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Bassotti Et Al (Org) - Uma Nova Gestao e Possivel
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organização de:
ivani maria bassotti
sandra souza pinto
thiago souza santos
uma nova gestão é possível
Governador do Estado de São Paulo
Geraldo Alckmin
Secretário de Planejamento e Gestão
Marcos Antonio Monteiro
Unidade Central de Recursos Humanos (UCRH)
Coordenadora Ivani Maria Bassotti
Fundação do Desenvolvimento Administrativo
Diretor Executivo Wanderley Messias da Costa
Diretor Técnico Marcos Camargo Campagnone
1a edição - São Paulo, 2015
uma nova gestão é possível
organização de:
ivani maria bassotti
sandra souza pinto
thiago souza santos
Autores Alexis Vargas
Cecília Whitaker Bergamini Clóvis de Barros Filho
Felix Lopez Fernando de Souza Coelho
Franklin Leopoldo e Silva Hamilton Coimbra Carvalho
Lia Omuro Marcia Angare Pereira
Maria Fernanda Alessio Milton Morales Filho
Mirian Matsura Shirassu Miryam Cristina M. V. Silva
Regina Silvia Pacheco Sandra Souza Pinto
Sérgio Praça Thiago Souza Santos
Coordenação editorial
Flávio Ricci Arantes
Graziella Caleffi Silva Ramos
Projeto gráfico e capa
Américo Cardoso dos Santos Neto
Edição de texto
Eloisa Pires
Vera Zangari
Editoração eletrônica
Helenice Alberto
Normalização bibliográfica
Ana Cristina de Souza Leão
Norma Batista Nórcia
Ruth Aparecida de Oliveira
Catalogação na Fonte
Elena Yukie Harada
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Centro de Documentação da Fundap, SP, Brasil)
Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) Rua Cristiano Viana, 428 – 05411-902 – São Paulo – SP Telefone (11) 3066-5660 – www.fundap.sp.gov.br
Uma nova gestão é possível / organizadores: Ivani Maria Bassotti ;
Sandra Souza Pinto ; Thiago Souza Santos ; autores: Alexis Vargas ...[ et al.].
São Paulo : FUNDAP : Unidade Central de Recursos Humanos da Secretaria
de Planejamento e Gestão, 2015.
224 p.
ISBN 978-85-7285-154-1
1. Gestão de pessoas no setor público. 2. Administração de pessoal –
Setor público. 3. Profissionalização dos servidores públicos. 4. Gestão
pública. I. Bassotti, Ivani Maria (org.). II. Pinto, Sandra Souza (org.). III. Santos,
Thiago Souza (org.). IV. Fundação do Desenvolvimento Administrativo –
Fundap. V. São Paulo (Estado) Secretaria de Planejamento e Gestão. Unidade
Central de Recursos Humanos.
CDD – 350.1
sumárioAgradecimentos 7
Apresentação 11
Introdução 15
Recrutamento e seleção: um novo processo é possível 27- Lia Omuro, Marcia Angare Pereira, Sandra Souza Pinto
A nova gestão de pessoas e o direito administrativo 49- Alexis Vargas
Repensando os concursos públicos no Brasil: subsídios para discussãoà luz da gestão de pessoas no setor público 61
- Fernando de Souza Coelho
Sobre moscas, vieses e justiça nas organizações 91- Hamilton Coimbra Carvalho
Motivação: uma viagem ao centro do conceito 111- Cecília Whitaker Bergamini
É possível motivar? 121- Cecília Whitaker Bergamini
Saúde mental do trabalhador: prazer e sofrimento relacionados ao trabalho 131- Miryam Cristina Mazieiro Vergueiro da Silva
Promoção da saúde do servidor público estadual 145- Mirian Matsura Shirassu, Milton Morales Filho
Como são nomeados cargos de confiança no governo federal? 161- Felix Lopez, Sérgio Praça
Tendências recentes na profissionalização dos dirigentes públicos 179- Maria Fernanda Alessio, Regina Sílvia Pacheco
Uma conversa sobre ética para a gestão pública 207- Clóvis de Barros Filho, Franklin Leopoldo e Silva, Thiago Souza Santos
8
Terceira publicação da Unidade Central de Recursos Humanos
(UCRH) voltada à gestão de pessoas, esta obra sistematiza reflexões de
acadêmicos e profissionais do setor sobre alguns dos problemas que di-
ficultam o desempenho dos gestores públicos. A mescla da contribuição
desses dois grupos profissionais é coerente com as obras que a precede-
ram e consistente com todo o programa de formação empreendido pela
UCRH, fortemente calcado no ensino-aplicação, cujos resultados aqui
demonstram que, sem perder o sentido utilitarista das referências da prá-
tica, o gestor pode ir além, ao estimular sua criatividade inspirando-se
nos progressos da academia.
Assim, gostaríamos de agradecer aos professores Fernando de
Souza Coelho, Cecília Whitaker Bergamini, Clóvis de Barros Filho e
Franklin Leopoldo e Silva, da Universidade de São Paulo (USP); Regina
Sílvia Pacheco, da Fundação Getulio Vargas; Alexis Vargas, da Pontifícia
Universidade Católica (PUC/SP); e Sérgio Praça, da Universidade Fede-
ral do ABC. Ficamos gratos também aos servidores Hamilton Coimbra
Carvalho, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo; Lia Omuro,
supervisora de ensino aposentada da Secretaria de Educação do Estado
de São Paulo; Maria Fernanda Alessio, da Secretaria de Planejamento e
Gestão do Estado de São Paulo; Mirian Matsura Shirassu e Milton Mo-
rales Filho, do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Esta-
dual (Iamspe); Miryam Cristina Mazieiro Vergueiro da Silva, do Hospital
9
das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP; e ainda Marcia Angare
Pereira, da Fundap; e Felix Lopes, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), que compartilharam conosco saberes acumulados em
sua vida profissional.
Nossos agradecimentos especiais à Graziella Caleffi, que coorde-
nou a produção; ao criador de arte, Américo Cardoso dos Santos Neto; e
à equipe de editoração e diagramação da Fundap.
Por fim, agradecemos às equipes da UCRH e da Fundap, que de-
monstraram excelente capacidade de entrosamento em todas as etapas
de produção da obra.
12
A produção de conhecimento de ponta é muitas vezes relegada ao
plano teórico, considerada algo distante da prática, do dia a dia de nos-
sas vidas. Nada mais equivocado. O ser humano não apenas inventou
o conhecimento como forma de dar corpo, substância e coerência à sua
experiência de vida, dando sentido às coisas, mas também como método
para modelar e planejar a construção de possibilidades de existências
futuras. O conhecimento tem importância ímpar em nosso presente e fu-
turo. Construir um futuro diferente do nosso dia de hoje, um futuro de-
sejado, depende de um esforço intelectual de pensar, conjuntamente, as
possibilidades de convivência que melhor alcancem nossas aspirações.
Isso se aplica não apenas à nossa vida individual, mas também à
coletiva. E para o Estado de São Paulo é primordial refletir sobre o fu-
turo que estamos hoje construindo. Estamos seguindo no rumo certo?
Quais nossas aspirações? Como nossas práticas atuais corroboram para
alcançarmos níveis de excelência na prestação de serviços à sociedade?
Nossas práticas atuais nos levam em qual direção? Estas são algumas das
problematizações trazidas pela presente publicação, cujo foco central é a
gestão de pessoas, e que devem guiar as lideranças do Estado para nunca
nos acomodarmos com o fatalismo e o determinismo que muitas vezes
dirigem nossas práticas.
Capcioso, o título desta obra já é uma provocação em si. Afirma ser
possível uma nova gestão, novas práticas gerenciais e relacionais dentro
13
do setor público, mesmo com os conhecidos entraves. E aquele que se
aventurar na leitura perceberá que o livro não traz respostas prontas,
nem mesmo receitas e protocolos para nossa atuação. Trata-se de um
convite para pensar e repensar a gestão de pessoas no setor público. Con-
vite para utilizarmos outras lentes e buscarmos rumos inovadores para
superar nossos desafios presentes e futuros de forma criativa.
Nossos desafios futuros são enormes e precisaremos das melhores
cabeças, estratégias e lideranças. Precisaremos de servidores engajados e
capacitados para enfrentar esses desafios. Assim, quem sabe, surpreen-
deremos o cidadão com excelência na realização das políticas públicas
do Estado Paulista.
Marcos Antonio Monteiro
Secretário de Planejamento e Gestão
16
Não pode haver pacto com a mediocridade. Não basta a entrega de
serviços públicos à população, é preciso que eles sejam de excelência. O
cidadão paulista não deve apenas procurar pelos serviços públicos quan-
do não tem escolha – seja por falta de recursos financeiros para recorrer
a serviços privados, seja por ser atividade exclusiva da administração
pública –, mas sim por acreditar no prestador de serviços. Deve ser uma
opção. O serviço público deve ser o que há de melhor na sociedade, e
para todos.
Sabemos que, para chegarmos a esse retrato, há ainda um grande
caminho a percorrer. A complexidade e a dimensão que envolvem a atu-
ação do setor público não se igualam a nenhum outro setor. O Estado
está presente nos mais diversos segmentos: segurança pública, atenção
à saúde, educação básica, técnica e superior, assistência social, desenvol-
vimento econômico, infraestrutura, transporte público, dentre outros. No
Estado de São Paulo, temos, como público, 44 milhões de pessoas1, distri-
buídas em 645 municípios. Os serviços e as políticas públicas atingem to-
dos os cidadãos paulistas, inclusive muitos brasileiros de outros Estados,
quer seja diretamente como público-alvo de determinada política, quer
seja pelos resultados difusos da ação do Estado para a sociedade. Não
escolhemos o nosso “nicho de mercado”, como se diz no jargão empresa-
rial. Todos, sem exceção, são o nosso público.
1 Fonte: Fundação Seade, 2015.
Organizadores:
- Ivani Maria Bassotti, Sandra Souza Pinto,
Thiago Souza Santos
17
Atualmente, governos nacionais e estaduais enfrentam um cenário
que reúne, de um lado, o fortalecimento da participação e do controle
social sobre a ação estatal; e, de outro, o desafio de, concomitantemente,
aprimorar a qualidade das políticas públicas e reduzir custos. Importan-
tes reformas na gestão pública têm sido promovidas em diversos con-
textos com base no diagnóstico segundo o qual o serviço público precisa
responder mais adequadamente às necessidades dos cidadãos, e que,
para isso, é preciso tornar mais transparentes os objetivos de cada ação
pública e seus resultados para a sociedade, bem como as maneiras pelas
quais os servidores serão responsabilizados, premiados ou cobrados por
seu desempenho.
Nesse contexto mais amplo de necessárias reformas na área pú-
blica, a profissionalização do serviço público e a renovação da gestão
de pessoas se mostram um dos principais desafios da atualidade. Como
prestadores de serviços, basicamente a atividade é focada nos servidores
públicos. A qualidade da ação estatal depende diretamente da quali-
dade da atuação individual e coletiva dos servidores. O volume de ser-
vidores, assim como sua distribuição geográfica, representa um desafio
adicional. Para a condução desses servidores, o Estado conta com apro-
ximadamente 40 mil gestores públicos, compreendidas aqui as pessoas
que dirigem unidades administrativas e/ou equipes, nos diversos níveis
de atuação. São esses gestores públicos os principais responsáveis pela
aplicação das políticas de gestão de pessoas e, portanto, pelo desempe-
nho dos servidores públicos; em última instância, respondem, nessa con-
dição, pelos resultados produzidos pelo Estado.
No orçamento global do Estado, a despesa com pessoal é, sem som-
bra de dúvida, a que envolve maior custo, valor estimado em mais de 74
bilhões para o ano de 2015. O investimento com pessoal no Estado de
São Paulo supera o orçamento total da maior parte dos entes federados.
Diante do cenário exposto, e mais ainda em vista da desaceleração da
economia brasileira, será preciso qualificar o gasto com pessoal.
18
“Os recentes elevados níveis de crescimento econômico tornaram possível
ignorar aumentos no número de servidores, custo de remuneração e cus-
tos totais de produção de bens e serviços financiados pelo Governo. Além
disso, o desempenho da força de trabalho federal é ainda mais difícil de
mensurar, dado que boa parte do seu trabalho não está envolvida na pres-
tação de serviços facilmente mensuráveis.”2
Diagnóstico análogo ao realizado no governo federal foi feito no
âmbito estadual. No livro “Contribuições para a Gestão de Pessoas na
Administração Pública”, de 2013, chamamos a atenção para a necessida-
de do planejamento de pessoal no Estado de São Paulo:
“(...) analisando-se a série histórica das despesas com pessoal no Estado,
nota-se que o custo dobrou de valor, passando de 24 bilhões/ano para 49 bi-
lhões/ano (Gráfico I.2). Esse dado não pode ser avaliado fora do contexto,
pois tal aumento tem múltiplas facetas e reflete as políticas de valorização
dos servidores públicos, com revisões salariais no decorrer da primeira
década do século 21.
Apesar de ter dobrado o custo com pessoal, a arrecadação fiscal também
cresceu, proporcionando à administração um orçamento mais robusto.
Segundo a Lei nº 11.222, de 30/07/2002, que fixou a despesa do estado
de São Paulo para 2003, o orçamento daquele ano ficou fixado em R$
54.618.432.678,00. Portanto, em nove anos, de 2003 para 2011, o orça-
mento público paulista teve um salto de 159%, o que tem mantido uma
margem de segurança significativa no que se refere ao custo com pessoal
frente à despesa total do Estado (Gráfico I.2). O crescimento do gasto de
pessoal não comprometeu a saúde orçamentária estadual, que se encontra
em equilíbrio.
2 Avaliação da Gestão de Recursos Humanos no Governo — Relatório da OCDE. Brasília/
DF: Governo Federal, 2010, p. 18-19.
19
(...)
Ajustes, controle permanente e aprimoramento dos gastos são medidas
sempre necessárias e merecem ser elaboradas e acompanhadas com um
enfoque estratégico, sob o risco de a máquina ser obrigada a conviver com
cortes lineares no futuro, como já se viu várias vezes no passado. No en-
tanto, a questão que importa é se podemos afirmar que a eficiência dos ser-
viços públicos cresceu proporcionalmente ao aumento do custo de pessoal
e do orçamento.
Assim, este é um excelente momento para ações planejadas na área de
recursos humanos, até porque o custo com pessoal continua a crescer, e a
2003
OrçamentoDespesa de Pessoal
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
150.000
15.000
25.000
35.000
45.000
55.000
65.000
75.000
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
60.000
70.000
80.00085.00090.00095.000
100.000105.000110.000115.000120.000125.000130.000135.000140.000145.000
5.0000
Valo
res
em m
ilhõe
s de
R$
Grafico I.2: Série histórica da despesa de pessoal e do orçamento da administração
pública paulista
Fonte: Unidade Central de Recursos Humanos – Secretaria de Gestão Pública – SP (2012).
20
perspectiva é de que essa curva apenas se acentue. Além disso, permanece
uma série de questões críticas a serem consideradas para o aprimoramento
da gestão de pessoas no setor público do estado de São Paulo:
A despesa com pessoal, como maior item isolado do orçamento esta-
dual (41% da receita), demanda atenção compatível com a dimensão,
complexidade e relevância do assunto. Rigidez de regimes de trabalho e
inadequações na legislação de pessoal dificultam uma gestão eficiente e
moderna de recursos humanos. O perfil da força de trabalho, em termos
quantitativos, qualitativos e de alocação, também é inadequado aos no-
vos papéis que a sociedade espera do Estado, demandando providências
para a sua adequação.
Rigidez na descrição dos postos de trabalho, com carreiras baseadas em
formação profissional e não em competências e em atividades a serem
desempenhadas.
Ausência de critérios adequados para a formação das lideranças médias
da administração pública, o que faz com que técnicos assumam funções
de liderança sem possuir o perfil adequado. Desse modo, cria-se um
abismo entre as políticas de recursos humanos e a sua efetivação na
prática da gestão de equipes.
Dificuldade de equilibrar critérios técnicos e políticos na escolha de diri-
gentes em diversos níveis da administração pública.
A vasta legislação que determina a gestão de recursos humanos, adicio-
nado a interpretações do judiciário e dos órgãos de controle geradores
de súmulas, acórdãos e enunciados, tem elevado a judicialização das
questões, reduzindo as possibilidades da liderança transformadora.
Fragmentação e complexidade da legislação sobre gestão de recursos
humanos, dificultando o entendimento mais amplo por todos.
21
Pelo exposto, há necessidade de planejamento sistêmico multitemporal
com os seguintes propósitos:
Melhorar a qualidade do gasto público com pessoal.
Adequar o perfil da força de trabalho aos novos desafios.
Formar e qualificar os profissionais.
Empoderar, responsabilizar e motivar os funcionários.
Difundir os valores de mérito e desempenho.
Fortalecer as lideranças públicas”3.
A crise que abateu o Brasil na virada de 2014 para 2015 destaca o
alerta apresentado acima. Assim, é preciso que ações de médio e longo
prazo e consistentes sejam efetivamente tomadas. E tais ações passam
pela transformação dos servidores públicos e, com isso, da própria ação
estatal. É preciso criatividade, inovação e capacidade de gestão para en-
frentar os desafios ainda desconhecidos e cada vez mais complexos. Para
enfrentar tais desafios, não bastam investimentos em informatização, é
necessário qualificar os servidores. Precisamos dos melhores profissio-
nais e capazes de interpretar dados e informações; produzir, identificar
e avaliar ideias; gerar e gerir soluções inovadoras com baixo custo e alto
potencial transformador da realidade. Precisamos também de gestores
públicos capacitados, lideranças que conduzirão a transformação do ser-
viço público para criar o futuro que desejamos.
“Pode-se treinar um peru para subir em árvore, mas é mais lógico
contratar um esquilo para fazer isso.” Conclusão lúcida lembrada pelas
autoras Lia Omuro, Sandra Souza Pinto e Márcia Angare no capítulo 1,
com o artigo “Recrutamento e Seleção: um novo processo é possível”,
que discute a necessidade de se investir na atratividade do setor público,
3 BASSOTTI, Ivani Maria; TEIXEIRA; Hélio Janny; SANTOS, Thiago Souza. “Contribui-
ção para a gestão de pessoas na administração pública”. São Paulo: FIA/USP, 2013, pp.
15-20.
22
para que possamos trazer os profissionais mais adequados às nossas ne-
cessidades virtuais. Lembram a importância da seleção dos profissionais
para alcançarmos os projetos idealizados pela nossa carta democrática.
“Garantir o atendimento às reivindicações de uma população cada vez
mais exigente dos seus direitos impele a mudanças na forma de trabalho
dos órgãos públicos. Nos processos de atração e seleção, essas mudan-
ças podem significar não apenas considerar a quantidade requerida de
profissionais para atender a determinada área de serviço, mas, princi-
palmente, buscar meios de atrair bons profissionais e selecioná-los por
sua qualificação, competência e resolutividade, condições favoráveis à
realização dos programas e projetos demandados ao Poder Público pela
Carta Constitucional de 1988”.
