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O Sagrado Em Rudolf Otto
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1
BIRCK, Bruno Odélio. O sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre: EDI-
PUCRS, 1993.
l - O NUMINOSO
1.1 O racional e o não-racional na idéia do sagrado
1.1.1 - O acesso racional ao divino
Rudolf Otto, em sua obra O sagrado apresenta como título Um estu-
do do elemento não-racional (Das Irrationale) na idéia do divino e a sua
relação com o racional.
Antes de expormos o problema que Otto se propõe estudar, é neces-
sária uma observação de ordem lingüística. Prócoro Velasques Filho, tra-
dutor de O sagrado, transpõe para o português o termo das Irrationale
como o não-racional. Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Ho-
landa Ferreira, o termo não-racional é sinônimo de irracional1. Com o
termo irracional usualmente indicamos o que se opõe à razão; o que não
raciocina; animal sem razão; bruto, estúpido. Mas o termo não-racional
foge ao sentido de oposição pura e simples ao racional. Concordamos com
o tradutor de que a forma neutra das Irrationale se traduz melhor com o
termo não-racional. Assim se evita o sentido usual, pejorativo do termo
irracional. Otto também mostra sua preocupação com os mal-entendidos: "... por não-racional não entendemos o que é sem for-
ma e estúpido, o que não está ainda submisso ao con-
trole da razão, o que é rebelde à racionalização em nos-
sa vida instintiva ou nos mecanismos do mundo"2.
O problema fundamental que Otto se propõe investigar é a possibi-
lidade de um acesso racional ao divino. É oportuno observar
13
1 Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, Pequeno dicionário da língua portuguesa,
11. ed.. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1968. 2 Rudolf OTTO, O sagrado, p. 61 -62.
que o autor em análise situa o problema de Deus na perspectiva do agnos-
ticismo kantiano. Para tal, procede a um exame minucioso da categoria
especial do sagrado. O sagrado é uma categoria complexa, constituída
por dois elementos: o elemento não-racional (numinoso) e o elemento
racional (predicador). A conexão dos elementos dá-se por uma necessida-
de racional. Assim, o sagrado se constitui numa categoria complexa, em
virtude de seus elementos. "O elemento numinoso, não-racional, esquematizado
por noções racionais (...), dão-nos a categoria comple-
xa do sagrado, no sentido pleno da palavra, na totalida-
de de seu conteúdo"3.
Como, então, se dá o acesso racional ao divino? Deus não pode ser
objeto da razão pura. Na religião encontramos a idéia do sagrado, do san-
to. Aí o sagrado aparece como idéia, portanto carregado de noções racio-
nais. Mas na idéia do sagrado propriamente não encontramos um objeto
contido em seus conceitos correspondentes. Assim, as noções racionais
aparecem apenas como predicados. Os predicados racionais esquematizam
ou racionalizam o elemento originalmente não-racional, o numinoso. O
numen é o objeto próprio da idéia do sagrado. Este não pode ser apreendi-
do em conceitos racionais, mas pelo sentimento numinoso, que é um esta-
do afetivo da alma. A essência da idéia do sagrado está no numinoso.
O acesso racional a esta essência não-racional se dá por uma neces-
sidade racional, ou seja, a ligação necessária que existe entre as categorias
e seus esquemas. As noções racionais aparecem em primeiro plano como
um verdadeiro esquema da essência não-racional do sagrado. Considera-
mos que Rudolf Otto não faz uma aplicação correia da teoria do esquema-
tismo de Kant. Em verdade, faz uma descrição fenomenológica do sagra-
do, de acordo com o método de Husserl.
14
3 Id., ibid., p. 50-51.
2
1.1.2 - Os elementos da categoria do sagrado
Para possibilitar uma posterior análise da categoria especial ou
complexa do sagrado, é necessário precisar as noções racional e não-
racional em Rudolf Otto. Ele define racional como "um objeto que pode
ser captado pelo pensamento conceituai"4. Assim, as concepções teístas
apresentam como características conceitos claros da divindade. Esta com-
preensão vem expressa de predicados racionais como: todo-poderoso,
onipotente, espírito, sumo bem, unidade de essência e outros. Todos eles
são claros, acessíveis ao pensamento; é possível defini-los? Estas noções
claras são condições para o ensinamento da fé. A doutrina, a catequese e
os próprios livros sagrados utilizam-se de predicados racionais, de concei-
tos claros para o ensinamento da fé. O uso de conceitos que formam o
corpo doutrinário é uma característica essencial que mostra a superiorida-
de de uma religião, como é o caso do cristianismo, segundo Otto.
A idéia do divino não esgota com os predicados racionais. Porém,
estes aparecem em primeiro plano. Mas, enquanto predicados, estão na
dependência de um objeto. "São predicados essenciais, mas sintéticos. Para se
compreender exatamente o que são, é necessário vê-los
como atributos de um objeto que lhes sirva de apoio,
mas que não possam esgotá-lo"5.
Este objeto é percebido de forma diferente, tanto que o entendimen-
to não pode nos fornecer um conceito deste. Portanto, estamos diante do
segundo elemento da categoria especial do sagrado, o elemento não-
racional. Este é percebido na experiência religiosa, mais especificamente
pelo sentimento numinoso (sensus numinis). O sentimento numinoso não
é uma mera emoção, mas é um estado afetivo. O numinoso é um senti-
mento original e
15
4 Id., ibid., p. 7. 5 Id., ibid., p. 8.
específico. O numinoso é uma categoria de interpretação e avaliação, quer
dizer, a categoria numinosa é um estado de alma que se manifesta quando
um objeto é concebido como numinoso. O objeto numinoso não é possível
definir, mas ele se torna presente à consciência na vida íntima das pessoas.
Não é definível, mas é possível descrever as reações provocadas no cons-
ciente e fazer uma avaliação. O sentimento numinoso é o sentimento do
objeto numinoso; é onde experimentamos a presença do numen.
A categoria do sagrado é complexa por ser um de seus elementos
absolutamente especial, ou seja, subtrai-se a qualquer apreensão conceitu-
ai. Por outro lado, este elemento não-racional está necessariamente conec-
tado com predicados racionais, que o esquematizam. Ambos os elementos
constitutivos da categoria do sagrado são puramente a priori. Segundo
Otto, aplicam-se com exatidão as características que Kant destaca dos
conceitos e dos sentimentos puros. É diferente ou distinto o que é recebi-
do por meio das nossas impressões e o que a nossa faculdade de conhe-
cimento produz, excitada pela experiência sensível. O numinoso aparece
como faculdade a priori do entendimento: ele não está na fonte empírica,
mas na faculdade de conhecimento. "Os elementos racionais como os não-racionais da ca-
tegoria do sagrado são elementos 'a priori'. A religião
não está nem sob a dependência do 'telos' (finalidade),
nem do 'ethos' (moral) e não vive de postulados. O que
nela há de não-racional possui, por sua vez, origem in-
dependente e mergulha diretamente as suas raízes nas
profundezas ocultas do espírito"6.
