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H 5 c offfl ^ Benedict Anderson NAÇÃO E CONSCIÊNCIA NACIONAL Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira

BENEDICT ANDERSON - NAÇÃO E CONSCIÊNCIA NACIONAL

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Page 1: BENEDICT ANDERSON - NAÇÃO E CONSCIÊNCIA NACIONAL

H 5 c offfl ^ Benedict Anderson

NAÇÃOE CONSCIÊNCIA

NACIONALTradução de

Lólio Lourenço de Oliveira

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He regards it as his task to brush history against the grain*

Walter Benjamin, fí/uminations

Thus from a Mixture of ali kinds began,That Hefrogeneous Thing, An Englishman:In eager Rapes, and furious Lust begot,Betwixt a Painted Britton and a Scot.Whose gend'ring Offspring quickly learnt to bow,And yoke their Heifers to the Roman Plough:From whence a Mongrel half-bred Race there carne, •With neither Name nor Nation, Speech or Fame.In whose hot Veins new Mixtures quickly ran,!nfus'd betwixt a Saxon and a Dane.While their Rank Daughters, to their Parents just,Rece'iv'd ali Nations with Promiscuous Lust.This Nauseous Brood directly did contaínThe well-extracted Blood of Engfíshmen...*"

Excerto de Daniel Defoe, The True-Bom Englishman

SUMÁRIO

l Encara como tarefa sua contrariar o sentido da história.' Assim da uma mistura de todos os tipos começou

£ssa coisa heterogénea, um inglês;Gerado em estupros ardentes e arrebatada luxúriaEntre um bretso sardento e um escocês'.

' Cuja prole procriadora logo aprendeu a curvar-se,E jungiu suas novilhas ao arado romano:

.E dal uma raça mestiça impura se originou,Sem nome nem nação, sem fala ou fama.Em cujas vaias ardentes novas mesclas logo se fundiram.Infundidas entre um saxão e um dinamarquês.Enquanto suas filhas nobres, exatamente como os pais.Receberam todas as nações com promíscua luxúria.Essa raça repulsiva continha do fato diretamenteO sangue de boa extração dos ingleses...

1. Introdução •2. Raízes culturais3. As origens da consciência nacional',,4. Antigos impérios, novas nações5. Antigas línguas, novos modelos6. Nacionalismo oficial e imperialismo7. A última onda _____________8. Patriotismo e racismo9. O anjo da históriaBibliografia __índice alfabético

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lINTRODUÇÃO

Talvez não se tenha ainda percebido que está ocor-J rendo uma transformação fundamental na história do

marxismo e dos movimentos marxistas. Seus sinais maisperceptíveis são as recentes guerras entre o Vietnã, o Cam-boja e a China. Essas guerras são de importância históri-ca mundial, por serem as primeiras a ocorrer entre regi-mes cuja independência e credenciais revolucionárias são

( inegáveis, e porque nenhum dos beligerantes procurou, se-não perfunctoriamente, justificar o derramamento de san-gue em termos de uma perspectiva teórica marxista aceitá-vel. Embora fosse ainda perfeitamente possível interpre-tar os conflitos fronteiriços de 1969 entre a China e aUnião Soviética, as intervenções militares soviéticas naAlemanha (1953), na Hungria (1956), na Checoslováquia(1968) e no Afeganistão (1980), em termos de — confor-me o gosto — "imperialismo social", "defesa do socialis-

í mo", etc., ninguém, penso eu, acreditará seriamente queesse tipo de vocabulário tenha muito a ver com o que ocor-reu na Indochina.

Se a invasão e a ocupação vietnamitas do Camboja,em dezembro de 1978 e janeiro de 1979, representaram aprimeira guerra convencional em grande escala empreen-

t dida por um regime marxista revolucionário contra ou-

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iro. ' o ataque da China ao Vietnã, em fevereiro, confir-as;/ rapidamente o precedente. Apenas os mais confiantes-•leriam apostar que, nos anos finais deste século, qual-

quer deflagração importante de hostilidades entre Estadosencontrará a União Soviética e a China Popular — paranão falar nos Estados socialistas menores — apoiando oucombatendo do mesmo lado. Quem pode estar seguro deque a lugoslávia e a Albânia não irão entrar em choque al-gum dia? Os variados grupos que pedem a retirada do Exér-cito Vermelho de seus acampamentos na Europa Orientaldevem recordar o quanto a presença dominante dessas for-ças tem evitado, desde 1945, conflitos armados entre os re-gimes marxistas da região.

Essas considerações são úteis para salientar o fato deque, desde a Segunda Grande Guerra, cada uma das revolu-ções vitoriosas tem-se definido em termos nacionais — a Re-pública Popular da China, a República Socialista do Vietnã,e assim por diante — e, ao f aze-Io, basearam-se firmementeem um espaço territorial e social herdado do passado pré-re-voliicionário. Ao contrário, o f ato de a União Soviética com-partilhar com o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda doNorte o mérito incomum de não incluir a nacionalidade emsua denominação indica que ela tanto é a legatária dos Esta-rdos dinásticos pré-nacionais do século XIX, quanto a precur-sora de uma ordem internacionalista do século XXI. 2

Eric Hobsbawm está perfeitamente correto ao afirmarque "os movimentos e Estados marxistas tenderam a tor-

1 Exprimimo-nos dessa maneira apenas para enfatizar a escala e o estilo da luta, e nãocomo censura. Para evitar possíveis mal-entendidos, é preciso dizer que a invasãode dezembro de 1978 originou-se de choques armados, possivelmente desde 1971,entre guerrilheiros dos dois movimentos revolucionários. Depois de abri! de 1977, ata-ques fronteiriços, iniciados pelos cambojanos, mas logo imitados pelos vietnamitas,aumentaram em grandeza e alcance, culminando na incursão vietnamita mais impor-tante de dezembro de 1977, Nenhum desses ataques, porém, visava à derrubada doregime do inimigo, ou ã ocupação de granda extensão de território, bem como o nú-mero de soldados envolvidos n5o ers comparável ao que se deslocou om dezembrode 1978. A controvérsia a respeito das causas da guerra 6 investigada ponderadarnen-te em Stepnen P. Hader, "The Kampuchean-Vietnamese Confliet", in David W. P. El-liott, org., The Ttârd Indochina Confíict, p. 21-67; Anthony Batnett, "Inter-Commu-nist Conflicts and Vietnam", Bvllstin of Concerned Asían Scbolars, 11:4 (outubro-de-zembro de 1979), p, 2-9; e Laura Summers, "In Matters of War and Sccialism An-thony Barnett would Shsme and Honour Kampuchsa Too Much", ibid., p. 10-8.

3 Se alguém duvidar de que o Reino Unido merece asso tipo de paridade com a URSS,devaié Indagar-se que nacionalidade sã denota por oste nome: grâo-breto-irlandês?

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nar-se nacionais não apenas na forma, mas também na subs-tância, isto é, nacionalistas. Nada indica que essa tendên-cia não persistirá". 3 E essa tendência não se limita aomundo, socialista. Quase todos, os anos, as Nações Unidasadmitem novos membros. E muitas das "velhas nações",antes consideradas plenamente Consolidadas, vêem-se amea-çadas por "sub"-nacionalismoâ no interior de suas frontei-ras — nacipnalismos que, naturalmente, sonham com li-vrar-se algum dia dessa condição de "sub". A realidade émuito clara: o "fim dos tempos do nacionalismo", há tan-to tempo profetizado, não está à vista, nem de longe. Defato, a nation-ness * constitui o valor mais universalmentelegítimo na vida política de nossa era.

Porém, se os fatos são evidentes, sua explicação conti-nua sendo .tema de uma disputa há muito existente. Nação,nacionalidade, nacionalismo — todos têm-se demonstradodifíceis de definir, quanto mais de analisar. Em contraposi-ção à enorme influência que o nacionalismo tem exercidono mundo moderno, é notoriamente escassa a teoria plausí-vel a respeito de.le. Hugh Seton-Watson, autor do indubita-velmente melhor e mais abrangente texto em língua ingle-sa a respeito do nacionalismo, e herdeiro de vasta tradiçãoda historiografia e da ciência social liberais, observa pesaro-samente: "Desse modo, sou levado à conclusão de que nãose pode estabelecer nenhuma 'definição científica1 de nação;contudo, o fenómeno tem existido e continua a existir". 4

Tom Nairn, autor da obra pioneira The Break-up of Bri-tam, e herdeiro da não menos vasta tradição da historiogra-fia e da ciência social marxistas, observa francamente: "Ateoria do nacionalismo representa o grande fracasso histó-rico do marxismo", s Até mesmo essa confissão, porém,é algo enganadora, na medida em que se possa considerar

3 Eric Hobsbawm, "Some Rofloctions on 'The Braak-up o.f Britain' ". tJeitr Lelt Review*105 (setambro-outubro de 1977). p, 13.

" O autor emprega diversas vezes a palavra nation-ness, por ele cunhada, em lugar de' natlonalíly !cf. p, 12). Impossível criar um correspondente português; por isso, manti-

ve em Inglês todas as vezes (MT).4 Ver seu Nations and States, p. 5. Grifo nosso.5 Ver seu "The Modern Jsnus", New Left Review, 94 Inovembro-dszembro do 1975),

p. 3. Este ensaio foi incluído sem alterações como capitulo 9 do The Break-up of Brí-tsin (p. 329-63I.

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que implica no resultado lastimável de uma busca prolonga-da e deliberada de clareza teórica. Seria mais exato dizerque o nacionalismo tem se revelado uma incómoda anoma-lia para a teoria marxista e, exatarnente por essa razão, temsido amplamente evitado, mais do que enfrentado. Comoexplicar de outro modo a falha do próprio Marx para ex-plicar o pronome crucial em sua memorável formulaçãode 1848: "O proletariado de cada país deve, naturalmente,antes de mais nada, ajustar contas com sua própria burgue-sia"? 6 Como justificar doutro modo o emprego, por maisde um século, do conceito de "burguesia nacional", semqualquer tentativa séria de justificar teoricamente a impor-tância do adjetivo? Por que esta segmentação da burguesia— uma classe mundial, visto que se define em termos dasrelações de produção — é teoricamente importante?

O que este livro pretende é oferecer algumas sugestõesexploratórias para uma ínterpretaçãp mais aceitável da "a-nomalia" do nacionalismo. Minha impressão é que, quan-to a esse tema, tanto a teoria marxista quanto a liberal têm-se debilitado em um tardio esforço ptolomaico para "sal-var o fenómeno"; e que se requer, com urgência, uma reo-rientação de perspectiva num espírito por assim dizer co-pernicano. Parto de que a nacionalidade, ou, como talvezse prefira dizer, devido às múltiplas significações dessa pa-lavra, naíion-ness, bem como o nacionalismo, são artefa-tos culturais de um tipo peculiar. Para compreendê-los ade-quadamente é preciso que consideremos com cuidado co-mo se tornaram entidades históricas, de que modo seus sig-nificados se alteraram no correr do tempo, e por que, ho-je em dia, inspiram uma legitimidade emocional tão profun-da. Tentarei demonstrar que a criação desses artefatos, porvolta dos fins do século XVIII,7 foi a destilação espontâ-

6Karl Marx e Friedrich Engels, The Comrminist Manifesto, in Setscted Works, l, p. 46.Grifo nosso. Em qualquer exegese teórica, a palavra "naturalmente" seria um sina)de alerta para o leitor entusiasmado,

' Como observa Aíra Kemilãlnen, a dupla de "pais" do estudo académico sobre o nacio-nalismo, Hans Kohn e Carlaton Haves, argumentava persuasivamente em favor des-sa datação, Creio que suas conclusões não foram seriamente contestadas, a não serpor ideólogos nacionalistas em determinados países. Kemilâinen observa também quea palavra "nacionalismo" sá passou a ser amplamente empregada em fins do séculoXIX. Ela não aparece, por exemplo, em muitos dicionários correntes do século XIX.Quando Adam Srnith invoca a riqueza das "nações", não se refere com essa palavrasenão a "sociedades" ou "Estados". Aira Kemilãinen, Nationalism, p. 10, 33 e 48-9-

nea de um "cruzamento" complexo de forcas históricas;mas que, uma vez criados, tornaram-se "modulares", pas-síveis de serem transplantados, com graus diversos de cons-ciência e a grande variedade de terrenos sociais, para se in-corporarem à variedade igualmente grande de constelaçõespolíticas e ideológicas. Procurarei também demonstrar porque esses artefatos culturais peculiares têm suscitado afetostão profundos.

Conceitos e definições

Antes de tratarmos das questões acima propostas, pa-rece aconselhável considerar sumariamente o conceito de"nação" e oferecer uma definição viável. Os teóricos donacionalismo têm, muitas vezes, ficado perplexos, para nãodizer irritados, com estes três paradoxos: 1. A modernida-de objetiva das nações aos olhos do historiador vs. sua an-tiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas. 2. A uni-versalidade formal da nacionalidade como conceito socio-cultural — no mundo moderno, todo mundo pode e deve"ter", e "terá" uma nacionalidade, tanto quanto terá umsexo — vs. a particularidade irremediável de suas manifes-tações concretas, tal que, por definição, a nacionalidade"grega" é sui generis. 3. O poder "político" dos naciona-lismos vs. sua pobreza, e até mesmo incoerência, filosófi-ca. Em outras palavras, diversamente da maioria dos ou-tros "ismos", o nacionalismo jamais produziu grandes pen-sadores próprios:-nem Hobbes, nem Tocquevilles, nemMarxs, nem Webers. Facilmente, esse "vazio" desperta, en-tre intelectuais cosmopolitas e poliglotas, um certo ar de su-perioridade. Do mesmo modo que Gertrude Stein diantede Oakland, poder-se-ia sem dúvida concluir rapidamenteque "lá não existe lá nenhum". É típico que até mesmoum estudioso tão solidário com o nacionalismo quanto-TomNairn tenha no entanto podido escrever que: "o 'naciona-lismo' é a patologia da moderna história do desenvolvimen-to, tão inevitável quanto a 'neurose' no indivíduo, trazen-do consigo muito da mesma ambiguidade essencial, uma ca-pacidade implícita semelhante para degenerar em demência,

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nos dilemas do desamparo imposto à maior par-;í do mundo (o equivalente do infantilismo, para as socie-dades), e em grande medida incurável". 8

Parte da dificuldade é que as pessoas tendem incons-cientemente a hipostasiar a existência do Nacionalismo-com-N-grande — como se poderia fazer com Idade-com-I-maiúsculo — e, a seguir, a classificá-"lo" como uma ideo-logia. (Observe-se que, se todo mundo tem uma idade, aIdade não passa de uma expressão analítica.) Creio que ascoisas ficariam mais fáceis, se ele fosse tratado como asso-ciado a "parentesco" e "religião", mais do que com "libe-ralismo" ou "fascismo".

Dentro de um espírito antropológico, proponho, en-tão, a seguinte definição para nação: ela é uma comunida-de política imaginada — e imaginada como implicitamen-te limitada e soberana.

Ela é imaginada porque nem mesmo os membros dasmenores nações jamais conhecerão a maioria de seus com-patriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falardeles, embora na mente de cada um esteja viva a imagemde sua comunhão. 9 Renan referiu-se a esse ato de imagi-nar, à sua maneira suavemente sarcástica, quando escreveuque "Or l'essence d'une nation est que tous lês individusaient beaucoup de choses en commun, et aussi que tousaient oublié bien dês choses". 10 Algo ferozmente; Geílnerinsiste de maneira semelhante quando estabelece que "o na-cionalismo não é o despertar das nações para a autocons-ciência: ele inventa nações onde elas não existem". u O in-conveniente dessa formulação, contudo, é que Geílner es-

8 The Bre&k-up aí Britam, p. 3S9.8 Cf. Seton-Watson, Nations antí States, p. 5: "O qua posso dizer é que uma naçSo

existe guando um número significativo de pessoas da uma comunidade consideraque constituem uma nação, ou se comportam como se constituíssem uma nação".Podemos traduzir "considera" por "Imagina".

10 Ernest Renan, "Qu'éít-ce qu'une nation?" in Oeuvres Completes, \. p. 892. Acres-centa ele: "tout citoyen [rançais doit avoir oublié Ia SBint-Barthélemy, lês massacresdu Midi au XVIils siècle. II n'y a pás en France dix familles qui puissent fournlr Ia preu-ve d'une origine franqua..." (no texto: "... a essência de uma nação é que os indiví-duos tenham muitas coisas em comum e, também, que todos tenham esquecidomuitas coisas" — na nora: "todo cidadão francês deve ter esquecido a noite do S3oBartolomeu, os massacres do Sul, no século XVIII. Nio na dez famílias na Francaqua possam apresentar provas de origem franca...")

11 Emest Gollnor, Thought and Change, p. 169. Grifo nosso.

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tá tão ansioso em demonstrar que o nacionalismo se dissi-mula sob falsas aparências, que assimila "invenção" a "con-trafação" e "falsidade", ao invés de assimilá-la a "imagi-nação" e "criação". Desse modo, insinua que existem co-munidades "verdadeiras" que se podem sobrepor vantajo-samente às nações. De fato, todas as comunidades maioresdo que as primitivas aldeias de contato face a face (e, tal-vez, até mesmo estas) são imaginadas. As comunidadesnão devem ser distinguidas por sua falsidade/autenticida-de, mas pelo estilo em que são imaginadas. Os aldeões ja-vaneses sempre souberam que estavam ligados a pessoasque jamais haviam visto, mas tais vínculos eram outroraimaginados de maneira particuiarista — como malhas inde-finidamente extensas de parentesco e de dependência. Atémuito recentemente, a língua javanesa não possuía uma pa-lavra para significar a abstração "sociedade". Hoje pode-mos pensar na aristocracia francesa do ancien regime co-mo uma classe; mas certamente ela só foi imaginada dessemodo muito tardiamente. 12 À pergunta "Quem é o Con-de X?", a resposta normal teria sido, não "um membroda aristocracia", mas "o senhor de X", "o tio da Barone-sa de Y", ou "um vassalo do Duque de Z".

A nação é imaginada como limitada, porque até mes-mo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres hu-manos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, paraalém das quais encontram-se outras nações. Nenhuma na-ção se imagina coextensiva com a humanidade. Nem os na-cionalistas mais messiânicos sonham com um dia em quetodos os membros da raça humana se juntem a sua nação,do mesmo modo como foi possível que em certas épocasos cristãos, digamos, sonhassem com um planeta inteira-mente cristão.

É imaginada como soberana, porque o conceito nas-ceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução esta-vam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárqui-co, divinamente instituído. Atingindo a maturidade numa

12 Hobsbawm, por exemplo, "fixa" isso ao dizer que, em 1789, ela montava a 400.000pessoas, numa população de 23.000.000 (ver seu The Age of Rcvolution, p. 78).Mas essa descrição estatística da nobreza poderia ser pensada ao tampo do ancien régimoj

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etapa da história humana em que até mesmo os mais devo-tos adeptos de qualquer das religiões universais se defronta-vam inevitavelmente com o pluralismo vivo de tais religiões,e com o alomorfismo entre os reclamos ontológicos de ca-da fé e o território ocupado por ela, as nações sonhamem ser livres e, se sob as ordens de Deus, que seja direta-mente. O penhor e o símbolo dessa liberdade é o Estado so-berano.

Finalmente, a nação é imaginada como comunidadeporque, sem considerar a desigualdade e expioração queatualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempreconcebida como um companheirismo profundo e horizon-tal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possí-vel, no correr dos últimos dois séculos, que tantos milhõesde pessoas, não só matem, mas morram voluntariamentepor imaginações tão limitadas.

Essas mortes lançam-nos abruptamente cara a caracom o problema fundamental proposto pelo nacionalismo:o que faz com que as minguadas imaginações da históriarecente (pouco mais de dois séculos) dêem origem a sacrifí-cios tão colossais? Creio que as origens de uma resposta en-contram-se nas raízes culturais do nacionalismo.

RAÍZES CULTURAIS

Não há símbolo mais impressionante da moderna cultu-ra do nacionalismo do que os cenotáfios e os túmulos de Sol-dados Desconhecidos. A reverência pública ritual outorgadaa tais monumentos, precisamente porque estão deliberada-mente vazios, ou ninguém sabe quem jaz dentro deles, nãoencontra precedentes em épocas passadas. ' Para que se sin-ta a força dessa inovação, basta imaginar a reação geral a al-gum intrometido que "descobrisse" o nome do Soldado Des-conhecido, ou insistisse em introduzir dentro do cenotáfio al-guns ossos de verdade. Seria um sacrilégio de estranha espé-cie, contemporânea! Por mais que esses túmulos estejam va-zios de quaisquer restos mortais identificáveis, ou almas imor-tais, eles estão, porém, saturados de fantasmagóricas imagina-ções nacionais.2 (Razão por que nações as mais diversas pôs-

1 Os antigos gregos tinham cenotáfios, porém para indivíduos determinados, conheci-dos, cujos corpos, por uma ou outra razão, não pudessem ser recuperados para umenterro normal. Devo essa informação a minha colega bizantinísta, Judith Herrin.

2 Considerem-se, por exemplo, estes notáveis tropos: 1. "A longa linha cinzenta jamaisnos -faltou. Se vocês fossem fazê-lo, um milhão de lantesmas em verda-oliva. em ca-qui, em azul e em cinzento se ergueriam de sob suas cruzes brancas, bradando estaspalavras mágicas: dever, honra, pátria." í, "Minha avaliação Ido soldado norte-ame-ricano] formou-se no campo do batalha, muitos anos atrás, a jamais se alterou. Eu ovia então, como o vejo agora, como uma das mais nobres figures do mundo; não sãcomo e que possui es características militares mais perfeitas, mas também corno dasmais Imaculadas [sicl... Ele pertence á história como aquele que oferece um dos maio-res exemplos de patriotismo bem-sucedido Isicl. Ele pertence à posteridade como omentor das futuras gerações nos princípios da independência e da liberdade. Ele pgr-tance ao presente, a nós, por suas virtudes e por r MJ g s realizações." Douglas MacAr-thur, "Duty, Honour. Country", discurso perante' ^Academia Militar dos EUA, WestPoint, 12 da maio de 1962, em seu A Soldier Sp. is, p. 354 a 357.

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suem esse tipo de túmulos, sem sentir qualquer necessidadede especificar a nacionalidade de seus ocupantes ausentes.Que mais poderiam eles ser senão alemães, ou norté-america-nos, ou argentinos,... ?)

O significado cultural de tais monumentos torna-seainda mais claro, se se procura imaginar, digamos, um Tú-mulo do Marxista Desconhecido, ou um cenotáfio para osLiberais mortos. Não se poderia evitar um sentimento deabsurdo. Â razão disso é que nem o marxismo, nem o libe-ralismo, se preocupam muito com a morte e corn a imorta-lidade. Se a imaginação nacionalista se preocupa tanto, is-to indica forte afinidade com as imaginações religiosas. Co-mo essa afinidade não é absolutamente fortuita, será conve-niente iniciar pela morte o exame das raízes culturais do na-cionalismo, por ser ela a última de toda uma escala de fata-lidades.

Se habitualmente parece arbitrária a maneira comoum homem morre, sua mortalidade é inevitável. A vidahumana é cheia desse tipo de associação entre necessida-de e acaso. Estamos todos cientes da contingência e inevi-tabilidade de nossa herança genética particular, de nossosexo, da época em que vivemos, de nosso potencial físi-co, de nossa língua maternaj e assim por diante. O gran-de mérito das visões de mundo das religiões tradicionais(que, naturalmente, deve distinguir-se de seu papel na le-gitimação de sistemas específicos de dominação e de ex-ploração) tem sido sua preocupação com o homem-no-cosmos, o homem como ser específico, e a contingênciada vida. A extraordinária sobrevivência, por milhares deanos, do budismo, do cristianismo ou do islamismo, emdezenas de formações sociais diversas, atesta sua respos-ta imaginativa à esmagadora carga de sofrimento huma-no — doença, mutilação, pesar, idade e morte. Por quenasci cego? Por que meu melhor amigo ficou paralítico?Por que minha filha é retardada? As religiões procuramexplicar. A grande fraqueza de todos os estilos evolucio-nários/progressistas de pensamento, sem exclusão domarxismo, é que tais perguntas são respondidas com um

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silêncio intolerante. 3 Ao mesmo tempo, e 6e diferentesmodos, o pensamento religioso reage também aos obscu-ros sinais de imortalidade, em geral transformando a fata-lidade em continuidade (karma, pecado original, etc,).Desse modo, ele se ocupa dos vínculos entre os mortos eos nascituros, o mistério da reencarnação. Quem vivênciaa concepção e o nascimento do próprio filho sem ter a in--definida sensação de uma mistura de conexão, casualida-de e fatalidade em uma linguagem de "continuidade"?(Também aqui a desvantagem do pensamento evolucioná-rio/progressista é uma hostilidade quase heraclitiana aqualquer ideia de continuidade.)

