BeBEM JURÍDICO E EXCLUSÃO DA ANTIJURIDICIDADE APLICADA À INTEGRIDADE FÍSICA E À SAÚDEm Juridico

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Para entender a disponibilidade ou indisponibilidade daintegridade física e da saúde na perspectiva do bem jurídico hávárias possíveis abordagens. No presente caso, o enfoque do bem jurídico é complementado com a teoria do crime, por meio daexclusão da antijuridicidade. Além disso, acrescente-se a mitigaçãodo princípio da legalidade face ao princípio da adequação social eda insignificância. São questões que são expostas como orientaçãopara o equacionamento da matéria. Espera-se com esse estudofornecer subsídios para a compreensão do tema.Palavras-chave: Bem Jurídico. Causas de Exclusão daAntijuridicidade. Disponibilidade do próprio corpo.

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  • Revista Acadmica, Vol. 83, 2011

    BEM JURDICO E EXCLUSO DA ANTIJURIDICIDADE APLICADA INTEGRIDADE FSICA E SADE

    Angela Simes de FariasProfessora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Professora Adjunta da Universidade Catlica de Pernambuco e Membro do Ministrio Pblico de Pernambuco.

    Elizabeth Cristina Cruz Brito FerreiraAluna da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e Monitora da disciplina de Direito Penal III.

    Camila Andrade dos SantosBacharel em Direito formada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e Monitora da disciplina de Direito Penal III.

    Resumo: Para entender a disponibilidade ou indisponibilidade da integridade fsica e da sade na perspectiva do bem jurdico h vrias possveis abordagens. No presente caso, o enfoque do bem

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    jurdico complementado com a teoria do crime, por meio da excluso da antijuridicidade. Alm disso, acrescente-se a mitigao do princpio da legalidade face ao princpio da adequao social e da insignificncia. So questes que so expostas como orientao para o equacionamento da matria. Espera-se com esse estudo fornecer subsdios para a compreenso do tema.

    Palavras-chave: Bem Jurdico. Causas de Excluso da Antijuridicidade. Disponibilidade do prprio corpo.

    Abstract: In order to understand the availability or unavailability of bodys and healths integrity in a perspective of a legal asset there are many possibilities. In this current case, the legal asset is analyzed according to the theory of crime, by the debarment of the unlawful conduct. Moreover its important to jut out the mitigation of the legalitys tenet comparing to social adequacys and insignificances tenet. These issues are proposed for the purpose of orientation and we hope this project helps the grip of the theme.

    Key Words: Legal asset. Causes of the debarment of the unlawful conduct. Availability of own body.

    Sumrio: Introduo. 1. Bem Jurdico: Conceito e Noes Histricas. 2. Disponibilidade da Integridade Fsica na Esfera Cvel: A Questo dos Direitos Personalssimos. 3 - Atos de Disposio do Prprio Corpo em Relao Antijuridicidade. 4. Consideraes Finais.

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    IntroduoA disponibilidade ou indisponibilidade da

    integridade fsica e da sade na perspectiva do bem jurdico o objetivo do presente trabalho. Traduz uma antiga preocupao da sociedade, e em particular dos operadores do direito, entenderem o que razovel dispor, em relao integridade fsica e sade. Para contextualizar o problema, numa viso absolutista e radical, em relao integridade absoluta do prprio corpo, seria invivel fazer-se uma operao esttica, por modificar a integridade original do corpo humano. Dentre vrias possveis ferramentas de anlise do Direito Penal, para o enfrentamento do problema, esto as causas de excluso, sejam do fato tpico, da antijuridicidade ou da culpabilidade. A disponibilidade do prprio corpo e da sade vista, por conseguinte, sob o prisma da Teoria do Crime, observando as estratgias utilizadas pelo Direito Penal para lidar com a matria. No escopo desse trabalho a perspectiva jurdica eleita pela tica da excluso da antijuridicidade. No entanto, para se chegar ao cerne da

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    questo, a moldura da anlise centrada na teoria dos bens jurdicos, por no ser vivel o estudo jurdico-criminal sem o norte dessa percepo.