1.1.3 - Colocação do problema
[...]
16
6 Id., ibid.,p. 115.
3
1.2 - Sentimento numinoso como experiência vivida
1.2.1 - O numinoso: experiência exclusivamente religiosa
Muitos teólogos e pensadores protestantes, dentre os quais Kant, re-
duziram a religião praticamente a um fim moral. Rudolf Otto quer chamar
a atenção à exclusividade do domínio religioso. A experiência religiosa é
sui generis, original e fundamental. Por isso, entende a categoria do sa-
grado como "... interpretação e avaliação do que existe no domínio exclu-
sivamente religioso"7. O sagrado é uma categoria que abrange algo inefá-
vel. Possibilita uma avaliação daquilo que é exclusivamente religioso e
que, a seu tempo, escapa ao domínio racional. Neste sentido, a categoria
do sagrado contém um elemento absolutamente especial.
A palavra sagrado é, muitas vezes, empregada em sentido figurado e
completamente desvirtuado do seu sentido original. Por exemplo, fala-se
no caráter sagrado da lei, do dever. É neste sentido que Kant utiliza a ex-
pressão vontade santa. Segundo Otto, não é este sentido dado ao termo
sagrado nas línguas semíticas, grega e latina e em outras línguas antigas.
Nestas, o elemento moral não é encontrado. Na linguagem atual, os signi-
ficados morais ligam-se sempre ao sagrado. Para designar com exatidão
as características próprias da religião e, assim, abstrair do elemento moral
e do elemento racional, é necessário encontrar outra palavra.
Para denominar o caráter particular e exclusivamente religioso do sa-
grado, Otto cunha a palavra numinoso. Numinoso vem da palavra latina
numen e serve para indicar a característica essencial e exclusiva da reli-
gião, livre das conotações éticas e racionais contidas no termo sagrado. "Falo de uma categoria numinosa como uma categoria
especial de interpretação e de avaliação de um estado
de alma que se manifesta
24
7 Rudolf OTTO, op. cit., p. 11.
quando essa categoria é aplicada, isto é, cada vez que
um objeto é concebido como numinoso"8.
Esta categoria não pode ser objeto de compreensão através de conceitos,
mas pode ser objeto de estudo. Quer dizer, não é possível passar a um
interlocutor um conceito de numinoso, mas podemos chamar-lhe a aten-
ção para encontrá-lo em sua vida íntima e aí se torna consciente. Como
diz Otto: "Convidamos o leitor para o momento em que o senti-
mento de emoção religiosa profunda surge. Se ele é in-
capaz ou se ele desconhece tais momentos devemos pa-
rar aqui a nossa conversa"9.
De uma forma análoga o artista conhece a experiência estética e a reco-
nhece como uma experiência sui generis, particular, sem dependência de
outro sentimento.
O termo numinoso pode ser colocado na mesma categoria de pala-
vras como mana, termo cunhado pelo antropólogo inglês Robert Ranulph
Marett (1866-1943). Esta expressão Marett a tem das religiões primitivas
do oceano Pacífico. Mana é uma força completamente diferente do poder
físico e esta pode atuar para o bem ou para o mal. O mana pode estar vin-
culado aos amuletos e até a certas pessoas. O mana é amoral e não-
racional. É mais uma atitude emotiva do que uma idéia. Como diz bem
Marett, "A religião primitiva mais que pensar-se, se baila; se
desenvolve a partir de umas condições que fomentam
processos emocionais e motores, enquanto que a idea-
ção permanece em um estado relativamente latente"10.
O mana, como o numinoso, não pode ser definido, apenas descrito. 25
No domínio religioso, como em outros, encontramos diversos sen-
timentos como: gratidão, confiança, amor, segurança, submissão, resigna-
ção. Estes sentimentos, embora acompanhem a emoção religiosa, não re-
produzem e não exaurem o sentimento propriamente religioso. Otto des-
creve o sentimento numinoso como sendo o sentimento de ser criatura.
26
8 Id., ibid., p. 12. 9 Id., ibid., p. 13. 10 John MACQUARRIE, op. cit., p. 284.
4
1.2.3 - O numinoso como vivência do numen Voltemos à descrição do numinoso. Este, situado para além do raci-
onal, encontramos no terreno das experiências vividas. Mais especifica-
mente no sentimento. Otto descreve a experiência do numinoso como o
sentimento de ser criatura. "O sentimento de ser criatura ou a reação pro-
vocada no consciente pelo sentimento de ser objeto do numinoso"11. O
numinoso não pode ser captado conceitualmente, mas apreendido no sen-
timento.
O que é sentimento para Otto? O sentimento não se confunde com
uma mera emoção. O sentimento é um estado afetivo; é um estado de al-
ma da criatura frente ao numen. Este estado afetivo envolve a pessoa co-
mo um todo. Não é uma simples emoção, pois penetra a região do sentido
do homem. Além disso, este estado de alma permite uma interpretação e
uma avaliação preconceitual.
Otto aproxima-se muito do que Edmund Husserl chama de vivido,
embora não faça nenhuma referência a este autor.
O que é sentimento de ser criatura? O sentimento de criatura é de
alguma maneira um sentimento de depreciação diante de uma realidade
majestosa. É o estado de alma de quem se sente finito, aniquilado diante
do objeto numinoso que "é de tal natureza que cativa e emudece a alma
humana"12. No sentimento especificamente religioso há um sentimento de
presença de duas realidades: o numen e a criatura. Sentimento de criatura
é a reação emocional que experimentamos quando estamos na presença do
numen. Podemos indicar, assim, o que é o numinoso pelas reações Senti-
mentais que seu contato provoca em nós. Na descrição do numinoso ten-
tamos especificar o matiz dos sentimentos que se relacionam com este
objeto. O objeto numinoso é o elemento primário, e o sentimento de ser
criatura o elemento secundário. Quer dizer, o sentimento de criatura é
como uma sombra projetada pelo objeto na consciência. 29
O sentimento de criatura, ou seja, as expressões emocionais que
acompanham a vivência religiosa nos indica o numinoso como o myste-
rium tremendum et fascinans. Estes são os elementos que exprimem a
reação sentimental diante do objeto numinoso.