Trago à baila essas observações talvez simplórias,primordialmente porque, na Europa ocidental, o séculoXVIII assinala não apenas o raiar da era do nacionalis-mo, mas também o crepúsculo das modalidades religiosasde pensamento. O século do Iluminismo, da secularidaderacionalista, trouxe consigo suas peculiares trevas moder-nas. Com o refluxo da fé religiosa, não desapareceu o só-'frimento que a fé em parte mitigava. Desintegração do pa-raíso: nada torna a fatalidade mais arbitrária. Absurdoda salvação: nada torna mais necessário um outro estilode continuidade. O que se.demandava, então, era umatransformação secular da fatalidade em continuidade, dacontingência em significado. Como veremos, poucas coi-sas se adaptavam (se adaptam) melhor a essa finalidadedo que uma ideia de nação. Se é amplamente reconheci-do que os Estados-nação são "novos" e "históricos",

3 Cf. Régis Debray, "Marxism and the National Question", Wew Lett Ftevien, 105 (se-tombro-outubro de 1977), p, 29. No correr de uma pesquisa de campo na Indonésia,na década de 1960, chocou-me a deliberada recusa do muitos muçulmanos o m acoi-tar as ideias de Oarwin. De início, interpretei essa recusa como obscurantismo. Pos-teriormente, vim a compreender que 03 trata de unia louvável tentativa de ser coe-rente: simplesmente a doutrina da evolução ara incompatível com os ensinamentosdo Islã, Que devemos nos fazer com um materialismo cientifico que formalmente ad-mita as descobertas da física sobre a matéria e, contudo, esforça-se tão pouco pá*rã ligar essas descobertas à luta de classes, a revolução, ou ao que quer que seja?O abismo entre os pró tons e o proletariado não ocultaria uma nfio admitida concep-ção metafísica do homem? Veja porém os interessantes textos de Sebastiano Ttmpa-naro, On Materielisiw and The Freudian Sfíp: e a ponderada réplica de Ravmond Wil-liams, "Timpanaro's Materialíst Chatlenge", A/etv Lett flewsw, 109 Imaio-junho de

1978), p. 3-17.

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as nações a que eles dão expressão política assomam deum passado imemorial, 4 e, ainda mais importante, desli-zam para um futuro ilimitado. A mágica do nacionalis-mo consiste em transformar o acaso em destino. Pode-mos dizer, com Debray, "Sim, é inteiramente acidentalque eu tenha nascido francês; mas, afinal de contas, aFrança é eterna".

Não é preciso dizer que não estou declarando que oaparecimento do nacionalismo em fins do século XVIIIfoi "produzido" pela erosão das certezas religiosas, ouque essa erosão não exija, ela mesma, uma explicação com-plexa. Como também não estou sugerindo que de algu-ma forma o nacionalismo "suplanta" historicamente a re-ligião. O que proponho é que o nacionalismo deve sercompreendido pondo-o lado a lado, não com ideologiaspolíticas abraçadas conscientemente, mas com os sistemasculturais amplos que o precederam, a partir dos quais— bem como contra os quais — passaram a existir.

Para nossos objetivos, os dois sistemas culturais rele-vantes são a comunidade religiosa e o reino dinástico.Pois ambos, em seu apogeu, eram aceitos como verdadei-ros quadros de referência, tanto quanto é, hoje em dia,a nacionalidade. É essencial, por isso, considerar o quedava a esses sistemas culturais sua manifesta plausibilida-de e, ao mesmo tempo, salientar determinados elementos-chave de sua decomposição.

4 O falecido presidente Sukarno sempre falou com inteira sinceridade sobre os trezen-tas e cinquenta anos de colonialismo suportados por sua "Indonésia", embora o pró-prio conceito de "Indonésia" seja ume invenção do século XX, e a maior parte da In*donásia de hoje tenha sido conquistada pelos holandeses entre 1850 e 1910. Entreos heróis nacionais da indonésia contemporânea tem primazia o príncipe javanês doinício do século XIX, Oíponegoro, muito embora as próprias memórias desse prfnci-pe mostrem que ele, antes, pretendia "conquistar InSo ItbertarlJ Java". do que ex-pulsar "os holandeses". De fato, é evidente que ele não tinha um conceito de "ho-landeses" como uma coletividade. Var Harry J. Bonda e John A. Larkin, orgs., TheWbfltiofSoulheastAsia, p, 158: e Ann Kumar, "Dtponegoro 117787-1855)", Indoné-sia, 13 (abril de 1972), p. 103. Grifo nosso. Analogamente, K em ai Ataturk deu aum de seus bancos estatais o nome de Eti Banka (Banco Hitita) s a outro. Banco Su-meriano (Seton-Watson, Natlons and States, p. 259). Esses bancos são prósperoshoje em dia e não há razão pare duvidar-se de que muitos turcos, possivelmente semexcluir o próprio Kemal, viarn e vêem, seriamente, nos hititas e nos sumerianos,seus ancestrais turcos. Antes de começar a rir, devemos lembrar de Artur e Boadi-céia. e refletir sobre o êxito comercial das mitografias de Tolkien.

A comunidade religiosa

Poucas coisas causam maior impressão do que a enor-me extensão territorial da Ummah Islam, do Marrocos aoArquipélago Sulu; da cristandade, do Paraguai ao Japão; edo mundo budista, do Sri Lanka à península coreana. Asgrandes culturas, sagradas (e, para nossos fins, é permissívelque incluamos o "confucionismo") incorporaram concep-ções de comunidades imensas. Porém, a cristandade, a Um-mah Islam, e até mesmo o Império do Centro — o qual, em-bora hoje pensemos nele como chinês, não se imaginava co-mo chinês, mas sim como central — eram imagináveis emgrande parte mediante uma linguagem sagrada e um texto es-crito. Basta tomar o exemplo do Islam: se maguindanaos eberberes se encontram em Meca, embora nada conheçamda língua um do outro e sejam incapazes de se comunicaroralmente, compreendem no entanto os ideogramas uns dosoutros, porque os textos sagrados que compartilham só exis-tem em árabe clássico. Nesse sentido, o árabe escrito funcio-nou como os caracteres chineses para criar uma comunida-de a partir dos signos, e não a partir dos sons. (Assim, ho-je em dia, a linguagem matemática continua uma velha tra-dição. Os romenos não têm a menor ideia de como o sinal" + '' é chamado pelos tai, e vice-versa, mas uns e outroscompreendem o símbolo.) Todas as grandes comunidades clás-sicas concebiám-se como cosmicamente centrais, medianteuma linguagem sagrada vinculada a uma ordem de poder su-praterrestre. Conseq-iientemente, o alcance do latim, do páli,do árabe, ou do chinês escritos era, teoricamente, ilimitado.(Na verdade, quanto mais morta a lingua escrita — quantomais distante estivesse da fala — melhor: em princípio, to-do mundo tem acesso a um mundo abstrato de signos.)

Contudo, tais comunidades clássicas vinculadas porlínguas sagradas tinham caráter distinto das comunidadesimaginadas das nações modernas. Diferença essencial eraa segurança das antigas comunidades quanto à sacralida-de singular de suas línguas e, daí, suas ideias a respeitoda admissão de novos membros. Os mandarins chineses en-caravam com aprovação os bárbaros que penosamenteaprendiam a desenhar os ideogramas do Império do Centro.

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Tais bárbaros já estavam a meio caminho da absorção com-pleta. 5 Ser meio-civilizado era muitíssimo melhor do queser 'bárbaro. Essa atitude não era por certo peculiar aoschineses, nem limitada à antiguidade. Observem, por exem-plo, a seguinte "política relativa aos bárbaros" formula-da em princípios do século XIX pelo liberal colombianoPedro Fermín de Vargas:

Para expandir nossa agricultura seria necessário hispanizarnossos índios. Sua preguiça, sua estupidez e sua indiferen-ça em relação aos empreendimentos humanos normais le-vam a pensar que provêm de uma raça degenerada quese deteriora à medida que se distancia de suas origens...seria muito desejável que os índios fossem extintos, pelamiscigenação com os brancos, sendo declarados livres de .impostos e outros encargos, e sendo-lhes atribuída a pro-priedade privada da terra. 6

Como é admirável que esse liberal ainda proponha "extin-guir" seus índios em parte "declarando-os livres de impos-tos" e "atribuindo-lhes a propriedade privada da terra", è"não exterminando-os pelas armas e pelos micróbios, comoseus sucessores no Brasil, na Argentina e nos Estados Uni-dos começariam a fazer logo depois. Observe-se, também,paralelamente à condescendente crueldade, o enorme otimis-mo: em última análise, o índio pode ser redimido — median-te fecundação com o sémen branco, "civilizado", e o rece-bimento de propriedade privada, como qualquer outra pes-soa. (Quão diferente é a atitude de Fermín da preferênciados imperialistas europeus posteriores por "autênticos" ma-laios, gurcas e haussas a "mestiços", "nativos semi-instruí-dos", "wogs", e coisas assim.)

Contudo, se as mudas línguas sagradas eram o meiopelo qual as grandes comunidades globais do passado eramimaginadas, a realidade de tais aparições dependia de umaideia em grande medida estranha ao pensamento ocidentalcontemporâneo: a não-arbitrariedade do signo. Os ideogra-mas da língua chinesa, latina ou árabe eram emanações da

s Dal a equanimidade com que mongóis e manchus achinesados eram aceitos comoFilhos do Céu,

6 John Lynch, Tfte Spanish-American Revoltitians, 1803-1826. p. 260. Grifos nossos.

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realidade e não representações suas, aleatoriamente fabrica-das. Todos conhecemos bem a longa disputa a respeito dalíngua adequada para as massas (latim ou língua vulgar").Na tradição islâmica, até muito recentemente, o Corão eraliteralmente intraduzível (e, por isso, não era traduzido),porque a verdade de Alá somente era acessível medianteos insubstituíveis signos verdadeiros da língua árabe escri- 'ta. Não existe, neste caso, nenhuma ideia de .um mundo tãodesligado da língua que todas as línguas constituíssem pa-ra ele signos equidistantes (e, portanto, intercambiáveis).De fato, a realidade ontológica somente é apreensível pormeio de um sistema único e privilegiado de re-[a]presenta-ção: a língua-verdade do latim da Igreja, do árabe do Cõ-rão, ou o chinês dos exames. 7 E, como línguas-verdade, im-pregnadas de um impulso em grande medida estranho aonacionalismo, o impulso para a conversão. Por conversão,'não quero tanto dizer a aceitação de dogmas religiosos par-

' ticulares, mas uma absorção alquímica. Os bárbaros torna-ram-se "Império do Centro", os rif, maometanos, os ilon-go, cristãos. A natureza toda do ser. humano é maleáveldo ponto de vista sagrado. (Contraste o prestígio dessas an-tigas línguas mundiais, pairando muito acima de todas aslínguas vulgares, com o esperanto ou o volapúk, que jazemignorados entre aquelas e estas.) Afinal de contas, foi essapossibilidade de conversão pela língua sagrada que tornoupossível que um "inglês" se tornasse Papa 8, e um "man-chu", Filho do Céu.

Mas muito embora as línguas sagradas tornassem ima-gináveis comunidades como a cristandade, o verdadeiro al-cance e plausibilidade dessas comunidades não podem serexplicados apenas pelo texto sagrado: afinal,"seus leitoreseram pequeninos recifes letrados por sobre enormes ocea-

"Llngua vulgar" foi a tradução que adotamos para vsrnacular, que o autor empre-ga para referir-se à língua utilizada pelo comum das pessoas, G "n oposição Ss "lín-

guas sagradas" (NT).' A Igreja grega pareço n3o ter atingido o status de uma Kngua-vardade. As razões

desse "fracasso" s3o divorsns, mus um fator-ciiavo (01 corlamontu o falo do quo nHngua grega continuou sendo uma fala vulgar viva (diferentemente do laiiml em gran-de parte do império Oriental. Devo esse insight a Judith Herrin.

8 Michelas Brakespear assumiu o posto de pontífice entra 1154 e 1159, com o nome

de Adriano IV.

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nos analfabetos. 9 Uma explicação mais completa exige quese aluda à relação entre os homens de letras e suas socieda-des, Seria enganoso encarar aqueles como uma espécie detecnocracia teológica. As línguas que eles sustinham, ain-da que obscuras, nada tinham da obscuridade preparadados jargões dos advogados ou dos economistas, à margemda ideia que a sociedade tem da realidade. Ao invés disso,os homens de letras eram iniciados, estratos estratégicosem uma hierarquia cosmológica cujo ápice era divino. 10

As concepções básicas a respeito de "grupos sociais" eramcentrípetas e hierárquicas, e não norteadas por fronteiras ehorizontais. O espantoso poder do papado, em seu esplen-dor, só é compreensível em termos de uma classe transeuro-péia de letrados em escrita latina e de uma concepção domundo compartilhada virtualmente por todos, da qual a in-telligenísia bilíngue, mediando entre a língua vulgar e o la-tim, servia de mediador entre a terra e o céu. (O aterradorda excomunhão reflete essa cosmologia.)

Apesar de toda a grandeza e poder das grandes comu^nidades imaginadas religiosamente, sua coerência não deli-berada desvaneceu-se rapidamente depois do final da Ida-de Média. Dentre as razões dessa decadência, desejo desta-car apenas as duas que se relacionam diretamente com a sa-cralidade singular dessas comunidades.

Em primeiro lugar, havia o efeito, na Europa, dasdescobertas do mundo não-europeu, que, de modo prepon-derante, mas de modo algum exclusivamente, "alargaramabruptamente o horizonte cultural e geográfico e, com is-so, também a concepção dos homens sobre as formas pos-síveis de vida humana". " O processo já aparecia claramen-te no maior de todos os livros de viagem europeus. Obser-

9 Marc Bloch lembra-nos que "a maioria dos senhores e muitos grandes barões (dostempos medievais] eram administradores incapazes de examinar pessoalmente umrelatório ou uma conta". Feudal Society, l, p. 81.

10 Isso nlo quer dizer que os analfabetos não liam. O que liam. porém, não eram pala-vras, mas o mundo observável. "Aos olhos de todos os que eram capazes de reflexão, o mundo material era pouco mais do que uma espécie de máscara, por detrásda qual tinham lugar todas as coisas realmente importamas;'e!e lhes parecia tam-bém uma língua, destinada a expressar por meio de símbolos uma realidade maisprofunda." Bloch, p, 83.Erich Auerbach, Mimesis, p. 282.

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vê a seguinte descrição reverente de Kublai Khan, feita pe-lo bom veneziano cristão Marco Polo, em fins do século XIII:12

O grande cã, após obter essa memorável vitória, retornouem grande pompa e triunfo à capital de Kanbalu. Isso tevelugar no mês de novembro, e ali continuava a residir nosmeses de fevereiro e março; no último dos quais era nos-sa festa da Páscoa. Ciente de que essa era uma de nossasprincipais comemorações, ordenou que todos os cristãosfossem até ele, trazendo consigo seu Livro, que contémos quatro evangelhos. Após fazer com que ele fosse repeti-das vezes perfumado com incenso, de maneira solene, bei-jou-o com devoção e determinou que o mesmo fizessem to-dos os seus nobres ali presentes. Esse era seu rnodo habi-tual de agir em cada uma das festas cristãs mais importan-tes, como a Páscoa e o Natal; e agia semelhantemente nasfestas dos sarracenos, dos judeus e dos idólatras, Quandolhe foi perguntado o motivo dessa conduta, disse ele: "Háquatro grandes profetas que são reverenciados e veneradospelas diversas classes de humanidade. Os cristãos encaramJesus Cristo como sua divindade; os sarracenos, Maomé;os judeus, Moisés; e os idólatras, Sogomombar-kan, o maiseminente de todos os seus ídolos. Reverencio e mostro res-peito a todos os quatro, e invoco para mim a ajuda de se-ja qual for demre eles que é verdadeiramente o supremono céu". Porém, pela maneira pela qual sua majestade agiadiante deles, é evidente que encarava a fé dos cristãos co-mo a mais verdadeira e a melhor.,.

O que há de mais notável nessa passagem não é tantoo tranquilo relativismo religioso (ainda que um relativismoreligioso) do grande -governante mongol, como a atitude ea linguagem de Marco Polo. Jamais lhe ocorre, embora es-crevendo para cristãos europeus seus iguais, qualificar Ku-blai de hipócrita ou idólatra. (Sem dúvida, em parte, por-que "quanto ao número de súditos, à extensão do territórioe ao montante da receita, ele supera qualquer soberano quehaja existido ou que agora exista no mundo".) n E na utili-zação inconsciente de "nosso" (que se torna "seu") e na re-

1J Marco Polo, The Traveis of Marco Polo, p. 158-3. Grifos nossos. Observe-se que,embora beijado, o Evangelho não é lido,

'3|bid., p. 152.

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ferência à fé dos cristãos como "mais verdadeira", em vezde "verdadeira", podem-se descobrir as sementes de umatcrritorializacão das fés, que faz antever a linguagem demuitos nacionalistas ("nossa" nação é "a melhor" — emum campo comparativo, competitivo).

Que contraste revelador oferece o começo da carta es-crita pelo viajante persa "Rica" a seu amigo "Ibben", deParis, em "1712'Vi. 14

O Papa é o chefe dos cristãos; é um ídolo antigo, agora re-verenciado por hábito. Outrora, ele amedrontava até mes-mo os príncipes, pois podia depô-los tão facilmente quan-to nossos magníficos sultãos depõem os reis da Ireméciaou da Geórgia. Agora, porém, ninguém mais o teme. Eleproclama ser o herdeiro de urn dos antigos cristãos, chama-do São Pedro, e essa é por certo uma rica herança, poisseu tesouro é imenso e eie tem um grande país sob seucontrole.

As deliberadas e elaboradas invencionices do católicodo século XVIII reproduzem o realismo ingénuo de seu pre-decessor do século XIII, mas agora a "relativizacão" e a"territorializacão" são perfeitamente conscientes, e coro in-tenção política. Não seria razoável que urna elaboração pa-radoxal dessa tradição, na identificação do Grande Satã fei-ta pelo Ayaíollah Ruhollah Khomeini, fosse vista'não co-mo uma heresia, nem mesmo como um personagem demo-níaco (o pequenino Cárter dificilmente preencheria os requi-sitos), mas como uma nação!

Em segundo lugar, foi uma deterioração gradual daprópria língua sagrada. Escrevendo a respeito da Europaocidental medieval, Bloch observou que "o latim não eraapenas a língua em que se ministrava o ensino, ele era aúnica língua ensinada", l5 (Este "única" demonstra muitoclaramente a sacralidade do latim — nenhuma outra línguaera considerada digna de ser ensinada.) Mas no século XVItudo isso já se estava alterando rapidamente. As razões des-sa mudança não devem demorar-nos aqui: a importância

central do capitalismo editorial (print-capitalism) será discu-tida mais adiante. Basta que nos lembremos de sua dimen-são e ritmo. Febvre e Martin calculam que 77% dos livros im-pressos antes de 1500 ainda eram em latim (o que significa,no entanto, que 23% já eram em línguas vulgares). lfi Se dasoitenta e oito edições impressas em Paris, em 1501, apenas•oito não eram em latim, depois de 1575 a maioria era sem-pre em francês. n Apesar de uma reaparição temporária du-rante a Contra-Reforma, a hegemonia do latim tinha seudestino marcado. E não falamos apenas da popularidadegeral. Pouco depois, mas em velocidade não menos vertigi-nosa, o latim deixou de ser a língua da alta intelligenísiapan-européia. No século XVII, Hobbes (1588-1678) foiuma figura de renome continental por escrever na língua-da-verdade. Shakespeare (1564-1616), por outro lado, com-pondo suas obras em língua vulgar, era virtualmente desco-nhecido do outro lado do Canal da Mancha. 1B E se o in-glês não se tivesse tornado, duzentos anos mais tarde, a lín-gua mais importante mundialmente, não teria ele conserva-do, em grande medida, sua obscuridade insular do início?Enquanto isso, os quase contemporâneos destes homensdo outro lado do Canal da Mancha, Descartes (1596-1650)e Pascal (1623-1662), mantinham a maior parte de sua cor-respondência em latim; mas virtualmente toda a de Voltai-re (1694-1778) era em língua vulgar. lô "Após 1640, com ca-da vez menos livros saindo em latim, e cada vez mais naslínguas vulgares, a atividade editorial foi deixando de ser

. um empreendimento internacional [sic]." 20 Em suma, a de-cadência do latim exemplifica um vasto processo em queas comunidades sagradas, integradas pelas antigas línguassagradas, gradualmente se fragmentavam, pluralizavam eterritorializavam.

14 Henti de Montesquieu, Persian Leners, p, 81. As Lettres Persanes foram publicadas• pela primeira vez em 1721.

16 Bloch, Feudal Society, l, p. 77. Grifo nosso.

16 Lucien Febvre a Henri-Jean Martin, The Corning of the Book, p. 248-49.17 Ibid., p. 321.« Ibid., p. 330.13 Ibid., p. 331-32.20 Ibid., p. 232-3. O original francês é mais modesto e historicamente exato: "landis

que ]'on edite de mói n s en mgins cfouvrages en lati n, et une proportion toujoursplus grande de taxtes an langue nationale, Ia commerca dia livre se morcelle en Euro-pé". L'Apparítiofi tíu Livre, p. 356. ("Uma vez que sã publicam cada vez menosobras em latim e uma proporção sempre maior de textos em língua nacional, o co-mércio do livro segmentou-se na Europa.")

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O reino dinástico

Talvez seja difícil, hoje em dia, que alguém se coloqueempaticamente dentro de um mundo em que o reino dinásti-co era visto pela maioria dos homens corno o único siste-ma "político" imaginável. Pois, de várias maneiras essen-ciais, a monarquia "autêntica" é transversal a todas as con-cepções modernas de vida política. O governo do rei organi-za tudo em torno de um centro elevado. Sua legitimidadederiva da divindade, e não das populações, que, afinal decontas, são súditos, não cidadãos. Na concepção moderna,a soberania do Estado é plena, categórica e uniformementeatuante sobre cada centímetro quadrado de um território le-galmente demarcado. No imaginar de antigamente, porém,onde os Estados se definiam por centros, as fronteiras eramporosas e indistintas, e as soberanias fundiam-se impercepti-velmente umas nas outras. 21 Daí, bastante paradoxalmente,a facilidade com que os impérios e reinos pré-modernoseram capazes de manter seu comando sobre populações enor-memente heterogéneas, e muitas vezes sequer contíguas, porlongos períodos de tempo. 22

Deve-se recordar, também, que esses antigos Estadosmonárquicos expandiam-se não só por meio da guerra, mastambém por uma política sexual — de espécie muito diver-sa da que hoje se pratica. Pelo princípio geral da verticali-dade, os casamentos'dinásticos reuniam populações diver-sas sob novos dirigentes. Quanto a isso, a Casa dos Habs-

51 Observe-se 3 substituição na nomenclatura dos governantes, que corresponde a es-sa transformação. Os escolares lembram-sa dos monarcas por seus primeiros no-mes (qual era o sobrenome da Guilherme, o Conquistador?), e dos presidentes pe-lo seu último nome (qual era o nome de batismo de Ebert?!. Num mundo de cida-dãos, todos eles teoricamente elegíveis para a presidência, o número limitado de no-mes "de batismo" torna-os inadequados como denominadores específicos. Nas mo-narquias, porém, onde o poder está restrito a um único sobrenome, são necessaria-mente os nomes "ds batismo". acompanhados de números ou alcunhas, que propi-ciam as distinções necessárias.

23 Registramos aqui, de passagem, que Nairn certamente está certo ao descrever aLei de 1707, de União entre a Inglaterra e a Escócia, como um "arranjo entre no-bres", no sentido do que os arquitetos da união (oram políticos aristocratas. (Versua lúcida exposição em The Break-up of Brítain, p. 136 et seqs.) Ainda assim, é di-fícil imaginar um arranjo dessa tipo sendo realizado entre as aristocracias de duasrepúblicas. A concepção de um Reino Unido foi por certo o elemento mediador cru-cial que tornou poss-Vel esse entendimento.

burgos foi paradigmática. Como dizia o ditado, Bella ge-rant alH f u fel ix Áustria nube! A seguir, de modo algo resu-mido, a titulação dos últimos dinastas: 23

Imperador da Áustria; Rei da Hungria, da Boémia, da Dalmá-cia, Croácia, Eslavônia, Gallcia, Lodomeria e Híria; Rei de Je-rusalém, etc.; Arquiduque da Áustria [slcj; Grão-duque daToscana e da Cracóvia; Duque de Lotaríngia, de Salzburgo,Estíria, Caríntia, Carniola e Bukovina; Grão-duque da Transil-vânia, Margrave da Morávia; Duque da Alta e Baixa Siiésia,de Módena, Parma, Piacenza e Guastella, de Auschwitz eSator, de Teschen, Friaui, Ragusa e Zara; Conde Principes-co de Habsburgo e Tirol, de Kyburg, Gõrz e Gradisca; Du-que de Triento e Brizen; Margrave da Alta e Baixa Lausitz eda Istria; Conde de Hohenembs, Feldkirch, Bregenz, Son-nenberg, etc.; Senhor de Trieste, de Cartaro, e acima daWindish Mark; Grande Voivoda da Voivodina, Servia... etc.

Isso, observa Jászi com justeza, era, "não sem umcerto aspecto cómico... o registro dos inúmeros casamen-tos, negociatas e pilhagens dos Habsburgos".

Nos reinos em que a poligínia era sancionada pela re-ligião, sistemas complexos de concubinato ordenado eramessenciais para a integração do reino. De fato, as linha-gens reais muitas vezes derivavam seu prestígio, à partequalquer aura de divindade, da miscigenação, poderíamosdizer. MJPois tais misturas eram símbolos de um staíus su-perior. É típico que não tenha havido uma dinastia "ingle-sa" governando em Londres desde o século XI (se tanto);e que "nacionalidade" devemos atribuir aos Bourbons? 25

23 Oscar Jâszi, The Dissolution of Habsburg Monarchy, p. 34.24 De maneira a mais notável na Ásia pre-moderna. O mesmo principio, porém, ara

atuante na Europa crista monogamica. Em 1910, um certo Otto Forst publicou seuAhnentafet Seiner Kaiserlichen una KõnigKchen Hoheft dês durchlauchíígsten HerrnErzherzogs Fram Ferdiriend, que relacionava 2.047 dos ancestrais do arquiducueprestes a ser assassinado, dentre os quais 1.486 alemães, 124 franceses, 196 ita-lianos, 89 espanhóis, 52 poloneses, 47 dinamarqueses, 20 Ingleses, bom como qua-tro outras nacionalidades. Esse "curioso documento" está citado em ibid., p. 136,n. 1. Não posso deixar da citar aqui a admirável reacão do Franz Joseph à noticiado assassinato da seu excêntrico herdeiro necessário: "Dessa maneira, um podersuperior restaurou aquela ordem que eu, infelizmente, estava Incapaz de manter"(ibid., p. 125).