    Ao lado do vis bens jurdicos e das causas de excluso da antijuridicidade, a mitigao do princpio da legalidade face ao princpio da adequao social e da insignificncia so questes que so expostas como orientao para o equacionamento da matria.

    1 Bem Jurdico: Conceito e Noes Histricas

    Nem todos os bens, indistintamente, so protegidos pelo Direito Penal. H uma seleo criteriosa, de forma que os bens penalmente tutelados so aqueles mais relevantes, fundamentais existncia.

    A proteo aos aludidos bens deve ser dar, no entanto, nos limites constitucionalmente estabelecidos. Nunca demais ressaltar que a Carta Magna tutela os bens jurdicos, sendo ela encarregada de expressar um juzo de ponderao.

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    Sobre a questo, convm destacar Alice Biachini1, no sentido de que s a constituio respalda a proteo dos bens jurdicos, dando-lhes a devida dignidade, j que nela so inscritos os valores que a sociedade produz.

    A noo de bem jurdico nem sempre foi a mesma. Ao longo do tempo, diversas teorias surgiram para explicar como se daria a interao entre indivduo, bem jurdico ofendido e Estado, influenciadas pelo contexto scio-poltico e scio-histrico de sua origem.

    At antes da primeira metade do sculo XIX, a teoria predominante era a Iluminista. Na sua clssica concepo possua um carter bastante individualista, e entendia o crime como uma ofensa a um direito subjetivo. Dessa forma, ao lesionar um bem jurdico, o agente estaria violando o Contrato Social, e o Estado estaria, portanto, legitimado a constranger cada indivduo em busca do restabelecimento da ordem2. O

    1 BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mnimos da Tutela Penal, v. 7. So Paulo: RT, 2002, p. 43.

    2COELHO, Yuri Carneiro. Bem Jurdico-Penal, v.8. So Paulo: Mandamentos Editora, 2003, p.31.

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    jus puniendi estatal estava desvinculado das conotaes tico-religiosas e a pena possua um sentido preventivo3.

    Feuerbach esboou um avano na Teoria do Bem Jurdico. Suas ideias rompiam com as antigas ideologias absolutistas sem se afastar da noo de leso a direitos subjetivos -, e o delito deixava de ser uma afronta a um dever para com o Estado para se tornar uma violao a quaisquer normas de direito natural.

    Para o filsofo, a partir do momento em que o indivduo abria mo de sua liberdade para a formao do Estado, as atitudes deveriam ser pautadas na tica e na razo. Os bens jurdicos coletivos, contudo, no foram contemplados nas ideias de Feuerbach, em razo da influncia do individualismo iluminista4.

    Birnbaum considerado o responsvel pela elaborao do conceito de bem jurdico, rompendo

    3 PRADO, Luiz Regis. Bem jurdico-penal e Constituio. So Paulo: RT, 1997, p.27.4 COELHO, Yuri Carneiro. Bem Jurdico-Penal, v.8. So Paulo:

    Mandamentos Editora, 2003, p.35.10

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    sobremaneira com a viso clssica individualista e adentrando em uma perspectiva sociolgica. Ele reconhecia que a lei penal no deveria apenas possibilitar a coexistncia dos indivduos, mas servir, tambm, a fins sociais, em uma concepo instrumental do Direito Penal.

    Observa-se, portanto, a semelhana entre Birnbaum e Feuerbach, na medida em que ambos entendem o bem jurdico como violao a normas de direito natural. Birnbaum, no entanto, estabelece que o delito no lesiona apenas direitos subjetivos, mas tambm bens. Por fim, ele classifica os bens, e por conseqncia os crimes, em sociais e naturais. Em sua concepo, os bens possuem dois aspectos: so dados ao prprio indivduo pela natureza, e so o resultado do desenvolvimento social do homem5.

    Karl Binding, com seu jusracionalismo positivista, definiu o bem jurdico como tudo aquilo que

    5 ber das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum begriff des Verbrechens. Apud ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991pp 51-53.

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    o legislador elegesse como tal. Para ele, o delito consistia na leso a um direito subjetivo do Estado, existindo, portanto, uma relao de congruncia entre a norma e o bem jurdico por ela tutelado.