11 Rudolf OTTO, op. cit., p. 13. 12 Id., ibid., p. 17.
30
1.3 A descrição do numinoso
Passaremos agora a uma descrição mais detalhada dos elementos
que compõem o senso criatural. O numen é objeto racionalmente incom-
preensível que provoca no sujeito religioso um estado de ânimo. O numi-
noso, apenas sentido, manifesta-se como algo real fora do eu. Este objeto
provoca no sujeito não uma percepção sensível, no sentido kantiano, mas
uma reação nos sentimentos. O numinoso é apreendido pelo sentimento
numinoso. Este estado de alma Otto especifica como sendo o sentimento
de criatura. É um estado afetivo não derivado de outros elementos emoci-
onais, mas produzido pela presença do objeto numinoso. Portanto, a vi-
vência religiosa é este estado afetivo produzido através da excitação do
sentimento religioso pela presença de Deus.
O numinoso é o núcleo, o elemento primário na experiência religio-
sa. Este núcleo é inacessível conceitualmente. Como então poderemos
falar deste objeto? O objeto numinoso provoca em nós uma reação emoci-
onal. Portanto, os sentimentos numinosos correspondem a um objeto nu-
minoso. O conjunto destes sentimentos correspondem à apreensão do nu-
minoso. Podemos falar de Deus a partir de uma descrição e análise dos
sentimentos correspondentes por ele provocados, nas profundezas de nos-
sa alma.
Segundo Macquarrie, "o mais valioso do estudo de Otto radica pre-
cisamente na sua meticulosa análise dos estados sentimentais que consti-
tuem a experiência numinosa"13. Esta análise pode ser sintetizada na ex-
pressão mysterium tremendum et fascinans.
13 John MACQUARRIE, op. cit., p. 287.
5
31
Prócoro Velasques, no Prefácio à tradução portuguesa da obra O sa-
grado, dá uma explicação sintética da expressão. O tremendum é o tre-
mendo, o todo-poderoso, a energia; o mysterium é o qualitativamente dife-
rente (das ganz Andere) e o fascinans. Assim, o mysterium tremendum é a
harmonia dos contrastes que sugere o "terror incontrolável, penetrando e
subjugando a alma"14. Do sentimento numinoso podemos apreender a sua
forma, que é o mistério (mysterium). Podemos apreender ainda o conteúdo
qualitativo numinoso, que é em parte um elemento repulsivo que causa
terror (tremendum) e, em outra parte, é um elemento atrativo, fascinante
(fascinans). O divino apresenta-se em nosso sentimento como mistério
inefável, supraracional. Este ser numinoso, qualitativamente diferente,
exerce sobre nós uma estranha harmonia de contrastes: uma repulsão, um
terror demoníaco e, ao mesmo tempo, uma atração que fascina e cativa.
A descrição que Otto faz dos elementos componentes do sentimento
numinoso situa-se no campo puramente psicológico. Faz igualmente refe-
rências históricas das experiências religiosas do antigo judaísmo e do cris-
tianismo. Estes sentimentos são exclusivamente religiosos. Quer dizer,
não são derivados de outros sentimentos naturais. Portanto, para descrevê-
los não é possível utilizar conceitos e evoluções em forma de graduação
de sentimentos naturais. Só é possível indicar para estes sentimentos onde
acontece a experiência religiosa. Só é possível uma relação com os senti-
mentos naturais através de analogias ou de metáforas.
1.3.1 O tremendo
A forma mais primitiva de manifestação do numinoso no sentimento
é o mysterium tremendum, o mistério que faz tremer. O sentimento cor-
respondente que o mistério causa na alma é como um calafrio. Segundo
Otto, este sentimento pode ser um estado constante, cessando quando a
alma volta ao estado profano. Pode,
14 Rudolf OTTO, op. cit., p. 5.
32
também, manifestar-se de forma mais abrupta e conduzir a alucinações, a
transportes e a êxtases.
O mistério normalmente é definido como oculto, o extraordinário, o
estranho, o incompreensível. Esta é forma negativa de defini-lo, ou seja,
dizer o que ele não é. No entanto, o mistério é uma realidade positiva, que
não se manifesta à compreensão conceitual. A sua qualidade positiva ma-
nifesta-se exclusivamente nos sentimentos. Para chegarmos a sua compre-
ensão é preciso fazer um exame minucioso do sentimento, onde se mani-
festa.
1.3.1.1 O tremor místico
"A qualidade positiva do objeto é indicada pelo adjetivo 'tremen-
do'"15. O adjetivo tremendo aparece como predicado do objeto que é o
mistério, que descreveremos mais adiante. Tremendo vem de tremor, ou
do sentimento de medo. A pessoa que faz a sua experiência religiosa, di-
ante do numinoso tem o sentimento de medo.
Otto insiste em dizer que o termo medo, que é um sentimento natu-
ral, se aplica aqui somente por analogia. A reação sentimental diante do
numinoso tem uma qualidade particular, não derivada do medo natural.
Este terror místico só pode ser compreendido aplicando a categoria do
numinoso. Para exprimir este sentimento encontram-se, na literatura reli-
giosa antiga, muitos termos. No Antigo Testamento emât Jahveh (um te-
mor de Deus) tem a conotação de um temor demoníaco que faz paralisar.
Dos gregos temos o termo panicon, que significa o temor que provoca
pânico. Os abundantes textos do Antigo Testamento que descrevem este
temor de Deus transcendem qualquer causa psíquica, ou mesmo externa
que o possa inspirar. Este temor tem uma conotação espectral. Da mesma
forma que os primeiros cristãos utilizavam o termo grego sebastos (atitu-
de de prudência diante dos deuses -Temor: nem superstição nem despre-
zo), designando uma qualidade
15 Id., ibid.,p. 18.
6
33
numinosa. Chamar alguém de sebastos era incorrer em idolatria, pois era
um título que não convinha a nenhuma criatura.
No sentimento do temor podemos observar graus evolutivos. O grau
preliminar do temor religioso é o temor demoníaco ou pânico. Este senti-
mento de terror liga-se a alguma coisa de sinistro. Daí surge na mitologia
antiga a figura do demônio como a objetivação deste sentimento. Nas re-
ligiões primitivas o terror numinoso aparece sob formas rudimentares co-
mo o medo dos demônios. Estas primeiras manifestações do sentimento
numinoso aparece em formas brutais. É o horror sentido diante do sinistro
que inclusive provoca reações físicas como o calafrio.