55 Gstlnar salienta o caráter tipicamente estrangeiro das dinastias, mas Interpreta o fe-nómeno de maneira muito estreita: os aristocratas locais preferem um monarca defora,, porque ale não tomará partido em relação a suas rivalidades internas. Ttioughtsnd Change, p. 136.

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Contudo, durante o século XVII — por razões deque não nos ocuparemos agora — a legitimidade automáti-ca da monarquia sagrada começou sua lenta decadênciana Europa ocidental. Em 1649, Carlos Stuart foi decapita-do na primeira das revoluções do mundo moderno e, nocorrer da década de 1650, um dos Estados mais importan-tes da Europa foi governado por um Protetor plebeu, emvez de um rei. Contudo, mesmo ao tempo de Pope e Addi-son, Ana Stuart ainda estava curando os doentes pela su-perposição das mãos reais, curas executadas também pelosBourbons, Luís XV e XVI, na França do Iluminismo, atéo fim do ancien regime. 26 Depois de 1789, porém, o prin-cípio da Legitimidade tinha de ser defendido em alta voze deliberadamente e, com o tempo, a "monarquia" tornou-se um modelo semipadronizado. Tennõ e Filho do Céu tor-naram-se "Imperadores". No longínquo Sião, Rama V(Chulalongkorn) enviou seus filhos e sobrinhos para ascortes de São Petersburgo, Londres e Berlim para aprende-rem as complexidades do modelo universal. Em 1887, ins-.,tituiu o princípio indispensável da sucessão pela primoge-nitura legal, desse modo "alinhando o Sião com as monar-quias 'civilizadas' da Europa", 27 O novo sistema condu-ziu ao trono, em 1910, um homossexual caprichoso quecertamente teria sido ignorado em outros tempos. Contu-do, a aprovação intermonárquica de sua ascensão ao tro-no como Rama VI foi ratificada pelo comparecimento asua coroação de príncipes vindos da Grã-Bretanha, Rússia,Grécia, Suécia, Dinamarca — e Japão! 28

Ainda em 1914, os Estados dinásticos constituíam amaioria dos componentes do sistema político mundial,mas, corno assinalaremos pormenorizadamente mais adian-te, muitos dinastas já vinham há algum tempo adquirin-do um cunho "nacional", à medida que o antigo princípioda Legitimidade fenecia silenciosamente. Enquanto os exér-citos de Frederico, o Grande (r. 1740-1786), eram em gran-

26 Marc Bloch, Lês fíois Thaumarurges, p. 390 e 398-9." Noel A, Battye, "The Militarv. Government and Society in Siam, 1868-1910", Te-

se de Doutoramento IPhD), Cornell, 1974, p. 270.18St9phan Green, "Trai Governmsnt and Admiriistraticn in the Reign of Rama VI

(1910-1925)", Tese de Doutoramento fPhDS, Universidade de Londres, 1971, p. 92.

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de parte formados por "estrangeiros", os de seu sobrinho-neto Frederico Guilherme III (r. 1797-1840) já eram, emconsequência das espetaculares reformas de Scharnhorst,Gneisenau e Clausewitz, exclusivamente "nacionais-prussia-nos".29

Concepções do tempo

' Seria uma visão acanhada, porém, pensar que as co-munidades imaginadas das nações simplesmente tenhambrotado das comunidades religiosas e dos reinos dinásticose tomado seu lugar. Por trás da decadência das comunida-des, línguas e linhagens sagradas, tinha lugar uma mudan-ça fundamental nos modos de apreender o mundo, que,mais do que qualquer outra coisa, tornou possível "pen-sar" a nação..

Para uma primeira impressão dessa mudança, pode-mo-nos voltar para as representações visuais das comunida-des sagradas, tais como os relevos e os vitrais das igrejasmedievais, ou as pinturas dos primeiros mestres italianose flamengos. Traço característico dessas representações éalgo enganosamente análogo à "aparência moderna". Ospastores que haviam acompanhado a estrela até a manje-doura' em que Cristo nasceu têm feições de camponesesda Borgonha. A Virgem Maria é representada como filhade um mercador toscano. Em muitos quadros, o clienteque encomendou a obra, vestido como burguês ou em tra-jes de nobre, aparece ajoelhado em adoração ao lado dospastores. O que hoje parece incongruente obviamente pare-cia inteiramente natural aos olhos dos devotos medievais.Estamos diante de um mundo em que a representação darealidade imaginada era irresistivelmente visual e auditiva.A cristandade assume sua forma universal mediante uma

29 Mais de mi! dos sete a oito mil homens do exército prussiano, em 1806, eram estran-geiros. "Os prussianos de classe média aram superados pelos estrangeiros am seupróprio exército; isso dava colorido ao dito de que a Prússia não era um pais que ti-nha um exército, mas um exército que tinha um pais." Em 1798, os reformadoresprussianos exigiram "redução è metade do número de estrangeiros que ainda repre-sentavamcercade 50% dos praças..."AlfredVagts,/Wsroryo/M/ffíansm, p. 64 e 85.

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infinidade de especifi cidades e de particularidades: este re-levo, aquele vitral, este sermão, aquela fábula, aquela pe-ça moral, aquela relíquia. Embora a classe letrada transeu-ropéia que lia era latim fosse um elemento essencial na es-truturação da imaginação cristã, a mediação de suas con-cepções para as massas iletradas, por meio de criações vi^suais e auditivas, sempre pessoais e particulares, não eramenos essencial. O humilde pároco cujos antepassados ecujas fraquezas eram conhecidos por todos os que assis-tiam a suas celebrações ainda assim era o intermediário di-reío entre seus paroquianos e o divino. Essa justaposiçãodo universal-cósmico e do particular-mundano significaque por maior que pudesse ser a cristandade, e sabia-seque era, ela se manifestava de maneira diversa a comunida-des particulares, suábias ou andaluzas, como réplicas de-las mesmas. Representar a Virgem Maria com traços "se-mitas" ou vestimentas do "primeiro século", dentro do es-pírito de restauração do museu moderno, era algo inimagi-nável, porque o pensamento cristão medieval não possuíauma concepção de história como infindável corrente decausa e efeito ou de separação radical entre passado e pre-sente. 30 Bloch observa que o povo pensava que devia es-tar próximo o final dos tempos, no sentido de que a segun-da vinda de Cristo poderia ocorrer a qualquer momento:São Paulo dissera que "o dia do Senhor chega como umladrão no meio da noite". Era pois natural que o grandecronista do século XII, bispo Oito de Freising, se referis-se seguidamente a "nós, que fomos colocados no finaldos tempos". Bloch conclui.que tão logo os homens me-dievais "entregavam-se à meditação, nada estava mais dis-tante de seus pensamentos do que a perspectiva de um lon-go futuro para uma raça humana jovem e vigorosa". 3I

Auerbach oferece-nos um inesquecível esboço dessaforma de consciência: 32

30 Para nos, a ideia de "trajes modernos", maneira metafórica de fazer equivaler pas-sado e presente, é um reconhecimento iridireto de sua irrevogável distinção.

31 Bloah, Feudal Society, l, p. 84-6.32 Auerbach, Mimeste, p. 64. Grifo nosso. Confronte a descrição do Velho Testamen-

to, por Santo Agostinho, como "a sombra do [isto é, modalado da trás para dían-le pelo] futuro". Citado em Bloch, Feudal Society, l, p. 90.

Se um evento como o sacrifício de Isaac é interpretado co-mo a prefiguração do sacrifício de Cristo, de modo que,no primeiro, encontra-se o último como foi anunciado eprometido, e o último "cumpre"... o primeiro, estabelece-se então uma conexão entre dois eventos que não se vin-culam temporalmente, nem oausalmente — conexão im-possível de ser estabelecida pela razão na. dimensão hori-zontal... Ela só pode ser estabelecida se ambas as ocorrên-cias estiverem verticalmente vinculadas à Divina Providên-cia, a única capaz de traçar um plano de história como es-se e fornecer a chave para sua compreensão... o aqui eagora não é mais um simples vinculo em uma corrente ter-rena de eventos, ele é simultaneamente algo que sempreexistiu, e que será cumprido no futuro; e estritamente, aosolhos de Deus, é algo eterno, algo onítemporal, algo jáconsumado na esfera do evento terreno fragmentário.

Ele está certo em acentuar que tal ideia de simultaneidadeé inteiramente estranha a nós mesmos. Ela encara o tem-po como algo próximo do que Benjamin chama de tempomessiânico, uma simultaneidade de passado e futuro emum presente momentâneo. " Dentro desse modo de ver ascoisas, a expressão "enquanto isso" não pode ter significa-ção real.

Nossa própria concepção de simultaneidade tem esta-do em elaboração por muito tempo e sua emergência liga-se certamente, de modos que precisam ainda ser bem estu-dados, ao desenvolvimento das ciências seculares. Mas éuma concepção de importância tão fundamental que, senão a levarmos plenamente em conta, acharemos difícil in-vestigar a génese obscura do nacionalismo. O que veio to-mar o lugar da concepção medieval de simultaneidade lon-gitudinal ao tempo é, valendo-nos novamente de Benja-min, uma ideia de "tempo homogéneo e vazio", no quala simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo,marcada não pela prefiguração e cumprimento, mas porcoincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calen-dário. 34

33 WaltBr Banjarnin, llíaminsíions, p. 265,34 Ibid., p. 263. Essa nova ideia está tão arraigada que se poderia e f Irma r que todo con-

ceito fundamental moderno baseia-se num conceito de "enquanto isso".

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35

Pode-se perceber bem melhor por que essa transforma-ção seria tão importante para o nascimento da comunidadeimaginada da nação se considerarmos a estrutura básica deduas formas de imaginar que pela primeira vez floresceramna Europa, no século XVIII: o romance e o jornal. 35 Poisessas formas ofereceram os recursos técnicos para "re-[a}pre-sentar" a espécie de comunidade imaginada que é a nação.

Considere-se primeiro a estrutura do romance à mo-da antiga, estrutura típica não só das obras-primas de Bal-zac, mas também de qualquer romanceco contemporâneo.Ela é evidentemente um instrumento para a apresentaçãoda simultaneidade em um "tempo homogéneo e vazio",ou um comentário complexo sobre a expressão "enquantoisso". Tomemos, para fins de ilustração, um segmento de.urh enredo simples de romance, no qual um homem (A)possui uma esposa (B) e uma amante (C) que, por sua vez,tem um namorado (D). Podemos imaginar uma espécie deesquema temporal para esse segmento, da seguinte maneira:

NID beba em urn barA janta em casa com SC tem um sonho sinistro

Observe-se que, no correr dessa sequência, A e D jamaisse encontram, e podem na verdade não ter sequer conheci-mento da existência um do outro, se C tiver agido inteligen-temente. 3S Então, o que é que realmente liga A a D? Duasconcepções complementares: primeiro, que eles estão encra-vados em "sociedades" (Wessex, Líibeck, Los Angeles). Es-sas sociedades são entidades sociológicas de uma realida-de tão firme e estável, que seus membros (A e D) podematé mesmo ser descritos como passando um pelo outro narua sem jamais se relacionarem e, ainda assim, estarem li-

Tempo:

Eventos;

1

A discute com BC a D fazem amor

II

A lelsfona a Cã vai és comprasD joga sinuca

15 Embora a Príncesse tíe CIÊves já tivesse sido publicada sm 1678, a época ds Richard-son, Detoe e Fielding é o inicio do século XVIII. As origens do jornal moderno encon*tram-sa nas gazetas do final do século XVII; porém, o jornal só se torna uma catego-ria geral de material impresso após 1700. Febvre e Martin, The Corning ofthe Book,p. 197,

M De fato, a compreensão do enredo pode depender, nos Tampos l, II e llt, da que A,B. C e O não saibam o que se passa com os outras.

gados. 37 Segundo, que A e D estão encravados nas mentesdos leitores oniscientes. Apenas eles percebem os vínculos.Apenas'eíes, como Deus, observam A telefonando a C, Bfazendo compras e D jogando sinuca, tudo ao mesmo tem-po. O fato de que todos esses atos são desempenhados nomesmo tempo, medido pelo relógio e pelo calendário, maspor atores que podem estar em grande medida despercebi-dos uns em relação aos outros, demonstra a novidade des-se mundo imaginado evocado pelo autor nas mentes deseus leitores. 38

A ideia de um organismo sociológico que se move pe-lo calendário através do tempo homogéneo e vazio apresen-ta uma analogia precisa corn a ideia de nação, que tambémé concebida como uma comunidade compacta que s'e mo-ve firmemente através da história. 39 Um norte-ámericanojamais encontrará, nem mesmo saberá como se chama,mais do que um pequeno número de seus 240.000.000 decompatriotas. Não tem ideia alguma sobre o que estão fa-zendo em qualquer tempo. Mas está absolutamente segu-ro de sua atividade constante, anónima e simultânea.

Talvez a perspectiva que estou sugerindo pareça menos-abstrata se nos dedicarmos a examinar rapidamente quatroobras de ficção de diferentes culturas, e de diferentes épocas,todas menos uma, no entanto, indissoluvelmente ligadas amovimentos nacionalistas. Em 1887, o "Pai do Nacionalis-mo Filipino", José Rizal, escreveu ò romance NoliMe Tange-ré, hoje considerado o melhor produto da literatura filipinamoderna. Foi, também, quase o primeiro romance escritopor um "índio". * Eis a maneira admirável como começa:4l

37 Essa potifona distingue decisivamente o romance moderno até mesmo de um precur-sor tSo brilhante quanto o Satyrícon. de Petrônio. A narrativa deste dessnróla-se li-nearmente. Enquanto Encolpius lamenta a infidelidade de seu jovem amante, não te-rnos conhecimento simultaneamente de Gito na cama corn Ascyltus.

38 Nesse contexto, é recompensadora a comparação, de qualquer romance histórico,com documentos ou relatos da época transformada em ficção.

39 Nada demonstra melhor a Imersão do romance em um tempo homogéneo e vaziodo que a ausSnela daquelas genealogias preliminares, chegando multas veres até àorigem do homem, traço tão carsctarístieodas antigas crónicas, lendas e livros sagrados.

40 ftizel escreveu esse romance na língua colonial (o espanhol), que era, no época, a lín-gua franca das elites euraslanas, emlcamonte diversificadas, e da elite nativa. Aomesmo tempo que o romance, surgia também, pela primeira vez, uma imprensa "na-cionalista", não apenas em espanhol, mas em línguas "aborígenes", como o tagatoa o ilocano. Var Leopoldo Y, Yabes, "The Modern literature of the Philippinss", p.287-302, in Pierre-Bernard Lafcnt e Denys tombará (orgs.), Littératures contempo-raines de l'Asíe du Sud-Est.

41 José Hizal, The Lost Éden, Noli Ma Tengere, p, 1.

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Don Santiago de los Santos oferecia um jantar festivonuma noite de fins de outubro da década de 1880. Embora,contrariando seu costume, só cr tenha anunciado na tardedo mesmo dia, logo se tornou o tema das conversas em Bí-nondo, onde ele morava, em outros distritos de Manila, eaté mesmo na cidadela espanhola de Intramuros. Don San-tiago era mais conhecido como Capitão Tiago — a patentenão era militar mas política, e indicava que ele havia sido ou-trora o prefeito nativo de uma pequena cidade. Naquele tem-po, ele tinha reputação de pródigo. Todos sabiam que suacasa, como seu país, jamais fechava suas portas — exceto,é claro, ao comércio e a qualquer ideia que fosse nova ouousada.

De modo que a notícia de seu jantar correu como umchoque elétrico por toda a comunidade de filantes, parasitase penetras, os quais Deus, em Sua infinita sabedoria, haviacriado e generosamente multiplicado em Manila, Alguns de-les puseram-se em busca de polimento para suas botas; ou-tros, de botões de colarinho e gravatas; mas cada um delesdedicou o melhor de seu pensamento à maneira como pode-riam saudar seu anfitrião com a fingida intimidade de,velhaamizade, ou, se houvesse ocasião, desculpar-se polidamen-te por não haver chegado mais cedo onde presumivelmen-te sua presença era tão ansiosamente esperada.

O jantar foi oferecido em uma casa na Rua Anloague,que ainda pode ser reconhecida, a menos que tenha vindoabaixo com algum terremoto. Certamente não terá sido de-molida por seu proprietário; nas Filipinas, isso se deixa emgeral para Deus e a Natureza. Na verdade, às vezes se con-sidera que eles estão contratados pelo governo exatamentepara esse fim...

Certamente não é necessário um longo comentário. Bastaque se observe que, logo de início, a imagem (inteiramentenova na literatura filipina) de um jantar que é discutido porcentenas de pessoas anónimas, que não se conhecem entresi, em diferentes bairros de Manila, num determinado mêsde uma determinada década, evoca imediatamente a comuni-dade imaginada. E na frase "uma casa na Rua Anloague,que ainda pode ser reconhecida...", quem reconhece somosnós-os-leitores-fílipinos. A passagem natural dessa casa, dotempo "interior" do romance, para o tempo "exterior" davida quotidiana do leitor de Manila oferece uma confirma-ção hipnótica da solidez de uma comunidade singular, abran-

37

gendo personagens, autor e leitores, que se movem para dian-te pelo tempo do calendário. Observe-se também o tom. Em-bora Rizal não tenha a menor ideia da identidade de cadaum de seus leitores, escreve para eles com uma intimidadeirónica, como se seu relacionamento com eles não fosse nemum pouco problemático.42

Não há o que ofereça maior sentimento foucaultianodas abruptas descontinuidades da consciência do que compa-rar Noli com a mais célebre obra literária anterior de um "ín-dio", a Pmagdaanang Buhay nl Florante at w Loura sã Ca-hariang Albânia [A história de Florante e Laura no Reinoda Albânia], cuja primeira edição impressa data de 1861, em-bora talvez já tivesse sido escrita em 1838. 43 Pois emboraBaltazar ainda fosse vivo quando nasceu Rizal, o mundode sua obra-prima é, quanto a tudo o que tem de básico, es-tranho ao de Noli, Seu cenário — uma Albânia medieval fic-tícia — é completamente distante no tempo e no espaço daBinondo da década de 1880. Seus heróis — Florante, um no-bre albanês cristão, e seu amigo íntimo Aladin, aristocratapersa muçulmano ("mouro") — só nos lembram as Filipi-nas pela ligação cristão-mouro. Enquanto Rizal salpica deli-beradamente sua prosa espanhola com palavras de tagalo pa-ra obter efeitos "realistas", satíricos ou nacionalistas, Balta-zar, não intencionalmente, mistura expressões espanholasem seus quartetos em tagalo, apenas para aumentar a gran-diosidade e a sonoridade de sua linguagem poética. Noli foifeito para ser lido, enquanto Florante at Laura, para ser de-clamado em voz alta. O mais chocante é o manuseio do tem-po por Baltazar. Como observa Lumbera, "o desenrolardo enredo não segue uma ordem cronológica. A história co-meça In medias rés, de tal modo que a história completa sónos chega mediante uma série de falas que servem como/fos/i-backs". ** Quase metade dos 399 quartetos são relatos da in-fância de Fiorante, de seus anos de estudo em Atenas e de

4Í O reverso da obscuridade anónima dos leitores foi/é B celebridade Imediata do autor.Como varemos, esse obscuridade/celebridade tem tudo a ver com B disseminaçãodo capitalismo editorial. Já em 1593, dominicanos ativos haviam publicado em Mani-la a Doctrina CMstiana. A partir de então, porém, B por séculos, a imprensa foi man-tida sob estrito controla eclesiástico. A liberalização só teve Inicio na década de1860. Ver Blenvenido L. Lumbera, "Tradition and Influer.ces in tha Development ofTagatog Postry. 1570 a 1898", p. 35, 143 e 235.

*Mbid., p. metseqs,44 Ibid., p. 205-6.

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suas subsequentes proezas militares, fornecidos pelo heróiem conversa com Aladin. 4S O "flashback falado" foi, pa-ra Baltazar, a única alternativa de uma narrativa direta, li-near. Se ficamos sabendo dos passados "simultâneos" deFlorante e Aladin, sua ligação apenas se dá pelas vozes emconversa, e não pela estrutura do poema. Quão distante es-tá essa técnica da do romance: "Naquela mesma primavera,enquanto Florante ainda estudava em Atenas, Aladin era ex-pulso da corte de seu soberano...". De fato, nunca ocorrea Baltazar "situar" seus protagonistas na "sociedade", oudiscuti-los com seu público. Como também não há muitode "filipino" nesse texto, a não ser pelo fluxo melífluo dospolissílabos em tagalo. ^

Em 1816, setenta anos antes de Noli ser escrito, JoséJoaquín Fernandez de Lizardi escreveu um romance chama-do El periquillo sarmento [O papagaio sarnentoj, evidente-mente a primeira obra latino-americana desse género. Naspalavras de um crítico, e'sse texto é "uma feroz acusação àadministração espanhola no México: ignorância, superstiçãoe corrupção são vistas como suas mais notáveis característi-cas". A forma essencial desse romance "nacionalista" es-tá na seguinte descrição de seu conteúdo: 4S

Desde o inicio, [o herói, o papagaio sarnemo) é exposto a •más influências — criadas ignorantes incutem superstições,sua mãe satisfaz seus caprichos, seus professores ou não ti-nham vocação, ou não tinham capacidade para discipliná-lo. E embora seu pai seja um homem inteligente que querque o filho se dedique a uma profissão útil, ao invés de ir en-grossar as fileiras dos advogados e parasitas, é a supermãede Periquillo que ganha a parada, manda o filho para a uni-versidade e assegura assim que ele irá aprender apenas dis-parates supersticiosos... Periquillo continua incorrigivelmente

45 A técnica é semelhante à da Homaro, tão competentemente exposta por Auerbach,Mimesis. cap. 1 ("Odysseus1 Scar").

46 "Paalam Albaniang pinamamayanam/ ng casama, %.lupit, bangis caliluhan,/ acongtangulan mo, i, cusa mang pinatay/ sã iyo, i, malaquf ang panghihinavang."/"Adeus, Albânia, agora reino/ do mal, da crueldade, brutalidade e decepção!/ Eu,seu defensor, que agora tu assassinas/ lamento, porém, o destino que te coube."Essa famosa estrofe tem sido às vezes interpretada corno uma vetada afirmação depatriotismo filipino. mas Lumbera demonstra, de maneira convincente, que tal inter-pretação ô anacrónica. "Tradition and Influenoes", p. 214-15. A tradução para o in-glês é da Lumbera. Alterei ligeiramente o texto em tagalo apresentada por ele, paraajustá-lo a uma edição da 1973 do poema, baseada na impressão de 1861.

47 Jean Franco, An tntroifuction to Spsnish-Arnerícsn Literature, p. 34.ÍB Ibid., p, 35-6', Grifos nossos.

ignorante, muito embora depare com muita gente boa e sá-bia. Não tem disposição para trabalhar, nem para levar na-da a sério, e se torna, sucessivamente, padre, jogador, la-drão, aprendiz de farmácia, médico, funcionário numa cida-de do interior... Esses episódios permitem que o autor des-creva hospitais, prisões, aldeias longínquas, monastérios, en-quanto, ao mesmo tempo, martela num ponto importante— que o governo espanhol e o sistema de educação estimu-la m o parasitismo e a preguiça... As aventuras de Periquillolevam-no diversas vezes a estar entre índios e negros...

Vemos aqui novamente a "imaginação nacional" funcionan-do nas andanças de um herói solitário por uma paisagem so-ciológica de uma .estabilidade que funde o mundo de dentrodo romance com o mundo de fora. Esse tour d'horison pica-resco — hospitais, prisões, aldeias longínquas, monastérios,índios, negros — não é porém um tour du monde. O hori-zonte é claramente delimitado: é o do México colonial. Na-da nos assegura mais dessa solidez sociológica do que a su-cessão de plurais. Pois eles evocam um espaço social cheiode prisões comparáveis, nenhuma deJas por si só de qual-quer importância singular, mas todas representativas (emsua existência simultânea e distinta) da tirania desta coló-nia.45 (Contraponham-se as prisões da Bíblia. Elas não sãonunca imaginadas como típicas desta ou daquela sociedade.Cada uma delas, como aquela em que Salomé seduziu-sepor João Batista, está magicamente solitária.)

Finalmente, para afastar a possibilidade de que, por te-rem Rizal e Lizardi escrito ambos em espanhol, as estrutu-ras que temos estudado sejam algo "europeias", eis aqui oinício de Semarang Hitaw [O Semarang negro], uma históriaescrita pelo malfadado jovem indonésio nacionalista-comu-nista, Mas Marco Kartodikromo, 50 publicada em folhetim,em 1924:31

49 Essa deslocamento de um herói solitário por uma paisagem social adamantina é típi-co de muitos dos antigos romances (antí)coloniais,

50 Após uma carreira curta, meteórica, como jornalista radical. Marco foi internado pe-las autoridades coloniais holandesas em Boven Digul, um dos mais antigos camposde concentração do mundo, nos longínquos pântanos interiores do oeste da NovaGuiné. Al! morreu em 1932, após seis anos de confinamento. Henrl Chambert-Loir,"Mas Marco Kartodikromo (c. 1890-1932) ou L'&Jucation Politique", p. 203, in Lit-tératures contemporaines de l'A$ia du Sud-£st.