    Dessa forma, Binding negava a existncia de bens jurdicos preexistentes. A norma era a nica fonte de criao do direito, criando, por conseguinte, o bem jurdico. Ao Estado, por sua vez, era atribuda uma discricionariedade na atividade legislativa de incriminar condutas, de modo que no importava muito o real interesse social na proteo do bem. Competia ao legislador a escolha dos bens a serem tutelados, podendo ser uma escolha aleatria ou at mesmo arbitrria6.

    Por sua vez, o alemo Franz Von Liszt - tambm vinculado a um contexto positivista - entendia que o fim do Direito era proteger os interesses do homem, sendo estes, portanto, anteriores norma. Dessa maneira, o bem jurdico no necessita da vontade do

    6 HORMAZABAL MALARE, Hernn. Bien jurdico y estado social e democratico de derecho (el objeto protegido por la norma penal). 2. Edio. Santiago de Chile: ConoSur, 1992, p.14.

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    legislador para existir, pois a lei no cria o bem jurdico, mas o encontra. O interesse do qual se origina o bem jurdico preexistente norma, esperando-se que ela o abarque devido a sua essencialidade dentre os demais interesses do homem.

    Segundo o mesmo jurista o bem jurdico o interesse juridicamente protegido. Todos os bens jurdicos so interesses vitais do indivduo ou da comunidade. A ordem jurdica no cria o interesse, ele criado pela vida; mas a proteo do Direito eleva o interesse categoria de bem jurdico...7

    No entanto, os traos positivistas contidos nas ideias de Liszt podem ser percebidos pela falta de critrios que limitem a escolha de um determinado bem como objeto de tutela pelo legislador. Assim, a despeito da afirmao de que os bens jurdicos no seriam produto do ordenamento, mas sim da vida, qualquer justificativa dada pelo legislador deveria ser aceita. 8

    7 VON LIZST, Franz. Tratado de Derecho Penal. V. 2. Madrid: Reus, [s.d.], p.06.8 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.189.

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    Contemporaneamente, Jakobs9 aqui caracterizado como representante do funcionalismo: ou seja, sistema dogmtico e jusfilosfico do Direito Penal moderno , descreve o bem jurdico como o que assegura as expectativas normativas essenciais frente a leses, significando dizer, a vigncia efetiva das normas em que essas referidas expectativas se fundamentam10.

    2 - Disponibilidade da integridade fsica na esfera cvel: a questo dos direitos personalssimos.

    Antes de adentrarmos propriamente na anlise do objeto no mbito penal, h que se fazer algumas consideraes atinentes aos direitos da personalidade. Tais direitos, por integrarem a condio essencial da pessoa humana, funcionam como verdadeiros pressupostos de sua existncia e dignidade, constituindo

    9 JAKOBS, Gnther. Dogmtica de derecho penal y la configuracin normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004, p.18.10 JAKOBS, Gnther. Estdios de derecho penal. Trad. Enrique Pearanda Ramos, Carlos J. Surez Gonzlez e Manuel Cancio Meli. Madrid: Civitas, 1997, p.22.

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    importante ponto de enlace entre a esfera civil e os valores constitucionalmente consagrados. Caracterizam-se, dentre outros atributos, pela irrenunciabilidade, elemento que lhes peculiar e que lhes distingue dos direitos patrimoniais11.

    Ocorre, entretanto, que, em determinadas situaes, a irrenunciabilidade supra aludida faz surgir um choque entre direitos igualmente personalssimos, que passam a ser objeto de ponderao12 no plano jurdico. Nestas hipteses, obtm-se como fruto de um juzo de proporcionalidade a noo de que determinados elementos, frequentemente relacionados dignidade da pessoa humana, tm o condo de relativizar a irrenunciabilidade de um direito personalssimo, na medida em que tal flexibilizao mostra-se condizente com uma viso sistemtica do

    11 GOMES, Orlando. Introduo ao Direito Civil. 19. ed. Revista, atualizada e aumentada, de acordo com o Cdigo Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 137.12 BARROSO, Lus Roberto et al. A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 334.