Este temor demoníaco é rejeitado pelas religiões superiores como
um elemento da religião primitiva ultrapassada. Afirma Otto que estas
emoções primitivas podem reaparecer espontaneamente, mesmo em pes-
soas cultas, por exemplo, na literatura do terror. "Lutero afirma que o ho-
mem natural não pode temer a Deus. (...) Pode-se acrescentar que o ho-
mem natural é incapaz de tremer de medo, no sentido próprio da pala-
vra"16. O sentimento do horror não é derivado do medo natural. Este sen-
timento sob a forma de sinistro é um vago pressentimento do mistério.
Este sentimento, ainda que rudimentar, revela a capacidade do espírito
humano em avaliar e sentir o numinoso. Poderia dizer-se que é a excitação
da categoria numinosa em seu grau mais primitivo.
Algo que faz gelar o sangue transparece como alguma coisa sobre-
natural. Este terror místico é inteiramente diferente dos estados psíquicos
de medo, de angústia, de temor. O pânico espectral, sinistro é diferente em
grau e em qualidade do temor natural. Este estado de alma particular do
terror demoníaco é o grau preliminar do temor religioso.
O temor religioso, em seu grau mais evoluído, é chamado, por Otto,
de temor místico. É o estágio mais profundo, que abrange os últimos
graus de interioridade do sentimento religioso. Embora apareça de forma
muito mais nobre do que o terror demoníaco, mantém com esse traços
16 Id., ibid., p. 19.
afins. O tremer de horror 34
aparece de forma muito mais atenuada na fé pura em Deus do que o terror
demoníaco. Mas permanece um traço de afinidade, porém, evolutivo entre
o sentimento de terror demoníaco e o temor de Deus.
A crença nos demônios manifesta-se no sentimento na forma de si-
nistro. A fé em Deus manifesta-se sob o sentimento de ser criatura. O tre-
mor não mais surpreende, mas mantém a sua força. A característica do
poder aparece na forma da grandeza. Diante do objeto de absoluta grande-
za, pressentido pelo sujeito, temos como sentimento correspondente o
aniquilamento; o sentimento de nada ser; o sentimento de ser criatura.
Otto exemplifica este estado afetivo pelos hinos de Tersteegen:
"Deus está presente
que tudo se cale em nós
e prostremo-nos diante dele"17
O numen é pressentido no seu caráter terrífico como grandeza. Dian-
te da grandeza de Deus surge o sentimento de aniquilamento, o temor mís-
tico, o temor de Deus. Este elemento do sentimento numinoso é de extre-
ma importância em muitos textos sagrados. No Antigo Testamento apare-
ce sob a expressão de cólera de Jahveh. A ira de Deus aparece nos textos
de forma surpreendente e enigmática. A sua incompreensibilidade emba-
raça a exegetas e teólogos.
Otto ressalta o caráter não-racional da cólera de Jahveh. A ira de
Deus não é relacionada com atributos morais na sua origem. Esta não é
outra coisa que o tremendum. Na cólera de Jahveh encontramos o elemen-
to não-racional que lhe dá um caráter terrificante, temor. Este sentimento
numinoso é racionalizado na medida em que é saturado por elementos
éticos. Aí aparece sob a denominação de justiça divina.
17 Id., ibid.,p. 21.
7
35
A cólera de Jahveh como o zelo de Jahveh são estados de consciên-
cia numinosa em que o homem experimenta a impressão do tremendum.
"Este elemento é estranho, repulsivo, que inspira o ter-
ror, surpreendente àqueles que querem admitir apenas a
divindade como bondade, doçura, amor, familiaridade
e, em geral, os atributos que se relacionam unicamente
à face de Deus voltada para o mundo"18.
Miguel Frederico Sciacca faz uma crítica feroz a Otto, que quer res-
gatar o elemento do tremendum na concepção cristã de Deus.
"... Otto nunca chega a apreender a religião e o senso
do divino senão nas reações do 'tremendum', da 'ira
dei', do temor, do aniquilamento, que são justamente as
reações peculiares das religiões primitivas, inferiores,
bárbaras. O 'numen', mesmo quando 'fascinans' e
'sanctum', é sempre o Deus do terror, da ira, o Deus
que aniquila e aterroriza, que petrifica, emudece e faz
recuar pelo pavor que desperta. Onde está aqui o Deus
Pai, Amor, Providência da Revelação Cristã?"19.
O antropólogo inglês Robert Ranulph Marett entende, como Otto,
que o temor reverencial é o que melhor expressa o sentimento religioso
fundamental. Segundo Marett, "a maravilha, a admiração, o interesse, o
respeito e inclusive o amor, são, tanto como o medo, constituintes essen-
ciais do talante elementar do temor"20.
É oportuno ressaltar que Sciacca coloca-se numa posição de defesa
do racionalismo e classifica Otto de irracionalista. Otto destaca diversas
passagens do Novo Testamento onde aparece o elemento do temor. Por
exemplo: "não temais os que matam o
18 Id., ibid., p. 22. 19 Miguel Frederico SCIACCA, op. cit., p. 222. 20 John MACQUARRIE,op.cit.,p. 285.
36
corpo e não podem matar a alma; temei antes aqueles que podem fazer
perecer no inferno a alma e o corpo" (Mt 10,28); "Quão terrível é cair nas
mãos do Deus Vivo" (Hb 10,31); "Porque o nosso Deus é um fogo con-
sumidor" (Hb 12,29). Jesus prega o Reino do Pai celestial. Diz Otto que
este nome pode soar hoje como uma expressão familiar, de doçura, sinô-
nimo de bom Deus. O Pai é o rei, santamente sublime. O Reino se apro-
xima como ameaça obscura, carregada do temor de Jahveh. "Desconhecer
isso é transformar em romance o Evangelho de Jesus"21.
Para Otto, diferente de Sciacca, a superioridade de uma religião não
consiste na eliminação do numinoso, mas no seu reconhecimento como
elemento fundamental. Eliminar o numinoso significa reduzir a religião a
um fim puramente racional e moral.
1.3.1.2 Majestas ou a superioridade absoluta do poder
O que foi descrito até aqui sobre o tremendum pode-se expressar no
ideograma: inacessibilidade absoluta. A inacessibilidade não esgota o
elemento do tremendum. Otto acresce a este o elemento do poder, da for-
ça, da preponderância absoluta. Denomina-o de majestas ou com a ex-
pressão tremenda majestas. O numinoso manifesta-se sob três aspectos
distintos enquanto sentimento do tremendum: o temor (tremendum), o
poder (majestade) e a energia (orgé).