Na mesma linha, Fernando de Souza Coelho, no capítulo 3, discu-
te os concursos públicos no Brasil. Provocador, o autor convoca todos a
repensar o ethos público e sua relação com a vocação das pessoas para
atuar no setor. Lembra que os concursos públicos, mais do que um ins-
trumento jurídico e administrativo para selecionar pessoas para atuar no
serviço público, como enaltecem muitos dos nossos administrativistas,
hoje é um grande mercado bilionário. Em nome de uma santificada obje-
tividade, a finalidade do concurso público – recrutar os melhores e mais
adequados para as necessidades da administração pública – é soterra-
da. É preciso repensar, portanto, o instituto do concurso público para
evitar as suas atuais disfuncionalidades.
Alexis Vargas, no capítulo 2, também coloca em debate franco a
interação do direito administrativo e a nova gestão de pessoas no setor
público. Para tanto, parte da discussão de quatro tópicos relacionados à
gestão de pessoas: gestão por competências, cargos largos, carreira em Y,
e gestão do desempenho. No artigo, busca esclarecer os conflitos existen-
tes entre as práticas gerenciais e as restrições do direito administrativo,
com enfoque no que o direito administrativo permite e a cultura dos ges-
tores públicos não tem deixado florescer.
23
A justiça organizacional, tema tão relevante para as organizações
contemporâneas, também tem espaço. Hamilton Coimbra Carvalho, no
capítulo 4, lembra que “vivemos no país em que faz parte do software
mental das pessoas a famosa crença do manda quem pode, obedece
quem tem juízo”. Mudar tal software é doloroso e difícil. Os gestores, ato-
res fundamentais para a manutenção de um ambiente com justiça, des-
conhecem o tema da justiça organizacional e, muitas vezes, o consideram
um problema. Parece, apenas, que esquecem os reflexos na motivação
de sua equipe, a qual afeta diretamente o desempenho e os resultados
institucionais. Como destacou a Cecília Bergamini nos seus ensaios sobre
motivação e trabalho que compõem os capítulos 5 e 6, os líderes parecem
não perceber que não são capazes de motivar os membros de sua equipe,
mas têm o condão de desmotivar seus seguidores.
A desmotivação não apenas gera problemas de desempenho e re-
sultados institucionais, mas também provoca danos sérios à saúde dos
profissionais. Miryam Cristina Mazieiro Vergueiro Silva, no capítulo 7,
discute os prazeres e sofrimentos relacionados ao trabalho, em especial,
no setor público. A autora lembra, com Dejours, que “o trabalho não é
neutro – é fonte de adoecimento ou de saúde mental”. Mas também
pode ser fonte de identidade e realização. De forma precisa, a autora dis-
cute a importância do gestor e da organização do trabalho para definir
qual será o caráter definidor do trabalho para os servidores, se um fator
de identidade e reconhecimento ou de adoecimento.
Mirian Matsura Shirassu e Milton Morales Filho, capítulo 8, tra-
tam da “Promoção da saúde do servidor público estadual”. Apresen-
tam o Programa Prevenir, “iniciativa do Instituto de Assistência Médica
ao Servidor Público Estadual (Iamspe), que presta assistência médica a
uma população fechada, de servidores, seus dependentes e agregados,
do Estado de São Paulo”. Mostra que as estratégias adotadas pelo pro-
grama se pautam nas noções de promoção de saúde e no conceito de
determinantes sociais da saúde, sendo estes últimos muito regrados por
24
condições individuais de idade, sexo e fatores genéticos, além do estilo
de vida do servidor.
Felix Lopez e Sérgio Praça discutem como são nomeados cargos de
confiança no governo federal, no capítulo 9. Destacam que as interpre-
tações dos atos de nomeações de cargos de confiança são pautadas por
uma lógica jornalística com caráter acusatório e no fervor das discussões
político-partidárias, que “nem sempre espelham de forma adequada a
lógica efetiva de preenchimento daqueles quadros”. Assim, pretendem
quebrar mitos que, como num coro, são repetidos constantemente, sem a
devida reflexão.
E se falamos em cargos de confiança, a discussão das “tendências
recentes na profissionalização dos dirigentes públicos” é essencial. Regi-
na Silvia Pacheco e Maria Fernanda Alessio nos brindam, no capítulo 10,
com uma rica reflexão que traz pesquisas sobre experiências de sistemas
de alta gestão que estão em curso em diversos países democráticos. No
centro, o caso chileno, que “se apresenta como uma experiência de racio-
nalização do processo decisório”. Não sabe o que é sistema de alta dire-
ção? Não tem problema, as autoras conduzirão você em uma discussão
rica sobre o tema.
E, para concluir, uma conversa sobre ética para a gestão pública,
conduzida por Thiago Souza Santos com os professores e filósofos Clóvis
de Barros Filho e Franklin Leopoldo e Silva. Diálogo essencial e de leitura
obrigatória. Iniciando pela definição de ética, que o professor Franklin
diz ser desnecessária, passando pela noção de corrupção e transitando
para o debate a respeito da confiança, os dois filósofos nos inserem em
um espaço de reflexão muito precioso. Mais uma vez, ninguém encontra-
rá dicas de ética ou de como se comportar. Não se trata de uma bula que
orienta no modo de usar. Lembra mais um grito vindo da rua, no meio da
noite, mas que nós não sabemos de onde vem, e nos acorda com o cora-
ção palpitante e nos faz pensar sobre o que está acontecendo.
25
Este livro faz parte de um esforço da Unidade Central de Recursos
Humanos, da Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado de São Pau-
lo, para consolidar pesquisas e conhecimentos sobre gestão de pessoas
no setor público, coisa muito rara. Mas nossos esforços não se esgotam
no livro. Contamos com uma rica videoteca com produções audiovisuais
que complementam este trabalho e está à livre disposição de todos pelo
nosso canal no endereço www.youtube.com/ucrh21.
E, para fechar esta introdução que já se alonga, gostaríamos de di-
zer que o desejo dos organizadores deste livro é que o leitor não encontre
respostas, mas apenas vestígios, fagulhas de inspiração para ajudar na
reflexão sobre nossa atuação como servidores públicos. Como no poema
do francês René Char: “Um poeta deve deixar pegadas de sua passagem,
não provas. Só os vestígios fazem sonhar”. Que você, leitor, encontre
muitos vestígios e poucas provas.
Lia Omuro
Pedagoga formada pela Faculdade
São Marcos; Supervisora de Ensino
aposentada; e consultora na área
organizacional com predominância
em gestão de pessoas no setor público.
Marcia Angare Pereira
Socióloga formada na Universida-
de de São Paulo (USP). Técnica em
Desenvolvimento Organizacional
na Fundação do Desenvolvimento
Administrativo (Fundap).
Sandra Souza Pinto
Doutora em Administração de Em-
presas pela Faculdade de Economia
e Administração da USP. Coorde-
nadora de projetos na Fundação do
Desenvolvimento Administrativo
(Fundap).
28
Introdução
Garantir o atendimento às reivindicações de uma população cada
vez mais exigente dos seus direitos impele mudanças na forma de traba-
lho dos órgãos públicos. Nos processos de atração e seleção, essas mu-
danças podem significar não apenas considerar a quantidade requerida
de profissionais para atender a determinada área de serviço, mas, prin-
cipalmente, buscar meios de atrair bons profissionais e selecioná-los por
sua qualificação, competência e resolutividade, condições favoráveis à
realização dos programas e projetos demandados ao Poder Público pela
Carta Constitucional de 1988. Se a organização consegue selecionar can-
didatos com as referências desejadas, melhor será, porque o candidato se
adaptará mais facilmente ao trabalho e à organização e, em menor espa-
ço de tempo, poderá oferecer bons resultados. Nesse sentido, o consultor
Elmano Nigri fez uma observação bastante pertinente em uma entrevis-
ta, dizendo que se pode treinar um peru para subir em árvore, mas seria
mais lógico contratar um esquilo para fazer isso.
Nem sempre o treinamento torna competente um servidor que não
disponha de algumas credenciais de ingresso; e os concursos públicos,
por sua vez, apresentam-se limitados pelas normas constitucionais e as
interpretações que órgãos de controle fazem do capítulo da administra-
ção pública da Carta Magna.
- Lia Omuro, Marcia Angare Pereira,
Sandra Souza Pinto
29
Vale lembrar que a Reforma Administrativa implantada pelo go-
verno federal a partir da edição da Emenda Constitucional n. 19/98 intro-
duziu o princípio de eficiência na administração pública, propugnando
a mudança de uma cultura burocrática para um modelo gerencial de ad-
ministração. Ferreira (2009) explicita, dentre outras diretrizes da refor-
ma, “o controle por resultados, a posteriori, ao invés do controle rígido,
passo a passo, dos processos administrativos; e a administração voltada
para o atendimento do cidadão e aberta ao controle social”.
Não por acaso, o conceito de competência passou a ganhar im-
portância para o sistema de gerenciamento da administração pública a
partir da década de 90. Com sua aplicação nas diversas áreas da gestão
de recursos humanos, da seleção à remuneração, esperava-se conseguir
com esse modelo valor e ganhos de desempenho.
No 3º. Congresso sobre Gestão de Pessoas no Setor Público Paulis-
ta, promovido pela Unidade Central de Recursos Humanos em 2014, os
palestrantes do tema “Competências de gestão e entorno político: debate
sobre experiências práticas de casos nacionais e internacionais” trouxe-
ram experiências concretas de sistemas de gestão de pessoas baseados
em competências, tais como a Certificação Ocupacional do Estado de São
Paulo, e o Sistema de Empreendedores Públicos de Minas Gerais, além
de uma experiência internacional – o Sistema de Alta Direção Pública
chileno –, para demonstrar a importância crescente da seleção de diri-
gentes e gestores em contextos marcados pela interface entre as dimen-
sões da técnica e da política.
Mas ainda são poucos os casos de uso do conceito na gestão pú-
blica, e a discussão está aberta. Por isso, entende-se pertinente retomar o
conceito de competência e analisar sua aplicação na área de recrutamen-
to e seleção.
Este artigo procura encontrar caminhos para uma nova gestão dos
processos de seleção no setor público do Estado de São Paulo, revendo
30
fundamentos legais, analisando o planejamento de todo o processo e su-
gerindo formas de aplicação do conceito de competências na seleção de
profissionais para o serviço público.
Levando-se em conta o princípio “o homem certo no lugar certo”,
acredita-se que é possível a administração pública selecionar as pessoas
certas para as unidades que integram sua estrutura organizacional, tra-
zendo para os processos e serviços as competências que eles requerem.
Recrutamento e Seleção: o Processo Administrativo
Pode-se afirmar que, do ponto de vista normativo, todo órgão seto-
rial do sistema de administração de pessoal encontra amparo legal para
estabelecer procedimentos de efetividade e qualidade no processo de se-
leção dos profissionais para o quadro de pessoal da organização em que
atua. Os Decretos n.52. 833, de 24 de março de 2008; e n. 60.449, de 15 de maio
de 2014, amparam procedimentos no Estado de São Paulo.
O Decreto n. 52.833 organiza o sistema de administração de pessoal
determinando as atribuições e competências dos órgãos central, setoriais e
subsetoriais de recursos humanos. Os processos de gestão de pessoas distri-
buem-se, nesse decreto, em cinco áreas essenciais e integradas, quais sejam:
• planejamento e controle;
• análise e estudos salariais,
• seleção e recrutamento de pessoal;
• desenvolvimento e capacitação de recursos humanos; e
• legislação de pessoal.
Cabem à área de seleção e recrutamento de pessoal, no âmbito
setorial, as seguintes atribuições, que dão conformidade à realização do
concurso público:
“Artigo 8º - Os órgãos setoriais, em relação a seleção e recrutamen-
to de pessoal, nos respectivos âmbitos de atuação, têm as seguintes
atribuições:
31
I - realizar estudos e pesquisas para a permanente atualização e
aperfeiçoamento dos métodos e técnicas de recrutamento e seleção
e a adequada colocação de recursos humanos;
II - promover anualmente a avaliação do efetivo existente e das ne-
cessidades, com vista à promoção de concursos públicos;
III - verificar a possibilidade de aproveitamento de pessoal consi-
derado disponível ou habilitado em concurso público em outros
órgãos do Sistema;
IV - programar atividades de recrutamento e seleção de pessoal
mediante concurso público e concurso interno de acesso;
V - elaborar minutas de editais de concursos públicos, nos termos
das normas pertinentes;
VI - executar os programas de recrutamento e seleção de pessoal;
VII - coordenar, orientar e controlar os órgãos subsetoriais do Sis-
tema quanto à execução de programas de recrutamento e seleção
de pessoal;
VIII - garantir a adequação de conteúdo dos programas de recru-
tamento e seleção, bem como dos recursos humanos e materiais
alocados;
IX - manter registro e contato com instituições especializadas em
recrutamento e seleção de pessoal e com órgãos fiscalizadores do
exercício profissional”.
Se todas essas atividades forem realizadas, o processo de recruta-
mento e seleção de pessoal terá garantias de efetividade, porque estará
suportado por um levantamento de necessidades, pelo planejamento das
atividades de realização dos concursos, além da coordenação das ações
dos órgãos subsetoriais.
Já o Decreto n. 60.449 especifica procedimentos que garantem a pa-
dronização e a lisura do processo de ingresso na administração pública
direta e indireta do Estado de São Paulo.
32
Dentre as regras desse decreto, é importante ressaltar os princípios
que norteiam a realização dos concursos:
“Artigo 2º - O concurso público é o procedimento pelo qual se dá
a seleção de indivíduos mais capacitados para a investidura em
cargo público de caráter efetivo ou emprego público de caráter per-
manente, norteado pelos princípios da:
I - legalidade;
II - impessoalidade;
III - moralidade;
IV - publicidade; e
V - eficiência”.
Esses são os princípios constitucionais que regem a administração
pública podendo ser esclarecidos da seguinte forma
O princípio da legalidade é uma garantia a nós, administrados, que só
devemos cumprir as exigências do Estado se estiverem de acordo com a lei.
“Se as exigências não estiverem de acordo com a lei serão inválidas e, por-
tanto, estarão sujeitas ao controle do Poder Judiciário” (DELPHINO, 2012).
A administração pública não pode fazer discriminações nem favo-
recimentos. Isso está consagrado no princípio da impessoalidade. “Na con-
tratação de pessoas, o respeito ao princípio significa que a administração
pública não pode contratar quem quiser, mas somente quem passar no
concurso público, respeitando a ordem de classificação” (DELPHINO,
2012). Em respeito a esse princípio, os editais de concurso não podem
exigir experiência prévia. A comprovação de títulos é feita após a classi-
ficação dos candidatos nas provas.
O princípio da moralidade administrativa é o vetor da atuação do admi-
nistrador público. Por esse princípio, não bastará ao administrador o cum-
primento da estrita legalidade, ele deverá respeitar os princípios éticos de
razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui pressuposto de validade
de todo ato administrativo praticado, segundo Moraes apud Fonseca (2015).
33
Observar o princípio da publicidade implica conferir plena transpa-
rência aos atos administrativos. “É a obrigação levar ao conhecimento
de todos os contratos, licitações, atos administrativos ou instrumentos
jurídicos, podendo assim o administrado, estando insatisfeito com algum
ato, manifestá-lo contra ele” (FIGUEIREDO, 2012). Os editais de concurso
atendem a esse princípio.
Eficiência. Nos processos de concurso, como em qualquer outra
forma de prestação de serviços públicos, a administração pública deve
buscar um aperfeiçoamento, mantendo ou melhorando a qualidade com
economia de despesas. O modelo gerencial corrobora esse princípio ao
preconizar a racionalização de custos compatibilizada com maior produ-
tividade do desempenho organizacional, mas o princípio é muito maior
do que isso. Di Pietro (2002, p. 83) afirma que uma administração eficien-
te pressupõe qualidade, presteza e resultados positivos, constituindo,
em termos de administração pública, um dever de mostrar rendimento
funcional, perfeição e rapidez dos interesses coletivos. Se plenamente re-
alizadas, as atribuições da área de recrutamento e seleção previstas no
artigo 8º, do Decreto Estadual n. 52.833, garantem a atenção ao princípio
da eficiência.
No Decreto n. 60.449, que está sendo comentado, encontram-se
também os procedimentos necessários à realização de concursos públi-
cos no âmbito das secretarias e autarquias, dentre os quais se destacam
os elementos para solicitação da abertura do concurso que direcionam
estudos do perfil desejado do servidor para desempenhar as atribui-
ções da unidade de alocação:
“Artigo 4º - A solicitação de autorização para abertura de concur-
so público deverá ser instruída, obrigatoriamente, com:
I - justificativa fundamentada indicando:
a) o perfil profissional esperado, indicando as principais funções a
serem exercidas pelos futuros servidores ou empregados públicos;
34
b) a pretendida alocação da força de trabalho, especificando as uni-
dades de lotação; e,
c) as necessidades das áreas que buscam suprir com a medida”.
Se os estudos realizados indicam a necessidade de concurso pú-
blico para atender às necessidades demandadas, cabe à área de recursos
humanos iniciar procedimentos relacionados à elaboração do concurso
na forma definida pelo Decreto n. 60.449.
Borges (2009), entretanto, salienta os seguintes pontos:
• Princípio do concurso público: a Constituição não prevê um princípio do
concurso público. Há, sim, princípios explícitos e implícitos na Consti-
tuição Federal de 1988 (CF/88), relativos ao procedimento do concur-
so público, bem como o princípio da ampla acessibilidade às funções
públicas, inserto no inciso I, do artigo 37, da CF/88.
• Finalidade do concurso público: estabelece procedimento obrigatório
para todos os entes e órgãos de quaisquer esferas da Federação bra-
sileira. Dessa forma, não se pode admitir que cada concurso público
tenha regramento próprio, ou seja, a edição de seus editais, ainda que
decorrente de faculdade discricionária, não se pode dar à livre vonta-
de do administrador público.
• Arcabouço principiológico do concurso público: refere-se à moldura dentro
da qual o procedimento deve se realizar em todos os entes federativos
do Estado brasileiro, consubstanciado nos princípios da legalidade, da
ampla acessibilidade às funções públicas, da impessoalidade – coro-
lário do princípio da isonomia – da eficiência, da moralidade adminis-
trativa, da publicidade, da motivação, da proporcionalidade e da razo-
abilidade. Esses são princípios do processo administrativo e, portanto,
aplicáveis ao concurso público, o devido processo legal, o contraditório,
a ampla defesa e os meios e recursos a ela inerentes, na forma dos inci-
sos LIV e LV, do art. 5º, da CF/88, legitimando o concurso público.
• Dos requisitos às funções públicas: se é certo que o acesso às funções pú-
35
blicas requer o atendimento de requisitos predeterminados, não me-
nos válida é a assertiva de que tais requisitos devem ser compatíveis
com o próprio exercício e natureza da função, sob pena de configura-
ção de seu caráter discriminatório, preceito que direciona a conduta
tanto do administrador público quanto do legislador, em obediência
ao princípio da razoabilidade e ao objetivo fundamental da República
prescrito no artigo 3°, da CF/88, de não discriminação.