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    ordenamento e do contexto social hodierno.O Cdigo Civil de 2002, em seu artigo 13,

    estipula que salvo por exigncia mdica, defeso o ato de disposio do prprio corpo, quando importar diminuio permanente da integridade fsica, ou contrariar os bons costumes, determinando ainda que o ato previsto neste artigo ser admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Destaque-se, neste nterim, que a contrariedade aos bons costumes dever ser aferida de acordo com as prticas socialmente aceitas em dado contexto, no se admitindo valoraes apriorsticas de ordem moral ou religiosa.

    Conforme se depreende do texto legal, o prprio diploma civilista traz, de forma genrica, as situaes em que se afasta o carter ilcito da conduta. Cumpre destacar, neste ponto, que mesmo as cirurgias destinadas mudana de sexo13 esto acobertadas pela noo de exigncia mdica. Isto porque, havendo uma

    13 O Conselho Federal de Medicina - CFM, atravs da Resoluo n. 1.482/1997, passou a aceitar a realizao da operao de mudana de sexo.

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    dissonncia entre o sexo de um indivduo e o gnero que lhe define no plano psquico, a incoerncia existencial a que este est submetido capaz de justificar uma interveno de plausibilidade psiquitrica.

    Exemplos clssicos da situao referida so, ainda, as hipteses de disposio do prprio corpo para fins estticos, por questes profissionais ou para fins de doao de rgos. Na sequncia, tais circunstncias sero exploradas, dispensando-se tratamento luz do Direito Penal contemporneo.

    3 - Atos de disposio do prprio corpo em relao antijuridicidade.

    No contexto da teoria do crime, importa avaliarmos juridicamente a disponibilidade do prprio corpo. A perspectiva conferir tratamento adequado, tentando se afastar de posies anacrnicas frente aos casos concretos, como as leses desportivas, a aplicao de piercings, a realizao de tatuagens, as operaes para mudana de sexo, as doaes de rgos e demais

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    meios de modificao corporal, e at mesmo o encurtamento da vida de doentes terminais. Diante dessa realidade, o Direito Penal elenca estratgias para lidar com essa disponibilizao sem perder a referncia dos bens jurdicos protegidos. Dentre elas esto as causas de excluso da antijuridicidade.

    Modernamente, a antijuridicidade concebida tambm a partir de seu contedo material, de maneira que se abre espao para as chamadas causas supralegais de justificao, as quais do azo aplicao de princpios, da analogia e fundamentao com base nos costumes. Trata-se, pois, de recurso supralegal, porm no metajurdico, vez que suas formas de manifestao encontram-se englobadas pelo Ordenamento14.

    Tal concepo refora a importncia de extrapolarmos a anlise da antijuridicidade to somente alicerada no direito legislado, buscando, tambm, considerar elementos culturais norteadores dos grupos sociais15. O dinamismo caracterizador das sociedades

    14 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 2011, p.361.

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    modernas, marcadamente complexas16, exige a adoo de postura flexvel por parte do Direito, ao qual incumbe criar estratgias para lidar com a crescente mutabilidade.

    Feitas as devidas consideraes, passemos anlise das excludentes.

    O consentimento do ofendido no dispe de expressa previso no texto da lei, motivo pelo qual considerado, a depender da situao, causa supralegal de excluso da antijuridicidade. Isso porque, quando o dissenso por parte da vtima integra o tipo penal, o consentimento implicar na inexistncia da tipicidade17. o caso, por exemplo, do delito de estupro18, em que

    15 MIRABETE, Julio Fabbrini e FABBRINI, Renato N. Cdigo Penal Interpretado. 7.ed. So Paulo: Atlas, 2011pp 110-111.16 ADEODATO, Joo Maurcio. A pretenso de universalizao do Direito como ambiente tico comum. In: BRANDO, C.; ADEODATO, J. M. Direito ao extremo: coletnea de estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.168.17 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 2011, p.362.18 BRANDO, Cludio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.198.

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    pressuposto da adequao tpica a ocorrncia de constrangimento mediante violncia ou grave ameaa, ou seja, exige-se que a conjuno carnal ou a prtica do ato libidinoso no seja consensual.