O numen manifesta-se no sentimento numinoso do tremendum tam-
bém como força, como poder. À majestas do numinoso corresponde o
sentimento de ser criatura. O sentimento de aniquilamento, de nada ser, de
esfacelamento está em contraste com o poder, a majestade. No primeiro
aspecto do tremendum temos a cólera de Deus que tem como contraponto
no sujeito o sentimento de ser criatura. O mesmo sentimento de esfacela-
mento aparece no sentimento numinoso como correlato do poder, a
21 Rudolf OTTO, op. cit., p. 84.
8
37
majestade divina. Portanto, este é um segundo aspecto do tremendum.
O sentimento de ser criatura aparece como contraste, relacionado ao
poder divino que está fora do sujeito. Este estado de humilhação, de esfa-
celamento é provocado no sujeito pelo sentimento de presença do poder,
da majestade divina. Este estado emocional é mais uma coloração do sen-
timento numinoso que percepciona Deus.
Otto ressalta o caráter não-racional do sentimento de ser criatura,
distinguindo-o do sentimento de dependência do Absoluto de Schleierma-
cher. O sentir-se dependente não é outra coisa que sentir-se determinado.
Não se trata de um sentimento de ser criatura, mas de um sentimento de
ser criado. Ser criado é a antítese do Criador. Partindo do sentimento de
ser criado e chegar ao Criador é estabelecer o princípio de causalidade.
Schleiermacher faz um desenvolvimento lógico racional do senti-
mento de dependência. É aqui que Otto estabelece a sua crítica a Sch-
leiermacher, colocando o sentimento de dependência como um elemento
racional da idéia de Deus. Portanto, não se trata de um elemento numino-
so. "O contraste da 'majestas' e a consciência de ser pó e cinza conduz a
uma ordem de idéias que não tem relação nenhuma com a ordem da cria-
ção e da conservação"22.
O sentimento de aniquilamento, de nada ser é uma depreciação que
somente surge como correlato do objeto transcendente absolutamente su-
perior. O místico exclama: "Eu não sou nada, tu és tudo"! Não se trata
aqui de uma relação de causa e efeito. Esta depreciação não é, portanto, o
sentimento de dependência absoluta, mas o sentimento de soberania abso-
luta. Quer dizer, não se chega à plenitude do ser pela pequenez do próprio
ser. Mas chega-se ao sentimento de nada ser diante da grandeza, do poder
do ser pleno. No primeiro caso trata-se de uma relação racional, aplicando
o princípio da causalidade. No segundo, trata-se de uma experiência vivi-
da de caráter não-racional. Otto demonstra o caráter não-racional da expe-
22 Id., ibid., p. 24.
riência do sentimento da própria pequenez, que surge 38
na consciência como contraste a partir da grandeza de Deus, nas palavras
do místico muçulmano, Bejesid Bortami:
"O senhor, o altíssimo, revela-me os seus mistérios e
revela em mim toda sua glória. E quando eu o contem-
plava, não com os meus olhos, mas com os seus olhos,
eu vi que a minha luz, comparada com a sua, era treva
e obscuridade. Mesmo a minha grandeza e o meu es-
plendor nada são diante dos seus. E quando eu exami-
nava as obras de piedade e obediência que havia reali-
zado para seu serviço, reconheci que elas tinham a sua
origem nele e não em mim"23.
Em todo misticismo aparece essencialmente a exaltação dos elemen-
tos não-racionais da religião. Não é outra coisa que a exaltação levada ao
extremo do sentimento de ser criatura. Em outras palavras, é sentimento
da insignificância de tudo aquilo que é criado diante, ou a partir da majes-
tade daquilo que está acima de toda criatura. O poder, a majestas do nu-
minoso é o segundo aspecto de manifestação do Deus vivo na experiência
vivida do religioso. 1.3.1.3 Orgé ou a energia do numinoso
Os elementos do tremendum e da majestas implicam um terceiro
elemento que é a energia do numinoso. Este elemento pode ser indicado
por expressões simbólicas como vida, paixão, sensibilidade, movimento,
excitação, impulso. Como diz Otto: "Eles formam, no 'numen', o elemento cuja experiência
coloca a alma humana em estado de atividade, excita o
zelo, provoca a tensão e a energia prodigiosa da qual o
homem prova, seja no ascetismo ou na luta ardente
contra o mundo e a carne, seja nos atos de vida heróica
na qual a excitação tem lugar"24.
23 Id., ibid., p. 24. " Id., ibid., p. 26. 24 Id., ibid., p. 26.
9
39
Este elemento, segundo Otto, tem causado as mais fortes reações en-
tre os místicos e os, filósofos. Os filósofos têm rejeitado este elemento da
energia, de orgé, como produto do antropomorfismo. Deus seria um pro-
duto das formas humanas da paixão, da excitação, da vida etc. Por outro
lado, os homens religiosos voltam-se contra o Deus da filosofia por não
reconhecerem o caráter analógico dos termos tomados de diversos domí-
nios da vida humana. O racionalista é incapaz de reconhecer este senti-
mento autenticamente não-racional. A bandeira anti-racionalista coloca o
Deus vivo em oposição ao Deus idéia da especulação filosófica.
Para Otto, o elemento da energia numinosa aparece particularmente
no misticismo do amor. É o Deus que é fogo, de ardor devorante; é o Deus
de amor impetuoso. Esta energia impetuosa é um elemento não-racional
da experiência religiosa. Quer dizer, os qualificativos reais, ou os predica-
dos naturais de energia só podem servir de ideogramas para designar um
objeto inefável. Neste sentido, incorre em erro a especulação de Fichte
que considera o absoluto como um gigantesco e incessante impulso cós-
mico.
O Deus vivo, o Deus que queima é a expressão simbólica do tercei-
ro aspecto do tremendo, a energia do numinoso. As energia do numen
provoca na alma humana o estado de excitação. Diante da potente vitali-
dade, o homem enche a alma de ardor, muitas vezes heróico.
Apresentamos em síntese a descrição que Otto faz do elemento tre-
mendo. Este aparece no sentimento numinoso de três formas: o tremen-
dum, a majestas e a orgé. Estes três elementos formam a qualidade positi-
va do objeto, exterior a nós, que se manifesta exclusivamente nos senti-
mentos, denominado de mysterium tremendum.
1.3.2 O mistério
O objeto numinoso é o mysterium tremendum et fascinans. Descre-
vemos o elemento do tremendum. Passaremos agora a descrever a noção
principal do objeto numinoso, o mistério. O tremendo e o mistério não se
identificam, mas mantêm uma estreita
40
relação. Como diz Otto, "facilmente o mistério se torna terrível". Na ver-
dade, o elemento do tremendo é um predicado sintético do mistério. Por-
tanto, o mistério é a forma do objeto numinoso, e o tremendo a sua quali-
dade positiva. Em muitas formas de misticismo, contudo, o elemento do
tremendo pode tomar conta do sentimento numinoso a ponto de o mistério
não aparecer. Este exemplo demonstra a clara diferença entre ambos,
mesmo que normalmente estejam estreitamente relacionados.