• Controle do concurso público: o controle do concurso público deve ini-
ciar-se pelo edital, o meio de seleção que melhor atende aos referidos
ditames para os objetivos da administração pública, candidatos e so-
ciedade e para a atividade pública. Sem sua observância, os certames
servirão como instrumento de apropriação dos espaços públicos e de
manipulação.
Segundo a CF/88, a lei deve definir os requisitos de provimento do
cargo. Se tais requisitos forem genéricos, o edital não poderá restringi-
los, assim, a lei que define plano de carreiras deve indicar as habilitações
necessárias a atender da melhor forma às responsabilidades dos cargos,
sob pena de a organização não conseguir atrair e selecionar candidatos
com os perfis necessários ao trabalho.
Aplicar a legislação e, portanto, observar o que fixa o Direito Admi-
nistrativo sobre os processos de gestão de pessoas não impede uma visão
mais larga dos processos e seus resultados, e, especificamente, em recru-
tamento e seleção, a organização pode ser beneficiada pela incorporação
de três quesitos gerenciais incrementais: a análise dos processos das áreas
onde as vagas são demandadas; a análise das competências requeridas com
base nas atribuições das áreas e dos cargos; e a elaboração do edital com os
requisitos exigidos para o cargo, grau de escolaridade, por exemplo, mas
considerar, tendo em vista suas atribuições, os conhecimentos necessários
para a eficácia de processos e entregas nas unidades demandantes.
Nesse sentido, é útil lembrar Carlos Ary Sundfeld da Unidade Cen-
tral de Recursos Humanos (UCRH) sobre as relações nem sempre fáceis
36
entre o direito administrativo e a gestão: “costuma-se imputar ao Direito
administrativo um engessamento dos processos de concursos públicos,
mas para as dificuldades à gestão estão no modo como essas normas, se-
jam constitucionais, sejam legais, são apropriadas pelos interessados ou
pelos órgãos de controle que acabam fazendo interpretações que podem
ser extremamente restritivas”.
Buscando um modelo que confira a eficiência e eficácia ao processo
de recrutamento e seleção, o gestor não pode deixar de considerar as-
pectos gerenciais, como o alinhamento desse processo com as diretrizes
organizacionais.
Recrutamento e seleção: o processo gerencial integrado
A chave da inovação no processo de seleção do pessoal no setor
público, consideradas as limitações constitucionais e legais, parece es-
tar em uma concepção abrangente de todo o processo que o coloca ali-
nhado aos objetivos estratégicos e à visão de futuro da organização. O
modelo que se propõe está integrado ao planejamento estratégico e ao
cenário que se projeta para a organização na qual se podem identificar
necessidades para os quadros de pessoal e propor ações para atender
a elas.
Um exemplo do processo de recrutamento e seleção (R&S) com
uma visão sistêmica e integrada às diretrizes estratégicas da organização
está sugerido na Figura 1.
No modelo sugerido, o processo de recrutamento e seleção se
apresenta integrado às demais funções do sistema de RH, expressas no
Decreto n. 52.833, as quais estão todas relacionadas às necessidades de
pessoal atuais e futuras da organização, cuja identificação é produto do
planejamento estratégico organizacional. Os três passos críticos do mo-
delo serão examinados a seguir.
37
1. Analisar os processos das áreas em que as vagas são
demandadas
Os cursos de planejamento da força de trabalho realizados em 2014,
de iniciativa da (UCRH) e desenvolvidos pela Fundap, recomendam que
a área de recrutamento e seleção realize uma análise diagnóstica em cin-
co passos, quais sejam:
• avaliação das potenciais mudanças futuras em relação ao ambiente;
• externo e interno da organização, para determinar o cenário mais pro-
vável de atividades para o período considerado;
• estimativa das necessidades de recursos humanos condizentes com o
cenário projetado;
• identificação da situação atual do quadro de pessoal, isto é, da oferta
de recursos humanos existente;
Processo de recrutamento e seleçãono sistema de RH
Análise dasnecessidades
de pessoal
Elaboração deconcurso
Resultados:vagas preenchidas
Planejamentoestratégico
Macroprocessos
Competências organizacionais
Necessidades de RHatuais e futuras
Cargos técnicos Cargos operacionais
Planejamento e controle RH
Recrutamento e seleção
Análise e estudos salariais
Legislação de pessoal
Desenvolvimento ecapacitação de RH
Figura 1: Processo de Recrutamento e Seleção com a organização emanada
do Decreto n. 52.833
38
• identificação das diferenças entre as necessidades futuras e a oferta
atual de recursos humanos;
• definição de estratégias para eliminar as diferenças verificadas, bem
como para assegurar que a força de trabalho atual possa contribuir para
o atendimento das demandas futuras, considerando o cenário projetado.
A análise da demanda de serviços e da oferta de mão de obra pelo
quadro de pessoal existente deve melhorar a projeção de concursos, favo-
recendo as organizações públicas que não podem ou não devem suportar o
ônus de um quadro de pessoal com volume que exceda suas reais necessi-
dades. Mas tampouco as organizações devem olhar passivamente seu qua-
dro minguar mediante perdas de talentos em suas áreas críticas sem realizar
estudos que demonstrem e justifiquem os movimentos dessas ocorrências
em face da necessidade de reposição de pessoas. Para isso, podem usar indi-
cadores de distribuição dos cargos e dos seus quantitativos, além de buscar
informações sobre formação, competências, descrição do cargo e padrões
salariais de evolução nas carreiras respectivas aos cargos em análise.
O acompanhamento das vacâncias de cargos e motivos decorrentes
integram estudos de déficit que poderão indicar a necessidade de criação
de vagas para outros cargos mais pertinentes ao cenário futuro. Extinção
de cargos, por exemplo, pode ser originária da permanência de pessoas
por mais de 30 ou 35 anos de serviço público em cargos que não mais
agregam valor às novas funções do Estado. Portanto, nem sempre o nú-
mero de vagas provocado pelas exonerações constitui fonte de reapro-
veitamento para concurso público.
Os estudos que visam a identificar o perfil do quadro atual para
subsidiar a decisão de realização de concurso público podem ser otimi-
zados mediante observação:
• das unidades da estrutura básica integrantes de cada área ou subárea
e atribuições correspondentes;
• de relatórios descritivos das atividades realizadas pelos servidores em
exercício por unidade, a fim de avaliar a compatibilidade de suas fun-
39
ções com as atribuições requeridas nessa unidade;
• das atribuições legais dos cargos de nível superior, nível médio e nível
básico correspondentes aos cargos do quadro atual;
• da identificação de servidores do quadro suplementar e de provimen-
to em comissão quando responsáveis diretamente pela execução das
atividades informadas.
As informações levantadas e analisadas oferecem dados necessá-
rios à identificação da oferta atual de pessoal e elementos para justificar
a necessidade do concurso público.
É conveniente utilizar indicadores para comparar a situação pre-
sente com a situação proposta de vagas necessárias para cada cargo plei-
teado para realização de concurso público, mas o resultado de um cálcu-
lo de quantidade de pessoas necessárias para um quadro de pessoal na
administração pública deve ter sempre como escopo a eficiência e efetivi-
dade na prestação dos serviços públicos, sejam os cargos requeridos em
processos finalísticos, sejam aqueles requeridos em processos ou unida-
des de área meio. A eficiente prestação do serviço público é alcançada
não somente com o desempenho do pessoal técnico, mas também com o
apoio competente do pessoal administrativo.
Uma referência da aplicação de medição da situação atual e necessá-
ria para um quadro de pessoal está no trabalho “O redimensionamento de
recursos humanos das diretorias de ensino: para maior autonomia e capa-
cidade de gestão”, apresentado no Fórum Consad 2014. Desse trabalho re-
sultou a Resolução SE 23, de 6 de maio de 2014, da Secretaria da Educação
de São Paulo (SEE/SP), que estabelece módulo de pessoal para condução
dos processos administrativos de área meio (administração de pessoal, de
finanças, de tecnologia de informação, de planejamento e controle da rede
escolar) em Diretorias Regionais de Ensino e unidades dos órgãos centrais.
Outra iniciativa é da Secretaria Estadual de Saúde, que estimula seus
gestores a estruturar indicadores de pessoal com base em uma metodolo-
gia constante da publicação interna “Indicadores de Gestão de Pessoas”:
40
“que oferecem subsídios às áreas de recrutamento e seleção, bem como ins-
pirando a adoção de medidas de retenção e aprimoramento de pessoal. En-
tendemos que a adequada seleção, colocação e aproveitamento dos nossos
recursos humanos é um passo decisivo para o cumprimento dos princípios
e objetivos do Sistema Único de Saúde” (SES, 2013, p.9).
2. Analisar as competências requeridas com base nas
atribuições das áreas e atribuições de cargos
O modelo de gestão por competências aparece como forma de ar-
rumar os recursos humanos das organizações e como solução para que
elas alavanquem o desempenho de seus colaboradores e se tornem efi-
cientes e eficazes.
Há vários conceitos de competências e gestão por competências na
literatura. O que tem sido mais referenciado e o adotamos aqui é aque-
le cuja definição abrange três dimensões: conhecimentos, habilidades e
atitudes, dimensões que estão correlacionadas e que afetam a maneira
como o trabalho é feito e seus resultados.
No mundo corporativo, não se fala em competência sem o vínculo
com o trabalho. Fleury e Fleury (2001, p 186) afirmam que “o trabalho não
é mais o conjunto de tarefas associadas descritivamente ao cargo, mas se
torna o prolongamento direto da competência que o indivíduo mobiliza
em face de uma situação profissional cada vez mais mutável e complexa”.
Aptidões, habilidades, conhecimentos devem produzir resultados
práticos no trabalho. Alguns autores citados por Fleury e Fleury (2001,
p.189) são representativos desse pensamento, como Durand (as com-
petências são expressas pelo desempenho profissional dentro de deter-
minado contexto organizacional); Zarifian (são reveladas pela maneira
como as pessoas agem ante as situações profissionais com as quais se
defrontam); e Prahalad e Hamel (servem como ligação entre as condutas
individuais e a estratégia da organização). Na esfera pública, as compe-
tências agregam valor social a indivíduos e organizações.
41
Nos processos de seleção profissional nas empresas, é bastan-
te comum o uso das dinâmicas de grupo para avaliar características
e identificar competências dos candidatos à vaga. Também é usual a
análise do currículo, podendo-se exigir atestados de ex-empregadores.
Como se sabe, nos certames para cargos permanentes no governo, as
normas constitucionais e legais impedem essas formas de aferição, pre-
judicando ou dificultando a escolha dos candidatos mais aptos ao perfil
do cargo.
Mas o modelo de competências pode ser aplicado, por exemplo, no
aproveitamento de concursados de outras secretarias, dos quais foram
exigidos outros conhecimentos e habilidades e os quais, além disso, não
conhecem a secretaria em que se efetivará o exercício, seus serviços, seus
públicos-cliente. Embora essa seja uma prática comum, a discrepância
entre competências técnicas e comportamentais para o cargo nos dois
órgãos (o que selecionou e o de efetivação) pode comprometer vagas com
servidores não qualificados para o trabalho, com evidente prejuízo para
a eficiência e eficácia da organização. Fontainha (2014) observa que uma
seleção ruim de candidatos explica a má qualidade do serviço público,
porque privilegia profissionais capazes de resolver provas – e não os
que têm aptidão para servir ao cidadão. Diz ele:
“O servidor pode resolver bem uma conta matemática em um teste, mas
não significa que ele tem as melhores habilidades para o setor. Um exem-
plo é o INSS, que seleciona seus técnicos unicamente por provas de múlti-
pla escolha que exigem conhecimentos de português, informática e direito
previdenciário. Por que não, então, exigir para os candidatos experiên-
cia prévia com atendimento ao público? Não estou falando que devemos
exigir cursos e diplomas para o cargo, mas sim experiência como caixa
de farmácia, atendente de supermercado, atividades, enfim, que tenham
posto o aspirante a funcionário público em contato com pessoas que ele
precisasse atender”.
42
O trabalho conjunto para a definição do perfil com a área deman-
dante, a especificação de requisitos de provimento na lei que estabelece
a carreira, a exigência de aprovação em curso como etapa do concurso,
vide o que acontece nas carreiras de Especialista em Políticas Públicas no
Estado de São Paulo e de Analista Previdenciário para a São Paulo Previ-
dência (SPPREV). Esses casos exemplificam estratégias para eliminar as
diferenças entre o perfil ideal do candidato para a vaga e as competências
verificadas por meio das provas de seleção, bem como para assegurar
que a força de trabalho atual possa contribuir para o atendimento das de-
mandas futuras, considerando-se a visão de futuro do órgão e o cenário
projetado para a realização de sua missão.
A capacidade de análise do perfil ideal do candidato foi apontada
como competência crítica por servidores da área em um curso de recruta-
mento e seleção para a Secretaria da Saúde. Outra competência apontada
foi a capacidade de elaborar um edital. Observe-se que ambas são com-
petências técnicas demandadas em duas etapas do processo organizacio-
nal “recrutar e selecionar”, que é o “negócio” da área.
A mudança de visão do processo de R&S e incorporação de com-
petências de pessoal para gestão de pessoas deve trazer ganhos ao de-
sempenho dessa área de gestão de RH, abrindo possibilidades de apro-
ximar os candidatos selecionados do perfil traçado. O aperfeiçoamento
da definição de perfil do candidato, no início do processo, e a elaboração
do edital são as pontas críticas dentre as possibilidades de melhoria do
processo e de acertos nos resultados esperados.
3. Elaborar edital com conhecimentos necessários para a
eficácia dos processos
A construção da prova de seleção dos candidatos deve ser apoia-
da nas competências requeridas dos potenciais servidores e nas neces-
sidades atuais e futuras do órgão. Simplesmente contratar entidade
para realizar a prova e transferir essa responsabilidade não garante o
43
atendimento a esse requisito essencial nesse processo. O órgão de re-
crutamento e seleção deve voltar sua atenção para todas as atividades
envolvidas, tais como: definir os itens essenciais do edital junto com o
órgão demandante do concurso; e elaborar questões pertinentes à rea-
lidade e com os conhecimentos técnicos de construção de questões que
meçam o que é demandado e o atendimento a objetivos instrucionais
relevantes e não somente de memorização. Desenhar a prova com grau
de dificuldade e tempo de duração adequados aos conhecimentos exi-
gidos; validar a prova planejada com indicadores; realizar revisão téc-
nica das questões aplicadas; e comparar os resultados obtidos na apli-
cação da prova com os que foram planejados são outros requisitos de
uma prova bem elaborada.
O curso de recrutamento e seleção para a Secretaria de Estado da
Saúde, realizado pela Fundap em 2014, evidenciou a oportunidade de
desenvolver na área a competência técnica de desenho e construção de
provas, a qual se encontra fora da administração pública, concentrada
em organizações prestadoras de serviços empresariais.
O processo de seleção deve estar apoiado em indicadores de desem-
penho da área, a fim de estabelecer metas de eficiência e eficácia da área
para melhoria contínua de seu desempenho, desde indicadores de quali-
dade da prova, como de processo de realização da atividade e de resulta-
dos. O índice de retenção do candidato no órgão é um dos indicadores que
podem ser utilizados para avaliar posteriormente a eficácia do processo.
Essas boas práticas de processo não se aplicam apenas ao ingres-
so no serviço público; são úteis também à movimentação de servidores
entre áreas com cargos idênticos, mas diferentes atribuições, e nos pro-
cessos de certificação para funções gerenciais, como alguns exemplos ci-
tados no início deste artigo.
A Fundap teve a oportunidade de elaborar e aplicar provas espe-
cíficas para a área de atendimento ao cidadão, parte da seleção interna
de novos gestores de postos de atendimento implantados no interior do
44
Estado de São Paulo. A seleção se iniciou com a identificação correta do
processo de trabalho, a análise da proposta estratégica da organização
para os postos de trabalho e as competências requeridas desse gestor,
bem como as necessidades dos novos postos.
Foram ofertados dois cursos específicos de formação básica em
atendimento – gestor e atendente – complementados pela leitura e
análise de livros e artigos indicados, abrangendo conhecimentos que fo-
ram objeto do conteúdo da prova.
O diferencial foi o desenho da prova, que, além de abranger ques-
tões para todas as competências necessárias, exigiu aplicação prática dos
conhecimentos em situações cotidianas desse trabalho e definiu valor
diferenciado para cada questão em função de sua importância dentro
das competências e do campo de atuação previsto e delimitado pelas
declarações estratégicas corporativas.
Essas atividades essenciais colocam as questões técnicas de seleção
a serviço do processo de recrutamento e seleção públicos – o concurso
público de forma a atender os preceitos constitucionais e legais; os conhe-
cimentos técnicos administrativos da gestão pública; e as necessidades
dos órgãos demandantes voltadas ao ingresso de novos servidores pú-
blicos com as competências requeridas para tornar realidade a efetivi-
dade do desempenho dos órgãos públicos voltados ao atendimento das
demandas dos cidadãos.
A seleção será mais bem equacionada se, além de a prova do con-
curso de ingresso refletir as necessidades das competências, utilizar ins-
trumentos, tais como o estágio probatório e a realização de cursos de
formação profissional, cujos conteúdos incluam administração pública
e as funções e as atividades que o servidor ingressante irá desempenhar.
O estágio probatório, dispositivo constitucional, é um dos recursos
que asseguram à administração pública a adequação do potencial servi-
dor à cultura institucional da res publica em todos os sentidos, bem como
o julgamento da evolução do seu desempenho profissional. Esse período
45
deve ter acompanhamento constante, com relatórios regulares de pro-
gressão, para que, ao final, se disponha do histórico do desempenho do
ingressante e a decisão final fundamentada em fatos. Tudo isso deve con-
tar com a consultoria da área de recursos humanos e, especificamente,
da equipe de recrutamento e seleção, ao gestor do servidor ingressante.
Já o curso de formação do servidor ingressante é um instrumento
que facilita a incorporação do novo servidor à instituição e permite avaliar
o diferencial que ele tem no seu desempenho, segundo as regras públicas
e do seu poder discricionário na ação de prestação de serviço ao cidadão.
As informações advindas desses dois instrumentos mencionados,
quando bem trabalhadas, compõem material adicional para a construção
de edital de inscrição e para o desenho das provas voltado às necessida-
des da instituição.
Considerações finais
Percebe-se que um concurso baseado em competências ou como
é hoje não fará diferença, porque ainda falta realizar o processo de R&S
com uma visão de planejamento estratégico de busca, seleção e recruta-
mento em conjunto com todas as áreas da organização.
Para o atendimento efetivo das necessidades de pessoal de cada
órgão, foram sugeridas três atividades críticas a serem incorporadas ao
processo administrativo: analisar os processos das áreas onde as vagas
são demandadas; analisar as competências requeridas com base nas atri-
buições das áreas e atribuições de cargos; e elaborar edital com conhe-
cimentos necessários para a eficácia dos processos. Além disso, são me-
didas complementares ao processo direto de recrutamento e seleção o
estágio probatório e cursos de formação, como mencionado.
