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fabiana dultra britto
Professora Adjunta da Escola de Dana/Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Coordenadora do grupo de pesquisa LABZAT e da plataforma CORPOCIDADE
paola berenstein jacques
Professora Associada da Faculdade de Arquitetura/Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Coordenadora do grupo de pesquisa Laboratrio Urbano, pesquisadora CNPq
CORPO&CIDADECoimplicaes em processo
Recentemente, tericos de vrios campos do conhecimento tm voltado a tratar
da questo do corpo em suas diferentes reas. Muitas vezes, eles o fazem de
maneiras bem distintas, quase opostas, em que o corpo considerado desde uma
forma de cristalizao at uma possibilidade de resistncia ao processo de espetacu-larizao contempornea e, em particular, ao processo de globalizao da economia.
Ana Clara Torres Ribeiro1nos chama a ateno para uma crise do sujeito corpori-
ficado diante do mundo da hegemonia do capital financeiro, em simbiose com as
disputas de capital simblico. Esta viso se caracteriza por nveis crescentes de abs-
trao e pelo predomnio de leituras reducionistas do espao pblico, que tendem a
substituir a co-presena por representaes programadas, repetitivas e petrificadas
da experincia urbana. precisamente nestas circunstncias que a valorizao do
sujeito corporificado adquire ainda maior relevncia. O estudo das relaes entre
corpo e cidade pode, efetivamente, ajudar-nos a compreender os processos urbanos
contemporneos e, por meio do estudo dos usos urbanos do corpo ordinrio, vivido,
cotidiano2, mostrar-nos alguns caminhos alternativos ao processo de espetaculari-
zao das cidades contemporneas3. Na lgica espetacular atual, os projetos urbanos
hegemnicos buscam transformar espaos pbicos em cenrios desencarnados, em
fachadas sem corpo: pura imagem publicitria. As cidades cenogrficas so espaos
1 Debates realizados nos
Seminrios Cidade & Cultura:
Rebatimentos sobre o Espao
Pblico Contemporneo
(2010-2012) e nos Encontros
Corpocidade (2010).
2 Referimo-nos ao corpo
daqueles cuja atividade pbli-
ca cotidiana implica o uso e
a experimentao da cidade
e, desse modo, constitui-se
como uma possibilidade de
resistncia espetaculariza-
o adotada como lgica de
organizao da espacialidade
e dinmica social urbana,
atribuindo ao corpo funode mercadoria, imagem ou
simulacro. E referimo-nos ao
espetculo nos termos usa-
dos por Guy Debord (1997) e
pelos demais situacionistas
(JACQUES, 2003).
3 Ver, entre outros, o artigo
Espetacularizao Urbana
Contempornea(JACQUES;
FERNANDES, 2004).
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corresponde a diferentes memrias urbanas que se instauram no corpo como
registro de experincias corporais da cidade, uma espcie de grafia da cidade
vivida que fica inscrita, mas que, ao mesmo tempo, configura o corpo de quem
a experimenta.
Buscamos incorporar a ideia de corpografia tanto na histria das cidades
e do urbanismo como no pensamento urbanstico contemporneo, isto , das
memrias urbanas no visveis nas representaes imagticas de cidades, mas
inscritas nos corpos daqueles que a experimentam. Assim, buscamos uma
noo processual, baseada nos processos relacionais entre carne e pedra, entre
corpo e cidade, entre dana e arquitetura, e no somente nas configuraes
espaciais resultantes desses processos.
Dana & Arquitetura
Sabe-se que o dilogo entre o campo da Dana e o da Arquitetura no re-
cente, embora ainda pouco explorado no Brasil5. A maioria dos exemplos
de aproximao entre esses dois campos, contudo, acontece pela iniciativa da
Dana. Apesar de deixarem entrever uma prtica tipicamente descompassada
de seus discursos afirmadores de interdisciplinaridade, quando analisadas em
suas denominaes e formataes, h hierarquizao ou sujeio de uma rea
pela outra. Muitas vezes camuflado de boa f auto-afirmativa, esse tipo de mo-
vimento aproximativo s cumpre somar uma coisa outra, ao tratar aspectos
de uma rea como se fossem elementos intrnsecos da outra, como nos cls-
sicos casos em que se trata a arquitetura como cenrio da dana ou em que se
trata a dana como justificadora de estruturas arquitetnicas.