Otto descreve o mysterium como mirum ou mirabile. A emoção que
surge no sentimento numinoso não é ainda a admiração, o que acontece
quando são acrescidos os elementos do fascinans e do augustum. A emo-
ção que corresponde ao elemento do mistério é a surpresa. Este estado de
surpresa pertence exclusivamente ao domínio do numinoso. Pode-se to-
mar do domínio natural o sentimento de estupor ou a surpresa que paralisa
para indicar por analogia a reação psíquica provocada pelo mirum. Pode-
mos ainda citar outros termos tomados do domínio natural que ajudam a
indicar a realidade do mysterium: o que é secreto; algo de estranho, in-
compreensível e inexplicável.
"Mas esta realidade, ou mistério num sentido religioso,
o verdadeiro 'mirum', é o qualitativamente diferente
(thateron, anyad, alienum), aquilo que nos é estranho e
nos surpreende, o que está fora do domínio das coisas
habituais, compreensíveis, bem conhecidas e, portanto,
familiares; é aquilo que se opõe à ordem conhecida das
coisas e, por isso mesmo, nos enche de surpresa e nos
paralisa"25.
Segundo Otto, o elemento do mistério já esteve presente nas religi-
ões primitivas, ainda que de forma rudimentar. Contesta a teoria animista
que coloca na idéia da alma a origem da religião. "A idéia de alma e con-
cepções semelhantes são racionalizações posteriores, tentativas de escla-
recer o enigma do 'mirum'"26.
25 Id., ibid., p. 30. 26 Id., ibid., p. 30.
10
41
O mito, de igual forma, é uma tentativa de criar formas fabulosas
para expressar qualquer coisa qualitativamente diferente. Estas figuras e
objetos fabulosos, criados pela imaginação mítica, indicam apenas o sen-
timento natural de surpresa, de mistério. Ainda não é a surpresa demonía-
ca. Não podemos chamar de mistério aquilo que momentaneamente é in-
compreensível. A maioria dos mitos surgiram para explicar os fenômenos
aparentemente inexplicáveis.
Aqui é fundamental colocarmos a distinção que Otto faz entre um
objeto incompreensível para o conhecimento humano e um objeto qualita-
tivamente diferente.
"O objeto realmente misterioso é incompreensível e in-
concebível não apenas porque o meu conhecimento re-
lativo deste objeto tem limites determinados e inflexí-
veis, mas porque meus limites chocam-se com alguma
coisa qualitativamente diferente, uma realidade que,
por sua natureza e essência, é incomensurável e diante
da qual eu manifesto o meu estupor"27.
Também se pode caricaturar o mistério no medo dos espectros. O
aspecto dos fantasmas provoca um sentimento de terror que causa cala-
frio. Este elemento causa a atração nas histórias de espectro. Apesar do
terror que nos trazem, sentimos uma atração que é o mirum. Não é a for-
ma, a aparência do fantasma que atrai, mas por ser alguma coisa qualitati-
vamente diferente, alguma coisa que não entra na nossa esfera de realida-
de. Esta realidade absolutamente diferente e oposta à nossa que provoca
um interesse em nossa alma.
O sentimento do qualitativamente diferente torna-se mais claro e in-
tenso no sentimento demoníaco. Nas suas formas superiores o objeto nu-
minoso opõe-se a tudo que é habitual, a natureza em geral, inclusive o
domínio sobrenatural. O sobrenatural e o transcendente são predicados
negativos e exclusivos em relação à natureza e ao mundo. No sentimento
numinoso o transcendente adquire um conteúdo positivo. O transcendente
27 Id., ibid.,p. 31.
aí designa um 42
objeto qualitativamente diferente, do qual pressentimos a natureza sem
poder exprimi-la em noções claras.
O sentimento do totalmente outro é a hipertensão dos elementos
não-racionais na religião. O objeto numinoso, enquanto outro, está em
oposição a tudo aquilo que é natural e, mais, opõe-se ao ser e ao que exis-
te. O totalmente outro, frente ao mundo existente, é um nada. O nada é o
que é absoluta e essencialmente oposto a tudo aquilo que é e que pode ser.
Este é o paradoxo da negação e oposição que se delineia frente à reflexão
conceitual. No sentimento numinoso o qualitativamente diferente aparece
como qualidade positiva, como uma realidade viva. O vazio e o nada não
têm aqui um sentido niilista, mas passam a ser um ideograma numinoso
do qualitativamente diferente.
O elemento numinoso do mistério, enquanto manifestação do senti-
mento religioso, é o mirum. Otto descreve neste sentimento numinoso
uma evolução em três graus: a surpresa pura e simples, o paradoxo e a
antinomia. No primeiro grau o mirum aparece incompreensível ao enten-
dimento, na medida em que transcende nossas categorias. No segundo
grau o sentimento do mistério aparece não apenas como incompreensível,
mas como paradoxal; não é apenas supra-racional, mas é anti-racional. No
grau mais elevado do mirum os enunciados sobre o mesmo objeto não
apenas aparecem contrários à razão, mas como irreconciliáveis e ir-
redutíveis entre si. É a forma mais aguda de paradoxo, a antinomia.
Estas formas contrastantes e desconcertantes que cegam a razão são
encontradas na teologia mística, onde predomina o elemento não-racional
da idéia de Deus. O misticismo, segundo Otto, desenvolve uma teologia
do extraordinário, livre da lógica natural, teologia do mirum, do qualitati-
vamente diferente. Além disso reconhece como fonte mais profunda do
sentimento religioso o sentimento numinoso do qualitativamente diferen-
te. "O misticismo não está em oposição direta à religião.
Suas verdadeiras relações se tornam imediatamente
claras se considerarmos que os elementos que indica-
mos têm como fonte um elemento
11
43 universalmente religioso, o sentimento numinoso do
qualitativamente diferente, sem o qual não há o senti-
mento religioso verdadeiro"28.
Aqui, inevitavelmente, devemos voltar à questão do racionalismo e
do irracionalismo. Otto descreve o sentimento do mirum em graus evolu-
tivos. O mistério não é apenas incompreensível, supra-racional, mas anti-
racional. E no grau mais evoluído o mistério é irreconciliável com a razão.