Dessa forma, a área de recrutamento e seleção adquire uma nature-
za estratégica e ativa para facilitar a instituição rumo ao ciclo de melhoria
contínua para a excelência na prestação dos serviços públicos.
46
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47
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soas, entrevista realizada para a Série Conversações da Unidade Central
de Recursos Humanos do Estado de São Paulo, disponível em www.you-
tube.com/user/UCRH21 S15C1.
50
Com base na identificação de algumas técnicas modernas de gestão
de pessoas, pretende-se refletir sobre sua aplicabilidade na área pública,
diante das restrições impostas pelo direito administrativo brasileiro. Mas,
além disso, também buscaremos outro enfoque: o que o direito adminis-
trativo permite e a cultura dos gestores públicos não tem deixado florescer.
Os tópicos selecionados – sem a menor pretensão de qualificar
ou definir a nova gestão pública de pessoas – são: gestão por com-
petências, cargos largos, carreira em Y, e gestão do desempenho. Em
cada um desses tópicos, buscaremos apresentar uma definição básica
dos seus conceitos e verificar as limitações impostas pela Constituição,
além de delimitar a aplicabilidade do instituto na administração públi-
ca brasileira. No decorrer dessas análises, algumas experiências podem
ser trazidas à reflexão.
Os tópicos representam técnicas modernas de gestão de pessoas
que nasceram na iniciativa privada e foram importadas para a adminis-
tração pública, com as adaptações necessárias. Os três primeiros tópicos
se relacionam de forma bastante direta com uma regra constitucional que
os limita frontalmente: a regra do concurso público. Ela está insculpida
no art. 37 da Constituição Federal:
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com
a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em
- Alexis Vargas
51
lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de
livre nomeação e exoneração.
Essa norma tem efeito bastante direto sobre os três primeiros tó-
picos, pois limita o acesso aos cargos públicos, ao impedir boa parte das
técnicas desenvolvidas para deslocar as pessoas dentro das organizações.
Mas isso nem sempre significa que as técnicas modernas não possam ser
aplicadas, agregando eficiência e qualidade à gestão pública.
Gestão por competências
Parry (1996) define competência como um conjunto de conheci-
mentos, habilidades e atitudes correlacionados que afeta parte conside-
rável das atividades de alguém e que se relaciona com seu desempenho.
Ainda segundo esse autor, as competências podem ser medidas por pa-
drões estabelecidos e que podem ser melhorados por meio de treinamen-
to e desenvolvimento.
Um modelo de gestão por competências pressupõe, de um lado,
identificar as competências necessárias para o cargo, de acordo com suas
atribuições, e, de outro, mapear as competências das pessoas que traba-
lham na organização. Tendo identificadas as competências esperadas (ou
requeridas) e as competências atuais (ou “capacidade instalada”), o gestor
pode visualizar o gap e atuar sobre ele de variadas formas.
Uma delas é a atuação sobre as pessoas, sem deslocá-las. São plane-
jadas formações, treinamentos e sensibilizações, buscando desenvolver
conhecimentos, habilidades e atitudes.
Mas outra forma de atuação é o reposicionamento (ou replacement),
que se planeja de acordo com aquelas informações. Quando se percebe
que uma pessoa tem competências identificadas com outra posição na
organização, ela deve ser deslocada para esta, promovendo-se assim um
encontro entre a “capacidade instalada” e a necessidade.
52
Exatamente nesse ponto a teoria sofre restrições para ser emprega-
da no setor público. Isso porque não é qualquer deslocamento que será
admitido. Se o deslocamento está relacionado ao comissionamento (a no-
meação para um cargo em comissão ou a designação para uma função
de confiança), isso não será um problema – observados os requisitos
de acesso à nova posição (comissionada). Do mesmo modo, se o deslo-
camento traduzir-se em mera “relotação”, em que o servidor mantém as
atribuições do seu cargo, mas em outro setor do governo. De outra parte,
se a movimentação desejada for entre cargos efetivos, ela não poderá
ser realizada.
Um exemplo claro seria o auxiliar administrativo que, no decorrer
da sua vida funcional, se formou em economia, desenvolveu a habilidade
de fazer análises complexas e, além disso, demonstra ter boa capacidade
de trabalhar em grupos interdisciplinares. Ele tem todas as competências
desenhadas para o cargo de economista! Mas não poderá ser deslocado
para essa posição, pois isso seria uma “transposição” de cargos, o que
não é admitido pela Constituição Federal (art. 37, II, acima transcrito).
Para assumir a posição de economista, ele deveria prestar o concurso
público. O mesmo se aplica ao técnico em enfermagem que se formou
enfermeiro, ao técnico em edificações que se formou engenheiro e ao mo-
nitor de creche que fez pedagogia e almeja ser professor. O órgão público
não poderá aproveitar esses talentos de forma direta, por meio de um ato
de gestão, pois o direito administrativo o impede.
Ainda assim, o gestor público poderá se valer de um bom mapea-
mento de competências para: (a) planejar o desenvolvimento dos servido-
res, através de formações, treinamentos e sensibilizações, (b) promover o
deslocamento de lotação dos servidores, sem alteração de atribuições ou
cargos, e (c) decidir sobre o comissionamento.
Em suma, a gestão por competências é aplicável ao Poder Público
e pode trazer ganhos sensíveis à gestão, mas não à sua integralidade.
Há restrições.
53
Cargos largos
Uma técnica moderna de gestão de pessoas é a adoção de cargos
largos, ou seja, a descrição do cargo é bastante abrangente, de forma a
permitir que as pessoas tenham mais opções de atividades dentro do
mesmo cargo.
Essa técnica tem especial relevo na administração pública, exata-
mente pelas limitações de acesso aos cargos. Se na iniciativa privada não
há dificuldades em mudar a pessoa de cargo (como em uma promoção
ou em um replacement), na seara pública não é bem assim. Então, a ado-
ção do cargo largo é especialmente boa na administração pública, pois
traz maior flexibilidade à gestão de pessoas.
Para além da carreira de magistrado, o Poder Judiciário federal1 –
seguido nesses termos pelo Ministério Público Federal – adotou apenas
três cargos: analista (com exigência de ingresso de nível superior), técnico
(com exigência de ingresso de nível médio), e auxiliar (com exigência de
ingresso de nível fundamental). Embora pareça uma radicalização dos
cargos largos, na prática não o é.
Isso porque, apesar de a lei ter criado apenas essas três carrei-
ras, a regulamentação feita estabelece as especialidades (por exemplo:
médico, economista, dentista, contador, administrador, perito, etc.). E
não há deslocamento entre as especialidades: o servidor que prestou
concurso para uma especialidade jamais poderá ser aproveitado em
outra especialidade.
Na prática, temos então diversos cargos – e não apenas três. O en-
tendimento reinante é o de que, se for permitida a troca de especialidade,
estaria sendo promovida a terrível transposição de cargos, tão defenes-
trada pela Constituição e jurisprudência pátria.
De outra parte, a técnica do cargo largo vem sendo adotada, por
diversos órgãos públicos, de forma bastante diversa. A lei que disciplina
1 Lei n. 11.416, de 15 de dezembro de 2006.
54
o Plano de Cargos promove o agrupamento de vários deles. Busca-se
definir o máximo de agregações possíveis, sem descuidar das profissões
regulamentadas, garantindo que as atribuições estão sempre vinculadas
a um mesmo macroprocesso de trabalho. Assim, as agregações são mais
intensas nos níveis fundamental e médio, mas ocorrem também no nível
superior. O exemplo mais emblemático dessa técnica é o cargo de “execu-
tivo público”, que agrega diversas formações possíveis.
Nesses casos, o gestor público tem uma gama muito maior de pos-
sibilidades para atuar, pois pode promover alterações substanciais nas
atribuições realmente executadas pelo servidor, sem desrespeitar a des-
crição do cargo, já que a amplitude de atribuições do cargo permite isso.
Em alguns casos, os planos de cargos, carreiras e remunerações
estipulam normas para que os concursos possam destinar vagas a es-
pecialidades que visem a atender à necessidade atual daquele ente. Por
exemplo, o cargo de executivo público prevê um contador para a Secreta-
ria de Saúde. O concurso poderá ter 20 vagas de executivo público, sen-
do duas delas destinadas a candidatos com formação em contabilidade.
Mais do que isso, seus conhecimentos sobre as normas de financiamento
e controle do SUS terão peso maior. Assim, esse órgão tende a conseguir
o candidato com os conhecimentos esperados para a vaga.
Mas isso não significa que ele não possa, em um segundo momen-
to, ser deslocado para outras atribuições que estejam no plexo do cargo
de executivo público. Como, por exemplo, trabalhar com controle de con-
vênios na assistência social ou com planejamento de políticas na agricul-
tura. Isso, sempre, a depender do interesse da administração.
Nesse caso não há ilegalidade, pois o cargo é o mesmo e não houve
transposição.
Há que se atentar, sempre, para a razoabilidade. Um cargo muito
largo pode chegar a configurar uma inconstitucionalidade, por autorizar
uma transposição. Há que se respeitarem alguns critérios na agregação
55
de cargos: (a) idêntica exigência de nível de escolaridade para ingresso; e
(b) similaridade de atribuições.
Se forem integradas em um mesmo cargo atribuições de nível mé-
dio ou técnico e atribuições de nível superior, estaremos diante da prá-
tica da transposição, por exemplo, quando se permite que o técnico em
enfermagem (cargo de nível técnico) se torne enfermeiro (cargo de nível
superior) sem concurso público.
Do mesmo modo se ocorrer uma mudança radical de atribuições,
como no caso de um administrador que assume a função de procurador.
Essas práticas são vedadas e têm merecido a devida repulsa por
parte da jurisprudência:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. ESCRIVÃO
DE EXATORIA E FISCAL DE MERCADORIAS EM TRÂNSITO: ES-
TADO DE SANTA CATARINA. Lei Complementar nº 81, de 10.03.93,
do Estado de Santa Catarina. I. - Transformação, com os seus ocupantes,
de cargos de nível médio em cargos de nível superior. Espécie de aprovei-
tamento. Inconstitucionalidade, porque ofensivo ao disposto no art. 37, II,
da Constituição Federal. II. - Ação direta de inconstitucionalidade julga-
da procedente, declarada a inconstitucionalidade dos Anexos I e II-55 e
II-56 da Lei Complementar 81, de 10.03.93, do Estado de Santa Catarina”
(ADIn 1030, Rel. Min. Carlos Velloso, julgada em 22/8/1996).
Carreira em Y
A carreira em Y, grosso modo, consiste em um modelo em que a evo-
lução funcional tem dois caminhos possíveis. Nela, o profissional terá de
optar – em um dado momento da sua carreira –, se vai seguir para a área
gerencial ou para a área técnica. Ou seja: se vai se tornar gestor ou analista.
É um modelo que se contrapõe ao tradicional modelo linear de car-
reira, em que o profissional – a partir de determinado ponto da carreira
56
–, para crescer, deve assumir posições de comando. E elas têm remune-
ração sempre superior.
No modelo em Y, a carreira técnica segue com possibilidade de
crescimento remuneratório, compatível com os cargos gerenciais.
Pensando na adesão do modelo à seara pública, vemos que não
há qualquer óbice à aplicação dos seus preceitos. Aliás, é muito comum
encontrarmos “chefes” que recebem remuneração igual ou inferior aos
técnicos com quem trabalham – seja por causa das regras de incorpora-
ção ou mesmo da evolução funcional.
A diferença que marca a gestão pública, nesse caso, é a forma de
provimento dos cargos gerenciais. Enquanto o ingresso nas carreiras pú-
blicas se dá mediante concurso público, a nomeação ou designação para
cargos ou funções de direção e chefia se dão por comissionamento (art.
37, II, CF/88).
Mas devemos ressaltar que o crescimento na carreira técnica tam-
bém tem o óbice à mudança de cargos. Tal qual observado nos tópicos
anteriores, a “transposição” ou o “acesso” de cargos não encontram gua-
rida na Constituição Federal. Nesse sentido, o crescimento funcional
deve estar limitado ao mesmo cargo, ainda que com algumas mudanças
na complexidade das atribuições.
Então, nesse aspecto – e observadas as reservas feitas acima –,
os conceitos da carreira em Y podem ser tranquilamente aplicados na
administração pública.
Gestão do desempenho
A mensuração do desempenho dos servidores pela gestão pública
não só não encontra óbices no ordenamento jurídico, como é algo espe-
rado pela lei. A Constituição Federal exige que seja feita essa avaliação
para que seja atribuída a estabilidade no cargo:
57
Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores no-
meados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.
§ 4o Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a ava-
liação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.
A avaliação de desempenho também é exigida pela Constituição
Federal para a promoção dos magistrados (art. 93, II, c), para o aumento
da autonomia gerencial dos órgãos públicos (art. 39, §8o, II) e para a esta-
bilidade dos procuradores (art. 132, parágrafo único).
No entanto, é preciso frisar que existem dois tipos de avaliação
de desempenho: a avaliação especial e a avaliação periódica. A primei-
ra destina-se ao chamado período de estágio probatório e deve ser con-
duzida por comissão instituída para esse fim (conforme art. 41, §4o, da
Constituição Federal, acima transcrito). A segunda destina-se à gestão do
desempenho dos servidores no decorrer de sua vida funcional, podendo
ter seus resultados utilizados para diversos fins, tais como evolução fun-
cional, programação de treinamento e replacement.
Mas um dispositivo, do mesmo art. 41 da Constituição Federal,
quase virou letra morta:
§ 1o O servidor público estável só perderá o cargo:
I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado;
II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada
ampla defesa;
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na for-
ma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
Essa lei complementar jamais foi aprovada2. E, por isso, não tem
sido aplicada no Brasil a perda de cargo por insuficiência de desempenho.
2 Vide PLP n. 248/98, em www.camara.gov.br.
58
Mas há uma honrosa exceção: o Estado de Minas Gerais aprovou a
Lei Complementar n. 71, de 30 de julho de 2003, que “institui a avaliação
periódica de desempenho individual, disciplina a perda de cargo público
e de função pública por insuficiência de desempenho do servidor público
estável e do detentor de função pública na administração pública direta,
autárquica e fundacional do poder executivo e dá outras providências”.
A lei complementar mineira teve sua constitucionalidade questio-
nada perante o Supremo Tribunal Federal, que ainda não decidiu sobre
a matéria. O argumento central é sobre a incompetência do Estado para
legislar sobre o assunto, uma vez que a Constituição Federal relegou essa
tarefa à legislação complementar. No entanto, o parecer do Procurador
Geral da República foi no sentido da constitucionalidade da medida, ar-
guindo que os Estados membros têm a capacidade de auto-organização
atribuída pela Constituição, permitindo, portanto, a competência para
promulgar normativos básicos regulamentadores da estrutura orgânica
e de pessoal.
Nesse sentido, está aberta a brecha para que Estados e municípios
sigam o exemplo mineiro e adotem uma gestão do desempenho mais
completa, que contempla a hipótese de perda do cargo por insuficiência
de desempenho.
59
Bibliografia
CARVALHO, Antônio Ivo de et al. Escolas de governo e gestão por competên-
cias: mesa-redonda de pesquisa-ação. Brasília: ENAP, 2009.
PARRY, Scott B. The Quest for Competencies. Training, v. 33, p. 48-54,
1996 apud CARVALHO, Antônio Ivo de et al. Escolas de governo e gestão
por competências: mesa-redonda de pesquisa-ação. Brasília: ENAP, 2009.
p. 39
Fernando de Souza Coelho
Professor da Universidade de São
Paulo (USP), atuando no curso
de graduação e no programa de
mestrado em Gestão de Políticas
Públicas da Escola de Artes,
Ciências e Humanidades (EACH/
USP-Leste). Doutor e mestre em
Administração Pública e Governo
pela Fundação Getulio Vargas de
São Paulo (FGV-SP) e bacharel
em Economia pela Faculdade
de Economia, Administração e
Contabilidade da USP, campus
Ribeirão Preto (Fearp-USP).
61
repensando os concursos públicos
no Brasil:subsídios para discussão
à luz da gestão de pessoas no setor público1
1 Algumas das ideias deste ensaio surgiram no âmbito de workshops sobre recrutamen-
to no setor público na Escola Superior de Administração Fazendária (Esaf), no biênio
2013-2014, e de um Simpósio Internacional de Gestão e Políticas Públicas na Universi-
dade de Brasília (UnB), campus Planaltina, em 2014. O autor agradece as contribuições
de: Alexandre Ribeiro Motta (Esaf), Prof.ª Andréa de Oliveria Gonçalves (UnB), Fabiane
Lopes B. Netto Bessa (Centresaf/PR), e Prof. João Abreu de Faria Bilhin (UTL e Cresap/
Portugal). Outrossim, o autor é grato pela interlocução – ininterrupta – sobre recursos
humanos no setor público com: a Prof.ª Evelyn Levy (Consad), a Maria Martha Mota
Coelho (Investe-SP), o Prof. Murilo Lemos de Lemos (Faap), e a Prof.ª Andrea Leite Ro-
drigues (EACH-USP).
62
“A farra dos concursos tem levado até as últimas consequências, dire-
tamente às portas da justiça, o sonho de muitos brasileiros de ter
estabilidade no emprego e receber salários acima da média do
mercado. O problema é que os órgãos públicos abrem vagas, criam ex-
pectativas nos concurseiros, que investem tempo e dinheiro para serem
aprovados e depois não conseguem ser nomeados” (Reportagem do Jornal
Correio Brasiliense, 16 de setembro de 2013, grifo nosso).
1. Introdução
Esse excerto de uma reportagem do Jornal Correio Brasiliense,
de 16 de setembro de 2013, explicita a concepção inadvertida de um
órgão de imprensa sobre qual é (ou deveria ser) o objetivo dos concur-
sos públicos no Brasil, reproduzindo o senso comum da sociedade.
Sob o título Aprovados em concurso, mas sem emprego, a matéria2, se, por
um lado, questiona – adequadamente – alguns certames que tive-
ram candidatos aprovados e deixaram de ser chamados para as vagas
previstas em edital; por outro lado, distorce o concurso público como
instituto para o provimento de cargos e empregos na administração
pública brasileira.
2 A reportagem completa encontra-se no link: http://www.correiobraziliense.com.br/
app/noticia/eu-estudante/selecao/2013/09/16/Selecao_Interna,388313/aprovados-em-
concurso-mas-sem-emprego.shtml
- Fernando de Souza Coelho
63
Além de adjetivar os processos de seleção no setor público do País
como uma farra, generalizando casos de mau uso e abuso de concursos
públicos (como alguns para cadastro de reserva, organizados, desvirtua-
damente, para a arrecadação de recursos financeiros com as inscrições),
a notícia naturaliza o ingresso no Poder Público pelo comportamento de
indivíduos como concurseiros, os quais almejam estabilidade no emprego
e salários altos em comparação com a média do mercado de trabalho. Ou
seja, o jornalista não faz um questionamento a respeito do que é o ethos
do serviço público e sua relação, por exemplo, com a vocação das pesso-
as e tampouco reflete sobre qual é o objetivo precípuo de um concurso
público para o Estado.