No se pretende aqui enveredar pela anlise detalhada desses exemplos
e de outros tantos casos de iniciativas de entrecruzamento dos dois campos,
mas apenas valermo-nos de tais antecedentes para focalizar na citada tendn-
cia hierarquizao e sujeio entre os dois campos. Ela servir como par-
metro para refletir acerca de padres relacionais habitualmente praticados em
discursos e comportamentos interdisciplinares, bem como para propor um
outro registro de enquadramento para a investigao das possibilidades de ar-
ticulao entre Dana e Arquitetura: um caminho que permita conduzir suas
questes especficas por caminhos de construo argumentativa, abertos por
discusses compartilhadas.
5 No que se refere ao campo do
urbanismo, isto acontece ora em
debates tericos abrigados em
publicaes, tais como a revista
Nouvelles de Danse(2000), ora em
propostas estticas baseadas na co-
laborao de arquitetos em projetos
coreogrficos, como nos projetos
do coregrafo belga Frdric Fla-
mand (ex-membro da companhia
PlanK, depois da Chaleroy Danse e,
atualmente, do Ballet National de
Marseille); ou, ainda, em festivais de
dana que tematizam a arquitetura
das cidades como espao de apre-
sentao para dana, tais como a
Bienal de Santos SESC ou o projeto
Danas na Cidade(Lisboa), atual-
mente denominadoAlkantara.
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As noes genricas de corpoe de espaocostumam ser alvo dos propsi-
tos associativos entre Dana e Arquitetura, provavelmente pela anteriorida-
de que sugerem aos ideais de caracterizao das coisas pelas suas unidades
mnimas, vigentes no imaginrio do senso comum (e, at mesmo, do co-
nhecimento especializado). Tudo indica, contudo, que as articulaes entre
Dana e Arquitetura podem ser bem mais complexas em seus procedimentose propsitos; e bem mais consequentes, em seus efeitos e derivaes, do que
prope o primarismo dessas generalidades. No apenas pelo que suas respec-
tivas especificidades sugerem como vias de interlocuo entre os campos a que
pertencem, mas, antes e sobretudo, pela possibilidade do exerccio associativo
dada sua natureza processual para promover a expanso de um campo no
outro. a temporalidade que articula corpo e espao, instaurando movimento.
E parece ser esta a chave do raciocnio para compreender e analisar seus mo-
dos relacionais e a configurao de suas resultantes cooperativas: ambincias6
e corporalidades.
Todo relacionamento instaura-se a partir de pontos de conexo advindos
de algum tipo de similiaridade reconhecida entre as diferentes propriedades
dos termos relacionados. So, portanto, as propriedades distintivas das coisas
que estabelecem as suas condies conectivas e, consequentemente, de rela-
cionamento com outras. Conhec-las, muito embora permita deduzir possibi-
6 A noo de ambincia aqui
adotada refere-se qualificao dosambientes resultante de seus usos
pelos habitantes e parte dos estudos
desenvolvidos por pesquisadores do
Centre de recherche sur lespace sonore
et lenvironnement urbain (CRES-
SON), que faz parte da UMR 1563
Ambiances architecturales & urbaines
do Centre national de recherche scien-
tifique(CNRS), apesar de ser um
pouco distinta daquela adotada por
estes ltimos. Os pesquisadores do
CRESSON trabalham com a noode ambincia h bastante tempo e
j produziram diversas publicaes
sobre o tema, dentre as quais cita-
mos a mais recente, organizada pelo
criador desta noo, Jean Franois
Augoyard (2010). Para mais infor-
maes, remetemos tambm ao site
do Rseau International Ambiances
(2012), rede internacional de pesqui-
sadores que tratam da questo.
