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- Boletim Bibliográfico 11 - O Escritor do mês - janeiro de 2016 - Jorge Amado - Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade sou um obá, em lín- gua ioruba da Bahia obá significa ministro, velho, sábio: sábio da sabedoria do povo. (Projeto casa das palavras, in http://www.jorgeamado.org.br/) Jorge Amado nasceu a 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, no distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul do Estado da Bahia. Filho do fazendeiro de cacau João Amado de Faria e de Eulália Leal Amado. Com um ano de idade, foi para Ilhéus, onde passou a infância. Fez os estudos secundá- rios no Colégio Antônio Vieira e no Ginásio Ipiranga, em Salvador. Neste período, começou a traba- lhar em jornais e a participar da vida literária, sendo um dos fundadores da Academia dos Rebeldes. Publicou o seu primeiro romance, O país do carnaval, em 1931. Casou-se em 1933, com Matilde Garcia Rosa, com quem teve uma filha, Lila. Nesse ano, publicou o seu segundo romance, Cacau. Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935. Militante comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942, período em que fez uma longa viagem pela América Latina. Ao voltar, em 1944, separou-se de Matilde Garcia Rosa. Em 1945, foi eleito membro da Assembleia Nacional Constituinte. Jorge Amado foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto religioso. Nesse mesmo ano, casou- se com Zélia Gattai. Em 1947, o PCB foi declarado ilegal e Jorge Amado teve de se exilar com a família em França, onde ficou até 1950. Entre 1950 e 1952, viveu em Praga. A partir de 1955, Jorge Amado afastou-se da mili- tância política. Dedicou-se, a partir de então, inteiramente à literatura. Foi eleito, em 6 de abril de 1961, para a Academia Brasileira de Letras. A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão, além de ter sido tema de escolas de samba em várias partes do Brasil. Os seus livros foram traduzi- dos para inúmeras línguas. Jorge Amado morreu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001. A obra de Jorge Amado mereceu diversos prémios nacionais e internacionais, de entre os quais se destacam: Latinidade (França, 1971), Nonino (Itália, 1982), Pablo Neruda (Rússia, 1989), Etruria de Literatura (Itália, 1989), Cino Del Duca (França, 1990), Mediterrâneo (Itália, 1990), Vitaliano Bran- catti (Itália, 1995), Luis de Camões (Brasil, Portugal, 1995), Jabuti (Brasil, 1959, 1995) e Ministério da Cultura (Brasil, 1997). Recebeu os títulos de Comendador e de Grande Oficial, nas ordens da Vene- zuela, França, Espanha, Portugal, Chile e Argentina. Da sua extensa obra podemos destacar: O País do Carnaval, 1931; Cacau, 1933; Jubiabá, 1935; Mar Morto, 1936; Capitães da Areia; 1937; Terras do Sem Fim; 1943; São Jorge dos Ilhéus; 1944; Os Subterrâ- neos da Liberdade, (3v), [v. 1: Os Ásperos Tempos; v. 2: Agonia da Noite; v. 3: A Luz no Túnel], 1954; Gabriela, Cravo e Canela; 1958; Os Pastores da Noite, 1964; Tenda dos Milagres; 1969; Tocaia Grande, 1984; A Descoberta da América pelos Turcos, 1994; O Compadre de Ogum, 1995; A sua obra, Cacau de 1933, inauguraria uma temática, que entre os anos quarenta e oitenta, serviria de matéria-prima para as obras de Jorge Amado, o cacau como suporte de uma organização social, económica e política. Terras do sem-fim (1943), São Jorge de Ilhéus (1944), Gabriela cravo e cane- la (1958), Tocaia Grande (1981) e O menino garapiúna(1988) completam um ciclo de livros pensados e alimentados no sul da Baía. Os seus grupos humanos, as suas fontes de poder, a sensualidade dos trópicos discutindo o papel da mulher e de como novas ideias eram permeáveis a formas de coloni- zação da terra. Especialmente em Terras do sem-fim, um dos seus livros mais importantes ao lado de São Jorge de Ilhéus, descreve-se a formação do cacau como uma indústria e como se dá essa luta pela terra e como surgem pequenas cidades no sul da Baía, já no início do século XX. Neles, como em Gabriela cravo e canela, surgem-nos o universo dos coronéis, os critérios do seu estatuto político e económico e as figuras obedientes que suportam esse poder, os jagunços. Nestas obras, Jorge Amado oferece-nos uma geografia humana e cultural, a Baía colocando sempre a literatura como um património e uma forma, um instrumento de combate perante as formas mais simplistas de viver em comunidade. Jorge Amado parte de um local, da sua caracterização para chegar ao uni- versal e aos modos de exploração da vida humana no seu sentido mais global. A esperança por no- vos territórios que eram difíceis de conquistar e que implicavam uma luta árdua, sobre-humana pa- ra sobreviver. Os aromas, a culinária, as formas de ser, o amor entre figuras à procura de um senti- do num universo violento, tudo isso faz de Jorge Amado um autor maior, que expressou sobre for- mas particulares de vida um olhar ao universal. Isso faz dele um autor intemporal. Jorge Amado escreveu sobre a antropologia das cidades e dos locais que tentava compreender, procurando a palavra certa, substantiva e ao mesmo tempo bela. Era essa a sua forma de se encontrar com as pessoas e de recuperar pela memória muitas vidas. Jorge Amado pertence à galeria dos eternos. Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruí- ram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Carta (1947), in http://www.jorgeamado.org.br/. Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a esta- ção das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas a perguntar uns aos outros, o medo nos olhos e na voz: - Será que não vai parar? Referiam-se às chuvas, nunca se vira tanta água descendo dos céus, dia e noite, quase sem intervalos. - Mais uma semana e estará tudo em perigo. - A safra inteira... - Meu Deus! Falavam da safra anunciando-se excecional, a superar de longe todas as anteriores. Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior ri- queza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, ..., o progresso enfim, a tão falada civilização. Jorge Amado. (2012). Gabriela, cravo e canela. Lisboa: D. Quixote, p. 10