    Para que o consentimento atue de maneira justificante, imprescindvel que o indivduo possua capacidade jurdica e mental para assentir19, ou seja, a anuncia deve ser fruto de uma vontade juridicamente vlida e o bem jurdico deve enquadrar-se na esfera de disponibilidade da vtima20. Destaque-se, ainda, a importncia de no haver razes de ordem pblica que inviabilizem o consentimento emitido21.

    Entende-se que o consentimento do titular de um bem jurdico disponvel afasta a contrariedade norma jurdica, ainda que eventualmente a conduta consentida venha a se adequar a um modelo abstrato de

    19 BRAGA CALHAU, Llio. Vtima e Direito Penal. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 81.20 BRUNO, Anbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p.20.21 BRAGA CALHAU, Llio. Op. cit.

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    proibio22. Em outras palavras: no obstante estejamos diante de uma conduta tpica, que perfeitamente se amolda previso do texto legal, na hiptese em comento resta afastada a antijuridicidade, pelo que se exclui, naturalmente, o carter criminoso do ato.

    Inmeras so as divergncias doutrinrias no que respeita disponibilidade dos bens jurdicos. A integridade fsica23, por exemplo, como atributo da pessoa humana ostenta algumas caractersticas como a indisponibilidade, a imprescritibilidade, a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade.

    Embora determinados autores, a exemplo de Heleno Fragoso, elenquem de forma apriorstica o rol dos bens disponveis e indisponveis24, mostra-se prefervel a realizao de uma anlise casustica, capaz de levar em considerao as peculiaridades do caso

    22 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p.363.23 TEPEDINO,Gustavo. Temas de direito civil. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.34.24 FRAGOSO, Heleno. Lies de Direito Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 193.

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    concreto e o contexto social. Nesse sentido, o posicionamento esposado por Nucci: somente a evoluo dos costumes e dos valores na sociedade poder melhor acertar e indicar qual bem ou interesse ingressa na esfera de disponibilidade do lesado25.

    A autorizao da ortotansia26 na esfera mdica27, por exemplo, retrata a transformao de mentalidade em relao disponibilidade da vida, muito embora ainda no encontre respaldo no texto da lei. Destaque-se, neste ponto, que a ortotansia corresponde a um posicionamento diante do paciente portador de enfermidade incurvel e em estado

    25 NUCCI, Guilherme de Souza. Cdigo penal comentado. 10. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.244.26 O artigo 122, 2 do Projeto de Lei do Senado 236/2012 admite que o paciente possa renunciar a tratamentos desproporcionais, deixando de fazer uso de meios artificiais para manter sua vida em caso de doena grave e irreversvel.27 Vide Resoluo n 1.805, do Conselho Federal de Medicina (Publicada no D.O.U., 28 nov. 2006, Seo I, pg. 169), temporariamente suspensa por deciso da Justia Federal (ACP 2007.34.00.014809-3 da 14 Vara Federal).

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    terminal pelo emprego de cuidados paliativos, capazes to somente de aliviar os sintomas que geram desconforto, sem, todavia, promoverem o efetivo tratamento da doena. Opta-se pela suspenso das medidas curativas, uma vez que apenas permitiriam um prolongado sofrimento, sem perspectivas de recuperao. Nesse sentido, a ideia aceitar o processo da morte, sem abandonar o paciente, mas saber deix-lo morrer, quando no podemos cur-lo28.

    Exemplos clssicos e pacficos relacionados ao consentimento do ofendido so as hipteses de cirurgia esttica, transexual e o transplante de rgos29. Em que pese a existncia de adequao tpica, no h que se falar em fato criminoso, uma vez que o consentimento em anlise tem o condo de excluir o injusto. 28 CANO, Csar Nombela e outros. La eutanasia: perspectiva tica, jurdica y mdica. Disponvel em: . Acesso em: 14 jun. 2012.

    PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: volume 1, parte geral, arts. 1 a 120. 7. ed. rev., atual., ampl. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.414.29 Op. cit.