arquivo pblico da cidade de belo horizonte/ascom
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luciano bata
lidades de conexo, no suficiente para explicar seus procedimentos relacio-
nais e tampouco para prever o grau de sucesso deles a ressonncia de seus
efeitos. Porque os relacionamentos no so a simples soma de configuraes,
tal como sugerem as somas algbricas e as equaes matemticas, as quais
so desprovidas de tempo e de espao(FLUSSER, 2007, p. 26). Os relaciona-
mentos soprocessose, como tais, no ocorrem no vcuo, mas engendram-sepela ao da temporalidade que ininterrupta e promove modificaes irrever-
sveis nos estados das coisas.
Em sendo oprocessoum fenmeno que descreve a ocorrncia simultnea e
contnua de muitas relaes de diferentes naturezas e escalas de tempo, salvo
em condies modelares, no h como identificar seu comeo ou seu fim
visto que no descrevem trajetriasde um ponto a outro ou sequer distin-
guir precisamente quais os termos nele envolvidos. Essa lgica processualde
compreenso das dinmicas relacionais contradiz as ideias de origem ma-
triz, influncia, identidade e genealogia to em voga nos atuais discursos de
interpretao historiogrfica e crtica da cultura e da arte7, e to imprprias
compreenso de sistemas complexos no-lineares, como o so a prpria vida,
a construo da histria e a produo de ideias.
Importa, pois, destacar esse sentido de continuidade expresso no modo
relacional de existncia das coisas, para diferenci-lo do sentido apriorstico
7 Para uma introduo did-
tica aos principais argumentos
atualmente em voga nos discursos
interpretativos da cultura acadmi-
cos ou no frente ao processo de
globalizao, remetemos ao estudo
de Moacir dos Anjos (2005), Local/
Global: arte em trnsito, integrante
da excelente coleo Arte +, dirigida
por Glria Ferreira e publicada pela
Jorge Zahar Editor (RJ).
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ou essencialista que costuma embasar os argumentos e pro-
cedimentos meramente acasaladores de ideias, pessoas e situ-
aes. Importa diferenciar o pressuposto que define as coisas
como entidades dadas daquele que as considera como siste-
mas dinmicos um pressuposto coevolutivo, entendido aqui
como coimplicao: a noo de que todas as coisas existentes
so correlatas, em alguma medida, porque partilham as mes-
mas condies de existncia e, assim, afetam-se mutuamen-
te8.
Ao reconhecer o carter genuinamente criativodos rela-
cionamentos porque configurador de estruturas chega-se
a um sentido de continuidadetotalmente avesso ao de que a
matria no se conserva. Tal carter afeito noo dinmicade reorganizao contnua das configuraes existentes pela
ao dos relacionamentos que se estabelecem contra a noo
conservacionista de preservao da dita identidade das coi-
sas em si dado com outras em seu ambiente de existncia9,
criando assim outras ambincias, conforme sugerimos adian-
te.
O bilogo Richard Dawkins (1991) prope pensar as coisas
existentes como designs evolutivos, ou seja, como configuraes
resultantes das snteses transitrias alcanadas pelo modo
como se articulam funo e formato de cada coisa, conforme
relacionam-se com outras, ao longo do tempo de sua existn-
cia. O designdas coisas seria, ento, simultaneamente causa e
efeito da configurao (tambm transitria) do seu ambiente
de existncia, o qual se livra do seu sentido meramente topo-
grfico para adquirir importncia codeterminante tanto dascondies de historicidade como das prprias corporalidades.