Miguel Frederico Sciacca critica duramente esta formulação: "Otto não
quer ver que irracionalismo, em religião, significa supra-racional e não
anti-racional..."29. Sciacca entende toda concepção religiosa de Otto como
irracional. Além disso, faz uma crítica ao que o autor em questão diz do
sobrenatural. Para Sciacca, a sobrenatureza de Deus não é uma negação da
natureza humana. Para Otto, o sobrenatural é uma forma negativa (racio-
nal) em relação à natureza, para expressar uma noção de Deus. Quer dizer,
que sobrenatural é um conceito racional, em forma negativa, tirado do
mundo da natureza e que não serve para indicar o que o sentimento numi-
noso capta como qualitativamente diferente. Para Otto, isto não significa
uma negação da natureza humana, mas resgatar o elemento não-racional
da idéia do divino obscurecido pelo racionalismo. Portanto, o supra-
racional é uma derivação do racional. O numinoso é um elemento total-
mente diferente do racional. Quer dizer, é não-racional, e não irracional.
José Todoli faz igualmente uma crítica a Otto que nos parece sur-
preendente ao se referir à teoria da divinização.
"Esta teoria da divinização e dos 'sinais' é uma verda-
deira teoria em conceitos rígidos; é uma prova, uma
demonstração estritamente pensada. É a teoria do so-
brenaturalismo ingênuo e da dogmática. É grosseira-
mente racionalista"30.
28 Id., ibid., p. 34. 29 Miguel Frederico SCIACCA, op. cit., p. 225. 30 José TODOLI O. P., Filosofia de Ia religión. p. 113.
44
A faculdade de divinização é a faculdade que permite conhecer e re-
conhecer genuinamente o sagrado no sentimento. É a percepção de um
objeto não-racional, ou numinoso. À crítica de Todoli podemos contrapor
o texto de Otto:
"A verdadeira divinização nada tem a ver com as leis
naturais. De fato, o seu relacionamento com as leis na-
turais não é problema para ela. Ela não busca saber
como é produzido o fato, o evento, ou qualquer outra
coisa, ou como uma pessoa tomou-se o que é; ela se
preocupa com a significação e se o fato é um sinal do
sagrado"31.
A teoria de divinização a que Todoli se refere Otto chama de teoria
supra-naturalista, e concorda com a crítica de que é uma faculdade do
raciocínio. Otto afirma literalmente: "Essa teoria da divinização e do sinal
é uma teoria formada por conceitos massivos e uma demonstração"32.
Também na crítica de José Todoli não há clareza quanto à compreensão
do supra-natural e do anti-natural; do supra-racional e do anti-racional. O
supra-natural é demonstrado quando se tira, de premissas dadas (no mun-
do natural), uma conclusão lógica. A verdadeira divinização é o reconhe-
cimento de um objeto qualitativamente diferente, sem vínculo com a natu-
reza.
Estas duas críticas feitas situam-se dentro da perspectiva metafísica
clássica. Otto rejeita a via racionalista da metafísica tradicional e das ciên-
cias naturais. Na faculdade de divinização, o numinoso é conhecido pelo
sentimento numinoso, que somente pode ser descrito e não conceituado. A
via de Otto é não-racional, e não irracional.
1.3.3 O fascinante
O objeto numinoso tem como forma o mistério. Este elemento nu-
clear tem um conteúdo qualitativo numinoso. Este conteúdo
31 Rudolf OTTO, op. cit., p. 141. 32 Id., ibid., p. 140.
12
45
qualificativo do mistério é, em parte, um elemento repulsivo, o tremen-
dum, ligado à majestas e à orgé. Por outro lado, o mistério é qualificado
por um elemento que exerce uma atração peculiar, que cativa e fascina.
Este elemento que fascina forma com o tremendo uma estranha harmonia
de contrastes. Este duplo caráter do numinoso, formando uma harmonia
de contrastes, está presente em todas as religiões e até mesmo nos cultos
demoníacos. Otto exclama: "É o fenômeno mais estranho e mais notável
de toda essa história. O divino, sob a forma do demoníaco, é para a alma
objeto de terror e de horror, ao mesmo tempo que atrai e seduz"33.
O mistério, diz Otto, além de surpreendente, é também maravilhoso.
Ao lado do elemento repulsivo surge algo que seduz. Na medida em que
este elemento cresce de intensidade pode até chegar ao delírio; é o ele-
mento dionisíaco da religião. A este elemento Otto denomina de fascinan-
te.
O fascinante é um elemento não-racional. O amor, a compaixão, a
piedade e o consolo são noções, conceitos que acompanham e esquemati-
zam este elemento numinoso. Estes não podem esgotar seu conteúdo,
apenas relacionam-se analogicamente. Assim, a beatitude religiosa é mui-
to mais que ser consolado, ter confiança, felicidade presente no amor. A
felicidade religiosa não se esgota em elementos naturais elevados à perfei-
ção pelo pensamento. Esta experiência inclui elementos profundamente
não-racionais.
Otto reconhece que o sentimento religioso, em seus graus primiti-
vos, surgiu unicamente em um de seus pólos, o elemento do terror, da
repulsa. Esta forma primitiva do sentimento religioso é o terror demonía-
co. Os cultos religiosos, onde predomina este elemento terrífico, desti-
nam-se a apaziguar a cólera do numen. Os atos religiosos seriam basica-
mente atos de expiação. Como explicar o fato de que nas religiões o nu-
minoso é objeto de busca? O elemento do terror não explica as práticas
sacramentalistas nem os ritos de comunhão pelos quais o homem busca
apossar-se do numinoso.
33 Id., ibid., p. 35.
46
As práticas religiosas de ofertas, sacrifícios, ação de graças apare-
cem em primeiro plano na história das religiões. Estas práticas religiosas
são uma forma de aproximação do mistério.
"Ao meio de uma quantidade de atos estranhos e de
formas fantasiosas de meditação, o homem religioso
busca dominar a realidade misteriosa, a penetrá-la e a
identificá-la, identificando-se com ela"34.
Otto ainda classifica estas práticas em dois tipos: a identificação mágica
do eu com o numen, pelos cultos mágicos, vida consagrada, encantamento
etc.; e pelos cultos naturalistas de possessão, pelos quais a realidade mis-
teriosa está numa pessoa, que entra em estado de êxtase.
Nas suas origens, o elemento fascinante aparece mais em formas
mágicas de apropriação do numen, com o fim de alcançar objetivos natu-
rais. Este elemento desapareceu. Nas formas mais evoluídas da religião
esta possessão do numen passou a ser o objetivo em si. Com a maturação
da experiência religiosa desaparece a busca dos bens profanos pela magia.
Nas formas nobres do misticismo há uma busca do mistério que produz
uma beatitude rara que não pode ser expressa e compreendida, mas pode-
se ter uma experiência viva. É a experiência do elemento fascinante, que
pode maravilhar e embriagar.