51 Segundo tradução de Paul Tickell em seu Three Early Indonesian Short Stories t>yMas Marco Kartodikromo (s, {890-1932Í, p. 7. Grifos nossos..

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Eram sete horas, sábado à- noite; os Jovens de Sema-rang jamais ficavam em casa aos sábados à noite. Nessanoite, porém, não havia ninguém se mexendo. Pelo fato deque a pesada chuva durante o dia todo deixara as estradasencharcadas e muito escorregadias, todos haviam ficadoem casa.

Para os trabalhadores de oficinas e escritórios, a ma-nha de sábado era um momento de expectativa — expecta-tiva do lazer e da alegria de circular pela cidade à noite,mas dessa vez iriam se decepcionar — devido à letargia cau-sada pelo mautempaeàsestradaspeguentas noskampongs.As estradas principais habitualmente abarrotadas de todasorte de tráfico, as calçadas habitualmente apinhadas degente, tudo estava deserto. Vez por outra, o estalo de umchicote duma charrete, incitando o cavalo a tocar em fren-te — ou o clip-clop dos cascos dos cavalos puxando as car-ruagens.

Semarang estava deserta. A luz das fileiras de lâmpa-das de gás iluminava diretamente a estrada de asfalto brilhan-te. De vez em quando, a luz clara das lâmpadas de gás seobscurecia, quando o vento soprava do leste...

Um jovem estava sentado num longo sofá de vime,lendo um jornal. Estava totalmente absorvido. Às vezes suairritação, às vezes seu sorriso eram sinal certo de que esta-va profundamente interessado no que lia. Virava as páginasdo jornal, esperando talvez encontrar algo que o fizesse pa-rar de se sentir tão miserável. Repentinamente, deu comuma notícia intitulada:

PROSPERIDADEUm miserável vagabundo f içara doente e morrera ao abando-no à beira da estrada.

O jovem comoveu-se com esse breve relato. Imagina-va perfeitamente o sofrimento daquela pobre alma quandojazia moribunda à beira da estrada... Por um momento sentiuum ódio explosivo bem dentro de si. A seguir sentiu pieda-de. Em outro momento ainda, seu ódio dirigiu-se ao siste-ma social que dava origem a tanta pobreza, enquanto torna-va rico um pequeno grupo de pessoas.

Aqui, como em El periquillo sarmento, estamos nummundo de plurais: oficinas, escritórios, carruagens, kam-pongs e lâmpadas de gás. Como no caso de Noli, nós-os-Iei-tores-indonésios mergulhamos imediatamente num tempode calendário e numa paisagem familiar; alguns de nós pode-

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mós bem ter caminhado por aquelas "peguentas" estradasde Semarang. Uma vez mais, um herói solitário é sobrepos-to a uma paisagem social descrita em detalhes cuidadosos egerais. Mas há também algo de novo: um herói que nuncaé chamado pelo nome, mas coerentemente mencionado co-mo "nosso jovem". Exatamente o caráter canhestro e a inge-nuidade literária do texto confirmam a "sinceridade" nãodeliberada desse adjetivo pronominal. Nem Marco,' nemseus leitores, têm qualquer.dúvida quanto à referenda. Sena ficção jocosa e elaborada da Europa dos séculos XVIIIe XIX, o tropo "nosso herói" simplesmente ressalta um jo-go do autor com ura leitor (qualquer), o "nosso jovem" deMarco, não menos pela inovação, significa um jovem que.pertence ao corpo coletivo dos leitores do Indonésio, e assim,implicitamente, uma embrionária "comunidade imaginada"indonésia. Observe-se que Marco não sente necessidade deespecificar essa comunidade pelo nome: ele já está ali. (Mes-mo que os censores coloniais holandeses poliglotas se juntema seus leitores, eles estão excluídos de participar desse "nos-so", como se pode ver pelo fato de que o ódio do jovem di-rige-se "ao", e não "a nosso", sistema social.)

Finalmente, a comunidade imaginada confirma-se pelaréplica de nossa leitura a respeito da leitura de nosso jovem.Ele não encontra o cadáver do miserável vagabundo à beirade uma estrada peguenta de Semarang, mas imagina-o a par-tir do que está impresso num jornal. 52 Ele também não seimporta o mínimo com quem seja, individualmente, o mor-to: ele pensa no corpo representativo, não na vida pessoal.

É apropriado que, em Semarang Hiíam, apareça umjornal encravado na ficção, pois, se nos voltarmos agora pa-ra o jornal como produto cultural, vamos ficar chocadospor seu profundo caráter ficcional. Qual a convenção literá-ria fundamental do jornal? Se olharmos uma primeira pági-na típica de, digamos, The New York Times, ali encontrare-

62 Em 1924, um amigo Intimo e aliada político de Marco publicou um romanos intitula-do Rasa Manlika [Samido llvro/O sentimento da libertada]. Sobre-o herói desse ro-mance (que ele atribui erradamente a Marco], Chambert-Loir escreva que "não t a mideia nenhuma tio sentido da palavra 'socialismo': não obstante, sente um profundomal-estar diarvte da organização social que o rodeia e sente necessidade de ampliarseus horizontes por dois métodos: viagem e leitura", ("Mas Marco", p. 208. Grilonosso.) O papagaio sarnento mudou-se para Java e para o século XX.

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mós reportagens sobre dissidentes soviéticos, fome em Mali,um horrível assassinato, golpe no Iraque, a descoberta deum fóssil raro no Zhnbábue, e um discurso de Mitterand.Por que se justapõem tais eventos? O que os liga uns aos ou-tros? Não é mero capricho. Contudo, é óbvio que a maioriadeles aconteceu independentemente, sem que seus atores ti-vessem consciência uns dos outros, ou do que os outros esta-vam fazehdo. A arbitrariedade de sua inclusão e justaposi-ção (uma edição posterior substituirá Mitterand pelo resulta1-do de uni jogo de beisebol) demonstra que a vinculação en-tre eles é imaginada.

Essa vinculação imaginada provém de duas fontes indi-retamente relacionadas. A primeira é simplesmente coincidên-cia no calendário. A data no alto do jornal, a marca pecu-liar mais importante que ele apresenta, fornece a conexão es-sencial — a marcação regular da passagem do tempo homo*gêneo e vazio.53 Dentro daquele tempo, "o mundo" cami-nha decididamente para a frente. O sinal disso: se Mali desa-parecer das páginas do The New York Times por meses a fio,depois de dois dias de reportagens sobre a fome, nem porum momento os leitores imaginarão que Mali desapareceu,ou que a fome exterminou todos os seus cidadãos.' O forma-to de romance que tem o jornal lhes assegura que, em algumlugar fora dali, o "personagem" Mali se movimenta silencio-samente, aguardando sua reaparição seguinte no enredo.

A segunda fonte de vinculação imaginada encontra-sena relação entre o jornal, como uma forma de'livro, e omercado. Calcula-se que, no correr dos quarenta anos entrea publicação da Bíblia de Gutenberg e o final do séculoXV, produziram-se ria Europa mais de 20.000.000 de volu-mes impressos.54 Entre 1500 e 1600, esse número atingira en-tre 150 e 200 milhões.5Í "Desde então... as oficinas gráficasmais se assemelhavam a modernas oficinas de trabalho do que

53 Lar um jornal é como ler um romance cujo autor tivesse deixado de lado qualquerideia de um enredo coerente.

54 Febvre e Martin, The Coming of lhe Book, p. 186. Isso montava a não menos de35.000 edições produzidas em nada menos que 236 cidades. Já em 1480. havia grá-ficas em mais de 110 cidades. 50 das quais na hoje Itália, 30 na Alemanha, 9 na Fran-ça, na Holanda e na Espanha, 8 em cada uma, na Bélgica e na Suíça, 5 em cada, 4na Inglaterra, 2 na Boémia e 1 na Polónia, "A partir daquela data, pode-$a dizer qua,na Europa, o livro Impresso foi de uso universal." (p.182l

86 Ibid., p. 262. Comentam os autores que, no século XVI, os livros estavam pronta-mente à disposição de qualquer um que soubesse ler.

43

a salas de trabalho monásticas da Idade Média. Em 1455,Fust e Schoeffer já geriam um negócio, equipado para aprodução padronizada e, vinte anos depois, grandes empre-sas gráficas funcionavam por toda parte, em toda [sic] a Eu-ropa." 56 Em sentido muito especial, o livro foi a primeiramercadoria industrial produzida em série no estilo moder-no. í7 O sentido que tenho em mente se revela, se compa-rarmos o livro com outros primeiros produtos industriais,como tecidos, tijolos, ou açúcar. Pois estas mercadorias sãomedidas em quantidades matemáticas (libras, volumes ouunidades). Uma libra de açúcar^ é simplesmente uma quanti-dade, um volume conveniente» não um objeto em si mes-mo. O livro, porém — e, nisso,,ele antecipa os produtos du-ráveis de nossa época — é um objeto bem definido, auto-su-ficiente, reproduzido com exatidão em grande escala. 5B

Uma libra de açúcar confunderse com a seguinte; cada livropossui uma auto-suficiência erèmítica própria. (Não «admi-ra que bibliotecas, coleções pessoais de mercadorias produ-zidas em série, já fossem um espetáculo comum, no séculoXVI, em centros urbanos como Paris.)59

Desta perspectiva, o jornal não passa de uma "for-ma extrema" do livro, um livro vendido em escala imensa,porém de popularidade efémera. 'Poderia dizer-se que sãobest-sellers por um só dia. 60 A obsolescência do jornal nodia seguinte ao de sua impressão — é curioso que uma das

ss A grande editora Plant n, da Antuérpia, controlava, já no século XVI, 24 gráficas commais de cem operários em cada uma delas. Ibíd., p. 125.

57 Esse é um ponto bom estabelecido no meio das fantasias de Gutenberg Galaxy, deMarshall McLuhan (p. 125). Pode-se acrescentar que, se o mercado do livro tornou-se pequeno diante dcs marcados de outras mercadorias, sau papal estratégico na dis-seminação da ideias tornou-o, contudo, da importância fundamental para o desen-volvimento da Europa moderna.

56 Quanto a isto, o principio é mais importante do que a escala de grandeza. Ata o sé-culo XIX, as Bicões oram ainda relativamente pequenas. Até mesmo a Bíblia de L'j-toro, extraordinário best-seUet, teve uma primeira edíçflo de apenas 4.000 exempla-res. A primeira edição excepcionalmente grande da Encyc/opédie de Dlderot n5o foialém da 4.260 exemplares. A tiragem média no século XIX era inferior a 2.000 exem-plares. Febvre e Martin, The Corning of lhe Book, p. 218-20. Ao mesmo tempo, o li-vro sempre se distinguiu dos demais bens duráveis por seu mercado intrinsecamen-te limitado. Quem quer que tenha dinheiro poda comprar carros checos; apenasquem lá checo comprará livros em checo. Mais adiante, iremos examinar a importân-cia ctsssa distinção.

69 Além disso, já em fins do século XV, o editor venaziano Aldus havia sido pioneirono lançamento da uma "edição de bolso" portátil.

60 Como demonstra o caso do Semanng W/tam, os dois tipos de bast-sellers costuma-vam ser méis estreitamente ligados do que hoje. Dickens também publicava como fo-lhetim em jamais populares seus romances populares.

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mais antigas mercadorias produzidas em série fizesse ante-ver assim a obsolescência implícita dos modernos produtosduráveis — cria, no entanto, exatamente por essa razão, es-ta extraordinária cerimónia de massa: o consumo ("o ima-ginar") quase que. exatamente simultâneo do jornal-como-ficção. Sabemos que determinadas edições matinais e ves-pertinas serão esmagadoramente consumidas entre tal e talhora, apenas neste dia, e não em outro. (Contraponha-seisso ao açúcar, cujo uso se processa num fluxo contínuo,não cronometrado; ele pode ficar ruim, mas não fica atra-sado.) A significação dessa cerimónia de massa — Hegelobservava que os jornais são, para o homem moderno,um substituto das preces matinais — é paradoxal. Ela sedesenrola em silenciosa intimidade, bem no fundo da cabe-ça, 61 Contudo, cada um dos comungantes está bem côns-cio de que a cerimónia que executa está sendo replicada, si-multaneamente, por milhares (ou milhões) de outros, de cu-ja existência está seguro, embora sobre cuja identidade nãopossua a menor ideia. Mais ainda, essa cerimónia é inter-minavelmente repetida a intervalos de um dia, ou de meiodia, ao correr do calendário. Como se poderia representarilustração mais vívida para a comunidade imaginada histo-ricamente cronometrada? 62 Ao mesmo tempo, o leitor dejornal, vendo réplicas exatas de seu jornal sendo consumi-das por seus vizinhos do metro, da barbearia ou de sua ca-sa, sente-se permanentemente tranquilo a respeito de queo mundo imaginado está visivelmente enraizado na vidaquotidiana. Como em Noli Me Tangere, a ficção desliza si-lenciosa e continuamente para dentro da realidade, crian-do aquela notável segurança de comunidade anónima que.é a marca de garantia das nações modernas.

61 "Material impresso estimulava a adesão silenciosa a causas cujos defensores não po-diam ser localizados em nenhuma localidade 9 que se dirigiam de longe a um públi-co invisível." Elizabeth L. Eisenstein, "Some Conjectures about trie Impact of Prirj-ting on Western Society and Thought", Jautri»! of Modern Hlstary, 40: 1 (marçode 1968), p. 42.

s3 Ao escrever sobre a relação entre a anarquia material da sociedade de classe médiae uma ordem estatal política abstraia, observa Nairn que "o mecanismo representa-tivo converteu a desigualdade ds ciasse real no igualitartsmo abstraio de cidadãos,os egoísmos individuais em vontade coletiva impessoal, o que de outro modo seriao caos dentro de urna nova legitimidade do Estado". The Break-up of Brítain, p. £4.Sem dúvida. Mas o mecanismo representativo (eleições?) á uma festa rara e móvel.A geração da vontade impessoal, penso eu, antes só encontra nas regularídadss diá-rias ds vida da imaginação.

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Antes de iniciar uma discussão das origens específicasdo nacionalismo, será conveniente recapitular as principaisproposições apresentadas até aqui. Afirmei, fundamental-mente, que a possibilidade mesma de se imaginar a naçãosó surgiu historicamente quando, e onde, três conceitosculturais básicos, todos extremamente antigos, deixaramde ter domínio axiomático sobre o pensamento dos ho-mens. O primeiro deles era a ideia de que uma determina-da língua escrita oferecia acesso privilegiado à verdade on-tológica, precisamente por ser parcela inseparável daquelaverdade. Foi essa ideia que permitiu que surgissem as gran-des congregações transcontinentais da cristandade, do isia-mismo e as demais. O segundo era a crença de que a socie-dade era organizada de maneira natural em torno de e sobcentros elevados — monarcas que eram pessoas distintasdos outros seres humanos e que governavam por algumaforma de disposição cosmoiógica (divina). As lealdades hu-manas eram necessariamente hierárquicas e centrípetas,porque o governante, como a escrita sagrada, era um pon-to central de acesso à existência e a ela inerente. Em tercei-ro lugar, a concepção de temporalidade, em que a cosmolo-gia e a história não se distinguiam, sendo essencialmenteidênticas as origens do mundo e dos homens. Essas ideias,associadas, enraizavam firmemente as vidas humanas naprópria natureza das coisas, conferindo determinado senti-do às fatalidades diárias da existência (sobretudo à morte,à privação e à escravidão) e propiciando vários modos delibertar-se delas.

Ajiecadência lenta e irregular dessas certezas encadea-das, primeiro na Europa ocidental e, depois, por toda par-te, sob o impacto da mudança económica, das "descober-tas" (sociais e científicas), e do desenvolvimento cada vezmais rápido das comunicações, cravou uma firme cunha en-tre a cosmologia e a história. Não é pois surpresa que abusca se processasse, por assim dizer, no sentido de um no-vo modo de tornar a vincular fraternidade, poder e tempode uma maneira significativa. Talvez nada acelerasse maisessa busca, nem a tornasse mais frutífera, do que o capita-lismo editorial, que tornou possível, a um número cadavez maior de pessoas, pensarem sobre si mesmas, e se rela-cionarem com outras, de maneira profundamente renovada.

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AS ORIGENS DACONSCIÊNCIA NACIONAL

Se o desenvolvimento da imprensa-como-mercadoriaé a chave da geração de ideias inteiramente novas de simul-taneidade, ainda assim estamos simplesmente no pontoem que se tornam possíveis comunidades do tipo "horizon-tai-secular, transversal ao tempo". Por que, dentro dessetipo, a nação se tornou tão popular? Os fatores envolvidossão obviamente complexos e variados. Pode-se, porém, de-fender com'vigor a primazia do capitalismo.

Como já foi assinalado, pelo menos 20 milhões de li-vros já haviam sido impressos em 1500, ' indicando o sur-gimento da "era da reprodução mecânica" de Benjamin.Se o conhecimento manuscrito era um saber escasso e mis-terioso, o conhecimento impresso vivia da reprodutibilida-de e da disseminação. 2 Se, como crêem Febvre e Martin,é possível que 200 milhões de volumes já tivessem sido ma-nufaturados por volta de 1600, não é de admirar que Fran-cis Bacon julgasse que a imprensa havia alterado "a apa-rência e o estado do mundo". 3

1 A população da Europa em QU9 a imprensa era então conhecida era du cerca de100.000.000. Febvre e Martin. The Corning of Ifie Book, p. 248-9.

2 Característico disso é o livro das viagens de Marco Polo, que permaneceu em gran-de medida desconhecido até sua primeira impressão em 1559. Polo, Travsls, p. XIII.

3 Citado em Eisansteín, "Some Conjectures", p. 56.

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Sendo uma das mais antigas formas de empresa capita-lista, a edição de livros era afetada por toda a busca inces-sante de mercados do capitalismo. As primeiras gráficasinstalaram filiais por toda a Europa: "desse modo, criou-se-uma verdadeira 'internacional' de editoras, que ignora-va fronteiras nacionais [sic]". 4 E cbmo os anos de 1500-1550foram um período de prosperidade excepcional na Europa,,a atividade editorial participou da expansão geral. "Maisdo que em qualquer outro tempo" ela foi "uma grande in-dústria sob o controle de abastados capitalistas". 5 Natu-ralmente, os "livreiros preocupavam-se primordialmenteem conseguir lucro e em vender seiis produtos e, conseqúen-temente, buscavam primeiramente aquelas obras que fossemde interesse para o maior número possível de seus contem-porâneos". 6

O mercado inicial foi a Europa letrada, ampla mas té-nue camada de leitores do latim. A saturação desse merca-do levou cerca de 150 anos. O fato decisivo quanto ao latim— fora sua sacralídade — é que ele era uma língua de biíín-gúes. Relativamente poucos haviam nascido para falar emlatim e menor número ainda, imagina-se, sonhava em latim.No século XVI, a proporção de bilíngues na população to-tal da Europa era muito pequena; muito provavelmentenão maior do .que a proporção na população mundial dehoje e — não obstante o internacionalismo proletário —dos próximos séculos. Naquela época, como hoje, a gran-de massa da humanidade é de monoglotas. Assim sendo,a lógica do capitalismo indicava que, uma vez que o merca-do latino de elite estava saturado, os mercados representa-dos pelas massas monoglotas, potencialmente enormes, se-riam o atrativo. É certo que a Contra-Reforma estimulouum ressurgimento temporário da atividade editorial em la-tim, mas, em meados do século XVII, o movimento esta-

4 Febvre o Martin. The Corning of the Book, p. 122. (O texto original, porém, fala sim-plesmente de "par-dessusles frorrtíères" í" por sobre as fronteiras"!. L 'Apparitíon, p. 194.)

6 Ibid., p. 187. O 1axtt> original fala ao capitalistas "puissants" (poderosos; a nlo "a-bastados". L'Apparitiorr, p. 281,

6 "Daf ter sido a introdução da imprensa, quanto a isso, uma atapa no caminho paranassa atuo soc-iedsde de consuma da massa e de padronização." Ibid., p. 259-60.(O textc original diz "une civilisation da masse et de standardisation", pue melhorse traduziria por "civilização padronizada, de massa". L'AppBrition, p. 394.5

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vá em decadência, e saturadas as bibliotecas ardorosamen-te católicas. Nesse meio tempo, uma escassez de dinheiropor toda a Europa levou as gráficas a pensar cada vezmais em vender edições baratas nas línguas vulgares. 7

O impulso revolucionário do capitalismo no sentidoda utilização das línguas vulgares recebeu um ímpeto adi-cional de três fatores externos, dois dos quais contribuíramdiretamente para o surgimento da consciência nacional. Oprimeiro deles, e em última análise o menos importante,foi uma alteração no caráter da própria língua latina. Gra-ças ao labor dos humanistas, fazendo renascer a enorme li-teratura da antiguidade pré-cristã e disseminando-a pormeio do mercado editorial, tornou-se patente, no seio da//l-telUgentsia transeuropéia, uma nova forma de apreciar oselaborados resultados estilísticos dos antigos. O latim queagora se pretendia escrever tornava-se cada vez mais cicero-niano e, como prova disso, cada vez mais afastado da vi-da eclesiástica e da vida quotidiana. Dessa maneira, ele ad-quiriu uma característica esotérica, muito diversa da do la-tim da Igreja da época medieval. Pois o antigo-latim nãoera obscuro devido a seu conteúdo ou a seu estilo, mas ape-nas por ser inteiramente escrito, isto é, devido a seu statuscomo texto. Agora, tornava-se obscuro devido ao que eraescrito, devido à linguagem em si mesma.

Em segundo lugar, foi o impacto da Reforma que,ao mesmo tempo, deveu muito de seu êxito ao capitalis-mo editorial. Antes da era da imprensa, Roma ganhava fa-cilmente todas as guerras contra a heresia na Europa oci-dental, porque sempre teve linhas internas de comunicaçãomelhores que seus desafiantes. Quando, porém, em 1517,Martinho Lutero afixou suas teses na porta da capela emWittenberg, elas foram impressas em tradução para o ale-mão e, "no espaço de quinze dias [haviam sido] conheci-das em todos os cantos do país". 8 Nas duas décadas de1520-1540, foram editados três vezes mais livros na Alema-nha do que no período de 1500-1520, transformação espan-tosa, para a qual Lutero foi absolutamente fundamental.

7lbid., p, 195.8 Ibid., p, 289-SO.

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Suas obras representaram nada menos do que um terçode iodos os livros em alemão vendidos entre 1518 e 1525.Entre 1522 e 1546, foram publicadas 430 edições (integraisou parciais) de suas traduções da'Bíblia. "Temos aí, pelaprimeira vez, uma verdadeira massa de leitores e uma litera-tura popular ao alcance de todo o mundo." 9 De fato, Lu-tero tornou-se o primeiro autor de grande vendagem conhe-cido como ta!. Ou, em outras palavras, o primeiro escritorque vendia seus Sivros novos com base no próprio nome. 10

Onde Lutero foi o primeiro, outros rapidamente se se-guiram, dando início à colossal propaganda religiosa queavassalou a Europa toda no correr do século seguinte. Nes-sa gigantesca "luta para conquistar o pensamento dos ho-mens' ', o protestantismo sempre esteve basicamente na ofen-siva, precisamente porque sabia como utilizar o crescentemercado da imprensa em língua vulgar que o capitalismocriava, enquanto que a Contra-Reforma defendia a cidade-la do latim. Símbolo disso é o índex Llbrorum Prohibito-rum do Vaticano — que não tinha correspondente no pro-testantismo —, catálogo singular que se fez necessário devi-do ao maciço volume de subversão impressa. Nada trans-mite melhor o sentido' dessa mentalidade de assédio do quea aterrorizante proibição de Francisco I, em 1535, que ve-dava a impressão de todo e qualquer livro em seu reino— sob pena de morte por enforcamento! A razão para es-sa proibição, e para sua inaplicabilidade, está em que, naépoca, as fronteiras orientais de seu reino estavam cerca-das por Estados e cidades protestantes que produziam umatorrente maciça de material impresso contrabandeável. Pa-ra nos atermos à Genebra de Calvino: entre 1533 e 1540,haviam sido publicadas ali apenas 42 edições, mas esse nú-mero subiu para 527, entre 1550 e 1564, e nesta última da-ta não havia menos de quarenta gráficas distintas trabalhan-do em horas extras. "

s Ibid., p. 291-5.10 A partir desse ponto, era só um passo pars a situação na França do século XVII, on-

de Corrwllla, Molíèra s La Fomaine •vendiam suas tragédias e comédias manuscritasdiretamente- aos editoras., que as compravam como investimentos excelentes, ten-do em vista a reputação de seus autores no mercado. Ibid., p. 161.

M Ibid. p. 310-5.

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A coalizão entre o protestantismo e o capitalismo edi-torial, que explorava edições populares baratas, criou rapi-damente grandes públicos leitores novos — inclusive entremercadores e mulheres, que tipicamente pouco ou nada. co-nheciam de latim — e simultaneamente mobilizava-os pa-ra fins político-religíosos. Inevitavelmente, não era apenasa Igreja que se abalava em seus fundamentos. O mesmoterremoto produziu os primeiros Estados europeus não di-násticos e não cidades-Estado de importância, na Repúbli-ca da Holanda e na Comunidade dos Puritanos. (O pâni-co de Francisco I era tão político quanto religioso.)