Boletim Bibliográfico - Jorge Amado

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Boletim Bibliográfico sobre a vida e obra de Jorge Amado - Biblioteca (ESRDA).

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- Boletim Bibliográfico 11 - O Escritor do mês - janeiro de 2016 - Jorge Amado -

Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade sou um obá, em lín-gua ioruba da Bahia obá significa ministro, velho, sábio: sábio da sabedoria do povo. (Projeto casa das palavras, in http://www.jorgeamado.org.br/) Jorge Amado nasceu a 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, no distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul do Estado da Bahia. Filho do fazendeiro de cacau João Amado de Faria e de Eulália Leal Amado. Com um ano de idade, foi para Ilhéus, onde passou a infância. Fez os estudos secundá-rios no Colégio Antônio Vieira e no Ginásio Ipiranga, em Salvador. Neste período, começou a traba-lhar em jornais e a participar da vida literária, sendo um dos fundadores da Academia dos Rebeldes. Publicou o seu primeiro romance, O país do carnaval, em 1931. Casou-se em 1933, com Matilde Garcia Rosa, com quem teve uma filha, Lila. Nesse ano, publicou o seu segundo romance, Cacau. Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935. Militante comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942, período em que fez uma longa viagem pela América Latina. Ao voltar, em 1944, separou-se de Matilde Garcia Rosa. Em 1945, foi eleito membro da Assembleia Nacional Constituinte. Jorge Amado foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto religioso. Nesse mesmo ano, casou-se com Zélia Gattai. Em 1947, o PCB foi declarado ilegal e Jorge Amado teve de se exilar com a família em França, onde ficou até 1950. Entre 1950 e 1952, viveu em Praga. A partir de 1955, Jorge Amado afastou-se da mili-tância política. Dedicou-se, a partir de então, inteiramente à literatura. Foi eleito, em 6 de abril de 1961, para a Academia Brasileira de Letras. A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão, além de ter sido tema de escolas de samba em várias partes do Brasil. Os seus livros foram traduzi-dos para inúmeras línguas. Jorge Amado morreu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001. A obra de Jorge Amado mereceu diversos prémios nacionais e internacionais, de entre os quais se destacam: Latinidade (França, 1971), Nonino (Itália, 1982), Pablo Neruda (Rússia, 1989), Etruria de Literatura (Itália, 1989), Cino Del Duca (França, 1990), Mediterrâneo (Itália, 1990), Vitaliano Bran-catti (Itália, 1995), Luis de Camões (Brasil, Portugal, 1995), Jabuti (Brasil, 1959, 1995) e Ministério da Cultura (Brasil, 1997). Recebeu os títulos de Comendador e de Grande Oficial, nas ordens da Vene-zuela, França, Espanha, Portugal, Chile e Argentina. Da sua extensa obra podemos destacar: O País do Carnaval, 1931; Cacau, 1933; Jubiabá, 1935; Mar Morto, 1936; Capitães da Areia; 1937; Terras do Sem Fim; 1943; São Jorge dos Ilhéus; 1944; Os Subterrâ-neos da Liberdade, (3v), [v. 1: Os Ásperos Tempos; v. 2: Agonia da Noite; v. 3: A Luz no Túnel], 1954; Gabriela, Cravo e Canela; 1958; Os Pastores da Noite, 1964; Tenda dos Milagres; 1969; Tocaia Grande, 1984; A Descoberta da América pelos Turcos, 1994; O Compadre de Ogum, 1995; A sua obra, Cacau de 1933, inauguraria uma temática, que entre os anos quarenta e oitenta, serviria de matéria-prima para as obras de Jorge Amado, o cacau como suporte de uma organização social, económica e política. Terras do sem-fim (1943), São Jorge de Ilhéus (1944), Gabriela cravo e cane-la (1958), Tocaia Grande (1981) e O menino garapiúna(1988) completam um ciclo de livros pensados e alimentados no sul da Baía. Os seus grupos humanos, as suas fontes de poder, a sensualidade dos trópicos discutindo o papel da mulher e de como novas ideias eram permeáveis a formas