Juridicamente, o concurso público é um instrumento que represen-
ta o sistema de mérito na seleção de pessoal na administração pública,
baseado no ordenamento constitucional – com a consagração de seus
princípios – para o preenchimento de cargo ou emprego público. Di-
versas são as conceituações quanto ao instituto do concurso público da-
das pelos juristas do Direito Administrativo no Brasil, as quais variam
em um continuum entre definições objetivas, baseadas nos princípios da
Constituição Federal (CF) de 1998; e definições subjetivas, fundadas em
interpretações referentes aos atos que consubstanciam os certames em
um procedimento administrativo.
Dentre as definições objetivas, Meirelles (2005, p. 419) enuncia o
concurso público como:
(...) o meio técnico posto à disposição da administração pública para obter-
se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo
tempo, propiciar igual oportunidade a todos interessados que atendam aos
requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do
cargo ou do emprego, consoante determina o artigo 37, inciso II, da Cons-
tituição Federal.
64
Concernente às definições subjetivas, Carvalho Filho (2007, p. 554)
concebe o concurso público como:
(...) o procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pes-
soais e selecionar os melhores candidatos para acesso aos cargos e empregos
públicos. Na aferição pessoal, o Estado verifica a capacidade intelectual,
física e psíquica de interessados em ocupar funções públicas e no aspecto
seletivo são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no
procedimento, obedecida sempre a ordem de classificação. Cuida-se, na
verdade, do mais idôneo meio de recrutamento de servidores públicos.
Considerando esses dois conceitos administrativistas relativos a
concurso público, independente de o primeiro alicerçar-se em uma de-
finição objetiva e o segundo assentar-se em uma definição subjetiva,
ambos asseveram o desígnio de tal instituto como: (a) direito de igual-
dade entre os cidadãos no acesso aos cargos e empregos públicos, em
contraposição às discriminações e aos favorecimentos; e (b) garantia do
recrutamento de candidatos que estejam aptos e sejam capacitados para
o exercício de uma função pública, em prol de qualidade na prestação
dos serviços públicos e na provisão das políticas públicas.
Todavia, ainda que a doutrina dos concursos públicos fundamen-
te-se, sobretudo, nos princípios de impessoalidade e da eficiência tal
como exposto, muitos de seus processos e resultados são disfuncionais
na gestão pública brasileira na atualidade. Com a retomada da contra-
tação de funcionários públicos no País a partir de meados dos anos 90
na administração pública federal e com o crescimento e a diversificação
desse processo nos três níveis de governo – após o ajuste fiscal – na
última década, eclodiram várias disfuncionalidades nos concursos pú-
blicos marcadas por: deformidades de planejamento, irregularidades de
organização e anormalidades na finalidade.
Obviamente que, em qualquer estrutura social racional legal, sem-
pre é observável (e, em alguns casos, tolerável) um determinado grau
65
ou nível de disfunção. Afinal, como nos ensina Merton (1959)3, as or-
ganizações burocráticas apresentam – comumente – algumas conse-
quências imprevistas ou indesejadas oriundas das contradições entre a
prescrição formal e o arranjo informal nos processos administrativos,
quer dizer, as disfunções burocráticas. Contudo, no que se refere ao ins-
tituto do concurso público no Brasil, alguns autores/estudos evidenciam
numerosas imperfeições e, por conseguinte, atestam a crise desse mode-
lo de seleção de pessoal no setor público, urgindo o seu repensar para
um aprimoramento.
Muitos juristas, por exemplo, baseados em casos de concursos pú-
blicos que desobedecem aos princípios constitucionais e violam o obje-
tivo fundamental de sua realização, bem como constatando a recorrente
judicialização dos certames e sua jurisprudência, defendem a regula-
mentação por uma lei nacional dos concursos públicos. Em linhas gerais,
o argumento é que as diretrizes da Constituição Federal são insuficien-
tes para normatizar os certames. Ilustrativamente, Sousa (2011, p. 119),
em sua dissertação de mestrado apoiada na doutrina de Márcio Barbosa
Maia e Ronaldo Pinheiro de Queiroz4 sobre o regime jurídico dos concur-
sos públicos e seu controle jurisdicional, afirma que “a ausência de regras
claras sobre as etapas procedimentais dos certames, os prazos, as condições legais
para sua deflagração, a constituição das bancas examinadoras, a elaboração dos
editais, entre outros (...)” são lacunas para um ordenamento jurídico infra-
constitucional dos concursos públicos.
Nesse caso, a crítica ao modelo de concursos públicos refere-se às
disfunções burocráticas de arbitrariedade nos processos de seleção de
3 Uma das obras de Robert Merton em que o autor discute o conceito de disfunção bu-
rocrática é: MERTON, R. K. Social theory and social structure. Nova York: Free Press, 1959.
4 A doutrina desses autores sobre o instituto do concurso público no Brasil encontra-se
na obra: MAIA, M. B.; QUEIROZ, R. P. O. Regime jurídico do concurso público e o seu controle
jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007.
66
pessoal e, principalmente, à insegurança jurídica para os candidatos pela
ausência de uma legislação específica e/ou padronizada. Tal debate aven-
ta regras para os concursos públicos que norteiem os direitos e deveres
dos candidatos (e aprovados), da organização pública contratante, das ins-
tituições que realizam a prova e das bancas avaliadoras. Concretamente,
algo que regulamente o artigo 37, inciso II, da Constituição Federal (CF),
estabelecendo uma norma – intermediária – entre os princípios jurídi-
cos aplicáveis aos concursos públicos e os editais que regem os certames.
No rol de imprecisões que requerem normatização, com jurispru-
dência nos tribunais, encontram-se: (a) a estipulação do prazo de divul-
gação do edital; (b) a convenção dos atos de interposição de recursos e
de anulação de questões nas provas; (c) a apresentação de diploma na
inscrição ou posse; (d) o direito do aprovado à nomeação dentro do nú-
mero de vagas previstas em edital; (e) a preterição de candidato aprova-
do, dentro do prazo de validade do certame, pela contratação de mão
de obra precária para o cargo; e (e) a aplicação de concurso público para
cadastro de reserva.
Desde meados dos anos 2000, no bojo da realização de inúmeros
concursos públicos no Brasil com muitas judicializações, surgem inicia-
tivas de projetos de lei no Congresso Nacional para o regramento dos
concursos públicos na União. Dentre essas iniciativas, em 2010, desponta
a tramitação do Projeto de Lei do Senado (PLS) 74/2010, que, em 2013,
após algumas emendas e uma audiência pública, teve um substitutivo
aprovado, conhecido como Lei Geral dos Concursos Públicos ou Estatuto dos
Concursos Públicos. Enviado para a apreciação da Câmara dos Deputados
desde o segundo semestre de 2013 sob o PL 6004/2013, o projeto de lei,
no aguardo de votação, estipula alguns preceitos como: (a) a proibição
de concursos públicos para a formação de cadastro de reserva; (b) a de-
terminação do prazo mínimo de 90 dias entre a publicação do edital e a
realização das provas; (c) o impedimento de que a instituição que realiza
a prova delegue a organização para terceiros; (d) a previsão de indeni-
67
zação aos candidatos em caso de anulação do certame; e (e) o direito à
nomeação de candidatos aprovados em concurso público, caso o órgão
contrate temporários ou terceiros no decorrer do prazo de validade do certa-
me para exercerem as funções previstas no edital.
Entretanto, imaginemos que o PL 6004/2013 seja aprovado pela Câ-
mara dos Deputados e que tal lei, de abrangência federal5, seja um parâ-
metro para que os Estados e municípios editem legislações assemelha-
das. Logo, as disfunções burocráticas do instituto do concurso público
no País estariam plenamente resolvidas? Absolutamente, a resposta é
não! Seria dirimida, sim, a insegurança jurídica dos concursos públicos e
assegurado o direito dos candidatos, evitando-se a tal farra mencionada
na epígrafe deste capítulo e combatida por entidades como a Associação
Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac), o Movimento pela
Moralização dos Concursos (MMC) e a Associação Nacional dos Con-
curseiros (Andacom). Porém, a melhoria do modelo de concurso público
como meio para contratar as pessoas aptas e capacitadas para o serviço
público depende, além de um upgrade do arcabouço jurídico-legal, de
instrumentos de gestão de pessoas no setor público que estejam integra-
dos e sejam compatíveis com o ideário de profissionalização na gestão
pública contemporânea. Essa é discussão da seção 2, a seguir.
5 A União não tem competência para legislar sobre normas relativas aos concursos pú-
blicos para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais dos Estados e
municípios. Seria necessário um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) que incluísse
tal competência para a União, o que ocorreu, por exemplo, com o instituto de licitações/
contratos.
68
2. Discutindo a modernização do modelo de concursos
públicos no Brasil à luz da gestão de pessoas no setor
público
Em adição ao debate tradicional dos administrativistas para o
aperfeiçoamento do instituto do concurso público no Brasil, faz-se mis-
ter uma discussão sobre a modernização de seu modelo conforme o fra-
mework da gestão de pessoas no setor público. Essa abordagem não re-
lativiza a importância da dimensão jurídico-legal em tal reflexão, mas a
complementa com uma perspectiva de instrumentos de administração
de recursos humanos cabíveis às organizações públicas.
Inclusive, algumas das questões que advêm da abordagem de ges-
tão de pessoas no setor público para (re)pensar os concursos públicos no
País são compartilhadas por alguns juristas, sejam do Direito Adminis-
trativo, sejam da Sociologia do Direito. Ademais, como a literatura sobre
concursos públicos é incipiente na área de recursos humanos, nota-se
que algumas das ideias que ecoam sobre a crise do modelo de concur-
sos públicos para além do marco jurídico-legal procedem de acadêmicos
do Direito.
Nesse sentido, uma contribuição recente é estudo levado a cabo por
um conjunto de pesquisadores da Fundação Getulio Vargas do Rio de Ja-
neiro (FGV-RJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), intitulado
Processos Seletivos para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país dos
concursos?, sob a coordenação do Prof. Dr. Fernando de Castro Fontainha
– da Escola de Direito da FGV-RJ. O trabalho integra o projeto Pensando
o Direito, organizado pela Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL), do
Ministério da Justiça (MJ), com apoio do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (Pnud), e contém um acervo de investigações
de enfoque interdisciplinar e de cunho empírico sobre temas atinentes ao
melhoramento da máquina administrativa no Estado brasileiro, abran-
gendo, dentre outros assuntos, os concursos públicos.
69
De caráter aplicado e abordando os concursos públicos no Brasil
como matéria não estritamente jurídica, a investigação supracitada de
Fontainha et al. (2013) levanta, de modo denodado, a hipótese de que os
concursos públicos no País na última década “são organizados a partir de uma
ideologia concurseira (...); [e concluem] que a crise do modelo [desse instituto]
pede superação; da crise, não do modelo” (ibidem, pp. 371-373). Os autores se
valem do neologismo concurseiro para caracterizar uma ideologia concursei-
ra – em contraposição à ideologia acadêmica (da burocracia organizacio-
nal) e à ideologia profissional (da burocracia profissional) –, na qual
(...) a tônica fundamental das seleções de funcionários públicos é comple-
tamente autorreferenciada nas estratégias dos candidatos, nos discursos
de legitimação, na forma de organização e no projeto institucional, o que
acarreta enorme prejuízo de recursos financeiros e humanos para a Admi-
nistração Pública (ibidem, p. 298).
A comunicação dessa pesquisa repercutiu de maneira ampla na
imprensa nacional ao longo de 2014, visto que muitos dos seus achados
confrontavam o senso comum sobre a contratação de funcionários públi-
cos, bem como suas propostas de alterações no modelo de concurso pú-
blico preconizavam inovações que vão desde novos critérios para taxas/
formas/condições de inscrição, até novos parâmetros para a escolha de
tipos de provas e a inclusão de habilidades e competências nos instru-
mentos avaliação, passando por novos métodos para escolha das bancas
examinadoras e a exigência de formação inicial dos aprovados acoplada
ao estágio probatório. De acordo com os proponentes, essas mudanças
visam a “(...) frear radicalmente a ideologia concurseira” (FONTAINHA et al.,
2013, p. 392), as quais causam anomalias nos processos e, por conseguinte,
nos resultados de seleção de pessoal na administração pública brasileira.
Reproduzida de forma maciça no instituto do concurso público no
País, a ideologia concurseira captura não apenas os certames, mas todo
o sistema envolto ao recrutamento da força de trabalho no setor público
70
e ao ingresso dos selecionados no serviço público, aprisionando, no limi-
te, a própria (in)capacidade estatal de gerência estratégica de recursos
humanos. Dentre os fenômenos derivados de tal lógica, assinalam-se –
abaixo – quatro ocorrências que se entrelaçam em uma espécie de círcu-
lo vicioso dos concursos públicos.
A primeira ocorrência é a insuficiência ou ausência de um ethos de
serviço público que abre espaço para o predomínio de uma retórica se-
gundo a qual os certames invariavelmente recrutam os indivíduos mais
preparados e com maior aptidão para realizar as funções públicas. Essa
crença coletiva sobre o instituto do concurso público fomenta algumas
disfuncionalidades nos processos de seleção ao enfatizar, em demasia,
o direito dos indivíduos em detrimento dos aspectos substantivos do re-
crutamento de pessoal no setor público. Isto é, nas palavras de Fontainha
et al. (2013, p. 293), os concursos públicos se postam na sociedade brasilei-
ra mais como “um efeito colateral de uma marcha pela igualdade” em combate
ao modelo patrimonial e à gramática política do clientelismo. E, no esteio
desse entendimento, o espírito dos certames reverbera o foco dos candi-
datos que, mormente, se transfiguram em concurseiros.
Salienta-se que os candidatos concurseiros se diferenciam dos can-
didatos concursandos. Os concurseiros, retratados no artigo de Albrecht
e Krawulski (2011), são candidatos que a priori aspiram a estabilidade e
salários – comparativamente – altos no setor público, independente da
vocação para o trabalho e com obstinação pela aprovação em um primei-
ro certame. Já os concursandos, por sua vez, buscam por excelência rea-
lizar sua vocação no serviço público e encaram o concurso público como
uma etapa pré-profissional (FONTAINHA et al., 2013). Enfim, a hegemo-
nia do viés concurseiro no País tanto dissemina a noção de um sistema
de mérito circunscrito somente a aprovação e colocação nos certames,
como bloqueia o pensamento em torno da modernização do modelo de
concurso público (e da adoção de formas alternativas de recrutamento
71
no setor público baseadas nos legados da burocracia organizacional e
profissional6).
A segunda ocorrência é a indústria do concurso público, cujo elo
principal são os cursinhos na modalidade presencial e a distância, al-
guns dos quais se transformam em cursos de pós-graduação lato sensu
orientados para os concursos públicos de nível superior, integrando a
preparação para as provas de conhecimento com a titulação – em nível
de especialização – para pontuação nas provas de diplomas/títulos. Ao
redor desse elo se desenvolvem os mercados: (a) editorial e gráfico, para
a confecção de apostilas, livros, jornais/revistas e sites/blogs especializa-
dos em concursos públicos; (b) audiovisual, para a produção de video-
aulas; (c) de admissão de instrutores, professores e palestrantes, alguns
dos quais se transformam em gurus dos concursos públicos pela sua po-
pularização; (d) de serviços de inscrições, viagens e hospedagens para a
realização dos certames; e (e) de contratação de empresas para elabora-
ção e aplicação das provas, algumas das quais com apelo mercadológico
que deturpa a natureza dos processos de seleção. Em números, trata-se
de uma cadeia produtiva que movimenta uma cifra estimada em R$ 45
bilhões/ano, estimulada pela oferta de, aproximadamente, 15 mil vagas/
6 A burocracia organizacional, com grande tradição na França e na Alemanha, baseia-se
em um recrutamento acadêmico que atrela o ingresso no serviço público à conclusão de
cursos universitários específicos e/ou a realização de programas de formação em escolas
de governo. No Brasil, um exemplo é a carreira de especialista em políticas públicas e ges-
tão governamental no Estado de Minas Gerais, cujo ingresso é condicionado a aprovação
no vestibular e a realização do Curso Superior de Administração Pública (CSAP) minis-
trado pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro (EG-FJP/MG). Já a burocracia
profissional orienta-se pela experiência/treinamento profissional e pelo recrutamento
aberto, desvinculados de um compromisso antecipado com a carreira no setor público.
Tem forte institucionalização em países como Estados Unidos e Canadá; no Brasil, sua
adoção é incipiente, permeando o debate recente sobre critérios para a nomeação de di-
rigentes públicos.
72
ano em concursos públicos no País que geram em torno de 30 milhões de
inscrições7.
Aproveitando-se do imaginário dos brasileiros em torno do empre-
go público, alimentado pelo “sonho” por estabilidade, pelo salário garan-
tido e pela alternativa de ocupação em períodos anticíclicos da economia
nacional – quando há escassez de postos de trabalho no setor privado
e o aumento da taxa de desemprego –, os concursos públicos são di-
vulgados incessantemente pela mídia em chamadas do tipo “Tantas mil
vagas previstas para os concursos neste ano” ou “Saíram os editais dos concursos
mais esperados neste ano”8. Tais notícias são acompanhadas de anúncios de
empresas de preparação que reforçam a idealização do concurso público
como tábua de salvação para a vida profissional e comercializam uma
gama de produtos/serviços pertinentes aos certames. De feição carica-
tural, essa representação social dos concursos públicos é tão arraigada
na cultura brasileira, que até o cinema doméstico se baseou nas agruras
e vicissitudes enfrentadas pelos candidatos a concursos públicos no País
como enredo para uma comédia – o filme O Concurso (2013), dirigido
por Pedro Vasconcelos.
A indústria do concurso, apesar de contribuir para a geração de tra-
balho e renda e a arrecadação de tributos, deixa transparecer um modus
operandi que corporifica o dogma concurseiro e dilui o ethos do serviço
público. Isso, sem citar, outrossim, as aberrações como os pacotes caça-
7 Dados baseados em informações do Prof. Dr. Luiz Henrique A. Alochio, contidas em
miniartigo de opinião escrito em 15 de junho de 2013 para o site Congresso em Foco.
Disponível no link congressoemfoco.uol.com.br/noticias/por-um-estatuto-do-concurso-publico.
Acesso em 15 de março de 2015.
8 Como exemplo, ver esta reportagem do site G1: Concursos previstos para 2015 devem
oferecer 21,6 mil vagas: IBGE, INSS e PRF aguardam autorização para realizar seleções; e sete
ministérios devem ter mais de 2,1 mil vagas autorizadas, disponível no link http://g1.globo.
com/concursos-e-emprego/noticia/2015/01/concursos-previstos-para-2015-devem-ofe-
recer-216-mil-vagas.html. Acesso em 15 de março de 2015.