Nesta perspectiva, possvel pensar o debate entre Dana
e Arquitetura no como um encontro de campos disciplinares
distintos, mas como um processo de construo de uma zona
de transitividadeentre os campos. Tal zona baseia-se na coope-
rao entre as condies relacionais de cada campo e na busca
de conexes que mobilizem experincias reorganizativas de
8 A dinmica de coimplicao entre corpo e ambiente,
nos termos processuais que apresentaremos aqui, foi
originalmente formulada no artigo Corpo e Ambiente,
publicado em Cadernos do PPGAU (BRITTO; JACQUES,
2008) e foi articulada, juntamente com o sentido de
coplasticidade, s discusses empreendidas ao longo
da realizao da pesquisa PIRVE Laseptisation des am-
biances pietonnes au XXIe sicle: entre passivit et plasticitdes corps en marche. A pesquisa foi realizada entre 2009 e
2010 nas cidades de Salvador/BR, Montreal/CA e Greno-
ble/FR por uma equipe multidisciplinar da qual tomamos
parte, sob a coordenao de Rachel Thomas CRESSON/
CNRS.
9 justamente pela plasticidade dos seus designsque
as coisas buscam sua permannciano tempo aqui en-
tendida na acepo dada pela Teoria Geral dos Sistemas,
isto , no como o que se mantm e se preserva como
imutvel, mas como aquilo que no cessa sua continui-
dade de ao.
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10 Tomamos aqui a
definio de coerncia
sugerida pelo filsofo Paul
Thagard (2010) em seu livro
Coherence in Thought and
Action: a mxima satisfao
de mltiplas restries.
Esta ideia permite pensar a
instaurao de coernciascomo uma resultante da
reorganizao dos sistemas
que, envolvidos em processo
coevolutivo, precisam satis-
fazer as mltiplas restries
impostas pelas configura-
es dos sistemas e sub-
sistemas (ambientes) com
que interagem, conforme
proposto em Temporalidades
em Dana: parmetros para
uma histria contempornea(BRITTO, 2008).
seus respectivos regimes de funcionamento e estados de equilbrio, de modo que
favoream a produo de novos sentidos ao sistema que integram e a seus ambien-
tes de existncia ou, como sugere o filsofo Paul Thagard (2000), a instaurao
de coerncias10.
Semelhante aos ns de trnsito das feiras medievais, formados pelo encontro
das trajetrias dos grupos nmades de mercadores, cuja subsistncia advinha do
sistema de troca dos seus produtos, esse campo de conectividade entre Dana e
Arquitetura, paradoxalmente, tambm garante a continuidade de seus processos
particulares de consolidao como campos disciplinares especficos.
A Arquitetura, com seu forte teor de espacialidade, mostra-se ancorada por sli-
da produo intelectual que lhe confere uma contextualizao amplamente referen-
ciada, seja pelos discursos preservadores ou atualizadores. J a Dana, com seu forte
teor de temporalidade, parece refm de discursos descontextualizadores cuja pre-teno sempre inaugural dificilmente favorece a consolidao de uma tradio
terica. Certamente, no ser a simples permuta dos conceitos de tempo e espao de
uma rea para outra que ajustar tal descompasso, pois as reas de conhecimento,
tal como ambientes de existncia para os conceitos, constituem diferentes regimes
de operao e validao conceitual, diferenciados justamente pelos processos de co-
determinao adaptativa experimentados em cada contexto.
O exerccio de articulao entre Dana e Arquitetura passa, necessariamente,
pela desterritorializao de alguns dos conceitos mais caros s suas respectivas es-
pecificidades como o so tempo e espao, corpo e ambiente. Desse modo, poder-
se-o esboar novos modos relacionais, garantidores de novos nexos de sentido,
tanto aos conceitos como s prprias reas de conhecimento aqui sugeridas: corpo-
reidades e ambincias.