Em terceiro lugar, havia a disseminação, lenta e geo-graficamente desigual, de línguas vulgares específicas co-mo instrumento de centralização administrativa por deter-minados pseudomonarcas absolutos presuntivos bem posi-cionados. É conveniente que se lembre, aqui, que a univer-salidade do latim na Europa ocidental medieval jamais cor-respondeu a um sistema político universal. -É instrutivo ocontraste com a China Imperial, onde o âmbito da burocra-cia dos mandarins e a dos caracteres desenhados coincidiamem grande medida. Com efeito, a fragmentação políticada Europa ocidental, após o colapso do Império do Ociden-te, significava que nenhum soberano poderia monopolizaro latim e torná-lo sua língua oficial exclusiva e, desse mo-do, a autoridade religiosa do latim nunca possuiu um ver-.dadeiro correspondente político.

O nascimento das línguas vulgares administrativas aã-.tecedeu tanto a imprensa quanto a revolução religiosa doséculo XVI, e deve, por isso, ser encarado (pelo menos ini-cialmente) como fator independente na erosão da comuni-dade sagrada imaginada. Ao mesmo tempo, não há nadaque indique que quaisquer impulsos ideológicos, sem falarem protonacionaís, profundamente arraigados estivessemsubjacentes à utilização de línguas vulgares onde ela ocor-reu. O caso da "Inglaterra" — na periferia noroeste da Eu-ropa latina — é especialmente'esclarecedor. Anteriormen-te à invasão normanda, a língua da corte, literária e admi-nistrativa, era o anglo-saxão. No correr do século e meioseguinte, virtualmente todos os documentos reais eram es-critos em latim. Entre cerca de 1200 e 1350, esse latim ofi-

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ciai foi substituído pelo francês normando. Enquanto isso,uma lenta fusão entre essa língua de uma classe dirigenteestrangeira e o anglo-saxão da população submetida deuorigem ao inglês primitivo. Essa fusão tornou possível quea nova língua, após 1362, viesse a ser a língua da corte— e para a abertura do parlamento. Veio a seguir, em 1382,a Bíblia manuscrita em língua vulgar, de Wycliffe. u É fun-damental que se tenha ern mente que essa sequência consti-tuía uma série de línguas "de Estado", e não "nacionais";e que o Estado envolvido abrangia, em épocas diversas,não apenas a Inglaterra e o País de Gales de hoje, mas tam-bém partes da Irlanda, da Escócia e da França. Obviamen-te, enormes parcelas das populações submetidas conheciampouco ou nada de latim, francês normando, ou inglês pri-mitivo. l3 Só depois de quase um século após a entroniza-ção política do inglês primitivo é que o poder de Londresfoi varrido para fora da "França".

No Sena, teve lugar movimento semelhante, ainda queem ritmo mais lento. Como diz ironicamente Bloch, "o fran-cês, vale dizer uma Síngua que, uma vez que era encaradameramente como forma adulterada do latim, levou diver-sos séculos para erguer-se à dignidade literária", M apenasse tornou a língua oficial dos tribunais de justiça em 1539,quando Francisco I expediu o Edito de Villers-Cotterêts. l5

Em outros reinos dinásticos, o latim sobreviveu por muitomais tempo — sob os Habsburgos até bem tardiamente noséculo XIX. Em outros, ainda, línguas vulgares "estrangei-

'ras" se impuseram: no século XVIII, as línguas da cortedos Romanovs eram o francês e o alemão. !6

Em todo caso, a "escolha" da língua parece consti-tuir-se num desenvolvimento gradual, não deliberado, prag-mático, para não dizer casual. Como tal, era inteiramentediferente das políticas linguísticas deliberadas perseguidaspelos dinastas do século XIX, que enfrentavam a ascensão

1S Seton-Walso-ri, Netions and States, p. 28-9; Bloch, Feudal Society, l, p. 75.w Não se deve supor que a unificação da língua vulgar administrativa tenha sido realiza-

da Imediatamente ou tis maneira completa, É improvável que a Guiana, governadaa partir de Londres, tivesse sido administrada originariamente ern inglês primitivo.

M Bloch, Feudai Sociery, l, p,. 98.15 Seton-Walsoo, Netfons anrf Slates, p. 48,'«Ibid., p, 83.

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de nacionalismos linguísticos populares hostis. (Ver maisadiante, Cap. 6.) Sinal claro dessa diferença é que as anti-gas línguas administrativas eram precisamente isto: línguasutilizadas pelo mundo oficial, por sua própria conveniênciainterna. Não havia qualquer ideia de se impor sistematica-mente a língua às diversas populações submetidas ao dihas-ta. " 'Não obstante, a promoção dessas línguas vulgaresao stattts de línguas-do-poder, onde, em certo sentido, eramconcorrentes do latim (o francês, em Paris, o inglês [primi-tivo], em Londres), contribuiu à sua maneira para a deca-dência da comunidade imaginada da cristandade.

No fundo, é provável que a esoterização do latim, aReforma e o desenvolvimento casual das línguas vulgares ad-ministrativas sejam significativos, neste contexto, primordial-mente em sentido negativo — como tendo contribuído pa-ra o destronamento do latim e para a erosão da comunida-de sagrada da cristandade. É perfeitamente possível conce-ber o surgimento das novas comunidades nacionais imagina-das, sem que algum deles, talvez nenhum deles, estivessepresente. Num sentido positivo, o que tornou imagináveisas novas comunidades foi uma interação semifortuita, masexplosiva, entre um sistema de produção e de relações pro-dutivas (capitalismo), uma tecnologia de comunicações (a im-prensa) e a fatalidade da diversidade linguística do homem. IS

O elemento de fatalidade é fundamental. Pois pormais que o capitalismo fosse capaz de feitos sobre-huma-nos, ele encontrou na morte e nas línguas dois tenazes ad-versários.19 Determinadas línguas podem morrer ou ser ex-terminadas, mas não havia, nem há, possibilidade de umaunificação linguística geral do homem. Contudo, essa in-compreensibilidade recíproca era historicamente apenas de

17 Confirmação compatível dessa afi/mação ofereça-nos Francisco ! que, como vimos,proibiu toda e qualquer impressão de livros em 1535 e, quatro anos depois, fé: dofrancês a língua de sua cortei

18 Esse não foi a primeiro "acidente" dessa natureza. Febvre e Martin observam que,embora Já existisse uma burguesia perceptível na Europa, em fins do século XIII, opapel não tevo uso generalizado antes do -final do século XIV. Somente a superfíciebem lisa do pape! tornou possível a reprodução maciça de textos o figuras — e Issonão ocorreu senão apôs outros setenta e cinco anos. Mas o papel náo era Invençãoeuropeia. Chegou ali vindo de uma outra história — a da China - por intermédio domundo Islâmico. Tfte Caming of t/ie Book, p. 22, 30 e 45.

15 N5o temos ainda multinacionais gigantes no mundo editorial.

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ligeira importância, até que o capitalismo e a imprensa crias-sem os maciços públicos leitores monoglotas.

Embora seja essencial manter em mente uma ideia defatalidade, no sentido de condição geral de diversidade lin-guística irremediável, seria equivocado fazer equivaler es-sa fatalidade àquele elemento comum às ideologias naciona-listas, que enfatiza a fatalidade primordial de determina-das línguas e de sua associação a unidades territoriais deter-minadas. O essencial é a influência recíproca entre fatalida-de, tecnologia e capitalismo. >ía Europa pré-imprensa e,naturalmente, em outras partes do mundo, a diversidadedas línguas faladas, aquelas línguas que, para seus falan-tes, eram (e são) a trama e a urdidura de suas vidas, eraimensa; tão imensa, de fato, que se o capitalismo editorialbuscasse explorar cada mercado potencial de língua vulgaroral, teria permanecido um capitalismo de proporções insig-nificantes. Mas esses idioletos variados eram passíveis dese agruparem, dentro de limites definidos, em número mui-to menor de línguas impressas! .A própria arbitrariedadede qualquer sistema de signos para sons facilitava o proces-so de agrupamento.20 (Ao mesmo tempo, quanto mais ideo-gráficos os signos, tanto mais vasta a zona de agrupamen-to potencial. Quanto a isso, pode-se descobrir uma espéciede hierarquia descendente partindo da álgebra, passandopelo chinês e pelo inglês, até os silabários regulares do fran-cês ou do indonésio.) Nada serviu para "agrupar" línguasvulgares correíatas mais do que o capitalismo que, dentrodos limites impostos pelas gramáticas e sintaxes, criou lín-guas impressas mecanicamente reproduzidas, passíveis dedisseminação pelo mercado. 21

zo Proveitosa exposição sobre essa questão encontra-se em S. H. Steinberg, Five Hun-dfett V&sra cfPrinting, cap. 5. O fato do o signo, ough ser pronunciado diferentemen-te nas palavras althaugh, bough. Itxigh. rougfi, cougti e hiccough demonstra tantoa variedade idiolâtica da qual proveio a ortografia Inglesa, agora padrão, quanto a ca-racterística ideográfica do produto final.

11 Digo "nada ssrvíu... mais do que o capitalismo" intencionalmente. Tanto Stelnbergquanto Eisenstein chegam muito perto de teornorf liar "a imprensa" que imprensa co-mo c gânio da história moderna, Febvre e Martin (amais se esquecem de que, por de-trás da imprensa, estio 33 gráficas e 35 companhias editoras. Nessa contexto, valelembrar que embora a imprensa tivesse sido Inventada primeiro na China, possivel-rrvante quinhentas anos antes de- seu aparecimento na Europa, nSo teve qualquer im-pacto de maior importância, rnuito menos revolucionário — precisamente devida âausência do capitalismo ia.

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Essas línguas impressas lançaram as bases para a cons-ciência nacional de três modos diferentes. Antes de maisnada, criaram campos unificados de intercâmbio e comuni-cação abaixo do latim e acima das línguas vulgares faladas.Os falantes da enorme variedade de línguas francesas, in-glesas, ou espanholas, que podiam achar difícil, ou atémesmo impossível, compreender-se reciprocamente em con-versa, tornaram-se capazes de compreender-se via impren-sa e papel. No correr do processo, tornaram-se gradativa-mente conscientes das centenas de milhares, até mesmo mi-lhões, de pessoas existentes em seu determinado campo lin-guístico .e, ao mesmo tempo, que apenas essas centenas demilhares, ou milhões, a ele pertenciam. Esses co-leitores,a que estavam ligados pela imprensa, formavam, em suavisível invisibilidade secular e peculiar, o embrião da comu-nidade nacionalmente imaginada.

Em segundo lugar, o capitalismo editorial atribuiu no-va fixidez à língua, que, a iongo prazo, ajudou a construiraquela imagem de antiguidade, tão essencial à ideia subjeti-va de nação. Como nos fazem lembrar Febvre e Martin,o livro impresso mantém uma forma permanente, passívelde reprodução virtualmente infinita, temporal e espacial-mente. Já não estava mais sujeito aos hábitos individualiza-dores e "inconscientemente modernizadores" dos escribasmonásticos. Desse modo, enquanto o francês do séculoXII distinguia-se acentuadamente do francês escrito porVíllon no século XV, a proporção de mudança diminuiudecisivamente no século XVI. "No século XVII as línguasda Europa haviam, de modo geral, assumido suas formasmodernas." 22 Em outras palavras, no decorrer de três sécu-los, essas línguas impressas estabilizadas foram se sedimen-tando; as palavras de nossos antepassados do século XVIInos são acessíveis de um modo que não eram, a Villon,seus ancestrais do século XII.

Em terceiro lugar, o capitalismo editorial criou Ifaguas-de-poder de uma espécie diversa da das antigas línguas vul-gares administrativas. Determinados dialeíos estavam inevita-velmente "mais próximos" de cada língua impressa e domi-

52 The Corning of the Book, p. 319. Cf. L'Apperition, p. 477: "Au XVII" siècle, lês lan-gues nationales apparaissant u n peu partout cristallisées". ("No século XVII, as lín-guas nacionais mostram-se cristalizadas por toda parta."!

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navam suas formas finais. Suas parentes em desvantagem,ainda assim assimiláveis à língua impressa que surgia, per-diam prestígio, antes.de mais nada por não serem bem-suce-didas (ou serem apenas relativamente bem-sucedidas) ao in-sistir em suas próprias formas impressas. O "alemão do no-roeste" tornou-se o Platt Deutsch, largamente falado, e as-sim um alemão subpadrão, porque era assimilável ao ale-mão impresso de uma maneira em que não o era o checo fa-lado da Boémia. O alto alemão, o inglês do rei e, mais tar-de, o tai central foram consequentemente elevados a uma no-va proeminência político-cultural.i (Daí as lutas, na Europadesse fim do século XX, de determinadas "sub "-nacionalida-des para alterarem seu síaíus subordinado forçando vigoro-samente a entrada na imprensa -—• e no rádio.)

Resta apenas salientar que, em suas origens, a fixaçãodas línguas impressas e a diferenciação de status entre elasforam, em grande medida, processos não. intencionais queresultaram da interação explosiva entre o capitalismo, a tec-.nologia e a diversidade Linguística humana. Mas, como tan-ta coisa mais na história do nacionalismo, uma vez "ali",elas se tornavam modelos formais a serem imitados e, quan-do vantajoso, conscientemenle exploradas dentro de um es-pírito maquiavélico. Hoje em dia, o governo tai desestimu-la ativamente as tentativas de missionários estrangeiros deoferecer a suas minorias tribais das montanhas sistemaspróprios de transcrição, e de desenvolver publicações emsuas próprias línguas: esse mesmo governo é em grande me-dida indiferente ao que essas minorias falam. O destinodos povos de fala túrquica nas zonas incorporadas à Tur-quia, Ira, Iraque e URSS atuais é especialmente exemplar.Família de línguas faladas, outrora agrupável por toda par-te, e portanto compreensível, dentro de uma ortografia ará-bica, perdeu aquela unidade em consequência de manipula-ções deliberadas. Para exaltar a consciência nacional daTurquia turca em detrimento de qualquer identificação mu-çulmana mais ampla, Atatúrk impôs uma romanização com-pulsória. 23 As autoridades soviéticas, seguiram o exemplo,primeiro corn uma romanização compulsória antimucul-

23 Hans Korin. The Age of Nationalism. p, 108. É provavelmente apenas justo acrescen-tar que K-crnal esperava lambam, por ess.e meio, par o nacionalismo turco ern linhacom a c iu Tire cie madeira, ramanítada, da Europa ocidental. •;

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mana e antipersa e, a seguir, na década stalinista de 1930,com uma cirilização russificante compulsória. 24

Podemos resumir as conclusões que se podem tirarda exposição até este ponto, dizendo que a convergênciado capitalismo e da tecnologia da imprensa sobre a diversi-dade fatal das línguas humanas criou a possibilidade deuma nova forma de comunidade imaginada que, em suamorfologia básica, prepara o cenário da nação moderna.A extensão potencial dessas comunidades era inerentemen-te limitada e, ao mesmo tempo, não mantinha senão amais fortuita relação com as fronteiras políticas existentes(que eram, em geral, o ponto culminante dos expansionis-mos dinásticos).

Contudo, é óbvio que, embora hoje em dia quase to-das as pretensas nações— e também as nações-Estado —possuam "línguas impressas nacionais", muitas delas pos-suem essas línguas em comum e, em outras, apenas umafração mínima da população "usa" a língua nacional emconversa ou no papel. Os Estados-nação da América Espa-nhola, ou os da "família anglo-saxônica" são exemplos no-táveis do primeiro resultado; muitos ex-Estados coloniais,particularmente na África, do segundo. Em outras pala-vras, a formação concreta dos Estados-nação contemporâ-neos não é de modo algum isomórfica com o alcance esta-belecido de determinadas línguas impressas. Para explicar-se a descontinuidade-em-conexão entre línguas impressas,consciências nacionais e Estados-nação, é necessário voltar-se para o amplo conjunto das novas entidades políticasque brotaram no hemisfério ocidental entre 1776 e 1838, to-das as quais se definiram conscientemente como nações e,com a curiosa exceção do Brasil, como republicas (não di-násticas). Pois não apenas eram elas historicamente os pri-meiros Estados desse tipo a surgir no mundo, e por issoforneceram inevitavelmente os primeiros modelos reais decom que deveriam esses Estados "se parecerem", como tam-bém o número delas e seu aparecimento simultâneo ofere-cem terreno fértil para um estudo comparativo.

Ji Seton-Watson. Nations and States, p, 317.

ANTIGOS IMPÉRIOS,NOVAS NAÇÕES

Os novos Estados americanos do final do século XVIIIe início do século XIX são de interesse incomum, por pare-cer quase impossível explicá-los em termos dos dois fatoresque, provavelmente por poderem ser facilmente deduzidosa partir dos nacionalismos da Europa de meados do sécu-lo, têm sido dominantes em muito do pensamento europeua respeito do surgimento do nacionalismo.

Em primeiro lugar, quer se pense no Brasil, nos EUAou nas antigas colónias da Espanha, a língua não era umelemento que os diferenciasse de suas respectivas metrópo-les imperiais. Todos eles, inclusive os EUA, eram Estadoscrioulos, constituídos e dirigidos por pessoas que comparti-lhavam uma língua e uma descendência comuns com aque-les contra os quais lutavam. ] Na verdade, é justo que sediga que a língua nunca foi sequer um tema nessas antigaslutas pela libertação nacional.

Em segundo lugar, há sérias razões para se duvidarda aplicabilidade, em grande parte do hemisfério ocidental,da tese de Nairn, em outros casos convincente, e segundoa qual: 2

1 Crioula — pessoa da descendência europeia pura [pelo menos teoricamente), paremnascida na América rã, mais tarde, por extensão, srn qualquer lugar fora tia Europa!.

2 77» Brsak-up ofõritein, p. 41.

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O advento do nacionalismo num sentido distintamente mo-derno esteve ligado ao batismo político das classes inferio-res... Ainda que às vezes hostil à democracia, os movimen-tos nacionalistas têm tido uma perspectiva invariavelmen-te populista e procurado arregimentar as classes inferiorespara a vida política. Em sua versão mais típica, isto assumiu a forma de uma ciasse média e de uma liderança inte-lectual inquietas, que procuram incitar e canalizar as ener-gias das classes populares para a sustentação dos novos.Estados.

Pelo menos na América do Sul e na América Central,as "classes-médias" ao estilo europeu ainda eram insignifi-cantes no final do século XVIII. Como também não haviaalgo semelhante a uma intelligenisia. Pois "naqueles dias

. tranquilos da colónia era pouca a leitura a interromper oritmo faustoso e.snob da vida das pessoas". 3 Como vimos,o primeiro romance hispano-americano só foi publicadoem 1816, bem depois da deflagração das guerras de inde-pendência. Os indícios .sugerem claramente que a lideran-ça estava nas mãos de ricos proprietários de terras, em alian-ça com um número muito menor de comerciantes e de di-versos tipos de profissionais liberais (advogadas, militares,funcionários locais e provinciais). 4

Ao contrário de procurar "arregimentar .as classes in-feriores para a vida política", um fator-chave,que, de iní-cio, estimulou o impulso para a independência em relaçãoa Madri, em casos tão importantes como a Venezuela, oMéxico e o Peru, era o medo de mobilizações políticas da"classe inferior": a saber, rebeliões de índios ou'de escra-vos negros. 5 (Esse medo só aumentou quando o "secretá-rio do Espírito Mundial" de Hegel conquistou a Espanhaem 1808, privando assim os crioulos de apoio militar da pe-nínsula em caso de emergência.) No Peru, ainda estavamvivas as lembranças da grande jacquerie liderada por Tu-

3Gerhard Masur, Simon Bolívar, p. 17.4 Lynch, The Spanish-Amef/can Revo/utíons, p. 14-7 e flnssim, Essas proporções pro-

vem do faio de que as (unções comorciais o sdmirtistraiifas mais importantes oramem grande medida monopolizadas pelos espanhóis natos, enquanto a propriedade ciaterra era inteiramente aberta aos crioulos.

s Quanto s isto, há analogia evidente com o nacionalismo Bóer de um século mais tarde.

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pac Amarú (1740-1781). 6 Em 1791, Toussaint L'Ouvertu-re comandou uma insurreição de escravos negros, quedeu origem, em 1804, à segunda república independentedo hemisfério ocidental — e aterrorizou os grandes fazen-deiros da Venezuela, donos de escravos. 7 Quando, em1789, Madri expediu uma-no vá lei, mais humanitária, so-bre escravidão, especificando pormenorizadamente os di-reitos e os deveres dos senhores e dos escravos, "os criou-los repudiaram a intervenção estatal com base em que osescravos eram propensos ao vício e à independência [!] eeram fundamentais para a economia. Na Venezuela —'• naverdade, por todo o Mar das Caraíbas espanhol — os fa-zendeiros se opuseram à lei e promoveram sua revogaçãoem 1794". 8 O próprio Libertador Bolívar opinou, certavez, que uma revolta de negros era "mil vezes pior queuma invasão espanhola". * Também não devemos esque-cer que muitos dos líderes do movimento de independên-cia das Treze Colónias eram magnatas agrários donos deescravos. O próprio Thomas Jefferson estava entre os fa-zendeiros da Virgínia que, na década de 1770, se irritaramcom a proclamação do governador legalista que concediaUberdade aos escravos que rompessem com seus senhoressediciosos. 10 É instrutivo que uma das razões pelas quaisMadri conseguiu retornar com êxito à Venezuela, entre1814 e 1816, e manter, até 1820, o domínio sobre a longín-qua Quito, foi ela ter conseguido o apoio dos escravos,naquela, e dos índios, nesta, em sua luta contra os criou-los rebeldes, ll Além disso, a prolongada duração da lu-ta continental contra a Espanha, na época uma potênciaeuropeia de segunda ordem, e que fora, ela mesma, recen-temente subjugada, indica certa "fragilidade social" des-ses movimentos de independência latino-americanos.

6 Talvez seja notável qu« Tupac Amarú não lenha rapudiado completamenta a compro-misso de fidelidade ao rei espanhol. Ele e seus seguidores (na maior parte índios,mas também alguns brancos e mestiços) ínsurglram-se contra'a administração de Li-ma: Masur, Bolívar, p. 24.

7 Seton-Wstson. Noticns and Síntes, p. 201.11 Lynch, Tho Spanfsli-Amaficori ftovolulions, p. 192.a l b i d . , p . 224.

10 Edward 5. Morgars, "Trie Haart of Jelferson", The tJsw HM* Review -o/ Books, 17d« agasto tfe 1&78, p. 2.

11 Masur, Bolívar, p. 207; Lyncri, The Spanfsíi-Americen fíevolutions, p, 237.

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Contudo, eles eram movimentos de independência na-cional. Bolívar mudou de opinião a respeito dos escravos 12

e San Martin, seu companheiro de luta pela libertação, de-cretou, em 1821, que, "no futuro, os aborígenes não deve-rão ser chamados de índios, ou de nativos; eles são filhose cidadãos do Peru e deverão ser conhecidos como perua-nos". 13 (Poderíamos acrescentar: a despeito do fato deque, até então, o capitalismo editorial não havia ainda che-gado a esses analfabetos.)

Eis então o enigma: por que precisamente as comuni-dades crioulas é que desenvolveram tão precocemente con-cepções de sua nation-ness — bem antes da maior parteda Europa? Por que essas províncias coloniais, abrangen-do em geral grandes populações oprimidas que não falavamo espanhol, deram origem a crioulos que, deliberadarnen-te, redefiniram tais populações como compatriotas? E a Es-panha, 14 à qual estavam ligados de tantas maneiras, co-mo inimigo estrangeiro? Por que o Império hispáno-ameri-cano, que tivera existência tranquila durante três séculos,fragmentou-se tão subitamente em dezoito Estados distintos?

Os dois fatores mais comumente mencionados comoexplicação são o enrijecimento do controle exercido porMadri e a disseminação das ideias liberalizantes do Ilumi-nismo, na última metade do século XVIII. Não há dúvidade que é verdade que as políticas implantadas pelo hábil"déspota esclarecido" Carlos III (r. 1759-1788) decepciona-ram, irritaram e alarmaram cada vez mais a classe alta criou-la. Naquilo que, por vezes, tem sido sardonicamente cha-mado de segunda conquista das Américas, Madri lançou

12 Não sem algumas idas e vindas. Elo libertou seus escravos pouco depois da declara-ção de independência da Venezuela, em 1810. Quando fugiu para o Haiti em 1816,conseguiu ajuda militar do Presidente Alexandre Pétion, em troca da promessa determinar com a escravidão em todos os territórios libertados. A promessa foi cumpri-da em Caracas, em 1818 — mas é preciso lembrar que os êxitos de Madri na Vene-zuela, entre 1314 e 1316, se deveram em parte è emancipação pela metrópole dosescravos leais. Quando Bolívar sã tornou presidente da GrS-Colombia (Venezusta, No-va Granada e Equador), em 1821, solicitou e obteve do Congresso uma lei libertan-do os filhos de escravos. "Não solicitara ao congresso que abolisse a escravatura,por não querer atrair sobre si o ressentimento dos grandes proprietários de terra."Masur, Bolívar, p. 125, 206-7, 329 e 38B.

13 Lynch, The Spanisfi-Amerícan Revolutions, p, 276, Grifos nossos.14 Anacronismo. No século XVIII, o tarmo comum era ainda Lãs Espartas [As Espinhas]

e não Espana (Espanha). Seton-Watson, Naiions ertd States, p. 53.