de coloni-zação da terra. Especialmente em Terras do sem-fim, um dos seus livros mais importantes ao lado de São Jorge de Ilhéus, descreve-se a formação do cacau como uma indústria e como se dá essa luta pela terra e como surgem pequenas cidades no sul da Baía, já no início do século XX. Neles, como em Gabriela cravo e canela, surgem-nos o universo dos coronéis, os critérios do seu estatuto político e económico e as figuras obedientes que suportam esse poder, os jagunços. Nestas obras, Jorge Amado oferece-nos uma geografia humana e cultural, a Baía colocando sempre a literatura como um património e uma forma, um instrumento de combate perante as formas mais simplistas de viver em comunidade. Jorge Amado parte de um local, da sua caracterização para chegar ao uni-versal e aos modos de exploração da vida humana no seu sentido mais global. A esperança por no-vos territórios que eram difíceis de conquistar e que implicavam uma luta árdua, sobre-humana pa-ra sobreviver. Os aromas, a culinária, as formas de ser, o amor entre figuras à procura de um senti-do num universo violento, tudo isso faz de Jorge Amado um autor maior, que expressou sobre for-mas particulares de vida um olhar ao universal. Isso faz dele um autor intemporal. Jorge Amado escreveu sobre a antropologia das cidades e dos locais que tentava compreender, procurando a palavra certa, substantiva e ao mesmo tempo bela. Era essa a sua forma de se encontrar com as pessoas e de recuperar pela memória muitas vidas. Jorge Amado pertence à galeria dos eternos.

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruí-ram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Carta (1947), in http://www.jorgeamado.org.br/.

Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a esta-ção das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas a perguntar uns aos outros, o medo nos olhos e na voz: - Será que não vai parar? Referiam-se às chuvas, nunca se vira tanta água descendo dos céus, dia e noite, quase sem intervalos. - Mais uma semana e estará tudo em perigo. - A safra inteira... - Meu Deus! Falavam da safra anunciando-se excecional, a superar de longe todas as anteriores. Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior ri-queza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, ..., o progresso enfim, a tão falada civilização. Jorge Amado. (2012). Gabriela, cravo e canela. Lisboa: D. Quixote, p. 10

Ficha Técnica

Redação: Equipa da Biblioteca Biblioteca: Escola Secundária Rainha Dona Amélia Periodicidade: Mensal (fevereiro/março) Distribuição/Publicitação:

(Afixação na Biblioteca / Plataformas digitais)

- Boletim Bibliográfico 11 - O Escritor do mês - fev. /março de 2016 - Jorge Amado -

No outro dia, o outono chegou, derrubando as folhas das árvores. O Vento sentia frio, e, para es-quentar-se, corria zunindo pelo parque. O Outono trazia consigo uma cauda de nuvens e com elas pintou o céu de cores cinzentas. Não era só a paisagem que se modificava com o correr das esta-ções, como certamente percebeu o culto e talentoso leitor. Também a atitude dos habitantes do parque, em relação ao Gato Malhado, havia sofrido sensível mudança. Não que houvessem deixado de ter-lhe raiva, não que lhe houvessem perdoado agravos antigos. Mas já não sentiam medo dele, como o provavam as murmurações sobre o seu caso com a Andorinha, murmurações que de tími-dos cochinhos transformaram-se em obstinado rumor. (…) E que o Gato, durante a Primavera e o Verão, vivera alegre e satisfeito. Não ameaçara os demais viventes, não despedaçara flores com patadas, não encrespara os pêlos do dorso à aproximação de estranhos e não repeliu os cães eriçando os bigodes, insultando-os entre dentes. Tornara-se um ser brando e amável, era o primeiro a cumprimentar os outros habitantes do parque, ele que antiga-mente quase nunca respondia aos medrosos “bons-dias” que lhe dirigiam.

