das representações sacras,ela foi parcialmente responsável pelaarticulação entre a representação dosepisódios anteriores ao Nascimento e osgrupos com os passos da Paixão. Seavaliarmos o calendário litúrgico,Natividade e Paixão são as duas datasmarcantes. Após a introdução das figurasarticuladas, esses dois episódios tornam-se ainda mais próximos, pois as mesmaspeças eram utilizadas nas duas ocasiões.Bastava alterar sua posição e vestimentasque um novo grupo surgia. Isso ocorreuem diversos países que contavam comessas esculturas. A interligação entreNatividade e Sepulcro aparece mesmo emtrabalhos posteriores realizados comoutros tipos de materiais, tais como papel,principalmente na região da Bavária e Tirol(FIG. 8 e 9). Em Nápoles, apesar de forteapelo laico de sua produção, há relatos deviajantes sobre os ‘Presépios da Paixão’.Embora atualmente não tenham o mesmodestaque que as peças do Nascimento, ummodelo raro dessa antiga tradição encontra-se no Bayerischen Nationalmuseum, emMunique (FIG. 10). Dentro da produçãolatino-americana, um exemplo dacontaminação desse modelo europeu éobservada na produção de Aleijadinho.Dois anos antes de trabalhar no Complexode Congonhas, o artista realizou para aIgreja de São Francisco de Assis, em OuroPreto, um presépio com figuras separadascom cerca de 40 cm1 montadas em umespaço cenográfico. Essa foi uma

Fotos: Eliana Ambrosio

Comparação entre a técnica napólitana e a técnica portuguesaFigura 6 - Diocesanmuseum de

Freising, AlemanhaFigura 7 - Detalhe do Presépio da

Basílica da Estrela, Lisboa

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BOLETIM DO CEIBBelo Horizonte, Volume 15, Número 48, março/20115

oportunidade para ele trabalhar os aspectoscênicos e a articulação entre as figuras quedepois o auxiliaram na criação dacomposição de Congonhas. Assim, aoestudarmos esse complexo poderíamospensar nas recíprocas influências entre afacilidade de circulação da escultura depresépio e as suas semelhanças icono-gráficas e estilísticas com os monumentaisprogramas sacros dos passos da Paixão.Dessa forma, notamos a permeabilidade queenvolve as questões vinculadas a esse tipode escultura colonial, o que nos obriga arevisar algumas concepções tradicionais daHistoria da Arte a fim de uma melhorcompreensão dos fenômenos estéticosestudados.

Voltando à questão das figurasarticuladas, os manequins alemães foramtrazidos para Nápoles pelos jesuítas. Coubeaos napolitanos o mérito da passagem dasfiguras articuladas em madeira para osmanequins em estopa, que permitiam acriação de diversas poses e sua reformulaçãoa cada ano. Essa maleabilidade evariabilidade facilitaram a descrição doselementos do cotidiano, a penetração dosaspectos laicos em detrimento doselementos de culto sacro e uma maiorteatralidade na composição. De fato, a buscapelo naturalismo, tanto nas imagens quantoem seu cenário, já estava presente nasrepresentações napolitanas seiscentistas efoi o fator determinante para a consolidaçãodo culto presepial na cidade e para a famaque ele atingiu no século XVIII.

No campo da cenografia, a grandeinovação ocorreu em 1627, quando os

esculápios realizaram o primeiro presépiomóvel ambientado em uma ampla paisagem.De fato, integrar paisagem natural com asfiguras de presépio deve ter causado umgrande impacto visual. Outra colocação foio tratamento da iluminação. Ela era feita deforma que a luz viesse do alto, o quefavorecia a noção de profundidade e deteatralidade. Se lembrarmos que asrepresentações teatrais desconheciamambos os recursos, notamos as novidadesapresentadas pelo setor presepial.

Se pensarmos que o gosto pelonaturalismo paisagístico já estava vogaem Nápoles, ao aproveitar o jardim defundo da capela para integrá-lo aopresépio, os esculápios conseguiramatingir esse anseio através da fusão dasfiguras com a realidade natural. Alémdisso, a amplitude cênica permitiu oaumento no número de personagens e aconsequente renovação e diversificaçãofilológica que ocorreu nos núcleosnapolitanos desde então e que osdiferenciaram das demais produçõeseuropeias. Por outro lado, essadiversidade favoreceu o gosto peladescrição dos pormenores regionais elogo se difundiu. De fato, após o séculoXVIII, percebemos uma grande profusãode elementos regionais, da geografia e daarquitetura local dentro das ambientaçõescenográficas presepiais, seja na Europa,seja na produção ibero-americana. Essa éuma notável contribuição que a produçãosetecentista napolitana trouxe àrepresentação da Natividade.

BibliografiaBORRELLI, Gennaro. Il presepe napoletano.Roma: De Luca – D’Agostino, 1970.CAUSA, Raffaello. Il presepe cortese inCiviltà del Settecento a Napoli. 1734-1799.Catalogo-Mostra Napoli, Dic-1979-Ott.1980. II Vol. p. 292-300.GARGANO, Pietro. O presépio – oitoséculos de história, arte e tradição. Lisboa:Reaplicação, 1997.GOCKERELL, Nina. Nacimientos-presepi-presépio. Lisboa: Taschen, 1998.