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    Foroso salientar, neste ponto, que a possibilidade de anuncia e a compreenso do bem jurdico enquanto inserido na esfera de disponibilidade esto atreladas ao princpio da adequao social, alicerce de diversas excludentes. Nesse sentido, as cirurgias estticas tm ampla aceitao da sociedade, o que denota uma necessidade culturalmente enraizada de aderir aos padres de beleza midiaticamente enaltecidos.

    A cirurgia de mudana de sexo30, por sua vez, est relacionada ao amplo apoio social que as perspectivas inclusivas vm proporcionando, no intuito de preterir preconceitos. Sendo assim, cada vez mais se amplia a esfera de indivduos que concebem de forma positiva o fato de algum buscar auxlio mdico para tornar compatveis seu gnero de sentido eminentemente psicolgico e seu sexo, biolgico e estruturalmente definido. Decorre desta viso largamente disseminada a possibilidade de

    30 O Conselho Federal de Medicina - CFM, atravs da Resoluo n. 1.482/1997, passou a aceitar a realizao da operao de mudana de sexo.

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    consentimento, de maneira que o corpo, em se tratando da aludida cirurgia, entra na esfera de disponibilidade do indivduo.

    A doao de rgos, por seu turno, tem dupla possibilidade de justificativa no campo penal. Alm de enquadrar-se num exerccio regular de direito, est resguardada pela possibilidade de se expressar o consentimento, elemento que, em ltima instncia, decorre tambm da existncia de previso legal. A Lei n 9.434/97 dispe sobre a possibilidade de pessoa viva doar rgos, tecidos e outras substncias, desde que desprovida de fins econmicos, e, portanto, consagra a faculdade de se consentir para a realizao de uma leso grave ou gravssima31, albergada pelo Ordenamento.

    Para as intervenes cirrgicas supra, desprovidas de carter curativo, exige-se que o mdico fornea informaes exaustivas quanto aos

    31 NUCCI, Guilherme de Souza. Cdigo penal comentado. 10. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.245.

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    procedimentos a serem realizados32, sob pena de restar comprometida a validade do consentimento. A cincia do paciente quanto natureza e ao alcance da interveno33 , pois, pressuposto para que ele possa anuir de forma vlida, em consonncia com o Ordenamento Jurdico vigente. Em no havendo o referido consentimento, exclui-se o carter criminoso to somente dos procedimentos realizados em carter emergencial, acobertados pelo estado de necessidade justificante34.

    No que tange s leses decorrentes de prtica esportiva, tem-se, em geral, que se trata de exerccio regular de direito. Entretanto, nas hipteses em que os esportes violentos no se encontram regulamentados pelo Estado, possvel que haja excluso do injusto com

    32 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: volume 1, parte geral, arts. 1 a 120. 7. ed. rev., atual., ampl. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.414.33 CEREZO MIR, Jos. Curso de Derecho Penal espaol: parte general, v. 1. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1981,pp.321-322.34 PRADO, Luiz Regis. Op. cit.

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    base no consentimento do ofendido, desde que integre sua esfera razovel de disponibilidade35.

    O Cdigo Penal Brasileiro, em seu Art. 23, inciso III, reconhece, ainda, a excluso da ilicitude se o agente pratica o fato tpico no exerccio regular de um direito. Legitima-se, portanto, o exerccio da permisso que a ordem jurdica admite36, posto que uma conduta reconhecida e aceita pelo Direito no pode, paradoxalmente, ser considerada crime. Assim, o desempenho de uma atividade ou a prtica de uma conduta autorizada por lei, muito embora possa constituir fato tpico, jamais ir configurar um injusto penal37.

    Para que se determine a regularidade do exerccio, h de se ter em conta os limites objetivos, subjetivos, formais e materiais legalmente estipulados,

    35 NUCCI, Guilherme de Souza. Cdigo penal comentado. 10. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.245.36 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 2011, p.379.37 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 252.

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    uma vez que, extrapolada a fronteira em questo, restar configurado o abuso de direito, no incidindo, por conseguinte, a justificante38.

    So exemplos de hipteses nas quais se aplica a excludente em tela a prtica de esportes violentos regulamentados39, os tratamentos mdicos e intervenes cirrgicas admitidos em lei, bem como as doaes de rgos, tecidos e partes do corpo humano para transplante, desde que sem fins lucrativos40. Observemos, pormenorizadamente, cada uma das situaes acima.