Jorge Amado. (2001). O gato malhado e a andorinha Sinhá. Alfragide: Leya, p. 51.

As nuvens encheram o céu até que começou a cair uma chuva grossa. Nem uma nesga de azul. O vento sacudia as árvores e os homens seminus tremiam. Pingos de água rolavam das folhas e escorriam pelos homens. Só os burros pareciam não sentir a chuva. Mastiga-vam o capim que crescia em frente ao armazém. Apesar do temporal os homens continua-vam o trabalho. Colodino perguntou: — Quantas arrobas você já desceu? — Vinte mil. Antônio Barriguinha, o tropeiro, pegou do último saco: — Esse ano o homem colhe oitenta mil… — Cacau como diabo! — Dinheiro pra burro… Desamarraram os burros e Barriguinha tangeu-os: Vambora, tropa desgraçada… Os animais começaram a andar de má vontade. Antônio Barriguinha chicoteava-os: — Burro miserável… Carbonato, dianho, vambora… Na frente, Mineira, a madrinha da tropa, chocalhava guizos. A chuva caía, um aguaceiro grande. A casa do coronel estava com as janelas fechadas. Honório, que vinha da roça, chalaceou com Barriguinha: — Eh! Muié de tropeiro! — Como vai, amásia do podador? — Como vai tua mãe? — A tua tá ficando frouxa… A tropa, carregada de sacos de cacau, desaparecia na volta da estrada. Atrás, Antônio Barriguinha, forte e alto, amulatado, a tocar os burros com um chicote comprido. Honório subiu a ladeira e cumprimentou Colodino: — Bom dia. — Um dia desgraçado. Chuva que não acaba mais. E de repente, mudando de assunto: — Já desceu vinte mil arrobas, Honório. — Então Mané Frajelo tá contente. — Se tá… Honó-rio sentou-se na pedra junto a Colodino, dando as costas ao armazém, que conservava as portas fechadas. Em frente, cercada por um jardim, lindo de jasmineiros e roseiras, a casa-grande da fazenda, de janelas azuis e varanda verde. Em cima uma tabuleta de um pintor barato: Honório riu um riso alvar, com seus dentes brancos, magníficos, que contrastavam com o rosto negro e os lábios grossos: — Mané Frajelo. — Mané Miserave Saqueia Tudo. Honó-rio cuspiu: — Merda Mexida Sem Tempero. Ficaram olhando. Como era grande a casa do coro‑ nel… E morava tão pouca gente ali. O coronel, a mulher, a filha e o filho, estudante, que nas férias aparecia, elegante, estúpido, tratando os trabalhadores como escravos. E olharam as suas casas, as casas onde dormiam. Estendiam-se pela estrada. Umas vinte casas de barro, cobertas pela palha, alagadas pela chuva. — Que diferença… — A sorte é Deus quem dá. — Qual Deus… Deus também é pelos ricos… — Isso é mesmo. — Eu queria ver o Mané Frajelo dormir aqui. — Devia ser divertido. Colodino acendia um cigarro. Ho-nório pegou da foice de podar os cacaueiros e contou: — A roça lá detrás do rio tá assinzi-nha de cacau. Um safrão. — Esse ano, o homem colhe umas oitenta mil. Nós ganhávamos três mil e quinhentos por dia e parecíamos satisfeitos. Ríamos e pilheriávamos. No entanto, nenhum de nós conse-guia economizar um tostão que fosse. A despensa levava todo nosso saldo. A maioria dos trabalhadores devia ao coronel e estava amarrada à fazenda. Também quem entendia as contas de João Vermelho, o despenseiro? Éramos quase todos analfabetos. Devíamos… Honório devia mais de novecentos mil-réis e agora nem podia se tratar. Um impaludismo crônico quase o impedia de andar. Jorge Amado. (2011). Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, págs. 12-13