O estado de alma, de estar maravilhado, normalmente vem expresso
por imagens ou fórmulas negativas. Estas imagens ou fórmulas negativas
são noções que se relacionam, apenas analogicamente, ao conteúdo posi-
tivo do elemento fascinante, que é captado pelo sentimento. Exemplo des-
tas formas negativas, para expressar um conteúdo positivo, encontramos
nas palavras do apóstolo Paulo:
"O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do
homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam" (I
Cor 2,9). O amor, o consolo vividos no nível profano
34 Id., ibid.,p. 36.
13
47
não explicam de forma alguma o estado de Jubilo vivido pela presença do
numen.
Este estado é descrito por figuras como: abismo do prazer mais per-
feito, delícia sem fim, sol magnífico. Aqui aparece o algo mais do fascínio
que não pode ser expresso por conceito. Este estado de bem-aventurança,
de fascínio encontra-se em todas as religiões que têm esperança na salva-
ção. A doutrina da salvação torna-se incompreensível ao homem natural.
Quando Paulo fala na esperança da ressurreição, culmina assim: "E, quan-
do todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se
submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em to-
dos" (I Cor 15,28). As doutrinas de salvação são expressas e ensinadas por
noções análogas, ou ideogramas do sentimento religioso. Quem não pos-
sui esta visão beatífica de Deus, terá uma compreensão muito imperfeita
da salvação. Que Deus seja tudo em todos poderá não ter nenhum sentido
para o homem natural.
A salvação não é apenas a busca de realização de aspirações religio-
sas. A salvação não produz um estado de bem-aventurança pelo simples
fato de ter alcançado um objetivo. O sentimento numinoso do fascinante
pode aparecer de diversas formas, como diz Otto. "Seja sob a forma de Reino de Deus que virá ou sob a
forma de acesso do sujeito à realidade supra-terrestre e
beatífica; seja na espera e no pressentimento ou na ex-
periência presente; sob as formas e nas manifestações
as mais diversas, aparece uma tendência fundiária úni-
ca, estranha e poderosa, em direção a um bem (salva-
ção) que conhece apenas a religião e que não é racio-
nal"35.
O sentimento de felicidade religiosa sempre se apresenta como hi-
perbólica, exagerada, mesmo quando se apresenta de forma contida. Estas
experiências hiperbólicas aparecem nas vivências da graça, da conversão e
da regeneração. As autobiografias de convertidos estão repletas deste ele-
mento não-racional das bem-a-venturanças emocionais. Otto elenca diver-
sos testemunhos de
35 Id., ibid., p. 39-40.
48
convertidos reunidas por William James. Eis o testemunho de Jacó da
Boémia: "Eu não posso escrever ou dizer o que aconteceu com o espírito.
Não se pode comparar a nada, a não ser à vida que nasce em meio à mor-
te, a ressurreição dos mortos"36.
Estas experiências que no cristianismo se denominam de experiên-
cias da graça e de regeneração, aparecem de forma paralela em outras
religiões. Nesta experiência coloca-se o Nirvana de Buda. Otto relata uma
conversa que teve com um monge budista:
"Quando ele chegou ao último ponto, a questão de sa-
ber o que é Nirvana, depois de algumas hesitações, ele
murmurou uma só frase: beatitude inexprimível. Nesta
resposta sussurrada, com tom solene, a expressão e a
atitude exprimiam, mais do que as palavras, o que ele
queria dizer. Era uma confissão de fé no 'mysterium
fascinans"37.
Na grande maioria das testemunhas do elemento fascinante se dá de
forma negativa. A via negativa mostra um divino não apenas como fun-
damento e o superlativo de tudo que é concebível; Deus é, em si mesmo,
uma essência diferente, à parte. O elemento do fascinans é eminentemente
não-racional.
Antes de descrevermos o último dos elementos do numinoso, que-
remos tecer alguns comentários sobre críticas feitas a Otto no que tange ao
elemento fascinante.
Já referimos a crítica de Miguel Frederico Sciacca de que Otto res-
tringe a sua concepção de Deus ao elemento do terror. Mesmo quando
aparecem os elementos ao fascinans e do sanctum, o numen é sempre o
Deus do terror, da ira. A religião de Otto é expressão da crise de nossa
época, caracterizada pelo senso fatalístico da vida.
36 Id., ibid.,p. 41. 37 Id., ibid., p. 42.
14
49 "A vida deixa de ter valor; os fins mergulham no pego
do irracional e do inatingível; só resta ao homem dei-
xar-se revolver do absurdo, que se toma em 'fascinans'.
O 'fascinans' do 'numen' de Oito é a atração que sobre
nós exerce um Deus inimigo, prepotente e tirano, ação
essa que se cifra em nos comunicar a consciência do
nada que somos"38.
Concordamos com Sciacca que na concepção ottoniana de Deus
predomina o elemento do terror. Mas a crítica não se justifica quando
submete o elemento fascinante do numen ao elemento do tremendo. Scia-
cca faz uma interpretação errônea da descrição que Otto faz destes ele-
mentos. Em sua síntese, Sciacca afirma: "O terrífico, o suprapotente, o
maravilhoso atraem e fascinam a alma até a ebriedade: é o momento dio-
nisíaco, irracional, ..."39. No texto de Otto temos: "Ao lado do elemento
perturbador aparece algo que seduz e cresce em intensidade até produzir
delírio; é o elemento dionisíaco da ação do 'numen'"40. Otto utiliza a ex-
pressão ao lado, que deixa bem claro que está falando de dois elementos
distintos: o elemento fascinante atrai e o tremendo repulsa. Quer dizer, por
um lado um elemento que ativa e fascina e, por outro, um elemento repul-
sivo, o tremendo. É o duplo caráter do numinoso. E Otto tala numa estra-
nha harmonia de contrastes. Para Sciacca, o elemento do tremendo tam-
bém fascina e atrai, o que não corresponde à exposição de Otto. Desta
forma chega a uma crítica injusta, reduzindo o numen de Otto ao terror,
restando ao homem revolver-se no absurdo, que se transforma em fascí-
nio. Este fascínio fatalístico faz a religião de Otto ser uma religião desu-
mana e de escravos. Essa crítica de Sciacca não passa de um reducionis-
mo, de uma parcialidade. Falta-lhe uma compreensão mais exata da dis-
tinção dos elementos do numen e especial-
50
mente da faculdade de divinização, da qual falamos no item anterior.
51
38 Miguel Frederico SCIACCA, op. cit., p. 224-225. 39 Id., ibid., p. 220. 40 Rudolf OTTO, op. cit., p. 35.