    Em se tratando de prticas desportivas violentas, a exemplo do boxe, luta livre, futebol, dentre outras, para que se reconhea a justificante em comento, imprescindvel que disponham de regulamentao. O indivduo apenas responder pelo resultado lesivo produzido nas hipteses em que afastar-se das regras disciplinadoras41.

    38 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., pp 381-382.39 Op. cit.40 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., pp 252-253.41 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 382.

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    No que concerne modalidade da agresso, isto , dolosa ou culposa, faamos algumas consideraes. Ainda que se perfaa o fato tpico e que o nimo norteador seja o dolo, a conduta analisada no ser ilcita se observados os cuidados objetivamente devidos e se a ao tinha por objetivo to somente o exerccio da prtica esportiva. Se, entretanto, o resultado lesivo for culposo, fruto da inobservncia dos referidos cuidados, a prtica esportiva deixar de ser regular, no estando o fato acobertado pela excludente em tela42.

    As intervenes mdicas, em geral, encontram-se igualmente resguardadas pelo exerccio regular do direito. Ao iniciar um procedimento atravs do corte cirrgico, inegvel que o mdico enquadra-se na previso do art. 129, do Cdigo Penal, referente leso corporal. No responde, entretanto, pelo crime em anlise, posto que devidamente autorizado pelo Direito para o exerccio de sua profisso, respeitando-se os

    42 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: volume 1, parte geral, arts. 1 a 120. 7. ed. rev., atual., ampl. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp 410-411.

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    limites estipulados43. Exige-se, ainda, que o mdico tenha atuado com o nimo de exercer regularmente sua profisso44, o que ser aferido de acordo com as evidncias fornecidas pelo caso concreto.

    Nas hipteses em que o mdico no atue de maneira emergencial, deve-se observar, em consonncia com o exerccio regular do direito, a existncia de consentimento por parte do ofendido45. a anlise global de tais elementos que torna lcito um procedimento cirrgico esttico, bem como intervenes para fins de doao, de modo que se mostra indiscutvel a importncia de considerarmos as excludentes e, ainda, associadas aos fundamentos principiolgicos.

    4 Consideraes Finais

    43 BRANDO, Cludio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.197.44 PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 410.45 Op. cit.

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    Conforme aduzido, nem todos os bens so protegidos pelo Direito Penal. Existem critrios de distino, de forma que os bens penalmente tutelados so aqueles fundamentais existncia de uma sociedade organizada.

    Observamos que a noo de bem jurdico sofreu alteraes ao longo do tempo. Inmeras teorias surgiram para explicar a sistemtica da interao entre o indivduo, o bem jurdico ofendido e o Estado, todas pautadas nos contextos culturais de onde surgiram. Abordamos da teoria Iluminista at a noo hodierna de bem jurdico.

    Constatamos que o princpio da legalidade mitigado face aos princpios da adequao social e da insignificncia. Um exemplo claro da incidncia dos mesmos a aplicao de piercings, realizao de tatuagens e demais mecanismos de modificao corporal, uma vez que alm de serem comportamentos amplamente aceitos pela sociedade, atingirem de maneira nfima a integridade fsica, no geram uma leso penalmente punvel.

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    Por fim, destacamos que em certas condutas como a realizao de cirurgia esttica, transexual, o transplante de rgos e leses desportivas - no obstante caracterizarem condutas tpicas, as quais perfeitamente se amoldam previso do texto legal o consentimento do ofendido afasta a antijuridicidade, pelo que se exclui, naturalmente, o carter criminoso do ato. Ressalta-se, no entanto, que o consentimento do ofendido apenas apresenta o efeito supramencionado se o bem integrar a esfera razovel de disponibilidade do indivduo. O rol de bens disponveis no deve ser taxativo. Imperiosa a realizao de uma anlise casustica, capaz de levar em considerao as peculiaridades do caso concreto e o contexto social. A opo dos objetos a serem protegidos pelo Estado acarreta uma deciso poltica, que por no ser neutra, mas fruto de um momento histrico est passvel de crticas e revises.

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