Corpografias & Cenografias
Ao buscarmos articular corpo e cidade (entendida como ambiente experimen-
tado pelo corpo), dana e arquitetura, corporeidades e ambincias, partimos
do princpio de que a cidade percebida pelo corpo como conjunto de condies
interativas e o corpo expressa a sntese dessa interao, configurando uma corpogra-
fiaurbana: uma espcie de cartografia corporal, em que no se distinguem o objeto
cartografado e sua representao, tendo em vista o carter contnuo e recproco da
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dinmica que os constitui. Esta uma ideia baseada no pressuposto de que a per-
cepo corporal das cidades se d pela ao do corpo ambientada nelas e no como
sua resultante (NO, 2004). Ela , portanto, a prpria experincia sensrio-motora11
vivida no ambiente urbano que, por sua vez, constitui a percepo de cidade que os
corpos dos seus habitantes estabilizam
singularmente como corporalidade.
As corpografias formulam-se como
estados transitrios das corporalidades
que o corpo processa, relacionando-se
com tudo o que faz parte do seu am-
biente de existncia: outros corpos, ob-
jetos, ideias, lugares, situaes, enfim, a
cidade, a qual pode ser entendida comoum conjunto de condies para essa di-
nmica ocorrer. O ambiente (urbano,
inclusive) no para o corpo meramen-
te um espao fsico, disponvel para ser
ocupado, mas um campo de processos
que, instaurado pela prpria ao inte-
rativa dos seus integrantes, produz con-
figuraes de corporalidades e qualifica-
es de ambientes: as ambincias.
As corpografias permitem tanto
compreender as configuraes de cor-
poralidade em termos de memrias
corporais resultantes da experincia de espacialidade, como compreender as confi-
guraes de ambincias urbanas em termos de memrias espacializadas dos corpos
que as experimentaram. Elas expressam o modo particular de cada corpo conduzira tessitura de sua rede de referncias informativas, a partir das quais o seu relacio-
namento com o ambiente pode instaurar novas snteses de sentido que no apenas
complexifiquem suas habilidades perceptivas e coadaptativas, mas que, simultane-
amente, requalifiquem as condies interativas das ambincias geradas nesse pro-
cesso.
A cidade concebida enquanto um campo de processos atua no somente como
um co-fator de configurao da corporalidade de seus habitantes mas, inclusive, como
Ao articularmoscorpo e cidade,
dana e arquitetura,corporeidades e
ambincias, partimos
do princpio de quea cidade percebidapelo corpo como
conjunto de condiesinterativas e o corpoexpressa a sntese
dessa interao,configurando umacorpografia urbana
11 Ns nos distanciamos
de formulaes comumente
adotadas no campo da Arqui-
tetura e do Urbanismo acer-
ca da experincia corporal de
espao e lugar, tais como no
clssico livro Espao e lugar:a perspectiva da experincia,
de Yi-Fu Tuan (1983), em que
se compreende a experincia
sensrio-motora como uma
dentre as outras diferentes
maneiras de experienciar
os lugares ttil, visual,
conceitual. Ao contrrio, ado-
tamos aqui a compreenso
da atividade sensrio-mo-
tora como sendo uma ao
perceptiva do corpo (NO,op. cit.), cuja ocorrncia
engaja todos os sentidos de
maneira integrada (DAM-
SIO, 1996) e constitui a base
dos processos de elaborao
da estrutura conceitual de
um organismo (LAKOFF;
JOHNSON, 1999), conforme
proposto por estudos
desenvolvidos nos campos
das cincias cognitivas e
neurocincia.
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12 O sentido de continuidade aqui atribudo co-
implicao entre corpo e ambiente j foi apresentado
nos artigos Corpo e ambiente: co-determinaes em
processo(BRITTO, 2008) e Processo como lgica de
composio na Dana e na Histria (BRITTO, 2009).