73
níqueis com supostas “fórmulas mágicas” para a aprovação dos candida-
tos e – pasmem! – a mercantilização de artefatos como assessoria para
elaboração e intercessão de recursos nos certames.
Aproveitando-se da menção sobre os recursos nos concursos pú-
blicos, desvela-se a terceira ocorrência, qual seja: a judicialização exa-
cerbada dos certames. É até em certa medida compreensível, diante da
relevância social da seleção de pessoal no setor público, que surjam mui-
tos litígios na defesa de interesses das partes envolvidas, quais sejam: os
candidatos, as instituições organizadoras dos certames e o poder público
contratante. Por um lado, sabe-se que parte do processo de judicializa-
ção trata-se de controle de legalidade dos certames conduzidos de forma
ilícita e/ou que apresentam brechas que ocasionam insegurança jurídica
para os candidatos. Essas situações tendem a ser minimizadas perante
a aprovação, em um futuro próximo, da aludida Lei Geral dos Concur-
sos Públicos. Por outro lado, percebem-se também exageros em algumas
intervenções do Poder Judiciário nos concursos públicos, configurando
ingerências na discricionariedade administrativa do contratante; nesses
casos, são típicas as controvérsias em torno dos tipos de provas aplicadas
e dos critérios de avaliação utilizados, com o trade-off entre o direito dos
candidatos à isonomia e a subjetividade intrínseca a alguns instrumentos
qualitativos de aferição de competências pessoais em exames discursivos
e práticos.
O fato é que os excessos de interferências judiciais nos concursos
públicos no País acabam inibindo a inovação tanto nas formas de orga-
nizar os certames como nos processos de avaliação dos candidatos. Ou
seja, a judicialização, em conjunto com a ideologia concurseira, ergueu
uma barreira artificial à inclusão de novas dimensões – tal como a aferi-
ção de habilidades – no recrutamento do setor público brasileiro.
Pode-se deduzir que a aflição com o questionamento judicial dos cer-
tames arraigou o paradigma da qualificação nos concursos públicos, base-
ado no domínio simples de conteúdos, em detrimento do modelo de com-
74
petências que pressupõe a mobilização do conhecimento para a resolução
de problemas em determinados contextos – o saber agir/fazer/ser. Extre-
mando o argumento, pode-se conjecturar que, muitas vezes, os cursinhos
preparatórios e seus professores ditam socialmente o padrão de provas e
as bancas de avaliação, temendo uma enxurrada de recursos, apoiam-se
nessas tendências, ou mesmo repetem o modelo de provas anteriores, o
que torna o formato e o conteúdo das questões bastante previsíveis.
A quarta ocorrência são as falhas e a secundarização da inteligên-
cia de gestão de recursos humanos nos governos e nas organizações pú-
blicas. Independente do receio de judicialização dos certames, é percep-
tível a conversão dos editais em um instrumento jurídico por excelência,
pouco refletindo sobre as funções e as atribuições do cargo ou emprego
em contratação à luz das boas práticas de gerência de pessoas no se-
tor público. Em tese, os concursos públicos exitosos em terras brasileiras
passaram a ser aqueles que não são amplamente judicializados, em vez
daqueles que recrutam as pessoas mais bem preparadas para exercerem
uma dada atividade. Sobre essa proposição, Fontainha et al. (2013) cor-
robora que o instituto do concurso público no Brasil transformou-se em
um fim em si mesmo, “(...) tendo perdido a característica central de meio para
alcançar um fim: a seleção da pessoa mais adequada” (ibidem, p. 385).
Mesmo com a existência de estruturas de gestão de recursos huma-
nos (GRH) nas organizações públicas, frequentemente a “palavra final” so-
bre os concursos públicos é dos departamentos jurídicos, os quais fazem
uma análise dos editais do ponto de vista de sua coesão legal e, às vezes,
adentram até em proposituras que se coadunam com as exigências das cor-
porações de ofício – como a de direcionar o certame para uma determina-
da categoria profissional. Cabe ressaltar que a contenda de alguns órgãos
de classe em torno dos concursos públicos se, por um lado, combate os pri-
vilégios do clientelismo ao exigir certames ilibados para acesso aos cargos e
empregos públicos; por outro lado, defende os caprichos do corporativismo
75
nos editais através da reserva de mercado para ingresso em pool de funções.
Ou seja, tal como o clientelismo, o corporativismo é uma gramática política
que fere o universalismo de procedimentos e distorce o ideal republicano9.
A premissa de secundarização da inteligência de gestão de recur-
sos humanos no setor público não se limita, no entanto, ao subsistema
de seleção e recrutamento de pessoal, pelo contrário. Segundo Marconi
(2005, p. 330-331),
O papel tradicional desempenhado pelo departamento de recursos huma-
nos, dos governos [e das organizações públicas no Brasil], enfatiza duas
funções: o processamento de tarefas administrativas relacionadas aos pa-
gamentos e aos benefícios, bem como a proposição de regras e regulamen-
tos (...), ficando conhecida como departamento de pessoal [ou DP]. De um
modo geral, a área acaba sendo gerenciada de forma reativa: uma área que
apenas responde a demandas de outras áreas e que parecem estar fora de
seu controle (...). [Enfim], uma gestão de problemas, emergencialista, que
trabalha constantemente para “apagar incêndios”.
Com essa configuração nitidamente operacional e de estilo “balcão”
de atendimento, a GRH no setor público tem suas atividades de orien-
tação mais estratégica – como a definição de políticas de contratação,
o desenho de capacitação e a estruturação de carreiras – quase sempre
relegadas ao segundo plano. No que tange aos concursos públicos, essa
9 Um exemplo são os concursos públicos de nível superior, cujas funções se referem às
atribuições de gestão governamental (áreas funcionais em organizações públicas) e ciclo
de políticas públicas (processo de formulação, implementação e avaliação de programas
governamentais). Os governos compreendem que tal ocupação é dissociada de uma pro-
fissão e realizam concursos públicos abertos a profissionais de nível superior, com o obje-
tivo de recrutar indivíduos oriundos de diversas áreas de formação acadêmica e, assim,
formar equipes de trabalho multidisciplinares. Sem embargo, esses concursos públicos são
– repetidamente – judicializados por alguns órgãos de classe que entendem que essas
atividades são de direito privativo de sua profissão. Nos níveis federal e estadual, comu-
mente, os órgãos de classe perdem com tal argumentação nos processos judiciais, mas,
em nível municipal, às vezes, conseguem influir nos editais e até impugnar os certames.
76
imagem de uma área de gestão de pessoas restrita à praxe de um departa-
mento de pessoal (DP) é visível, sobremaneira, em nível subnacional; em
alguns Estados e nos municípios de pequeno e médio porte, a ausência
de massa crítica para o planejamento dos certames e o foco nas variáveis
tempo e custo em sua execução incentivam o mimetismo de editais e o
copy paste de provas dentro da cultura do “sempre fizemos assim!”, a qual
induz a ação irrefletida.
Mesmo em governos e organizações públicas em que a GRH tem
uma orientação mais estratégica ou, no mínimo, tática, o modelo de con-
curso público sofre com a fragmentação entre as etapas de preparação do
edital, divulgação do certame para o público, contratação de empresa or-
ganizadora, elaboração dos exames, correção das provas, formação inicial
dos contratados e aplicação do estágio probatório, suscitando uma série
de distorções na seleção de pessoal. O desalinhamento dessas etapas dos
concursos públicos são per se falhas na GRH no setor público advindas da
falta de coordenação de seus subsistemas que se autonomizam – errone-
amente – em rotinas funcionais incomunicáveis. Tais falhas se somam à
secundarização da inteligência de GRH e retroalimentam o círculo vicioso
do modelo de concurso público no Brasil, alentando a insuficiência ou au-
sência de um ethos de serviço público. A seguir, a Figura 1 ilustra essa inter-
pretação do círculo vicioso incidente sobre os concursos públicos no País.
Desses quatro aspectos fáticos que conformam tal círculo vicioso,
as falhas e a secundarização de inteligência da GRH no setor público
do País são aprofundadas na seção 3, abordando-se a defasagem do
modelo vigente de concursos públicos e a desintegração dos subsiste-
mas de recursos humanos nos governos e/ou organizações públicas.
No âmbito deste ensaio, esses são os dois principais problemas de na-
tureza gerencial que distorcem o ingresso no serviço público brasileiro
no período hodierno.
77
Insuficiência ou ausência de um ethos de serviço público
• Predomínio da ideologia concurseira (FONTAINHA et al., 2013
• Noção de mérito circunscrita à aprovação nos certames
• Direito dos candidatos como mola mestra da seleção de pessoal
• Ausência de formas alternativas de recrutamento
Falhas e secundarização da inteligência de GRH
•Edital como instrumento jurídico por excelência
•Falta de massa crítica na gestão de pessoas no setor público
•Foco nas variáveis tempo e custo nos certames
•Desalinhamento entre as etapas dos concursos públicos
Indústria do concurso público
•Corporificação do dogma concurseiro•Concurso público como tábua de
salvação profissional•Imaginário /sonho do emprego estável
e salário garantido•Mercantilização de artefatos e
incentivo aos recursos nos certames
Judicialização exacerbada dos certames
•Relevância social dos concursos e aumento dos litígios
•Ingerência na discricionariedade administrativa do contratante
•Inibição à inovação nos processos de avaliação dos candidatos
•Manutenção do paradigma de qualificação nos certames
alenta a
acentua a
incentiva a
potencializa a
Figura 1 - Círculo Vicioso do Modelo de Concurso Público no Brasil
Fonte: Elaboração própria.
78
3. A defasagem do modelo atual de concurso público
e a desintegração dos subsistemas de GRH no setor
público: dois problemas que geram distorções
3.1 O problema da defasagem do modelo atual de concurso
público no País
Um retorno às origens do concurso público relaciona – inexora-
velmente – a adoção desse instituto com os esforços de implantação
do modelo burocrático, de inspiração weberiana, cujos princípios de im-
pessoalidade, formalismo e profissionalismo engendram procedimentos
de racionalização para a entrada no serviço público como um antídoto
contra as práticas patrimonialistas. Fenômeno típico do século 2010 em di-
versos países, o surgimento dos primeiros certames traduziam os ideais
de uma administração pública racional legal em uma política de recur-
sos humanos macrogovernamental ou, no mínimo, em diretrizes oficiais
para o recrutamento de pessoal em algumas áreas do setor público.
No Brasil, o despontar dessa história é amplamente conhecido; refe-
re-se à reforma administrativa do Departamento Administrativo do Servi-
ço Público (Dasp), no âmbito do governo Vargas, na década 1930. Surgem,
na ocasião, as primeiras carreiras burocráticas com acesso por concurso
público no governo federal, mas o alcance é limitado a alguns órgãos.
Como afirma Bresser-Pereira (1995, p. 19) em seu diagnóstico da gestão
pública nacional para o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado:
10 Embora o instituto do concurso público se espraie no século 20, suas raízes remon-
tam ao século 19 e se coadunam com o Estado de Direito e o princípio da igualdade nas
relações jurídicas civis em países como França e Estados Unidos; o objetivo era diminuir
as condições particularísticas de privilégios na admissão de funcionários públicos tais
como a hereditariedade, a compra/venda e arrendamento de cargos, e a nomeação por
conveniência que marcou o Estado Moderno.
79
No que diz respeito à administração de pessoal, o DASP representou a
tentativa de formação da burocracia [na administração pública federal],
baseada no mérito profissional. Entretanto, embora tenham sido valoriza-
dos instrumentos importantes, tais como o concurso público e o treina-
mento, não se chegou a adotar consistentemente uma política de recursos
humanos que respondesse às necessidades do Estado. O patrimonialismo,
embora em processo de transformação, mantinha ainda sua própria força
no quadro político brasileiro. O coronelismo dava lugar ao clientelismo e
ao fisiologismo.
Juridicamente, o instituto do concurso público é previsto no País
desde a Constituição de 1934. Na oportunidade, em contrapartida ao
sistema discricionário de contratação de funcionários públicos, em vi-
gor desde o Império e de legado colonial, é legislado o provimento de
cargos públicos sob os auspícios da igualdade e da imparcialidade. O
artigo 168 da CF de 1934 reconhecera que: “os cargos públicos são aces-
síveis a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou estado civil, ob-
servadas as condições que a lei estatuir”. E, complementando, o artigo
170 afirmara que: “a primeira investidura nos postos de carreira das
repartições administrativas, e nos demais que a lei determinar, efetu-
ar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas e títulos”
(SOUSA, 2011).
As Constituições Federais de 1937 e 1946, com alguns ajustes, con-
servaram a compreensão da CF de 1934 sobre os concursos públicos, e a
aplicação de tal instituto no País ocorreu à luz de um modelo burocrá-
tico incompleto, no qual o uso dos cargos de livre provimento se tornou
regra e não exceção, impulsionado pela patronagem e pelo nepotismo.
Não obstante, os certames, quando utilizados pela administração pública
brasileira – sobretudo, em nível federal e estadual –, eram aderentes ao
paradigma de recursos humanos no setor público da época, a saber: pre-
domínio de cargos (sem estruturas de carreiras), ênfase na especialização
80
funcional com design ocupacional estreito, vinculação institucional ver-
ticalizada, associação entre ocupação e profissão, abordagem da quali-
ficação com viés conteudista, desenvolvimento profissional atrelado aos
critérios de antiguidade e conformidade, foco em valores coletivos (esprit
de corps) da burocracia, dentre outros.
Na sequência, as Constituições Federais de 1967 e 198811, indepen-
dente das várias alterações no regramento sobre ingresso nos cargos pú-
blicos e nos empregos públicos, mantiveram as características do institu-
to do concurso público, cuja prática contemporânea preservou o padrão
tradicional de gerência de pessoas na gestão pública.
Embora se observem inovações gerenciais em concursos públicos
de diferentes níveis de governo e em uma variedade de organizações pú-
blicas do País nos últimos 20 anos, percebe-se – em larga escala – uma
defasagem dos certames em relação aos novos ditames da administração
de recursos humanos no setor público, quais sejam: ingresso em carreiras,
espaço de atuação largo e atribuições multifuncionais, vinculação insti-
tucional mais ampla e maior mobilidade interorganizacional, dissociação
de uma única profissão e escopo profissiográfico generalista, abordagem
de competências técnicas e gerenciais, desempenho individual na função
como critério de promoção, orientação pelo ethos de serviço público, etc.
Logo, como os concursos públicos moldados por essas características são,
de maneira patente, a minoria no País nos dias correntes, pode-se intuir
que o processo de seleção de pessoal no setor público brasileiro padece
de uma condição de obsolescência.
De uma perspectiva mais abrangente, esse descompasso entre a práxis
do concurso público no Brasil e os pressupostos das transformações recen-
tes da gestão de pessoas no setor público – descritos por Longo (2007) pelo
binômio mérito e flexibilidade – é revelador do arraigamento da concepção
11 Para um compêndio sobre o instituto do concurso público no Brasil nas diversas
Constituições Federais do País, ver a dissertação de mestrado de SOUZA (2011) – citada
aqui nas referências bibliográficas –, capítulo 1 (p. 23-30).
81
de profissionalização na administração pública do País apenas pela noção
clássica de mérito. Em outras palavras, estamos enclausurados no ideário
fundante de profissionalização da gestão pública que condiciona a sua exis-
tência exclusivamente ao grau de institucionalização da burocracia pelos
moldes weberianos, dentro da tradição de formação de corpos profissionais
permanentes e estáveis que têm como normativa a dicotomia entre política
e administração.
Sem querer negar a importância histórica e basilar dessa referência
para o avanço do modelo organizacional do setor público em direção aos
valores republicanos, no cenário do final dos anos 1990 e início do século
21 assiste-se a uma ressignificação, diante do movimento de Reforma do
Estado, da profissionalização da administração pública, com a perda de
exclusividade do paradigma burocrático e a ampliação de sua acepção
na esteira do debate sobre desempenho governamental. Desse prisma,
gestão por resultados, responsividade e accountability são algumas das
premissas que acondicionam a flexibilidade como uma categoria para
se (re)pensar o entendimento sobre o que é profissionalização na gestão
pública, com reflexos nos instrumentos de GRH em geral e nas formas de
recrutamento em particular (PACHECO, 2010).
No Brasil, porém, como discutido na seção 2 deste capítulo, a ideolo-
gia concurseira tolhe um maior desenvolvimento dessa visão. É premente
nos anos vindouros uma reformulação do instituto do concurso público
no País vis-à-vis as tendências estruturais do Estado brasileiro e os novos
imperativos da GRH no setor público, ligando o conceito de profissionali-
zação também com a capacidade de prestação de melhores serviços públi-
cos para a sociedade. Enfim, o desafio é a construção de um olhar sobre os
concursos públicos que não se restrinja à função de constituição de uma
burocracia estatal pela garantia dos direitos individuais e com o objetivo
único de proteção do funcionalismo público de ações arbitrárias dos polí-
ticos; a questão central é como (re)conectar substantivamente os anseios de
mérito ao propósito de alcance de resultados na ação estatal.
82
3.2 O problema da desintegração dos subsistemas de GRH
no setor público brasileiro
À defasagem do modelo atual de concurso público no País, supra-
mencionada na subseção 3.1, soma-se a desintegração dos subsistemas
de GRH no setor público brasileiro, resultante do velho enfoque opera-
cional do departamento de pessoal (DP) na gestão pública – pela per-
sistente desvalorização da atividade-meio de gestão de pessoas –, que
fragmenta demasiadamente as suas funções e os seus processos.
A suposição, portanto, deste ensaio é de que o problema da desa-
tualização do modelo de concurso público no Brasil, em parte explicado
por disfunções como a ideologia concurseira, adicionado ao problema
de desalinhamento entre os processos de seleção de pessoal, a fase de
entrada e T&D dos aprovados e a avaliação de desempenho inicial dos
funcionários públicos (leia-se estágio probatório), acarreta distorções no
ingresso no serviço público do Brasil.
A seguir, a Figura 2 ilustra os subsistemas de GRH que – ideal-
mente – se integram no ingresso no serviço público.
Seleção & Recrutamento (perfil, formas de avaliação, divulgação)
Cargo ou Carreira (função, atribuições e competências)
Entrada e T&D (acolhimento e capacitação)
Aval. de Desempenho (mapa de competências e probatório)
Figura 2: Subsistemas de GRH (des)integrados no ingresso no serviço público
Fonte: Elaboração própria.
83
O fato é que tal arquétipo, representado na Figura 2, não corres-
ponde – usualmente – à realidade do setor público brasileiro. Em vez
de uma integração entre os subsistemas de GRH no ingresso no serviço
público, verifica-se uma desintegração, com a falta de pontos de contato
entre as práticas de gestão de pessoas alusivas aos concursos públicos,
configurando uma cadeia composta de elos perdidos. No extremo, não é
muito difícil encontrar casos de certames pelo País afora em que as ati-
vidades de cada uma de suas etapas são incoerentes entre si, revelando
falhas de coordenação mais graves e não um mero desalinhamento.