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novos impostos, tornou mais eficiente sua arrecadação, for-taleceu os monopólios comerciais metropolitanos, restringiuem benefício próprio o comércio intra-hemisfério, centrali-zou as hierarquias administrativas e promoveu intensa imi-gração de peninsulares, 1S O México, por exemplo, no iníciodo século XVIII, provia a Coroa com uma renda anual decerca de 3.000.000 de pesos. No finai do século, porém, es-sa quantia quase quintuplicara, atingindo 14.000.000, dosquais apenas 4.000.000 eram utilizados no custeio da admi-nistração local. 16 Paralelamente à isso, o nível da migraçãopeninsular na década de 1780-1790 era cinco vezes maiordo que havia sido entre 1710-1730. "

• Não há dúvida, também, de que a melhoria das comu-nicações através do Atlântico, além do fato de as diversasAméricas compartilharem línguas e culturas com suas res-pectivas metrópoles, significava transmissão relativamenterápida e fácil das novas doutrinas económicas e políticasque se estavam produzindo na Europa ocidental. O êxitoda revolta das Treze Colónias, em fins da década de 1770,e o começo da Revolução Francesa, em fins da de 1780,não deixaram de ter uma influência poderosa. Nada me-lhor para confirmar essa "revolução cultural" do que o re-publicanismo que impregnou as comunidades recém-inde-pendentes.18 Em parte alguma houve qualquer tentativa sé:

ria de reinstaurar o princípio dinástico nas Américas, a nãoser no Brasil; mesmo ali, isso provavelmente não teria si-do possível, não fosse a imigração, em 1808, do próprio di-nasta português, fugindo de Napoleão. (Ele permaneceuali por treze anos e, ao regressar, teve seu filho coroado lo-calmente como Pedro I do Brasil.)

Contudo, a agressividade de Madri e o espírito do li-beralismo, ainda que fundamentais para a compreensãodo impulso de resistência na América espanhola, não expli-

15 Essa nova agressividade metropolitana era, em parta, produto das doutrinas do Ilu-minismo, em parta, de problemas fiscais crónicos a, em parto, após 1779, da guer-ra com a Inglaterra. Lynch, The Spanísh-American Revotutions, p. 4-17. *

18 Ibid., p. 301. Quatro míriSBS iam para subsidiar a administracío de outras partesda América, enquanto seis milhões eram de puro lucro.

" Ibid., P. 17.1B A Constituição da Primeira República Venezuelana t1B11) era, em muitas partes, to-

rrada de emptíslímo, palavra por palavra, da dos Estados Unidos. Masur, Bot/ver, p. 131.

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cam, por si sós, por que entidades como o Chile, a Vene-zuela e o México vieram a tornar-se emocionalmente plau-síveis e politicamente viáveis; l9 nem por que San Martindevesse decretar que determinados aborígenes fossem iden-tificados pelo neologismo "peruanos". Nem, afinal de con-tas, apresentam a razão'dos verdadeiros sacrifícios que fo-ram feitos. Pois, embora seja certo que as classes altas criou-las, concebidas como formações sociais históricas, saíram-se muito bem com a independência ao longo do tempo,muitos membros concretos dessas classes, que viveram en-tre 1808 e 1828, ficaram financeiramente arruinados. (Ape-nas um exemplo: durante a contra-ofensiva de Madri, em1814-1816, "mais de dois terços das famílias proprietáriasde terras sofreram pesados confiscos''. 20) E outros tantosderam a vida voluntariamente pela causa. Essa disposiçãoao sacrifício por parte de classes em situação confortávelé matéria para reflexão.

E então? O começo de uma resposta encontra-se nofato notável de que "cada' uma das novas repúblicas sul-americanas havia sido uma unidade administrativa entreos séculos XVI e XVIII". 21 Quanto a isso, prenunciaramos novos Estados da África e de partes da Ásia, em mea-dos do século XX, e contrastam marcadamente com os no-vos Estados europeus do final do século XIX e início do sé-culo XX, A configuração original das unidades administra-tivas americanas era, em certa medida, arbitrária e fortui-ta, assinalando os limites espaciais de determinadas conquis-tas militares. Com o correr do tempo, porém, elas desen-volveram uma realidade mais estável,1 sob a influência defatores geográficos, políticos e económicos. A própria vas-tidão do Império hispano-americano, 'a* enorme variedadede seus solos e climas e, sobretudo, a imensa dificuldadede comunicações numa era pré-industriaí contribuíram pa-ra dar a essas unidades um caráter de auto-suficiência. (Naépoca colonial, a jornada marítima de Buenos Aires a Aca-

19 O mesmo se pode dizer da postura de Londres diante das Treze Colónias, o da ideolo-gia da Revolução de 1776.

20Lynch, The Spanish-AmericanRevotutíons. p. 20B; cf. Masur, Bolívar, p. S8-9 e 231.21 Masur, Bolívar, p, 678,

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pulco levava quatro meses, e a viagem de volta às vezesmais tempo; a viagem por terra de Buenos Aires a Santia-go demorava normalmente dois meses, e a Cartagena, no-ve. 22) Além disso, as políticas comerciais de Madri resulta-vam em fazer das unidades administrativas zonas económi-cas separadas. "Toda competição com a mãe-pátria era ve-dada aos americanos e as distintas partes do continentenão podiam sequer comerciar entre si, As mercadorias ame-ricanas, em curso de um lado a outro da América, tinhamde fazer uma tortuosa viagem via portos espanhóis, e a na-vegação espanhola tinha o monopólio do comércio comas colónias." 23 Essas experiências ajudam à explicar porque "um dos princípios básicos da revolução americana"foi o do "utipossidetis, segundo o qual cada nação mante-ria o status quo territorial de 1810, ano em que se haviaminiciado os movimentos pela independência''. 24 Sua influên-cia contribuiu também, sem dúvida, para a desintegraçãoda efémera Grã-Colômbia de Bolívar e das Províncias Uni-das do Rio da Prata em seus antigos elementos constituti-vos (hoje em dia conhecidos como Venezuela-Colômbia-Equador e Argentina-Uruguai-Paraguai-Bolívia). Não obs-tante, mercados regionais de caráter "natural"-geográficoou político-administrativo, por si sós, não criam lealdades.Quem estaria disposto a morrer pelo Comecon ou pela CEE?

Para perceber de que modo unidades administrativaspodem, com o correr do tempo, vir a ser concebidas co-mo pátrias, não só na América como também em outraspartes do mundo, é preciso examinar de que modo organi-zações administrativas criam significado. O antropólogoVictor Turner tem escrito de maneira esclarecedora a res-peito da "jornada", entre tempos, síaíus e lugares, comouma experiência criadora de significado. 2S Todas essas jor-

42 Lynch, The Spanish-Amerícen Revolutions, p. 25-6,23 Masur, Bolívar, p. 19. Naturalmente, essas medidas eram apenas em parte executá-

veis e sempre continuou a haver certa porção de contrabando.**lbid., p. 546.25Ver.de sua autoria, TheForesíof Symbols, Aspecrsof Ndembít Ritual, especialmen-

te a capítulo "BatwlM and Between: Thn Llminal Period ín ftius de Psssage". Elabo-ração posterior mais e-nmplsxa ertcontra-s.e ern seu Dramas, Fieids. and Metaphors,Svmhotic Actron in Hatnan Soci&ty. capítulo 5 ("Pilgiimages as Social Processes")e S ("Passagas, Margíns, and Pcvarty: Religi-ous Symbols c-f Cornmunitas").

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nadas exigem interpretação (por exemplo, a jornada donascimento à morte deu origem a diversas concepções reli-giosas). Para nossos fins, a jornada modal é a peregrina-ção. Não é simplesmente que, na mente dos cristãos, "mu-çulmanos ou hindus, as cidades de Roma, Meca ou Bena-res fossem os centros de geografias sagradas, mas sim quesua centralidade era vivenciada e "realizada" (no sentidoda arte cénica) pelo fluxo constante de peregrinos que sedeslocavam em sua direção, vindos de localidades longín-quas entre as quais não existia qualquer outra relação. Naverdade^ em certo sentido, os limites externos das antigascomunidades religiosas da imaginação eram determinadospelo tipo de peregrinação que as pessoas faziam. 26 Comojá assinalamos anteriormente, a estranha justaposição físi-ca de malaios, persas, indianos, berberes e turcos em Me-ca é algo incompreensível sem uma noção de alguma for-ma de comunidade entre eles. O berbere que encontra omalaio diante da caaba deve, por assim dizer, indagar-se:"Por que esse homem está fazendo o que faço, pronuncian-do as mesmas palavras que pronuncio e, no entanto, nãopodemos falar um com o outro?" Existe uma única respos-ta, uma vez que se aprenda: "Porque nós.., somos muçul-manos". Pôr certo, sempre houve ura duplo aspecto da co-reografia das grandes peregrinações religiosas: vasta multi-dão de analfabetos, falantes de língua vulgar, forneciam adensa realidade física da viagem cerimonial; enquanto queum pequeno segmento de iniciados letrados bilíngues, oriun-dos 'de cada uma das comunidades de língua vulgar, execu-tavam os ritos unificadores, interpretando para seus respec-tivos seguidores o significado de seu movimento coletivo. 27

Numa época pré-imprensa, a realidade da comunidade reli-giosa imaginada dependia profundamente de inúmeras econtínuas viagens. Nada é mais impressionante a respeito

™ Ver Bloch, Feudal Society. l, p. 64." Existe, neste caso. analogia evidente com os respectivos papéis ctas intetligentsias

bilingues e dos operários a camponeses, na maioria analfabetos, na génese de deter-minadas movimentos nacionalistas — antes do advento do rádio. Inventado apenasem 1895, o rádio tornou possível ignorar a irnprensa e dar nascimento a uma repre-sentação auditiva da comunidade Imaginada, onde a página impressa dificilmente pe-netrava. Ssu papel nas revoluções vietnamita e indonésia e, em geral, nos nacionalis-mos da meados do século XX, tem sido muito subestimado e muito mal estudado.

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da cristandade ocidental em seu auge do que o fluxo espon-tâneo de fiéis seguidores vindos de toda parte da Europapara Roma, através dos célebres "centros regionais" deaprendizado monástico. Essas grandes instituições de falalatina congregavam o que hoje talvez víssemos como irlan-deses, dinamarqueses, portugueses, alemães e assim por dian-te, em comunidades cujo significado sagrado era diariamen-te revelado a partir da justaposição de seus membros no re-feitório, justaposição que não se poderia explicar de qual-quer outra maneira.

Embora as peregrinações religiosas sejam provavelmen-te as mais tocantes e grandiosas jornadas da imaginação,elas tinham, e têm, equivalentes seculares mais modestose limitados,2S Para nossos fins, as mais importantes foramas diferentes viagens criadas pelo aparecimento das monar-quias absolutas e, finalmente, dos impérios mundiais comcentro na Europa. O impulso inerente ao absolutismo eraa criação de um aparato unificado de poder, controlado di-retamente pelo governante, e leal a ele, em oposição a umanobreza feudal particularista e descentralizada. Unificaçãosignificava permutabilidade interna de homens e documen-tos. A permutabilidade humana era favorecida peia arregi-mentação — naturalmente de extensão variável — de homi-nesnovi, os quais, exatamente por essa razão,'não possuíampoder independente propriamente seu, e, assim, atuavamcomo emanações das vontades de seus senhores. 29 Dessemodo, os funcionários dó absolutismo empreendiam jorna-das que eram fundamentalmente diferentes das dos nobresfeudais. 3° Essa diferença pode ser representada esquemati-camente da seguinte maneira: na jornada modal feudal, oherdeiro do Nobre Á, com a morte de seu pai, ascendiaum degrau para ocupar o lugar daquele pai. Essa ascensão

." A "peregrinação secular" não deve ser tonada apenas como um tropo extravagan-te. Conrad estava sendo iionico, mas também preciso, ao descreve' corno "paregri-ncs" os agentes espectrais <Je Leopoldo II na profundeza das trevas,

23 Especialmente onde; (a) a monogamia era imposta pela religião B pela lei; (h) a primo-genitura era a regra; (c) os títulos não-dinâsticcsetam não só hersditárlos como con-ceptuais e legalmente distintas de postas administrativos: isto é, quando as aristo-cracias das províncias possuíam poder independente significativo - a Inglaterra,

em oposição ao S ião.'« Ver Bloch, Feudal Soctety. II, p, 422 st saqs.

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exigia uma viagem de ida e volta, até o centro para recebera investidura, e de retorno à casa, para os domínios ances-trais. Para o novo funcionário, porém, as coisas são maiscomplexas. O talento, e não a morte, é que traça sua car-reira. Vê diante de si um cume e não urn centro. Escalasuas geleiras por uma série de arcos que o circundam, osquais, espera, se tornarão menores e mais firmes à medi-da que se aproxime do topo. Enviado para a municipalida-de A no posto V, pode retornar à capital no posto W; vai,a seguir, para a província B no posto X; prossegue para ovice-reino C no posto Y; e termina sua peregrinação na ca-pital no posto Z. Nessa jornada, não há lugar seguro de re-pouso; toda pausa é provisória. A última coisa que o fun-cionário quer é regressar à pátria; pois ele não tem pátriacom qualquer valor intrínseco. E mais: em sua rota espiralde ascensão, depara-se com companheiros de peregrinaçãoigualmente ansiosos, seus colegas funcionários, oriundosde lugares e de famílias de que pouco ouviu falar e que es-pera certamente jamais ter de ver. Porém, com a experiên-cia de tê-los como companheiros de viagem, emerge umaconsciência de conexão ("Por que estamos nós... aqui...juntos!"), sobretudo quando todos compartilham de umaúnica língua-de-Estado. Então, se o funcionário A, vindoda província B, administra a província C, enquanto o fun-cionário D, da província C, administra a província B — si-tuação que o absolutismo começa a tornar provável — es-sa experiência de permutabilidade exige uma explicação pró-pria: a ideologia do absolutismo que, tanto quanto o sobe-rano, os próprios homens novos elaboram.

A permutabilidade de documentos, que fortalecia apermutabilidade humana, nutria-se do desenvolvimentode uma língua-de-Estado padronizada. Como demonstraa imponente sucessão do anglo-saxão, latim, normando einglês primitivo em Londres, do século XI ao XIV, qual-quer língua escrita pode, em princípio, desempenhar essafunção — desde que se lhe atribuam direitos monopolísti-cos. (Pode-se, contudo, argumentar que, onde aconteceude línguas vulgares, em vez do latim, assumirem o monopó-lio, obteve-se uma função centralizadora mais profunda,pela restrição do deslocamento dos funcionários de um so-

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berano para as máquinas de seus adversários: por assim di-zer, garantindo, que funcionários-peregrinos de Madri nãofossem permutáveis com os de Paris.)

Em princípio, a expansão extra-européia dos grandesreinos do início da Europa moderna teria simplesmente am-pliado o modelo acima ao desenvolver as enormes burocra-cias transcontinentais. Na verdade, porém, isso não aconte-ceu. A racionalidade instrumental do aparato absolutista— sobretudo sua tendência a recrutar e promover com ba-se no talento e não no nascimento — funcionou apenas in-termitentemente para além do litoral oriental do Atlântico.31

O padrão é muito evidente na América. Por exemplo,dos 170 vice-reís da América espanhola antes de 1813, ape-nas 4 foram crioulos. Esses números são ainda mais impres-sionantes se observarmos que, em 1800, menos de 5% dos3.200.000 crioulos "brancos" do Império Ocidental (quese impunham aos cerca de 13.700.000 indígenas) eram espa-nhóis nascidos na Espanha. Às vésperas da revolução doMéxico, só havia um bispo crioulo, embora os crioulosno vice-reinado superassem os peninsulares na proporçãode 70 para 1. 32 E não é preciso dizer que dificilmente se sa-bia de algum, crioulo que ascendesse a um posto de impor-tância oficial na Espanha. 33 Além disso, as peregrinaçõesde funcionários crioulos não eram barradas apenas vertical-mente. Se os funcionários peninsulares podiam percorrera rota de Saragoça a Cartagena, Madri, Lima e de novoMadri, o crioulo "mexicano" ou "chileno" típico presta-

31 Evidentemente, não 16 deve exagerar essa racionalidade. O caso do Reino Unido,em que os católicos foram Impedidos de exercer cargos públicos até 1829, não éúnico. Haverá quam duvide que essa prolongada exclusão tenha desempenhado pa-pel Importante no fonalecirnanto do nacionalismo Irlandês?

11 Lynch, The Spsnísh-Ameiican ftevolaiions, p. 18-9, 293. Descerca de 1 S.000penin-sulares, melada eram soldados.

13 Na primeira década do século XIX, parece não ter havido em momento algum maisde 400 sul-amerlcanps residentes na Espanha. Entre eles, o "argentino" San- Martin,que foi levado para a Espanha quando criança, e ali passou os 27 anos seguintes, in-gressou na Academia Real para jovens fidalgos/ e desempenhou papel destacadona luta armada contra Napoleão antas de regressar à terra natal, quando soube dssua declaração do Independênciaj e Ba II vá r qua, por al-gtim tempo, foi hóspede emMadri de Manuel Mello, amante "americano" da rainha Maria Lulsa. Masur contaque Bolívar pertencia [c. 18051 a "urn grupo de jovens suf-arnaricanos" qua, comoele, "eram ricos, ociosas s mal vistos na Corte. O rancor e o sentimento de inferiori-dade d-e muitos crioulos em relação 9 metrópole iam-se tornando neles impulsos revo-lucionários". Botfver, p, 41-7 e 468-70 (San Marttn).

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vá serviços nos territórios do México ou do Chile coloniais;seu movimento lateral era tão tolhido quanto sua ascensãovertical. Desse modo, o ápice de sua escalada espiral, o cen-tro administrativo mais alto para o qual podia ser designa-do, era a capital da unidade administrativa imperial emque se encontrava. 34 Contudo, nessa peregrinação limita-da encontrava companheiros de viagem, os quais acabavampor perceber que o companheirismo entre eles não se basea-va apenas naquele determinado .trecho da peregrinação,mas na fatalidade, que compartilhavam, do nascimentotrans-Atlântico. Ainda que tivesse nascido na primeira se-mana dep.ois da migração do pai, o acidente do nascimen-to na América destinava-o à subordinação — ainda que,em termos de língua,, religião, origem familiar, ou manei-ras, fosse praticamente indistinguível de um espanhol nasci-do na Espanha. Não havia nada a fazer quanto a isso: eleera irremediavelmente um crioulo. Contudo, quão irracio-nal deve ter parecido sua rejeição! Não obstante, ocultana irracionalidade estava esta lógica: nascido na'América,não podia ser um verdadeiro espanhol; ergo, nascido naEspanha, ò peninsular não podia ser um verdadeiro ameri-cano. 35

O que fazia com que essa, exclusão parecesse racionalna metrópole? Sem dúvida a confluência de um venerável

34 Com a correr do tempo, as peregrinações militares tornaram-se tSo importantes quan-to as civis. "A Espanha não possuía nem dinheiro nem efetivos para manter grandesguarnicães do tropas regulares na América, f) contava principalmente com milíciascoloniais que, a partir de meados do século XVIII, foram ampliadas e reorganizadas,"(Ibid., p. 10.) Essas milícias eram inteiramente locais, e hio peças intercambiáveisde um aparato continental de segurança. Da 1760 em diante, desempenharam papelcada vez mais crítico, à medida que se multiplicavam as incursões britânicas, O paide Bolívar fora um aminônte comandante de milícia, defendendo os portos venezuela-nos contra os invasores. O próprio Bolívar, quando adolescente, servira na antigaunidade de seu pai. (Masur, Boltvar. p, 30 e 381, Quanto a isso, ele foi típico da mui-tos da primeira geração de lideras nacionalistas da Argentina: da Venezuela e do Chl-lê. VerRobert G. Gilmore, CaudiUism antf Militarism ir> Venezuela, J810-J910 capítu-los 6 ("The Militia"! a 7 ("Thia Mllitary"), •

ís Observe as transformações que a independência trouxe para os-americanos: os Imi-grantas de primeira geração tornavam-se agora "os mais baixos" ao invés de "osmais altos", isto é, aqueles mais contaminados por um local ds nascimento inevitá-vel. Inversões semelhantes ocorrem em reação ao racismo. O '.'sangue negro" — anódoa negra — veio a ser visto, sob o imperialismo, iomò irremediavelmente conta-minadorpara qualquer "branco". Hoje em dia, pelo menos nos Estados Unidos, o "mu-lato" é peça de museu. O mais ligeiro traço de "sangue negro" torna a pessoa intei-ramente negra. Compare isso com o programa otimista de miscigenação de Fermíne sua ausência de preocupação com a cor da descendência esperada.

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maquiavelismo com o desenvolvimento de concepções decontaminação biológica e ecológica, que se seguiram à dis-seminação planetária de europeus e do poder europeu, doséculo XVI em diante. Da perspectiva do soberano, os criou-los americanos, em número cada vez maior e com crescen-te enraizamento a cada geração que se sucedia, apresenta-vam um problema político historicamente singular. Pelaprimeira vez, as metrópoles tinham que lidar com números— para aquela época — enormes de "patrícios europeus"(mais de três milhões na América espanhola, em 1800) re-motamente afastados da Europa. Se os indígenas podiamser conquistados pelas armas e pelas doenças, e controla-dos pelos mistérios da cristandade e de uma cultura inteira-mente estranha (bem como pôr' uma organização políticaavançada para a época), o mesmo não se dava em relaçãoaos crioulos, que tinham, com as armas, as doenças, a cris-tandade e a cultura europeia, virtualmente a mesma rela- •cão >que os metropolitanos. Em outras palavras, po:diam,em princípio, dispor prontamente dos recursos políticos,culturais e militares para se afirmarem com êxito. Consti- 'tuíam simultaneamente uma comunidade colonial e umaclasse superior. Deviam ser economicamente subjugados eexplorados, mas também eram essenciais à estabilidade doimpério. Com isso em mente, pode-se observar certo para-lelismo entre a posição dos magnatas crioulos e a dos ba-rões feudais, fundamentais para o poder do soberano, mastambém uma ameaça a ele. Desse modo, os peninsulares en-viados como vice-reis e bispos desempenhavam as mesmasfunções que os hominesnovi das burocracias proto-absolu-ttstas. 3S Ainda que o vice-rei fosse uma pessoa eminenteem sua terra andaluza, aqui, distante treze mil quilómetros,sobreposto aos crioulos, ele era efetivamente um homo no-vus inteiramente dependente de seu patrão metropolitano.O equilíbrio tenso entre o funcionário peninsulaj e o mag-nata crioulo era,, assim, em novo cenário, uma expressãoda velha política do divide et impera.

ís Dada a grande preocupação de Madri com que a administração das colónias estivas-se em mios confiáveis, "eia axiomático que os sitos postos fossem praenchidos ex-clusivanrente por eSpanh-Sis naios". Masur. Bolívar, p. 10,

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Ademais, o crescimento das comunidades crioulas,principalmente nas Américas, mas também em certas par-tes da África e da Ásia, levou inevitavelmente ao apareci-mento de eurasianos, eurafricanos, bem como euramerica-nos, não como curiosidades casuais, mas como grupos so-ciais evidentes. Seu surgimento permitiu que prosperasseum estilo de pensamento que prenuncia o moderno racis-mo. Portugal, o. mais antigo dos conquistadores planetá-rios da Europa,' fornece uma ilustração adequada disso.Na última década do século XV, D. Manuel I pôde ainda"resolver" sua "questão judaica" pela conversão obrigató-ria em massa — sendo possivelmente o último governanteeuropeu a considerar essa solução não só satisfatória co-mo "natural". 37 Menos de um século depois, porém» en-contramos Alexandre ^Valignano, o grande reorganizadorda missão jesuíta na Ásia, entre 1574 e 1606, combatendoveementemente a admissão de indianos e eurindianos ao sa-cerdócio, nos seguintes termos: 3S

->

Todas essas raças pardas são muito broncas e corrompi-das e de índole a mais torpe... Quanto aos mestiços e cas-tiços, devemos aceitar muito pouco deles, ou nenhum; es-pecialmente com respeito aos mestiços, uma vez que quan-to mais sangue nativo possuem, mais se assemelham aosindianos e menos são estimados pelos portugueses.

(No entanto, Valignano estimulou ativamente a admissão dejaponeses, coreanos, chineses e "indochineses" à profissãosacerdotal — talvez por não haver ainda, nessas regiões,mestiços em número suficiente?) Analogamente, os francis-canos portugueses de Goa combateram violentamente a ad-missão de crioulos na ordem, alegando que "mesmo quan-do nascidos de pais brancos puros, foram amamentadospor aias indianas na primeira infância e, assim, têm o san-gue contaminado por toda a vida". 39 Boxer demonstraque as barreiras e exclusões "raciais" aumentaram notavel-mente no correr dos séculos XVII e XVIII, em comparaçãocom a prática anterior. Pesada contribuição para essa

''Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825, p. 286.3»lbid.. p. 252.'9lbld., p. 253.