13 A idealizao da Plataforma (2008-2012) deu-se ao
longo do processo de preparao do evento Corpocidade:
debates em esttica urbana 1, realizado em outubro de
2008 pelo Programa de Ps-Graduao em Dana da
UFBA, como primeira iniciativa de ao conjugada entre
professores de Arquitetura e Urbanismo e Dana e Artes
Visuais das Universidades Federais da Bahia e do Rio de
Janeiro. Esta iniciativa tem como antecedente a experi-
ncia de sala de aula compartilhada na disciplina Esttica
Urbanae os projetos de pesquisa colaborativos, os quais
instauraram afinidades tanto de postura crtica sobre o
tema como de interesse por aes pblicas de articulao
entre teoria e prtica no enfrentamento do problema
da despolitizao da experincia pblica nas cidades
contemporneas.
14 Uma discusso mais aprofundada quanto aos
efeitos de pacificao do espao pblico e esterilizao
da esfera pblica nos contextos urbanos contemporneosencontra-se no artigo Notas sobre espao pblico e imagens
da cidade(JACQUES, 2009).
15 Neste campo de preocupao temtica e enfatizan-
do os efeitos dessas transformaes urbansticas sobre
as ambincias urbanas, desenvolveu-se a pesquisa A
assepsia dos ambientes pedestres no Sc. XXI entre
passividade e plasticidade do corpo em movimento
(JACQUES, op. cit.).
condio de continuidade das prprias corpografiasque contri-
bui para formular12.
justamente o interesse pelo estudo dessa dinmica de
co-implicao entre corpo e cidade, expressa na ideia de cor-
pografia, que tomamos por base para criar a Plataforma Cor-
pocidade (2008-2012): uma base de mobilizao de ideias e
pessoas, voltada para a realizao de aes pblicas como de-
bates, prticas pedaggicas, artsticas e editoriais, capazes de
problematizar as atuais condies de articulao entre corpo,
cidade, arte, urbanismo, cultura e esfera pblica13.
As transformaes urbansticas recentemente constata-
das nas cidades contemporneas intensificaram questes j
instauradas desde o incio do processo de modernizao dasgrandes capitais, no que concerne privatizao dos espaos
pblicos, tornados uniformes em sua paisagem e segrega-
trios em sua dinmica social14. Promovidas com justifica-
tivas que vo desde as j clssicas preocupaes sanitaristas
at preocupaes mais atuais relacionadas com segurana,
sustentabilidade, acessibilidade e ecologia15 e que possuem
profundas consequncias para as condies de sociabilidade e
mesmo corporalidade de seus habitantes, tais transformaes
demandam um esforo de reflexo crtica capaz de lidar com
o problema das relaes entre corpo e cidade, de modo a sub-
sidiar o necessrio redesenho de suas condies participativas
na constituio da vida pblica.
Esta espcie de cartografia corporal, as corpografias urba-
nas, em que no se distinguem o objeto cartografado e sua
representao, tendo em vista o carter contnuo e recprocoda dinmica que os constitui, pode ser vista como um discreto
contraponto, ou desvio, atual espetacularizao das cidades
contemporneas, entendida como um processo globalizado,
produtor de grandiosas cenografias urbanas.
Cabe, ento, diferenciar cartografia, coreografia e corpo-
grafia. Uma cartografia urbana j um tipo de atualizao do
projeto urbano, na medida em que descreve um mapa da cida-
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de construda e, muitas vezes, j apropriada e modificada por seus usurios. Uma
coreografia pode ser entendida tanto como um projeto de movimentao corporal
ou seja, um projeto para o corpo (ou conjunto de corpos) realizar como um pro-
jeto urbano, um desenho (ou notao), uma composio (ou roteiro). No momento
da execuo de uma coreografia, da mesma forma como ocorre com a apropriao
do espao urbano, que difere do que foi projetado, os corpos dos bailarinos tambm
atualizam o projeto e realizam, ao executarem a dana, o que poderamos chamar
de uma cartografia da coreografia.