Para ilustrar, imaginemos um concurso público para um cargo de
analista de gestão governamental, em que o edital, mais preocupado com
as questões formais, não aprofunda a descrição das funções/atribuições
profissionais. O edital, então, é divulgado, e dada a sua pouca precisão
profissiográfica, acaba atraindo uma grande quantidade de candidatos
que se preparam para outros certames, fora do perfil almejado. Consi-
derando também o tempo exíguo para a realização do certame e as fa-
lhas de diálogo, nesse ínterim, entre o órgão contratante e a instituição
terceirizada para a elaboração/aplicação das provas, a abordagem e o
conteúdo dos exames não conseguiram refletir com certa fidedignidade
o padrão avaliativo esperado pela área de recursos humanos da organi-
zação. Na sequência, após a realização do concurso e a convocação dos
aprovados, suponha que os indivíduos que tomaram posse iniciam a sua
entrada no serviço público desprovidos de um processo de acolhimento
e sem a devida orientação para a iniciação nas atividades laborais.
Alguns meses mais tarde, após a desistência de vários profissionais
recém-admitidos por diversos motivos (aprovação em outros certames,
não adaptação à função, falta de clareza sobre o horizonte da carreira,
etc.), os funcionários remanescentes são convocados para um programa
de treinamento na escola de governo o qual tem pouca equivalência com
o trabalho presente e as perspectivas de atividade futura do cargo. Pouco
tempo depois do término dessa capacitação, mesmo a unidade de RH
84
já tendo um mapa das competências individuais de várias pessoas que
estão na carreira, mantém-se a distribuição delas nas áreas originais, de-
senvolvendo o mesmo tipo de tarefa; em alguns casos, com ausência de
supervisão e totalmente deslocadas das equipes de trabalho.
E, finalmente, passados mais de dois anos e meio da posse, faltando
menos de seis meses para o final do estágio probatório, nenhum processo
de avaliação de desempenho mais substancial, além das formalidades
habituais, foi realizado. A maioria dos funcionários já se acostumou ao
standard burocrático, à inexistência de mecanismos de incentivos/sanções
e à falta de liderança. O ambiente organizacional na repartição pública é
de desmotivação e baixa performance.
Guardadas as devidas proporções e sem a pretensão de esboçar um
estereótipo, a descrição acima se amolda a um farto número de concursos
públicos realizados em território nacional. Trata-se de quadro contextual
anormal que está naturalizado na gestão de pessoas no setor público e
que necessita ser repensado; uma das possibilidades é integração dos
subsistemas de GRH.
4. À guisa de conclusão: por uma agenda de inovações
nos processos de seleção de pessoal no setor público
brasileiro
Sumariando, este capítulo é um ensaio sobre o repensar dos con-
cursos públicos no Brasil como processo de seleção à luz da gestão de
pessoas no setor público. Como fundamento, o texto revisitou o instituto
do concurso público no País e mostrou algumas de suas disfunções na
atualidade, desvelando um círculo vicioso. E, adicionalmente, sob o ar-
gumento de falhas e/ou secundarização da inteligência de GRH, discu-
tiram-se tanto a desatualização do modelo de concurso público vigente
como os efeitos danosos advindos da fragmentação entre as etapas dos
85
certames; em resumo, dois problemas de ordem gerencial que ocasionam
distorções no recrutamento de nosso serviço público.
Abaixo, à guisa de conclusão, alicerçadas na GRH, apontam-se al-
gumas ideias administrativo-institucionais para uma política de moder-
nização do ingresso no setor público brasileiro, bem como para uma agen-
da de inovações no instituto do concurso público no País, quais sejam:
• na administração pública federal (APF) e nas estaduais, considerando
a descentralização da função de recursos humanos entre as diversas
áreas (ministérios e secretarias) e as várias organizações públicas, in-
cluindo a administração indireta, é bem-vindo se realizar uma radio-
grafia dos concursos públicos feitos nos últimos 12 anos, analisando
seus processos e resultados. Esse é um papel da(s) área(s) de gestão/
planejamento governamental e da unidade central de recursos huma-
nos, com o objetivo de identificar as good practices e, com base em tais
referências, elaborar uma carta de serviços para instruir os RHs seto-
riais no design e na organização de certames. Tal processo pode e deve
ser suplementado com a capacitação dos gestores de RH no tópico de
concursos públicos pelas escolas de governo;
• no tocante aos municípios, nível de governo no qual a capacidade es-
tatal é inferior, abarcando a função de GRH, sugere-se estruturar um
programa federal e/ou estadual de apoio à gestão pública que englobe
a política de recursos humanos e o instituto do concurso público. É
frequente na gestão pública municipal os certames serem concebidos
segundo o mimetismo de editais e/ou pela captura de órgãos de clas-
se, tal como pressupõe o modelo lata de lixo12;
12 O modelo lata de lixo ou garbage can foi desenvolvido por três autores – Cohen, March e
Olsen (1972) – que argumentam que a tomada de decisão organizacional é feita como se
as alternativas estivessem em uma lata de lixo; neste caso, as soluções não seriam detida-
mente analisadas e dependeriam do leque de soluções que os gestores possuem no mo-
mento. Logo, a compreensão do problema e das soluções é limitada, e as organizações
acabam por operar em um sistema de tentativa e erro. No limite, o modelo subentende
86
• em todos os níveis de governo e organizações públicas, é fundamental
que a importância – relativamente – estratégica que se atribui aos
concursos públicos para a alta burocracia se estenda para os certames
voltados para a street level bureaucracy, isto é, o corpo burocrático ope-
racional. Muitas vezes, a GRH não trata os concursos públicos de ní-
vel médio, por exemplo, com o devido zelo e acuracidade, acentuando
algumas disfunções como a sobrequalificação;
• voltando à seara da APF, um balanço da Política Nacional de Desen-
volvimento de Pessoal (PNDP), criada Decreto n. 5.707/2006, é opor-
tuno. O fito é identificar como o modelo de gestão por competência,
base de tal política para o subsistema de treinamento e desenvolvi-
mento (T&D) de funcionários públicos, tem se interpenetrado com o
subsistema de seleção de pessoal no serviço público. Nos concursos
públicos, a título de exemplo, um dos desafios em curso é transmutar
as atribuições do cargo previstas em edital em competências individu-
ais passíveis de serem aferidas nos exames; e
• por fim, é de suma importância a concertação entre as diversas áreas
do Poder Público, em todos os entes da Federação, que gravitam em
torno da temática dos concursos públicos – órgãos de gestão/plane-
jamento, unidade central de recursos humanos, departamentos seto-
riais de RH, negócios jurídicos, casas legislativas e sistema judiciário
–, para a construção de consensos e a calibragem do arcabouço legal
com as ferramentas gerenciais que possibilitem a inovação no modelo
de concurso público.
que soluções procuram por problemas. No caso do instituto do concurso público no Bra-
sil, esse modelo reflete a ausência ou as falhas de inteligência em GRH no setor público,
sobretudo nos pequenos e médios municípios. Diante de tal carência, órgãos de classe –
como os conselhos profissionais – ofertam para prefeituras kits de concursos públicos
com editais e provas sem custo financeiro, mas com um custo econômico (ou custo de
oportunidade), qual seja: os editais preveem reserva de mercado para uma profissão e/
ou as provas cobram um conteúdo programático adepto de uma categoria profissional.
87
Tendo em consideração esta última proposta, é digno de nota o
quão crucial é a aproximação entre os gestores públicos e os juristas no
debate sobre a modernização do instituto do concurso público no Brasil.
De outro modo, se não houver uma ambiência para o diálogo entre esses
dois atores da elite burocrática em tal temática, corre-se o risco da perma-
nência de uma “incompreensão mútua”, na mesma linha em que Nohara
(2012) atesta os conflitos interpretativos entre tecnocratas e administrati-
vistas durante a gestação do modelo de administração pública gerencial
na segunda metade dos anos 90 no País.
Enfim, encerrando o texto, cabe uma comparação entre o instituto
do concurso público e o instituto das compras públicas no Brasil. Embora
existam incontáveis críticas à Lei de Licitações, é notório que o sistema de
compras governamentais se modernizou – incrementalmente – no Bra-
sil, na última década, com o aporte de tecnologias de informação (e-gov)
nas aquisições públicas e o aumento da intelligentsia na gestão de cadeias
de suprimentos nos governos. É essa modernização verificada no sistema
de contratação de bens e serviços do Estado brasileiro que se espera que
ocorra no processo – coirmão – de contratação de pessoal, compreen-
dendo o instituto do concurso público e os modelos de admissão alterna-
tivos. Afinal de contas, as reformas de segunda geração na administração
pública nacional avançaram em diversas frentes da gestão governamental,
além das compras públicas, como observado nos processos de governo
eletrônico, de sistemas de atendimento ao cidadão, de transparência admi-
nistrativa, de capacitação com as escolas de governo, dentre outros, mas
ainda não chegaram à sistemática de recrutamento da força de trabalho.
88
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89
SOUSA, A. R. O Processo administrativo do concurso público. 2011. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) - Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2011.
Hamilton Coimbra Carvalho
Servidor público estadual, mestre
em Administração pela FEA-USP,
bacharel em Administração de Em-
presas pela FGV-SP, membro da
Associação Internacional de Marke-
ting Social, autor de artigos e capí-
tulos de livro sobre gestão e compor-
tamento humano e criador do site
Procurando Respostas
(www.procurandorespostas.com).
92
“Todo ser humano, aonde quer que vá, carrega consigo um emaranhado de
convicções reconfortantes, que o acompanham como se fossem moscas em
um dia de verão.” (Bertrand Russell)
É muito difícil superar a convicção de que enxergamos a realidade
de forma objetiva. Os pesquisadores Lee Ross e Emily Pronin, dentre ou-
tros, adotaram o termo “realismo ingênuo” (näive realism) para descrever
o fenômeno pelo qual consideramos que aqueles que divergem da nossa
visão sobre determinado aspecto da realidade social estão mal informa-
dos, são irracionais ou estão enviesados (PRONIN; LIN; ROSS, 2002). Isto
é, nos arvoramos como espectadores objetivos da realidade e negamos
legitimidade a quem pensa diferente. A citação do filósofo Bertrand Rus-
sell, acima, destaca um elemento importante nesse fenômeno, que é a
sensação de conforto proporcionada pela nossa visão de mundo. De fato,
como destaca em seu livro de memórias o fundador da empresa Visa,
Dee Hock (2005), mudar nossos modelos mentais é mais desconfortável
do que perder um olho ou um membro do corpo.
Os seres humanos passam a vida filtrando a realidade social de
modo a confirmar seus pontos de vista. Esse viés de confirmação usual-
mente se constitui em forte barreira para decisões adequadas nas diver-
sas esferas da vida, especialmente porque acontece de forma automática.
Nas organizações, o problema se complica ainda mais um pouco, porque
- Hamilton Coimbra Carvalho
93
as pessoas tendem a se agrupar com aquelas que pensam de forma pa-
recida com elas (o que se conhece como homofilia), gerando o fenômeno
chamado de groupthink, uma espécie de pensamento único coletivo. “As
empresas vivem dentro da caverna do mito de Platão. Os executivos pas-
sam horas em frente a um computador e falam com as mesmas pessoas.
Eles só veem sombras, não a realidade”, declarou recentemente David
Kelley, fundador da badalada consultoria IDEO (ROSSI, 2014).
Essas características da mente humana e as consequentes miopias
organizacionais têm bastante relevância para o tema que será tratado
neste capítulo: a justiça nos relacionamentos organizacionais.
Quem é que não se considera uma pessoa justa? No 3º Congresso
de Gestão de Pessoas no Setor Público, depois de falar sobre o tema des-
te capítulo, recebi por escrito o seguinte comentário: “Geralmente quem
sente a ‘injustiça organizacional’ é o funcionário. Os chefes sempre se
sentem como os melhores”. Direto ao ponto! Jerald Greenberg, pai do
conceito de justiça organizacional, corrobora esse ponto de vista. Para
ele, a percepção que os chefes possuem de que são justos é uma das prin-
cipais barreiras para a disseminação de ferramentas práticas de gestão
que favoreçam a justiça nas organizações (GREENBERG, 2009).
Evolução e um julgamento automático
Um fenômeno curioso, estudado pela Psicologia Social, é o do just
world phenomenon (LERNER, 1970). Esse fenômeno – a crença em um
mundo justo – reflete a inclinação humana a acreditar que, na vida, tan-
to o sofrimento e as punições quanto a felicidade e as recompensas são
frutos de mérito individual, isto é, devem ter uma razão para existir. A
crença é mantida, por exemplo, na tendência irracional de culpar as ví-
timas pelos crimes que sofrem ou pelas condições negativas a que estão
sujeitas. Por causa da forte pressão psicológica para conciliar o mundo
ideal (“justo”) com o real, é comum que fenômenos sociais complexos,
94
como a pobreza, sejam reduzidos a uma mera questão de culpa individu-
al (WRIGHT; LOPEZ, 2009).
Mas esse julgamento de justiça não para por aí; ele se replica nos
nossos relacionamentos sociais. Estamos sempre usando a lente da justi-
ça para avaliar nossas interações com outras pessoas ou com entes abs-
tratos, como organizações. De fato, essa avaliação é parte de um contexto
mais amplo, em que normas sociais de conduta, valores ou ideais (como
a coerência entre palavras e ações) são usados como guia de navegação
nos grupos sociais (ELLSWORTH; SCHERER, 2003).
Por que a preocupação com justiça nos relacionamentos sociais é
uma verdadeira obsessão humana? Parte da resposta está relacionada
com uma característica que possibilitou, ao longo da história humana,
a evolução de grupos sociais que a possuíam. Essa característica é a co-
operação. As evidências da psicologia evolutiva mostram que a coope-
ração nos grupos sociais depende da existência de um módulo mental
de detecção de aproveitadores. Ou seja, só é possível confiar nas pesso-
as e aproveitar os interessantes benefícios que decorrem da cooperação
se existe um mecanismo social para punir aqueles que não cooperam e
aproveitam para levar vantagem sobre os demais.
Nesse sentido, ao contrário do que se imaginava nos primórdios da
psicologia evolutiva, um dos fatores principais que explica o crescimento da
cooperação ao longo da história não foi apenas a tendência a ajudar parentes
ou o altruísmo recíproco (em que a boa ação de hoje é feita com a expectativa
de uma retribuição futura), mas especialmente a chamada punição altruísta
(FEHR; GÄCHTER, 2002). Na punição altruísta, aproveitadores (free riders)
não são necessariamente punidos por aqueles que prejudicaram diretamen-
te, mas principalmente por terceiros não relacionados com os prejudicados.
O que se sabe é que o processo evolutivo favoreceu o surgimento nos
seres humanos de uma propensão a sentir emoções negativas em relação a
comportamentos não colaborativos. Mais ainda, favoreceu a existência de
uma disposição para punir os aproveitadores, mesmo que isso implique
95
custos pessoais relevantes. O processo foi favorecido pela evolução cul-
tural de grupos sociais ao longo da história. Nesses grupos, tipicamente
inspirados por crenças religiosas, o custo do comportamento aproveitador
tornou-se progressivamente muito alto, estimulando a crescente coopera-
ção entre seus membros (SHARIFF; NORENZAYAN; HENRICH, 2010).
Os resultados dos processos evolutivos costumam se revelar tam-
bém no nível neurológico. Como ressalta Beugré (2009), as evidências da
neurociência apontam para a existência de uma aversão natural à desi-
gualdade nos seres humanos, isto é, uma aversão ao descompasso entre
mérito e recompensa. Essa aversão, destaca ele, é tão forte que as pessoas
frequentemente preferem abrir mão de ganhos para punir outras pessoas
que se aproveitariam injustamente de uma situação social comum.
Em resumo, as evidências mostram que os seres humanos são do-
tados de um módulo que evoluiu em seu hardware mental para monito-
rar situações de potencial injustiça de maneira geral e para identificar (e
punir) aqueles que violam as normas básicas das transações sociais. Essa
punição frequentemente ocorre por meio da disseminação de informa-
ções negativas sobre o aproveitador, prejudicando sua reputação; e por
meio de outras sanções sociais. Por outro lado, no ambiente organizacio-
nal, a reação a situações injustas pode variar da passividade à sabota-
gem, mas, como veremos, é comum se manifestar por meio de efeitos na
saúde e no desempenho profissional.
Controle sobre nossas vidas
É importante destacar um aspecto adicional da necessidade de jus-
tiça nos nossos relacionamentos sociais. A utilização da lente da justiça
atende a uma necessidade humana inata de controle sobre nossas vidas. A
Teoria da Autodeterminação (DECI; RYAN, 2002), apoiada por forte lastro
empírico, postula três necessidades humanas inatas que precisam ser aten-
didas para o pleno desenvolvimento humano: autonomia, competência e
96
relacionamento social. Dessas necessidades, em especial das duas primei-
ras, surge uma busca de controle e influência sobre o ambiente social. Os
seres humanos precisam sentir que têm influência sobre seu cotidiano.
Cosquitt (2008), nesse sentido, destaca que os julgamentos de jus-
tiça ajudam a mitigar ou mesmo remover os efeitos da incerteza sobre
nosso destino. No ambiente de trabalho, os indivíduos enfrentam diver-
sas incertezas, relacionadas à continuidade de seu emprego, à qualidade
do relacionamento com o chefe, à permanência da organização ao longo
do tempo e ao recebimento dos vários tipos de recompensa em resposta
ao seu esforço. A satisfação dos aspectos de justiça favorece, desse modo,
a ocorrência de uma sensação de segurança em relação a pelo menos
algumas dessas incertezas, bem como a ocorrência de um estado mental
positivo para seu enfrentamento.
O tamanho dos nossos mundos
Estamos sempre monitorando nossos relacionamentos sociais
usando a lente da justiça. Estão se aproveitando de mim? Tenho influ-
ência nas decisões que impactam minha vida? É possível falar ainda em
outros julgamentos automáticos, como o da similaridade e o da coerên-
cia – uma preocupação especialmente sensível para líderes, que muitas
vezes não percebem a frequência com que seus liderados comparam suas
palavras com suas ações (KAPLAN, 2011). A existência (e o desconheci-
mento) desses julgamentos automáticos aponta para uma questão mais
ampla e ainda mais importante.
Como lembra Pinker (2003), todo mundo carrega consigo uma teo-
ria sobre o comportamento humano. Essa teoria determina a forma como
tentamos persuadir outras pessoas, criar nossos filhos, controlar nosso
comportamento ou gerenciar nossos relacionamentos. O problema é que
essa “teoria” frequentemente está escorada em crenças incorretas, sem
base científica. Achamos que sabemos a causa do nosso comportamento
97
(e, por consequência, das demais pessoas), mas essa interpretação tende
a ser automaticamente construída pelo cérebro (WEGNER, 2002). Isto é,
por introspecção (apesar da ilusão em sentido contrário) nós não conse-
guimos acessar a causa real de boa parte de nossos comportamentos.