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perniciosa tendência foi dada pelo renascimento da escravi-dão em larga escala (pela primeira vez na Europa, desde aantiguidade), a qual teve o pioneirismo de Portugal a par-tir de 1510. Já na década de 1550, 10% da população deLisboa era de escravos; em 1800, 'havia perto de um milhãode escravos entre os cerca de 2.500.000 habitantes do Bra-sil português. 40

Indiretamente, o Iluminismo influenciou também acristalização de uma distinção irrevogável entre metropolita-nos e crioulos. No curso de seus vinte e dois anos no po-der (1755-1777), o autocrata esclarecido Pombal não só ex-pulsou os jesuítas dos domínios portugueses, como tambémclassificou como infração criminosa chamar os súditos "decor" por nomes ofensivos, tais como "negro" ou "mesti-ço" [sic]. Justificou, porém, esse decreto citando antigasconcepções romanas de cidadania imperial, e não as doutri-nas dos philosophes. 41 Ainda mais tipicamente, as obrasde Rousseau e de Herder, que afirmavam que o clima e a"ecologia" tinham efeito constitutivo sobre a cultura e ocaráter, exerceram ampla influência. 42 A partir daí, era ex-tremamente fácil fazer a dedução vulgar e conveniente deque os crioulos, nascidos em um hemisfério selvagem, eram,pela própria natureza, diferentes dos metropolitanos e infe-riores a eles — e, portanto, inadequados para cargos demaior importância. *3

Até aqui, nossa atenção tem-se concentrado nos inte-resses dos funcionários na América — importantes, estrate-gicamente, mas, ainda assim, interesses menores. Além dis-so, eram interesses que, com seus conflitos entre peninsula-res e crioulos, antecipavam o aparecimento da consciêncianacional americana dos fins do século XVIII. As peregrina-ções vice-reais limitadas não tiveram consequências decisi-vas, até que suas extensões territoriais puderam ser imagi-

*° Rona Fields, The Portuguese Revotution ancf tfis Armed Forces Movement, p. 15.41 Boser, The Portuguesa Seaborne Èmpirc, p. 257-B.*2 Kernilàinen. Nationalism. p. 72-3.<3 Tenho ríslçado aqui as distinções rací-sias entre peninsulares e crioulos, porque o te-

ma principal de que estamos tratando é o surgimento do nacionalismo crioulo. Issonão deve ser compreendido como minimização da crescimanto paralelo do racismocrioulo em relação a mestiços, negros e índios; nem a disposição de uma metrópolen Só emeacada de proteger (-até ce-lo ponto) esses infelizes.

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nadas como nações, em outras.palavras, até o advento docapitalismo editorial.

A imprensa chegou cedo à Nova Espanha, mas perma-neceu durante dois séculos sob o estrito controle da coroae da Igreja. Até fins do século XVII, só havia gráficas naCidade do México e em Lima, e sua produção era quaseque exclusivamente ligada à Igreja. Na América do Norteprotestante, a imprensa praticamente não existiu nesse sécu-lo. No correr do século XVIII, porém, teve lugar uma ver-dadeira revolução. Entre 1691 e 1820, foram editados na-,da menos de 2.120 "jornais", 461 dos quais duraram pormais de dez anos. 44

A figura de Benjamin Franklin está indelevelmente as-sociada ao nacionalismo crioulo na América do Norte. Aimportância de seu negócio, porém, pode ser menos eviden-te. Mais uma vez, Febvre e Martin nos esclarecem. Lem-bram-nos que "a imprensa de fato não se desenvolveu naAmérica do Norte durante o século XVIII, até que os im-pressores descobrissem uma nova fonte de renda — o-jor-nal". "5 Os gráficos que abriam novas oficinas incluíam sem-pre um jornal em sua produção, do qual eram comumen-te o colaborador principal, senão único. Assim, o gráfico-jornalista foi, de início, um fenómeno essencialmente nor-te-americano. Uma vez que o principal problema enfrenta-do pelo gráfico-jornalista era atingir os leitores, desenvol-veu-se uma associação tão estreita com o agente do correioque, frequentemente, eles se tornavam um só. Daí ter aoficina gráfica surgido como o ponto chave das comunica-ções e da vida intelectual da comunidade nos EUA. NaAmérica espanhola, ainda que de modo.mais lento e inter-mitente, processo semelhante deu origem, na segunda meta-de do século XVIII, às primeiras gráficas locais. 46

Quais eram as características dos primeiros jornais,norte ou sul-americanos? Eles começavam fundamentalmen-te como prolongamentos do mercado. Os mais antigos jor-nais continham — ao lado de notícias sobre a metrópole

"'"'The Cornin9 of the Book'Pi 208"11 •48 Franco, An Introduction, p. 28.

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— notícias comerciais (partidas e chegadas de navios, quaisos preços, para que mercadorias, em que portos), bem co-mo ordenações políticas coloniais, casamentos dos ricos, eassim por diante. Em outras palavras, o que colocava la-do a lado, na mesma página, este casamento com aquelenavio, este preço cora aquele bispo, era a própria estrutu-ra da administração e do sistema de mercado coloniais.Desse modo, o jornal de Caracas, de maneira muito natu-ral e até mesmo apolítica, criava uma comunidade imagina-da entre uma determinada congregação de companheiros-leitores, à qual pertenciam esses navios, noivas, bispos epreços. Naturalmente, só se podia esperar que, com o cor-rer do tempo, aí entrassem elementos políticos.

Um traço criativo desses jornais era sempre seu provin-cianismo. Um crioulo colonial, se tivesse oportunidade, po-dia ler um jornal de Madri (o qual, porém, não diria na-da sobre seu mundo), mas muitos funcionários peninsula-res, morando na mesma rua, não leriam o que se produziaem Caracas se pudessem deixar de fazê-lo. Assimetria, es-ta, que podia repetir-se infinitamente em outras situaçõescoloniais. Outro traço desse tipo era a pluralidade. Os pe-riódicos hispano-americanos que se desenvolveram no fi-nal do século XVIII eram compostos com plena consciên-cia da existência de provincianos em mundos paralelos aoseu. -Os leitores de jornal da Cidade do México, de BuenosAires e de Bogotá, ainda que não lessem os jornais unsdos outros, estavam no entanto perfeitamente conscientesde sua existência. Daí a conhecida duplicidade do naciona-lismo hispano-arnericano primitivo, a alternância entre seuextenso âmbito e seu localismo particularista. O fato deos primeiros nacionalistas mexicanos escreverem, sobre simesmos, corno nosotros los americanos e, sobre seu país,corno nuestra América\m sido interpretado como revela-dor da vaidade dos crioulos locais que, por ser o México,de longe, a mais valiosa das possessões da América espa-nhola, se consideravam o centro do Novo Mundo. 47 De fa-to, porém, por toda a América espanhola, as pessoas pen-

47 Lvach, The Spsnísk-AmerJcen fievaSulions, p. 33,

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savam em si mesmas como "americanas", uma vez que es-sa expressão denotava precisamente a fatalidade do nasci-mento extra-espanhol que compartilhavam. "8

Ao mesmo tempo, vimos que a própria concepçãodo jornal implica na refracão de "eventos mundiais" idên-ticos em um determinado mundo imaginado de leitores nalíngua vulgar; e, também, em quão importante é, para es-sa comunidade imaginada, uma ideia de simultaneidade fir-me e sólida através do tempo. A imensa extensão do Impé-rio hispano-americano e o isolamento de suas partes com-ponentes tornavam difícil imaginar uma simultaneidade co-mo essa. *9 Os crioulos mexicanos podiam saber, mesesmais tarde, de acontecimentos ocorridos em Buenos Aires,mas isso se daria por intermédio dos jornais mexicanos,não dos do Rio da Prata; e tais acontecimentos antes pare-ceriam "ser semelhantes aos" acontecimentos ocorridosno México, do que "fazer parte deles".

Nesse sentido, o "fracasso" da experiência hispano-americana em gerar um nacionalismo de âmbito hispano-americano permanente reflete, ao mesmo tempo, o nível ge-ral de desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia emfins do século XVIII, e o atraso "local" do capitalismo eda tecnologia na Espanha em relação à extensão adminis-trativa do império. (A época da história mundial em quenasce cada nacionalismo tem, provavelmente, um impactosignificativo sobre seu alcance. Não será o nacionalismo in-diano inseparável da unificação administrativa e de merca-do da colónia, após a Insurreição, realizada por poderes im-periais os mais terríveis e avançados?)

Ao norte, os crioulos protestantes de fala inglesa esta-vam em posição muito mais favorável para concretizar aideia de "América" e, na verdade, acabaram por ter êxitoem apropriar-se do título habitual de "americanos". AsTreze Colónias originárias compreendiam uma área menor

49 "Um peão velo queixar-se de que um inspetor espanhol de sua estância havia bati-do nele. San Martin ficou indignado, mas era antes uma indignação nacionalista doque socialista. 'Ora, veja sol Depois de três anos de revolução, um maturrango [vulg.,espanhol peninsular] se atreve a erguer a mão para um americano!'." Ibid., p. 87,

49 Evocação fascinante da lonjura e do isolamento das populações hispano-americanasá a descrição da fabulosa Macondo, feita por Márquaz em Cem anos de solidão.

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do que a Venezuela e equivalente a um terço do tamanhoda Argentina. M Estando todas elas juntas geograficamen-te, os mercados de Boston, Nova York e Filadélfia eram fa-cilmente acessíveis uns aos outros e suas populações liga-das de maneira relativamente firme pela imprensa, tantoquanto pelo comércio. Os "Estados Unidos" puderammultiplicar gradativamente seu número no correr dos 183anos seguintes, à medida que populações antigas e novasse deslocaram rumo ao oeste a partir do núcleo litorâneodo leste. Contudo, mesmo no caso dos EUA, há elementosde "fracasso" ou retração comparáveis — a não incorpora-ção do Canadá de fala inglesa, a década de soberania inde-pendente do Texas (1835-1846).'Se, no século XVIII, tives-se existido uma comunidade de fala inglesa de bom tama-nho na Califórnia, não seria provável que tivesse surgidoali um Estado independente, pára atuar como uma Argen-tina em relação ao Peru das Treze Colónias? Até mesmonos EUA, os laços afetivos de nacionalismo foram suficien-temente elásticos, associados à rápida expansão da frontei-ra oeste e às contradições geradas entre as economias donorte e do sul, a ponto de precipitar uma guerra de seces-são quase um século depois da Declaração da Independên-cia; e, hoje, essa guerra nos faz lembrar vivamente as quesepararam violentamente a Venezuela e o Equador da Grã-Colômbia, e o Uruguai e o Paraguai, das Províncias Uni-das do Rio da Prata. 51

À guisa de conclusão provisória, é conveniente voltara acentuar a pretensão limitada e específica da exposiçãoque fizemos até aqui. O que se pretende é menos explicaras bases socioeconômicas da resistência antinietropolitanano hemisfério ocidental entre, digamos, 1760 e 1830, doque a razão por que a resistência se concebeu sob formas

50 A superfície,total das Tieze ColCnlas era de 835.202 quilómetros quadrados. A daVenazuala. 311.£3-0; da Argentina, 2.776.439; e da América do Sul hispínica,8.860,965 dui!õrnetros quadrados.

51 O Paraguai constitui um caso de excepcional interesse. Graças à ditadura relativa-mente benevolente alt estabelecida pelos jesuítas em princípios do século XVII, os in-dígenas foram mais bem tratados do que em qualquer outra parte da América espa-nhola 9 o Guarani alcançou o steíus <Je língua impressa. Com a expulsão dos jesuí-tas da América espanhola pala Coroa, em 1767, -o território passou para o Rio de Pra-ia, mas multo tardiamente & por pouco mais de uma geração. VarSaton-Watson, tJa-liorr$ ancf States, p, 200-1.

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nacionais "plurais" — e não de outras formas. Os interes-ses económicos ern jogo são bem conhecidos e, obviamen-te, de importância fundamental. O liberalismo e o Ihiminis-mo tiveram evidentemente um efeito muito forte, sobretu-do propiciando um arsenal de crítica ideológica do regimeimperial e dos anciens regimes. O que estou sugerindo éque nem o interesse económico, nem o liberalismo, nem oIluminismo podiam criar, ou criaram, por si sós, o tipo,ou a forma, de comunidade imaginada que se protegessecontra a espoliação daqueles regimes; ern outras palavras,nenhum deles proporcionou o quadro de uma nova consciên-cia — a mal percebida periferia de sua visão.— em oposi-.cão ao que estava no foco central de sua admiração ou de-sagrado. 52 No cumprimento desta tarefa específica, os fun-cionários crioulos peregrinos e os homens de imprensa criou-los provincianos tiveram o papel histórico decisivo.

54 É ilustrativo que a Declaração da Independência de 1776 fale somente de "o povo",enquanto a patavra "nação" só aparece pola primeira vez na Constituição de 1789.'Kcrnílãinen, Netionslism, p. 105.

ANTIGAS LÍNGUAS,NOVOS MODELOS

O término do período de movimentos de libertação na-cional bem-sucedidos na América coincidiu quase que exa-tamente com o início da época do nacionalismo na Euro-pa. Se considerarmos o caráter desses novos nacionalismosque, entre 1820 e 1920, alteraram a fisionomia do VelhoMundo, dois traços notáveis os distinguem de seus precur-sores. Em primeiro lugar, em quase todos, as "línguas im-pressas nacionais" foram de fundamental importância ideo-lógica e política, enquanto que o espanhol e o inglês ja-mais foram temas na América revolucionária. Em segun-do lugar, todos tiveram condições de aluar a partir de mo-delos disponíveis propiciados por seus predecessores remo-tos e, .após as convulsões da Revolução Francesa, não tãoremotos. A "nação" tornou-se, assim, algo a que se podiaaspirar desde o início, e não que se fosse definindo gradati-vamente. Na verdade, como veremos, a "nação" mostrouser uma invenção que era impossível patentear. Ela se tor-nou suscetível de plágio por mãos as mais variadas e, porvezes, imprevistas. Por isso, neste capítulo, o centro denossa análise será a língua impressa e o plágio.

Com leviana despreocupação a respeito de alguns fa-tos evidentes extra-europeus, o grande Johann Gottfriedvon Herder (1744-1803) declarou, em fins do século XVIII,que: "Denn/ecfes Volk i st Volk; es liai seine National Bil-

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dung wie seine Sprache". ' ["Assim, todo povo é povo;ele possui sua formação nacional como possui sua língua".]Essa concepção notavelmente e«£-européia da nation-nesscomo algo vinculado a uma língua própria e exclusiva te-ve ampla influência na Europa do século XIX e, mais limi-tadamente, nas teorias subsequentes sobre a natureza donacionalismo. Quais as origens desse sonho? O mais prová-vel é que.se encontrem na profunda redução do mundo eu-ropeu, em tempo e espaço, que teve início já no século XIV,causado inicialmente pelas escavações dos humanistas e»posteriormente, de maneira bastante paradoxal, pela expan-são planetária da Europa.

Como bem o diz Auerbach: 2

Com a primeira alvorada do humanismo, começou a havei1um sentimento de que os eventos da história e da lendaclássicas, bem como os da Bíblia, não estavam separadosdo presente unicamente por uma extensão de tempo, mastambém por condições completamente diversas de vida.Com seu programa de restauração das antigas formas devida e de expressão, o humanismo cria uma perspectivahistórica em profundidade tal como nenhuma época ante-rior de que temos conhecimento jamais possuiu: os huma-nistas vêem a antiguidade em profundidade histórica e, so-bre esse pano de fundo, o período intermediário de trevasda Idade Média... [Isso tornou impossível] restabelecer avida autárquica natural da antiga cultura, ou a ingenuida-de histórica dos séculos Xíl e XIII,

O desenvolvimento do que se pode chamar "história com-parada" levou, com o tempo, à concepção até então inau-dita de uma "modernidade" explicitamente justaposta à"antiguidade", e de modo algum necessariamente em bene-fício desta última. A questão foi encarniçadamente debati-da na "Batalha dos Antigos e Modernos" que dominou avida intelectual francesa na última quarta parte do século •XVII. 3 Citando mais uma vez Auerbach, "Na época deLuís XIV, os franceses tiveram a 'coragem de considerar

1 KemilâMen, Nstionalism. p. 42. Grifos nossos.2 M/mesis, p. 282. Grifo nosso.

3 A batalha se iniciou em 1639, quando Charles Perra u't, com 69 anos, publicou seupoema Síécíe de LQUIU lê Grend, que afirmava que as ar.es e as ciências haviam atin-gido plena prosperidade em seu próprio tempo e lugar.

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sua própria cultura como um modelo válido em igualdadede condições com a dos antigos, e impuseram essa opiniãoao resto da Europa".4

No correr do século XVI, a "descoberta" feita pelaEuropa das grandiosas civilizações de que até então só seouvira falar vagamente — na China, Japão, Sudeste daÁsia e no subcontinente indiano — ou que eram completa-mente desconhecidas — o México asteca e o Peru incaico— sugeria um irremediável pluralismo humano. Em suamaior parte, essas civilizações haviam-se desenvolvido com-pletamente isoladas da história conhecida da Europa, dacristandade, da antiguidade, na verdade do homem: suasgenealogias eram exteriores e inaâsimiláveis ao Éden. (So-mente o tempo homogéneo e vazio permitiria acomodá-las.) O impacto das "descobertas" pode ser aferido pelasgeografias peculiares das sociedades imaginárias da época.A Utopia de Thomas Morus, surgida em 1516, simulavaser o relato de um marinheiro que o autor encontrou emAntuérpia, o qual participara da expedição de AméricoVespúcio à América, em 1497-1498. A Nova Atlântida deFrancis Bacon (1626) foi talvez original sobretudo porquese localizava no Oceano Pacífico. A majestosa Ilha dosHouyhnhnms, de Swift (1726), apresentava um mapa fictí-cio de sua localização no Atlântico Sul. (Ô significado des-ses cenários fica mais claro se se considerar quão inimagi-nável seria localizar a República de Platão em qualquer ma-pa, fictício ou real.) Todas essas utopias enganosas, "mode-ladas" sobre descobertas reais, são descritas, não como Pa-raísos perdidos, mas como sociedades contemporâneas. Po-deria afirmar-se que tinham de ser assim, uma vez que fo-ram compostas como críticas a sociedades contemporâneas,e que as descobertas tinham dado fim à necessidade de bus-car modelos em uma antiguidade desaparecida. 5 Na estei-ra dos utopistas, vieram os astros do Ilumimsmo, Viço,Moníesquieu, Voltaire e Rousseau que, cada vez mais, ex-

* Mimesis, p. 343. Observe que Auerbacn diz "cultuis" e não "língua". Deveríamostambém sar parcimoniosos, em atribuir "fisrton-r.esf" a assa "sua própria".

5 Analogamente, há um claro contraste entre os cois famosos mongíis do teatro inglês.Tamburlaifia r/te Qraat (1587-158.8], da Marlowe, descreve um fabuloso dirtasta mor-to desde 1407. Aurangieb \fàlfi). de Dtyden, rettala um Imperador contemporâneoreinante n 358-1707],

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pioraram uma não-Europa "real" para uma bateria deobras subversivas dirigidas contra as instituições sociais epolíticas europeias então vigentes. De fato, tornou-se possí-vel pensar a Europa como apenas uma entre muitas civiliza-ções, e não necessariamente a Escolhida, ou a melhor. 6

No devido teiripo, as descobertas e conquistas causa-ram também uma revolução nas ideias europeias a respeitoda língua. Desde os primeiros momentos, marinheiros, mis-sionários, comerciantes e soldados portugueses, holandesese espanhóis, por motivos práticos — navegação, conversão,comércio e guerra — colecionaram listas de palavras de lín-guas não-européias, que seriam reunidas em dicionários ele-mentares. Mas somente em fins do século XVIII é que o es-tudo comparado de línguas, de caráter científico, realmen-te se iniciou. Pa conquista inglesa de Bengala se originaramas investigações pioneiras de William Jones sobre o sânscri-to (1786), que levou a uma compreensão crescente de que.a civilização indiana era muito mais antiga do que a da Gré-cia ou da Judéia. Da expedição de Napoleão ao Egito veioa decifração dos hieróglifos por Champollion (1835), "quemultiplicou a antiguidade extra-européia. 7 Progressos nosestudos semíticos abalaram a ideia de que o hebreu fossesingularmente antigo, ou de proveniência divina. Mais umavez, iam-se concebendo genealogias que só poderiam conci-liar-se em um tempo homogéneo e vazio. "Â língua tornou-se menos urna continuidade entre um poder exterior e o fa-lante humano do que um terreno interior criado e realiza-do, entre eles mesmos, pelos usuários da língua." 8 Dessasdescobertas surgiu a filologia, com seus estudos de gramáti-ca comparada, classificação de línguas em famílias e, pordedução científica, reconstruções de "protolínguas" tira-das do esquecimento. Como observa correiamente Hobs-bawm, ali estava "a primeira ciência a encarar a evoluçãocomp sua própria essência". 9

0 Assim, enquanto o imperialismo europeu abria vigorosamente seu caminho descuida-do pelo mundo, outras civilizações se viam traumaticamente confrontadas por pluralis-mos que aniquilavam suas genealogias sagradas. A marginalizarão do Império do Cen-tro para o Extremo Oriente é simbólica desse processo.

' Hobsbawm, The Age of Revolution, p. 337,8 Edward Said, Otientatism, p. 136.s Hobsbawm, The Age of Revolulion. p. 337.

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A partir daquele momento, as antigas línguas sagra-das — o latim, o grego e o hebreu — foram obrigadas amisturar-se em condições de igualdade ontológica com va-riegada e plebeia multidão de línguas vulgares rivais, nummovimento que complementava sua .degradação anteriorno mercado pelo capitalismo editorial. Se agora todas aslínguas compartilhavam um status (intra)mundano comum,então, em princípio, eram todas igualmente dignas de estu-do e de admiração'. Mas por quem? Logicamente, uma vezque agora nenhuma delas pertencia a Deus, pôr seusnovps'donos: os falantes — e leitores — nativos de cada língua.'.

Como nos mostra de maneira muito proveitosa Seton-Watson, o século XIX foi, na Europa e em sua periferiaimediata, uma idade do ouro para os lexicógrafos, gramáti-cos, filologistas e literatos das línguas vulgares. '? A vigoro-sa atividade desses intelectuais profissionais foi fundamen- •tal na moldagem dos nacionalismos europeus do séculoXIX, em total contraste com a situação na América entre1770 e 1830..Os dicionários raonolíngúes eram enormescompêndios do tesouro impresso de cada língua, que se po-diam transportar (ainda que às vezes com dificuldade) da .oficina para a escola, do. escritório para a casa, Os dicioná-rios bilíngues tornavam evidente um igualitarismo mais apro-.ximador entre as línguas — fosse qual fosse a realidade po-lítica exterior, dentro das capas do dicionário Checo-ale-mão/Alemão-checo, as línguas, lado alado, possuíam idên-tico staíus. Os rriourejadores visionários que dedicavamanos e anos à compilação dos dicionários eram necessaria-mente levados para as grandes bibliotecas dá Europa, so-bretudo as das universidades, ou por elas sustentados. E amaior parte de sua clientela imediata constituía-se, não me-nos inevitavelmente, de estudantes universitários ou pré-universitários. A afirmação de Hobsbawm de que "o pro-gresso das escolas e das universidades dá a medida do nacio-nalismo, exatamente como as escolas, e particularmente as

10 "Exatsmente porque a historiais língua, hoje em dia, é, em geral', mantida tão rigi-damente separada da historia política, económica e social convencional, é quçtfné pa-receu desejável associá-la a estas, ainda que com o risco de menor domínio da área."Nations and States, p. 11. De lato. um dos aspectos mais valiosos do texto de Se-ton-Wauon é exatamems a stençáo que dedica à historia da língua — embora sepossa discordai do modo como a utiliza,

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universidades, se tornaram seus paladinos mais conscien-tes", certamente está correia em relação à Europa do sécu-lo XIX, se não para outras épocas e lugares. "

Pode-se, assim, reconstituir essa revolução lexicográfi-ca como se poderia fazer com o estrondàr de um arsenalem chamas, quando cada pequena explosão acende outras,até que a explosão total final transforma a noite em dia.

Em meados do século XVIII, o extraordinário traba-lho de estudiosos alemães, franceses e ingleses não apenashavia tornado acessíveis, em formas impressas de fácil ma-nejo, virtualmente todo o corpus existente dos clássicos gre-gos, juntamente com os anexos filológicos e lexicográficosnecessários, como também recriavam, em dezenas de livros,a antiga civilização helénica, fulgurante e firmemente pa-gã. No último quartel do século, esse "passado" tornou-se cada vez mais acessível a um pequeno número de jovensintelectuais cristãos de fala grega, a maioria dos quais ha-via estudado ou viajado para fora dos limites do ImpérioOtomano. l2 Entusiasmados pelo filo-helenismo dos cen-tros da civilização europeia ocidental, empenharam-se em"desbarbarizar" os gregos modernos, isto é, em transfor-má-los em seres dignos de Péricles e de Sócrates. 13 Símbo-lo dessa mudança de consciência são as seguintes palavrasde um desses jovens, Adamantios Koraes (que mais tarde,se tornou um ardoroso lexícógrafo!), em discurso paraum público francês, em Paris, em 1803: M

Pela primeira vez, a nação reconhece o espetáculc horroro-so de sua ignorância e estremece ao avaliar a distância

11 The Age a! Revolufion, p. 166. As instituições académicas não tiveram significadopara os nacionalisrnos americanos. O próprio Hobsbawm observa que, embora hou-vesse 6.000 estudantes universitários em Paris, na época, eles n5o desempenharamvirtualmente pape! algum na Revolução Francesa (p. 167). Ele também nos faj ver,proveitosamente, que, embora a educação se disseminasse rapidamente na primei-

, rã metade da século XIX, o número de adolescentes nas escolas ainda era mínimopelos padrões de hoje: não mais de 19,000 estudantes de lyoée na França, em 1842;20.000 alunos no secundário, numa população de 68.000,000 da Rússia Imperial,

* em 1850; e um total aproximado da 48.000 estudantes universitários em toda a Eu-i ropa, em 1848. Nas revoluções deste ano, porém, esse grupo reduzido, mas estraté-

gico, desempenhou papel essencial (p. 166-7).

12 Os primeiros jornais gregos surgiram em 1784, em Viena, Philike Hetairia, a socieda-• de secreta responsável sm grande medida pelo levante antiotomano de 1821, foi fun-

dada "em Odessa, o grande novo porto russo rfe grãos", em 1814.13 Ver a introdução de Elíe Kedouríe a Nalionalism ín Ásia en<j África, p. 40.1-1 Ibid., p. 43-4. Grifo nosso. O texto integrai de Koraes, "The Present State of Cíviliza-

tion In Greece" encontra-se nas p. 157-82. Ele contém uma análise espantosamen-te moderna das bases sociológicas de nacionalismo grego.