Diferentemente desses dois modos
configurativos das relaes corpo-
espao e corpo-cidade, em que esto
claramente distintos o projeto e seu
resultado, a corpografiaexpressa umadinmica de coimplicao contnua
entre a ao do corpo e sua autocon-
figurao. Portanto, ela no se con-
funde nem com a cartografia nem
com a coreografia e tampouco seria
uma cartografia da coreografia (ou
carto-coreografia que expressa a dan-
a realizada), nem uma coreografia
da cartografia (ou coreo-cartografia,
que expressa um projeto de dana
criado a partir de uma pr-existncia
espacial).
Essas corpografias explicitam os
padres de motricidade e organiza-
o corporal resultantes das experi-ncias interativas entre as condies
biolgicas do corpo e as contextuais
do ambiente, que podem ser carto-
grafadas, mapeadas ou ilustradas,
como alguns artistas e urbanistas j o fizeram, mas que no dependem de uma re-
presentao grfica para tornarem-se visveis, pois a prpria manifestao dessas
corporalidades que corresponde s corpografias.
A experincia corporaldos praticantes
ordinrios das cidades
atualizam os projetosurbanos e o prpriourbanismo, por meioda prtica, vivncia
ou experinciacotidiana dos espaos
urbanos. A cidadedeixa de ser somente
uma cenografianomomento em queela vivida e esta
experinciainscreve-se no corpocomo padro de ao
perceptiva
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16 Uma descrio mais
especfica desse processo
pode ser encontrada no arti-
go Espetacularizao Urbana
Contempornea (JACQUES,2004).
Diferentes experincias urbanas podem ser inscritas em um mesmo corpo e
diferentes corpos podem experimentar uma mesma situao urbana, mas as cor-
pografiassero sempre nicas (como so as experincias), e suas configuraes,
sempre transitrias.
As corpografias urbanas, que seriam estas cartografias da vida urbana inscritas
no corpo do prprio habitante, revelam ou denunciam justamente o que o projeto
urbano exclui, na medida em que expressam usos e experincias desconsideradas
pelo projeto tradicional. Tais corpografias explicitam as microprticas cotidianas
do espao vivido, as apropriaes diversas que qualificam o espao urbano, for-
mulando, assim, ambincias. J as cenografias urbanas, por seu turno, tanto expli-
citam como resultam do hoje hegemnico processo de espetacularizao urbana16
e esto diretamente relacionadas a uma diminuio da experincia corporal das
cidades enquanto prtica cotidiana, esttica e poltica da contemporaneidade.Os novos espaos pblicos contemporneos, cada vez mais privatizados e or-
ganizados segundo a lgica do consumo, so restritivos sua apropriao cotidia-
na pelos habitantes, promovendo a reduo da ao urbana, o condicionamento
da experincia corporal pela espetacularizao das cidades que se tornam, assim,
simples cenrios ou espaos desencarnados. O estudo das relaes entre corpo e
cidade, entre corporalidade e ambincia, pode mostrar-nos alguns desvios desta
lgica espetacular que concebe a cidade contempornea como uma simples ima-
gem de marca ou logotipo, a que chamamos cenografias urbanas. So desvios que
representam alternativas possveis ao espetculo urbano por meio da transforma-
o das cenografias urbanaspela apropriao, ou seja, pelo uso e pela profanao
(AGAMBEN, 2007) da cidade, seus espaos e edificaes. Trata-se de outra forma
de apreenso urbana e, consequentemente, de reflexo crtica e de interveno na
cidade contempornea.
A cidade, ao ser praticada, deixa de ser cenrio e ganha corpo pelo uso coti-
diano, tornando-se outrocorpo: uma alteridade com a qual o corpo do cidado serelaciona sob a mediao dos projetos e planejamentos urbanos que disciplinam
essa dinmica relacional com regras segregatrias, baseadas em princpios de as-
sepsia, acessibilidade, segurana e estetizao, e que apenas contribuem para a
manuteno da dissociao entre corpo e cidade.