Foto: Eliana Ambrosio

Foto: Eliana Ambrosio

Figura 9 - Natividade e episódios da infância de Cristo.Gouache sobre papel, proveniente do Tirol com a assinatura de ‘Franz Borg 1758’.

(Munique, Bayerischen Nationalmuseum).

Figura 8 - Paixão de Cristo. Gouache sobre papel, proveniente do Tirol com a assinatura ‘Franz Borg 1758’.

(Munique, Bayerischen Nationalmuseum).

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BOLETIM DO CEIBBelo Horizonte, Volume 15, Número 48, março/20116

CEIB

Presidente de Honra:Myriam A. Ribeiro de Oliveira

Presidente:Beatriz CoelhoVice-Presidente:

Maria Regina Emery Quites1a Secretária:

Ieda Faria Hadad Viana2a Secretária:

Carolina Maria Proença Nardi1o Tesoureira:

Elayne Granado Lara2a Tesoureira:

Alessandra RosadoEstagiária

Daniela Cristina Ayala

ENDEREÇO

Escola de Belas Artes da UFMGBloco D, 2o andar

Av. Antônio Carlos, 6.62731.270-010 Belo Horizonte, MG

[email protected]

BOLETIM

ISSN: 1806-2237

Projeto gráfico, arte e editoração:Helena David, Beatriz Coelho

Revisão: Alexandre Habib Tiragem 500 exemplares

Periodicidade: quadrimestral

Os artigos assinados são deresponsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião

do BOLETIM DO CEIB.

É permitida a reprodução de fotos ouartigos desde que citada a fonte.

Foto: Eliana Ambrosio

GOCKRELL, Nina. HABERLAND, Walter.Krippen im Bayerischen Nationalmuseum.München: Bayerisches Nationalmuseumund Hirmer Verlag, 2005.PAES, Alexandre Nobre. O presépio emPortugal. Casal de Cambra: Calesdoscópio,2007.

Notas1 Representação realizada no décimoterceiro afresco que Giotto realizou naBasílica Superior de Assis, cerca de 70anos depois do ocorrido.2 Personagens com dimensões próximas a135 cm.3 Vide bibliografia.4 Menção à presença da Irmandade dosCegos na esfera urbana, tambémconhecida como a Irmandade do MeninoJesus.5 Neste conjunto aparecem as cenas deJudite com a cabeça de Holofernes (Jdt13, 6-9) e de Sansão lutando com o Leão(Jz 14, 5-6).6 Segundo o pesquisador AlexandreNobre Paes ( p. 36), o grupo da Adoraçãodos Magos apareceria nos seguintesconjuntos: Basílica da Estrela, CasaMuseu Fernando de Castro, no Porto,Museu de Arte Sacra e Etnologia deFátima, no presépio Kameneski do MuseuNacional de Arte Antiga e no presépio doMuseu Municipal de Covilhã.

A formação em Conservação-Restauração teve início na Escola de BelasArtes da Universidade Federal de MinasGerais em 1978, com o 1o curso deespecialização em Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis. Em1980, o Centro de Conservação eRestauração (Cecor), foi criado para darapoio ao curso. Com 30 anos de experiênciana formação desse profissional foi possívelcriar em 2008, o primeiro curso de graduação(bacharelado) em Conservação-Restauração do Brasil. Este curso foipensado para suprir uma demanda deprofissionais qualificados, fortalecer oreconhecimento da profissão e,consequentemente, ampliar o campo e omercado de trabalho no Brasil.

Agora, em 2011, temos a entrada da4a turma e a formatura dos que entraram em

FORMAÇÃO DE CONSERVADORESRESTAURADORES

2008, que receberão o certificado de Con-servadores-Restauradores de Bens CulturaisMóveis. No momento, os alunos podemescolher os seguintes percursos:conservação preventiva, conservação-restauração de Pintura, de papel ou deescultura.

Vários alunos do curso já são sóciosdo Centro de Estudos da ImagináriaBrasileira (Ceib) e participam de projetos deextensão, ensino e pesquisa, principalmentena área de escultura devocional em madeira,com trabalhos selecionados e premiadoscom Menção Honrosa na Semana deIniciação Científica da UFMG em 2010,participação como estagiários narestauração dos retábulos de Aleijadinho emNova Lima em 2009 e Restauração do MuseuPadre Toledo, em Tiradentes em 2010 e 2011. 

Figura 10 - Detalhe de um grupo napolitano da Paixão(Munique, Bayerischen Nationalmuseum)

Século XVIII

* Eliana Ambrosio é especialista emConservação-Restauração, doutorandaem História da Arte e professoraassistente do Departamento de ArtesPlásticas da Escola de Belas Artes daUniversidade Federal de Minas Gerais. [email protected]

7 As figuras remanescentes encontram-seno Museu da Inconfdência de OuroPreto.