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que a separa da glória de seus ancestrais. Essa dolorosadescoberta, porém, não lança os gregos no desespero: so-mos os descendentes dos gregos, dizem tacitamente a simesmos, e, ou devemos tentar tornar-nos novamente dig-nos desse nome, ou não devemos ostentá-lo.

Analogamente, em fins do século XVIII, apareceramgramáticas, dicionários e histórias do romeno, seguidosde um movimento, inicialmente bem-sucedido nos reinosdos Habsburgos e, posteriormente, nos dos otomanos,em prol da substituição do alfabeto cirílico pelo alfabetoromano (distinguindo nitidamente o romeno das vizinhaslínguas eslavas ortodoxas). l5 Entre 1789 e 1794, a Acade-mia Russa, moldada na Academia Francesa, produziuum dicionário russo em seis volumes, a que se seguiu,em 1802, uma gramática oficial. Ambos representaramuma vitória da língua vulgar sobre a língua eslava da Igre-ja. Embora, já entrado o século XVIII, o checo fosse ain-da a língua apenas dos camponeses da Boémia (a nobre-za e as classes médias ascendentes falavam o alemão), opadre católico Josef Dobrovsky (1753-1829) escreveu, em1792, Geschichte der bòhmische Sprache una ãltern Litera-tur, primeira história sistemática da língua e da literatu-ra checas. Em 1835-1839, foi publicado o dicionário pio-neiro checo-alemão, em cinco volumes, de Josef Jung-mann. 16

Sobre o nascimento do nacionalismo húngaro, escre-ve Ignotus ser ele um acontecimento "suficientemente re-cente no tempo: 1772, ano da publicação de algumas obrasilegíveis do versátil autor húngaro GyÕrgy Bessenyei, naépoca morando em Viena e trabalhando na escolta de Ma-ria Teresa... A magna opera de Bessenyei destinava-se aprovar que a língua húngara adaptava-se ao mais eleva-do género literário". n Estímulo ulterior foi propiciado

15 Não pretendendo simular qualquer conhecimento especializado sobre a Europa Les-te e Central, na análise que se segue baseei-me grandemente em Seton-Waison, Arespeito do romeno, ver Narions and States, p. 177,

«> Ibid., p, 150-3,17 Paul Ignoius, Hungaty, p. 44. "De fato o provou, mas seu ímpeto polémica era mais

convincente do sue o valer estático dos exemplos que criou," Talvez valha a penaobservar que assa passagem sã encontra em uma subsecão Intitulada "The Inven-ting of trie Hu-ngarian Nation", que se inicia com esta sugestiva frase: "Uma naçãonasce quando algumas pessoas decidem que ata deve existir".

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pelas inúmeras publicações de Ferenc Kazinczy (1759-1831),"o pai da literatura húngara", e pela mudança, em 1784,da pequena cidade provinciana de Trnava para Budapes-te, do que viria a ser a Universidade de Budapeste. Suaprimeira expressão política foi a reação hostil da nobrezamagiar que falava o latim, na década de 1780, contra a de-cisão do imperador José II de substituir o latim pelo ale-mão, como língua principal da administração imperial. 18

No período de 1800-1850, em consequência do trabalhopioneiro de estudiosos locais, três línguas literárias diferentesse formaram ao norte dos Bálcãs: o esloveno, o servo-croa-ta e o búlgaro. Se, na década de 1830, havia sido geral aideia de que os "búlgaros" eram da mesma nação dos ser-vos e dos croatas, e de fato haviam participado do Movimen-to Ilírico, em 1878 passaria a existir separadamente um Esta-do nacional búlgaro. No século XVIII, o ucraniano (o pe-queno russo) era desdenhosamente tolerado como língua decaipiras. Em 1798, porém, Ivan Kotlarevsky escreveu sunAe-neid, poema satírico extremamente popular sobre a vida ucra-niana. Em 1804, foi fundada a Universidade de Karkov, quese tornou rapidamente o centro de uma explosão da literatu-ra ucraniana. Em 1819, apareceu a primeira gramática ucra-niana — apenas 17 anos depois da gramática oficial russa.E vieram a seguir, na década de 1830, as obras de Taras Shev-chenko, a cujo respeito observa Seton-Watson que "a forma-ção de uma língua literária ucraniana aceita deve mais a eledo que a qualquer outro indivíduo. O uso dessa língua foia etapa decisiva na formação de uma consciência nacionalucraniana". 19 Pouco tempo depois, em 1846, a primeira or-ganização nacionalista ucraniana foi fundada em Kiev— por um historiador!

No século XVIII, a língua de Estado na Finlândiade hoje era o sueco. Após a união do território aos domí-

16 Seton-Watson, Nations and States, p. 1E8-61. A reaçêo foi suficientemente violen-ta para persuadir seu sucessor, Leopoldo II (r. 1790-1792), a restaurar o latim. Vertambém adiante. Capitulo V). É ilustrativo que Kazinczy tenha apoiado potiticaman-te José II nessa questão flgnotus, Hungary, p. 48).

'9 Nations and States, p. 137. Não é preciso diíer que o Tzarismo liquidou rapidamen-te com essas passoas. Shevchenko foi destruído na Sibéria. Os^absburgos, porém,encorajaram um pouco os nacionalistas ucranianos na Galícia — para contrabalançaros poloneses.

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nios do tzar, em 1809, a língua oficial tornou-se o russo.Mas o "despertar" de um interesse pela língua finlande-sa e pelo passado finlandês, expresso de início por textosescritos em latim e em sueco, em fins do século XVIII,na década de 1820 passou a manifestar-se cada vez maisna língua vulgar,20 Os líderes do nascente movimento na-cionalista finlandês eram ''pessoas cuja profissão consis-tia em grande medida no manejo da língua: escritores,professores, pastores e advogados. O estudo do folcloree a redescoberta e reconstituição da poesia épica popularcaminhavam par a par com a publicação de gramáticas edicionários e levava ao surgimento de periódicos que eramúteis para padronizar a língua finlandesa literária [isto é,impressa], em nome da qual se poderia propor reivindica-ções políticas mais vigorosas". il No caso da Noruega,que por muito tempo compartilhara uma língua escritacom os dinamarqueses, ainda que com pronúncia comple-tamente diferente, o nacionalismo surgiu com a nova gra-mática (1848) e o novo dicionário (1850) noruegueses deIvar Aasen, textos que eram uma resposta e um estímuloàs reivindicações de uma língua impressa especificamen-te norueguesa.

Em outra parte, nos anos iniciais do século XIX, en-contramos o nacionalismo africâner a que deram início ospastores e literatos bóeres que, na década de 1870, forambem-sucedidos em fazer do dialeto holandês local uma lín-gua literária e denominando-a não mais como europeia.Os maronitas e os coptas, muitos deles produtos do Ameri-can College de Beirute (fundado em 1866) e do College Je-suíta de São José (fundado em 1875) foram os que mais co-laboraram para o renascimento do árabe clássico e para adisseminação do nacionalismo árabe, M E as sementes donacionalismo turco podem ser facilmente descobertas nosurgimento de uma ativa imprensa em língua vulgar em Is-tambul, na década de 1870. 23

z°Kemilâinen,/Víf/ona/ís/n, p. 208-15.21 SetoivWatson, Nations and States, p, 72."Ibid., p, 2329261.23Kohrv, The Age of fjaííana!ism. p. 105-7. Isso significava urna rejaiçSo do "otoma-

no", língua oficial dinástica que misturava B ementas do turco, do persa e do áraba.Ê típico que Ibrahlm Sinssi, fundador do primeiro jornal desse tipo, houvesse acaba-do de vohar de cinco anos de estudos na França. Quando ele saiu à frente, outros la-go o acompanharam. Em 1875, havia sete diários em Ungua turca em Constantinopla.

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E não se deve esquecer de que essa mesma época assis-tiu à popularização de outra forma de página impressa: apartitura. Depois de Dobrovsky veio Smetana, Dvorak eJanácek; depois de Aasen, Grieg; depois de Kazinczy, Bé-ía Bártok; e assim por diante pelo nosso século adentro.

Ao mesmo tempo, é patente que todos esses lexicógra-fos, filólogos, gramáticos, folcloristas, jornalistas e compo-sitores não desenvolviam suas atividades revolucionáriasno vácuo. Afinal de contas, eles produziam para o merca-do da imprensa, e se vinculavam, por intermédio desse si-lencioso bazar, ao público consumidor. Quem eram essesconsumidores? No sentido mais geral: as famílias das clas-ses leitoras — não apenas o "pai que trabalhava", mas tam-bém a esposa rodeada de criadas e os filhos em idade esco-lar. Se observarmos que, ainda em 1840, mesmo na^Grã-Bretanha e na França, os Estados mais adiantados da Euro-pa, quase metade da população ainda era analfabeta (e naatrasada Rússia, quase 98%), "classes leitoras" significa-va gente de algum poder. Mais concretamente, elas eram,além das antigas classes dirigentes da nobreza e da peque-na nobreza fundiária, os cortesãos e membros do clero,as camadas médias ascendentes de pequenos funcionáriosplebeus, os profissionais liberais, e as burguesias comerciale industrial.

A Europa de meados do século XIX assistiu a um rá-pido aumento das despesas do Estado e das dimensões dasburocracias estatais (civil e militar), a despeito da inexistên-cia de qualquer guerra local de maior importância. "Entre1830 e 1850, a despesa pública per capita aumentou de 25%na Espanha, 40% na França, 44% na Rússia, 50% na Bél-gica, 70% na Áustria, 75% nos EUA e mais de 90% nosPaíses Baixos". 2* A expansão burocrática, que significoutambém especialização burocrática, abriu as portas da no-meação oficial a números muito maiores e a origens sociaismuito mais variadas do que até então. Veja-se até mesmoa máquina estatal austro-húngara, decrépita, plena de sine-curas e dominada pela nobreza: a porcentagem de homensoriginários da classe média nos postos mais elevados de

"Hobsbawm, The Age of Revotution, p. 229.

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sua metade civil subiu de O, em 1804, passando por 27,em 1829, e 35, em 1859, para 55, em 1878. Nas forças ar-madas, revelou-se a mesma tendência, ainda que tipicamen-te em ritmo mais lento e mais tardio: o componente de clas-se média do corpo de oficiais subiu de 10% para 75%, en-tre 1859 e 1918. K

Se a expansão das classes médias burocráticas foi umfenómeno relativamente uniforme, ocorrendo em taxas com-paráveis tanto nos Estados adiantados quanto atrasadosda Europa, a ascensão das burguesias comercial e industrialfoi, claro, extremamente irregular — maciça e rápida emalguns lugares, lenta e interrompida em outros. Mas não im-porta onde tenha ocorrido, essa "ascensão" deve ser com-preendida em suas relações com o capitalismo editorialem língua vulgar.

As classes dirigentes pré-burguesas geraram sua pró-pria coesão em certo sentido independentemente da língua,ou, pelo menos, da língua impressa. Se o governante doSião tomava uma'nobre malaia como concubina, ou se oRei da Inglaterra se casava com uma princesa espanhola— terão eles alguma vez conversado verdadeiramente umcom o outro? As solidariedades eram produto do parentes-co, da dependência e de lealdades pessoais. Nobres "fran-ceses" podiamajudar reis "ingleses" contra monarcas "fran-ceses", não com base na língua ou na cultura que compar-tilhassem, mas, cálculos maquiavélicos à parte, com base'em parentescos e amizades comuns. O tamanho relativa-mente pequeno das aristocracias tradicionais, suas bases po-líticas estáveis, e a personalização das relações políticas su-bentendidas nas relações sexuais e na herança, indicam quesua coesão como classe era tão concreta quanto imagina-da. Uma nobreza analfabeta ainda podia atuar como no-breza- Mas e a burguesia? Eis aí uma classe que, falandofiguradamente, só veio a ser uma classe mediante muitascópias. Um dono de fábrica em Lille só estava ligado áum dono de fábrica de Lyon por reverberação. Eles não ti-nham uma razão necessária para conhecer a existência umdo outro; tipicamente, não se casavam com a filha um do

25petei J. Kateen&tein, DisfainedParfners, Áustria and Germany sints WJ5, p. 74, 112.

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outro, nem herdavam as propriedades um do outro. Maschegavam a visualizar de um modo geral a existência demilhares e milhares de outros como eles por intermédioda língua impressa. Pois é difícil imaginar uma burguesiaanalfabeta. Assim, em termos de história mundial, as bur-guesias foram as primeiras classes a consumar solidarieda-des numa base essencialmente imaginada. Porém, numa Eu-ropa do. século XIX, em que, há perto de dois séculos, o la-tim fora vencido pelo capitalismo editorial em, língua vul-gar, essas solidariedades tinham seu maior alcance limita-do por legibilidades em língua vulgar. Dizendo doutro mo-do, pode-se dormir com qualquer pessoa, mas só se podeler a escrita de um certo povo.

Membros da nobreza, pequenos nobres fundiários,profissionais liberais, funcionários e homens do mercado— eram estes, então, os consumidores potenciais da revolu-ção filológica. Mas tal clientela não estava plenamente rea-lizada quase em parte alguma e as combinações dos consu-midores concretos "variava consideravelmente de região pá-ra região. Para perceber por que, é preciso que se retorneao contraste básico antes traçado entre a Europa e a Amé-rica. Na América, havia um isomorfismo quase perfeito en-tre o âmbito dos diversos impérios e o de suas línguas vul-gares. Na Europa, contudo, esse tipo de coincidência erararo e os impérios dinásticos intra-europeus possuíam basi-camente mais de uma língua vulgar em seu território. Emoutras palavras, o poder e a língua impressa mapeavam rei-nos distintos entre si. *

O crescimento generalizado da alfabetização, do co-mércio, da indústria, das comunicações e das máquinas es-tatais, que caracterizou o século XIX, criou novos impul-sos vigorosos no sentido da unificação das línguas vulgaresdentro de cada reino dinástico. O latim se manteve comolíngua de Estado na Áustria-Hungria até inícios da déca-da de 1840, mas desapareceu quase imediatamente a seguir.Poderia ser a língua de Estado, mas não poderia, no séculoXIX, ser a língua dos negócios, das ciências, da imprensaou da literatura, especialmente num mundo em que essas/línguas se interpenetravam continuamente.

Nesse ínterim, as línguas de Estado vulgares assumiamcada vez mais poder e status em um processo que, pelo me-nos de início, era em grande medida não planejado. Assim,

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a língua inglesa expulsou o gaélico da maior parte dai Irlan-da, o.francês limitou o âmbito do bretão e o castelhanocompeliu o catalão à marginalidade. Em reinos como aGrã-Bretanha e a França, onde, por razões absolutamenteexternas, ocorreu que houvesse, em meados do século,uma coincidência relativamente alta entre língua de Esta»do e língua da população, 26 a interpenetração geral a quealudimos acima não teve consequências políticas dramáti-cas. (Esses casos aproximam-se! mais dos da América.)Em muitos outros reinos, dos quais a Áustria-Hungria éprovavelmente o exemplo extremo, as consequências foraminevitavelmente explosivas. Em seu vasto domínio desman-telado, poliglota, mas cada vez mais letrado, a substituiçãodo latim por qualquer língua vulgar, em meados do sécu-lo XIX, assegurava vantagens enormes àqueles de seus sú-ditos que já utilizassem aquela língua impressa, e pareciaameaçador, na mesma.proporção, aos que não a utilizassem.Grifei a palavra qualquer, uma vez que, como veremosadiante mais detalhadamente, a exaltação do alemão no sé-culo XIX pela corte dos Habsburgos, ela mesma alemã co-mo alguns podem considerá-la, não tinha nada a ver como nacionalismo alemão. (Em tais circunstâncias, seria líci-to esperar que um nacionalismo cônscio de si mesmo sur-gisse por último, em cada reino dinástico, entre os naturaisda terra que lessem a língua vulgar oficial. E tal expectati-va é corroborada.pelos registros históricos.)

Em termos das clientelas de nossos lexicógrafos, nãoadmira pois que se encontrem conjuntos muito diferentesde clientes segundo as diferentes condições políticas. NaHungria, por exemplo, onde virtualmente não existia umaburguesia magiar, mas uma de cada 8 pessoas reivindica-va algum status aristocrático, a preservação do húngaro im-presso contra a maré montante do alemão era defendidapor segmentos da nobreza menos importante e da peque-na nobreza fundiária empobrecida, 21 Pode-se dizer o mes-mo dos leitores poloneses. Mais típica, porém, era a coali-

26 Como vimos, a adoça» de línguas vulgares corno Itnguss de Estado nesses dois rei-nos estava em andamento desde muito cedo, No casa do Beira Unida, & submissãomilitar do Gaeltactrt no início do Século XVIII B a depressão da década de 1B40 forampoderosos fstores concorrentes, ,

27 Hobsbawm, The Age effíevolutlon, f>. 165. Excelente e pormenorizada exposição en-contra-se em Ignotus,Hungary. p. 44-55: vertarnbCmJàszi, TheDissolution.p. 224-5.

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zão entre os nobres menores, os académicos, os profissio-nais liberais e os homens de negócio, na qual, frequente-mente, os primeiros forneciam os líderes de "reputação",os segundos e terceiros, mitos, poesia, jornais e formula-ções ideológicas, e os últimos, dinheiro e facilidades demercado, O agradável Koraes oferece-nos uma vinheta pre-cisa da clientela inicial do nacionalismo grego, em que pre-dominavam os intelectuais e os empresários: 2S

Nas cidades que eram menos pobres, que possuíam al-guns habitantes abastados e algumas escolas e, conseqúèn-temente, alguns indivíduos que podiam pelo menos ler ecompreender os autores antigos, a revolução começoumais cedo e pôde progredir mais rápida e animadoramen-te. Em algumas dessas cidades, as escolas já estão sen-do ampliadas e o estudo de línguas estrangeiras e até mes-mo das ciências que são ensinadas na Europa [sic] estásendo introduzido nelas. Os ricos patrocinam a impressãode livros traduzidos do italiano, do francês, do alemão edo inglês; enviam para a Europa, a suas expensas, jovensávidos de aprender; dão a seus filhos melhor educação,sem exclusão das meninas...

Coalizões de leitores, com composições que se localizamde maneira diversa na gama de variação entre a húngara ea grega, desenvolveram-se de maneira semelhante por to-da a Europa Leste e Central e, com o avançar do século,pelo Oriente Médio. 29 Em que medida as massas urbanase rurais participavam das novas comunidades linguistica-mente imaginadas naturalmente também variava muito. Is-so dependia muito das relações entre essas massas e os mis-sionários do nacionalismo. Num extremo, talvez, pode-seindicar a Irlanda, onde um clero oriundo do campesinato,e próximo dele, desempenhava papel mediador essencial.Outro extremo é sugerido pelo comentário irónico de Hobs-bawm de que: "Os camponeses galicianos, em 1846, opuse-

28Kedourie, org., Nationallsm in A$i» and África, p. 170. Grifos nossos. Tudo aqui éexemplar. Quando Koraes olha para a "Europa", á por sobre o ombro; o que onça-rã ds frente é Constantinopla. Q otomano nSo 6 contudo uma língua estrangeira, E

. as fuigras esposas som trabalho ingressam no mercado da impransa,23 Para exemplos, ver Seton-Watson, Nutions and States, p. 72 (Finlândia), 145 (Bulgá-

ria), 153 (Boémia) e 432 (Eslováquia); Kohn, The Age of Nationalism, p. E3 (Egito)e 103 (Pérsia).

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ram-se aos revolucionários poloneses, ainda que estes hou-vessem de fato proclamado a abolição da servidão, prefe-rindo massacrar os cavalheiros e confiar nos funcionáriosdo Imperador".30 Mas por toda parte, na verdade, à medi-da que era maior a alfabetização, tornava-se mais fácil con-seguir o apoio popular, quando o 'povo encontrava um no-vo motivo de orgulho na exaltação pela imprensa de lín-guas que haviam falado humildemente por tanto tempo.

Até certo ponto, pois, a impressionante formulaçãode Nairn -— "A nova intelligentsia de classe média do na-cionalismo tinha de convidar as massas a entrar na história;e o convite tinha de ser escrito numa língua que elas enten-dessem" 3I — está correta. Mas será difícil perceber porque o convite parecia tão atraente, e por que alianças tãodiversas eram capazes de emiti-lo (a intelligentsia de classemédia de Nairn não era absolutamente o único anfitrião),a menos que nos voltemos finalmente para o plágio.

Hobsbawm observa que "A Revolução Francesa nãofoi feita nem conduzida por um partido ou movimento or-ganizado, no sentido moderno, nem por homens que esti-vessem procurando levar a cabo um programa sistemático.Ela nem mesmo projetou 'líderes' do tipo a que nos habi-tuaram as revoluções do século XX, até que surgisse a figu-ra pós-revolucionária de Napoleão". 3Z Mas uma vez queela aconteceu, ingressou na memória acumuladora da im-prensa, A irresistível e desconcertante concatenação de even-tos experimentada por seus autores e por suas vítimas tor-nou-se uma "coisa" — e com um nome próprio: Revolu-ção Francesa. Do mesmo modo que uma imensa rocha in-forme se torna um penedo arredondado pela ação de inu-meráveis gotas de água, aquela experiência foi modeladapor milhões de palavras impressas como um "conceito" so-bre a página impressa e, no devido tempo, como um mode-lo. Por que "ela" irrompeu, a que "ela" visava, por que"ela" foi bem-sucedida ou fracassou, tudo passa a ser te-ma de polémicas infindáveis por parte de partidários e de ad-

30 TheAgecfRewkttion, p. 169.3' The Sreak-up ofSrítBrrt. p, 340.3! The Age of fígvoàittón, p. 80.

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versários: mas de que "ela" foi alguma coisa, seja o quefor, ninguém jamais teve muita dúvida. J3

De modo muito semelhante, assim que se imprimiua respeito deles, os movimentos de independência na Amé-rica se tornaram "conceitos", "modelos" e, de fato, "pro-jetos". Na "realidade", o medo de Bolívar das insurrei-ções de negros e a convocação de San Martin de seus indí-genas à peruanidade chocam-se caoticamente. Mas a pala-vra impressa eliminou o primeiro quase^.que'imediatamen-te, de tal modo que, ainda que lembrado, aparece comouma anomalia inconsequente. Da confusão americana bro-tam estas realidades imaginadas: Estados-nação, institui-ções republicanas, cidadania universal, soberania popular,bandeiras e símbolos nacionais, etc., e a liquidação deseus contrários: impérios dinásticos, instituições monárqui-cas, absolutismos, vassalagens, nobrezas hereditárias, ser-vidões, guetos, e assim por diante. (Nada mais chocante,nesse contexto, do que a "supressão" generalizada da es-cravidão maciça dos EUA "modais" do século XIX, eda língua compartilhada das repúblicas "modais" da Amé-rica do Sul.) Além disso, a validade e a generalidade do

'projeto se confirmaram indubitavelmente pelo pluralismodos Estados independentes.

De fato, na segunda década do século XIX, se não an-tes, já havia um "modelo" "do" Estado nacional indepen-dente à disposição para ser plagiado. 34 (Os primeiros gru-pos a fazê-Io foram as coalizões de pessoas instruídas ba-seadas em línguas vulgares marginalizadas, que este capítu-lo focalizou.) Mas exatamente porque era então um mode-lo conhecido, impunha certos "padrões" em relação aosquais não se permitiam desvios muito acentuados. Até mes-mo as pequenas nobrezas húngara e polonesa, atrasadas e

33 Compare-sei "O próprio nome de RsvoluçSo Industrial reflete seu impacto relativa-mente tardio sobre a Europa. A coisa Isicl existia na Grã-Bretanha antes da palavra.Não foi senso na década de 1820 que socialistas Ingleses e franceses — eles própriosum grupo sem precedentes — a inventaram, provavelmente por analogia com a revo-lução política da França". Ibid., p. 45.

34 Seria, provavelmente, mais preciso dizer que o modelo era uma complexa misturada si e mantos franceses e americanos. Mas a "realidade observável" da França, atédepois de 1870, eram monarquias restauradas e o dinasticismo ersatz do sobrinho-neto de Napoleão.

reacionárías, tiveram grandes dificuldades em não realizarum espetáculo de "convidar a entrar" (ainda que apenasaté a copa) seus compatriotas oprimidos. Se quiserem, a ló-gica da peruanização de San Martín estava funcionando.Se "húngaros" mereciam um Estado nacional, então issoqueria dizer "os húngaros", todos eles; 3i queria dizer umEstado em que o locus fundamental da soberania tinhaque ser a coletividade dos falantes e leitores húngaros; e,no devido tempo, a liquidação da servidão, a promoçãoda educação popular, a expansão do sufrágio, e assim pordiante. Desse modo, o caráter "populista" dos primeirosnacionalismos europeus, mesmo quando liderados, demago-gicamente, pelos grupos sociais mais retrógrados, era maisprofundo do que na América: a servidão tinha que termi-nar, a escravidão legal era inimaginável — também porqueo modelo conceptual estava colocado num lugar inerradicável.

35 Não que isso fosso uma questão muito definida. Metade dos súdito» do reino da Hun-gria sra nõo-rnagiar. Ap&nas um terço dns servos falavo magiar. No Início do século

• XIX, a alta aristocracia magiar falava irancâs ou alemão; B nobreza media e infericr"conversava em um latim vulgar salpicado de expressões do magiar, mas também0.0 eslovaco, da ESrvio B do romano, bem coma do alemão vulgar.,," Ignoius, Hun-gtry, p..45-6 e 81.