A experincia corporal, sensrio-motora, dos praticantes ordinrios das cida-
des, segundo Michel de Certeau (1994), ou os homens lentos, como diria Milton
Santos (1996), atualizam os projetos urbanos e o prprio urbanismo, por meio
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da prtica, vivncia ou experincia cotidiana dos espaos urbanos. Estas prticas
cotidianas contrapem-se imobilidade sugerida pela lgica do espetculo, da
imagem ou do logotipo em que se baseiam os projetos urbanos contemporneos.
Os urbanistas indicam usos possveis para o espao projetado, mas so aqueles
que o experimentam no cotidiano que os atualizam. So as apropriaes e impro-
visaes feitas nos espaos que instauram dinmicas que legitimam ou no aquilo
que foi projetado, isto , so essas experincias do espao que os reinventam. Para
os praticantes ordinrios, a cidade deixa de ser somente uma cenografia no mo-
mento em que ela vivida e esta experincia, pela constncia de prtica, inscreve-
se no corpo como padro de ao perceptiva. Dessa forma, a cidade sobrevive e
resiste espetacularizao no prprio corpo de quem a pratica, nas corpografias
resultantes de sua experimentao, uma vez que essas corporalidades, por sua
simples presena e existncia, denunciam a domesticao dos espaos e sua con-verso puramente cenogrfica17.
As relaes perceptivas que se estabelecem com a cidade, as quais derivam
das experincias sensrio-motoras dos espaos (espetaculares ou no) em suas
diferentes temporalidades, formam, assim, um desvio hipertrofia da visualidade
promovida pela cidade-logotipo ou pela cidade-outdoor, composta de cenrios es-
petacularizados, desencarnados. Do ponto de vista do urbanismo, esta experincia
da cidade, que se instaura no corpo, pode ser pensada como uma forma molecu-
lar18de resistncia ao processo molar de espetacularizao urbana contempornea.
O processo de espetacularizao est, portanto, diretamente relacionado do-
mesticao da experincia urbana corporal, sensvel e perceptiva, na contempora-
neidade. No urbanismo contemporneo, as relaes de coimplicao entre corpo
e cidade so pouco exploradas ou at mesmo desprezadas. Tal distncia, ou desco-
lamento, entre a prtica profissional urbanstica e a prpria experincia da cidade,
tem se mostrado desastrosa para a constituio do espao urbano e sua esfera
pblica. O estudo das corpografiasurbanas pode contribuir para a compreensodesse processo e auxiliar no questionamento crtico dos atuais projetos urbanos
cenogrficos contemporneos, que vm sendo realizados no mundo inteiro, se-
gundo uma mesma estratgia privatizadora, homogeneizadora e pacificadora dos
espaos pblicos.
Ao valorizar a experincia corporal da cidade, este estudo pode ajudar os urba-
nistas a apreender corporalmente a cidade, tomando a dinmica interativa entre
corpo e cidade como parmetro de articulao entre polticas pblicas e territrios
17 As errncias, entendi-
das aqui enquanto estmulo
experincia corporal
da cidade, encontram-se
apresentadas e discutidas
no captulo Elogio aos
Errantes (JACQUES, 2006) e
desenvolvidas no livro hom-
nimo (JACQUES, 2012).
18 Usamos aqui a distino
entre molar e molecular
proposta por Flix Guattari
e Suely Rolnik (1986) em
Micropoltica, Cartografias do
Desejo.
8/12/2019 Berenstein Corpo e Cidade
14/14
155rev. ufmg, belo horizonte, v.19, n.1 e 2, p.142-155, jan./dez. 2012
urbanos, o que efetivamente poderia conduzir a uma reflexo e a uma prtica
mais incorporada do urbanismo. Valorizar os processos de incorporao da ci-
dade no corpo e do corpo na cidade e a experincia corporal da cidade como
possibilidade de microrresistncias ou desvios da lgica espetacular parece ser
um importante passo para se instaurar um debate que contribua para atualizar os
modos de formulao da cidade, cultura e arte contemporneas, pelo redesenho
de suas condies participativas na elaborao do espao pblico contemporneo.