Além disso, generalizamos nossas crenças para as demais pessoas,
incorrendo no que se conhece como o viés do falso consenso. Absorve-
mos o conhecimento trazido pelo senso comum do nosso tempo, sem
questionamento. Apenas para ficar em um exemplo simples, o conhe-
cido mantra do manda quem pode, obedece quem tem juízo continua sendo
repetido ad nauseam nas diversas organizações brasileiras (em especial
nas repartições públicas), independentemente de qualquer reflexão sobre
seus efeitos na percepção de justiça ou no comprometimento dos funcio-
nários. O resultado é que o desconhecimento de como funciona de fato a
mente humana leva a crenças e práticas que podem ser bastante prejudi-
ciais em relacionamentos sociais.
O mundo do ser humano é do tamanho dos seus conceitos. O co-
nhecimento de base científica não apenas expande esse mundo, mas tam-
bém dissolve mundos baseados em conceitos irreais. Assim, conhecer a
estrutura e o funcionamento do hardware mental que acompanha os se-
res humanos é fundamental não apenas para expandir o nosso “mundo”,
mas, sobretudo, é necessário para que os gestores não cometam sistema-
ticamente erros que comprometem o engajamento de sua equipe. Não se
engane: ainda hoje as organizações não sabem como gerenciar adequada-
mente seu capital humano. A cultura do medo, o microgerenciamento e as
relações de poder fortemente hierárquicas (e frequentemente autoritárias)
continuam prevalecendo no ambiente de trabalho (DENNING, 2013).
Considerando que as pessoas estão avaliando seus relacionamen-
tos sociais o tempo todo e de forma automática, vamos agora entender
melhor o conceito de justiça, seus aspectos e suas consequências no coti-
diano organizacional.
98
O conceito de justiça organizacional
Você é ouvido em decisões de trabalho que impactam seu cotidiano?
Seu chefe trata as pessoas da sua equipe da mesma forma? Você sente que seu
esforço é recompensado, mesmo com um simples elogio? Se você respondeu
“não” a uma ou a todas essas questões, muito provavelmente sua motivação
para trabalhar está aquém do ideal. Essas questões exemplificam aspectos
distintos, mas complementares, do conceito de justiça organizacional.
Batizado pelo pesquisador Jerald Greenberg, o conceito de justiça
organizacional engloba três aspectos básicos: a justiça procedimental; a
distributiva; e a interacional (GREENBERG, 1990a). A seguir, descreve-
mos suas principais características.
A justiça procedimental diz respeito a como são estruturados os pro-
cessos de decisão. Em outras palavras, trata-se da justiça percebida nos
processos que determinam resultados de interesse das partes envolvidas.
Em praticamente todos os relacionamentos sociais existem conflitos ou po-
tencial para conflito. O que vai definir a satisfação com a resolução desses
conflitos é, ao contrário do que nos diria nossa intuição, menos os resulta-
dos e mais o processo de decisão pelo qual esses resultados são alcança-
dos. A chave é a existência de procedimentos destinados a anular vieses
e garantir consistência. É a existência de uma regra clara, que é aplicada
da mesma maneira para solucionar conflitos, independentemente das pes-
soas envolvidas. É o direito de as pessoas darem sua opinião, sentirem
que têm voz para apresentar argumentos e que eles sejam devidamente
considerados, mesmo quando o resultado final não lhes seja favorável. As
regras do jogo precisam ser claras e baseadas em critérios objetivos.
O segundo aspecto é a chamada justiça distributiva, que compreen-
de a percepção relacionada a esforços e resultados. Não se trata apenas
de recompensar o esforço, mas de reconhecer a contribuição diferenciada
quando ela existe e é relevante. Aspectos de justiça distributiva no traba-
lho costumam se tornar salientes nas equipes diante de situações comuns,
99
como a distribuição desigual do trabalho, a ausência de critérios claros
para a atribuição de tarefas menos desejadas, e a ausência de recompensas
diante do esforço diferenciado. As recompensas não são apenas financei-
ras. Outros recursos como espaço físico, escritórios e recompensas simbó-
licas – por exemplo, nomes dados a determinados cargos, atribuições que
refletem uma posição de status alcançada, elogios e oportunidades de car-
reira – também são considerados recompensas gerenciáveis em um con-
texto organizacional. Muitas vezes, o reconhecimento sincero do esforço e
do trabalho feito pode ajudar a aplacar a sede de justiça distributiva.
Já a justiça interacional compreende o acesso igualitário a informa-
ções que impactam a vida do profissional, bem como o tratamento dig-
no e respeitoso na relação interpessoal. Ninguém se sente bem ao saber
que apenas um grupo mais próximo ao chefe tem acesso a informações
importantes. Similarmente, ninguém gosta de ser tratado com desprezo,
sem respeito e sem consideração. Isso para não falar de extremos de com-
portamentos desrespeitosos, como o assédio moral.
A justiça interacional compreende duas facetas, como sugerido aci-
ma. Uma delas é a justiça informacional, que está relacionada à distribuição
adequada e equânime de informações, incluindo-se a explicação sincera e
fundamentada dos mecanismos adotados para os processos de decisão e
dos resultados das decisões. A outra faceta é a justiça interpessoal, que cor-
responde ao respeito, à cortesia e à polidez que devem fazer parte de rela-
cionamentos sociais saudáveis. A justiça interacional engloba ainda aspectos
como o feedback dado no tempo certo e existência de um ambiente de acolhi-
mento emocional para o profissional. É interessante registrar que se reconhe-
ce a existência de um nível ótimo para a justiça procedimental (por exemplo:
participação em excesso nos processos de decisão pode ser prejudicial) e
para a justiça distributiva, mas, em se tratando de justiça interacional, a re-
comendação é a de que quanto mais, melhor (GREENBERG, 1990a; 2009).
A Tabela 1 traz os principais elementos associados com cada uma
das facetas de justiça organizacional.
100
Faceta da justiça organizacional Elementos
Justiça procedimental
Processo estruturado
Voz nas decisões
Consistência
Clareza de expectativas
Supressão de vieses
Precisão
Possibilidade de correção
Representatividade
Ética
Justiça distributiva
Equidade
Igualdade
Necessidade
Justiça interacional
Respeito e dignidade
Propriedade do comportamento
Justificativa e fornecimento de informações
completas no momento certo
Verdade
Apoio emocional e acessibilidade
Ausência de intimidação e manipulação
Tabela 1: Facetas da justiça organizacional e seus elementos constitutivos
Fonte: adaptado de Cosquitt (2008) e Greenberg (2010).
Implicações
As evidências científicas são bastante claras. O atendimento das
dimensões de justiça organizacional está relacionado de forma causal
com diversos fenômenos de interesse social, como menor nível de furtos
nas organizações (GREENBERG, 1990b), menores níveis de emoções ne-
gativas, menores patamares de doenças físicas e mentais (tais como de-
pressão, insônia e doenças cardiovasculares), menores níveis de compor-
tamentos não saudáveis, de obesidade, de absenteísmo (GREENBERG,
2010), maior comprometimento, maior desempenho, maior satisfação
101
com o trabalho, maiores níveis de cidadania organizacional (COLQUITT,
2008), dentre outros. Os resultados costumam ser relevantes ou até mes-
mo dramáticos. Exemplificamos a seguir alguns deles.
Greenberg (2010) reporta resultados de pesquisas longitudinais
que mostraram que, dentre trabalhadores masculinos do serviço públi-
co inglês, aqueles que percebiam altos níveis de justiça organizacional
tinham uma incidência 30% menor de doenças cardiovasculares na com-
paração com os que percebiam níveis baixos ou intermediários. Núme-
ros mais impressionantes vieram de um estudo com trabalhadores fin-
landeses, acompanhados entre 1973 e 2001: aqueles que percebiam um
forte descompasso entre seus esforços e suas recompensas (basicamente,
um desequilíbrio em justiça distributiva), tais como baixos salários, baixa
aprovação social e poucas oportunidades de carreira, tinham um risco
2,4 vezes maior de morrer de doenças cardiovasculares, já descontados
os efeitos de idade e gênero.
Em termos comportamentais, Kouvonen et al. (2006) assinalam que,
quando os trabalhadores sentem a injustiça no ambiente do trabalho (no
caso, novamente injustiça distributiva), eles tendem a se sentir frustrados,
apáticos, alienados e desligados do trabalho. Em outras palavras, apre-
sentam bastante passividade, o que tende a levar a comportamentos pre-
judiciais à saúde, como o sedentarismo, tabagismo e abuso de álcool.
Por outro lado, Greenberg (2010), sumarizando os resultados de
pesquisas recentes, destaca que, quando as pessoas são tratadas com
altos níveis de justiça interacional, elas estão mais propensas a aceitar
resultados ruins, tais como cortes de salários, mudanças de políticas ou
mesmo a perda do emprego. Em um contexto de negociação, Humphrey
et al. (2004) mostram que, mesmo em casos em que há rejeição definitiva
de ofertas, a satisfação com o relacionamento aumenta com uma expli-
cação detalhada da rejeição. Isto é, quando se trata de dar notícias ruins,
a justiça organizacional se torna uma consideração bastante importante.
Por sua vez, Maxham III, Netemeyer e Lichtenstein (2008) comprovaram
102
que percepções de justiça organizacional por parte de empregados de re-
des varejistas levaram a efeitos positivos em seu comportamento e foram
transmitidas para o comportamento dos consumidores, levando a maio-
res gastos nas lojas. Kim e Mauborgne (2003) destacam que a existência
de um processo justo atende a uma necessidade humana básica, e que
os empregados se comprometem com as decisões tomadas no âmbito
das organizações se acreditam que o processo de decisão foi correto. As
pessoas querem ser tratadas como seres humanos, destacam eles, e não
como “recursos humanos” ou “capital humano”. Isso demanda a exis-
tência de canais para que elas sintam que suas ideias são levadas a sério,
bem como a existência de procedimentos claros para explicar claramente
os motivos por trás das diversas decisões e a existência de processos de
decisão que transmitam a ideia de que a organização confia nas pessoas
e valoriza sua contribuição.
De maneira geral, as evidências da neurociência mostram que per-
cepções de justiça ativam áreas de prazer no cérebro, enquanto percep-
ções de injustiça ativam áreas associadas com emoções negativas, como a
raiva (BEUGRÉ, 2009). É interessante acrescentar que existem evidências
mostrando que, embora os julgamentos de justiça procedimental e dis-
tributiva compartilhem parte dos mesmos substratos neurais e estejam
relacionados à ativação de emoções negativas em caso de violação de
expectativas, ambos os julgamentos parecem ser independentes, por en-
volverem, em boa parte, diferentes circuitos cerebrais. E, de forma bas-
tante relevante em termos de implicações práticas, os julgamentos de
injustiça distributiva tendem a despertar uma maior resposta emocional
negativa na comparação com os aspectos procedimentais (DULEBOHN
et al., 2009). Isto é, se tem algo que o ser humano tolera ainda menos é o
sentimento de não ter sua contribuição ou esforço recompensados. Mas é
importante o atendimento de todos os aspectos de justiça organizacional
que, embora distintos, são complementares e geram um efeito sinérgico
na motivação.
103
Conclusão: Não existe motivação sustentável em uma equipe
de trabalho sem a devida gestão dos aspectos de justiça.
Como vimos, nós julgamos as relações sociais em que participa-
mos por algumas lentes básicas. Uma dessas lentes, que é, de fato, uma
necessidade humana, é a lente da justiça. Estamos sempre monitorando
se as demais pessoas estão nos tratando de forma respeitosa, se nosso
esforço é reconhecido, se não há privilégios ou tratamento diferenciado
para alguns em detrimento de outros ou se as decisões são tomadas de
forma imparcial e criteriosa. Essa é uma espécie de gramática com a qual
lemos todos os nossos relacionamentos sociais e é muito relevante em se
tratando do contexto do trabalho.
Enfim, o conceito de justiça organizacional é fundamental para um
ambiente de trabalho produtivo e positivo, como mostram as evidências
científicas acumuladas ao longo das últimas décadas. Um ambiente sem
justiça leva, inclusive, a danos à saúde das pessoas, além da desmotiva-
ção e da ausência da disposição para dar algo a mais. Não existe motiva-
ção sustentável em uma equipe de trabalho sem que os aspectos de justiça
sejam devidamente gerenciados. Como boa parte dos gestores no setor
público e privado não têm consciência desses aspectos, frequentemente
eles os violam sem perceber, causando estragos à moral de sua equipe.
Beugré (2009) destaca três conclusões práticas que deveriam fazer
parte do repertório gerencial em qualquer organização. São elas:
1) os funcionários se preocupam com justiça;
2) a justiça no ambiente de trabalho é recompensadora por si só;
3) os funcionários possuem uma aversão natural à injustiça e esta-
rão propensos a colocar em prática medidas para corrigir situa-
ções injustas.
O conceito de justiça organizacional é amplo e se aplica a diversos
contextos. Quem é que nunca se indignou, por exemplo, com um fiscal
de trânsito mais preocupado em aplicar multas do que em organizar o
104
fluxo de veículos? Ou por ser tratado de forma desrespeitosa por uma
empresa quando precisa de assistência técnica para um produto defei-
tuoso? Ou, ainda, por esperar horas por um atendimento médico, sem
receber qualquer informação relevante? Muito comum no Brasil é a per-
cepção de que não há retorno adequado, em termos de serviços públicos,
dos impostos pagos pela população – um claro exemplo de violação de
expectativas de justiça distributiva. Nesse sentido, Kirchler (2007) assina-
la que considerações de justiça distributiva e procedimental têm efeitos
comprovados e duradouros no comportamento de pagamento voluntá-
rio de impostos. Em outro contexto, também é comum que percepções de
injustiça que nascem da distribuição desigual de atividades prejudiquem
relacionamentos pessoais como um casamento – a famosa dupla jorna-
da das mulheres. Os exemplos possíveis são diversos.
A lição que deve ficar aos gestores públicos é que a lente da justiça
organizacional precisa ser aplicada aos diversos relacionamentos organiza-
cionais que ocorrem em múltiplos níveis. Não se trata apenas do relaciona-
mento entre colegas de trabalho ou entre líderes e liderados. Muitos rela-
cionamentos que ocorrem em outros níveis frequentemente demandam a
aplicação dos conceitos de justiça organizacional: relacionamento da orga-
nização com seus clientes externos, com públicos de interesse (stakeholders),
com outras organizações e, no caso do setor público, o relacionamento, nem
sempre livre de fricção, entre as organizações e os detentores de cargos po-
líticos, que legitimamente procuram colocar em prática sua agenda.
Aplicar a justiça organizacional nos diversos relacionamentos im-
plica a criação ou reestruturação de processos, a revisão de práticas e a
sempre dolorosa mudança de cultura organizacional – mais dolorosa
ainda pelo contexto da cultura nacional, fortemente hierárquica e favo-
rável à distribuição desigual de poder (HOFSTEDE, 2001). Afinal, como
já exemplificamos, vivemos no país em que faz parte do software mental
das pessoas a famosa crença do manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Nada mais hostil a um ambiente com justiça.
105
Greenberg (2009) alerta que é tempo de passar do desenvolvimento
teórico para o teste empírico de intervenções, guiadas pelo conhecimento
científico, destinadas a incrementar a justiça nas organizações. As barrei-
ras são grandes e incluem, como visto, o desconhecimento dos gestores
sobre o tema.
Para que haja um ambiente com elevado grau de justiça, condição
necessária para a motivação (e mesmo para a saúde) dos funcionários, é
preciso, portanto, que o gestor público tenha humildade para questionar
suas crenças e espantar as moscas metafóricas que o acompanham e lhe
dão conforto. É preciso disposição para descartar velhas crenças, como
a de que conhecimento é poder e, portanto, não deve ser compartilhado;
ou a de que as pessoas precisam ser controladas e não podem ter níveis
razoáveis de autonomia e empowerment. Conhecer os conceitos de justiça
organizacional é condição necessária, mas claramente insuficiente. É o
mesmo que conhecer os requisitos de uma dieta saudável, mas continuar
a se alimentar de fast food quando a fome aperta. Esperamos que este ca-
pítulo colabore com os esforços em direção a uma administração pública
ao mesmo tempo mais humana e mais eficaz.
106
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Cecília Whitaker Bergamini
Psicóloga pela Faculdade de Filosofia
Ciências e Letras “Sedes Sapientiae”
da Pontifícia Universitária Católi-
ca de São Paulo. Mestre, Doutora
e Livre-docente em Administração
pela Faculdade de Economia e Ad-
ministração da Universidade de São
Paulo.
111
motivação: uma viagem ao
centro do conceito1
1 Artigo publicado originalmente na GV-executivo, vol. 1, n. 2, nov-jan 2002.
112
Não há nada mais desmotivador do que tentar motivar alguém.
Mesmo assim, é fácil cair na tentação de abraçar a ideia de que uma
das principais responsabilidades dos gerentes é motivar seu pessoal.
Por anos a fio, os administradores vêm tentando alcançar o sucesso
nesse tipo de empreitada. E, mesmo que praticamente nada tenham
conseguido, os conselhos continuam a brotar de todos os lados. As
mais variadas receitas são oferecidas para que se obtenha aquilo que
um grande número de publicações em Psicologia considera como
verdadeiro milagre.
Um primeiro ponto a considerar é se todos aqueles que descre-
vem a atividade gerencial como geradora de motivação estão real-
mente falando do mesmo assunto. De fato, custa acreditar que, apesar
de muito utilizada e discutida nas organizações, a motivação seja ob-
jeto de considerações tão diferentes entre si. Essa discrepância indica
que há, pelo menos, um interesse considerável pelo assunto. Trata-se
de um tema que há mais de uma década está em grande evidência.
No entanto, há um ponto comum entre muitas das interpretações que
as pessoas, no geral, oferecem quando falam do assunto: raramente
opiniões, crenças e mitos baseiam-se em informações oferecidas por
pesquisas científicas.
A dificuldade básica se deve a um fato simples: nem sempre
dois indivíduos que agem da mesma maneira o fazem pelas mesmas
- Cecília Whitaker Bergamini
113
razões. Pesquisas científicas realizadas sobre o comportamento moti-
vacional revelam que não somente as pessoas têm objetivos diferen-
tes, como as fontes de energia que determinam seu comportamento
são extremamente variadas. Assim, o estudo da motivação humana
consiste na pesquisa dos motivos pelos quais as pessoas fazem o que
fazem e se encaminham em direção a seus objetivos – objetivos que
são, em última análise, escolhas de ordem interior ou intrínsecas à
personalidade de cada um.
Motivação em tempos turbulentos
O mundo empresarial vive um período em que o grande de-
safio é conseguir dominar a mudança. No entanto, as condições
em que as mudanças estão ocorrendo são claramente adversas, ou,
como propõem alguns autores, mais turbulentas, mais caóticas e
mais desafiadoras do que nunca. Assim, pessoas e organizações se
veem ao mesmo tempo atônitas e constrangidas a viver sob a pres-
são da procura de alguma estratégia que lhes permita dominar os
novos desafios.
O fim do conceito clássico de emprego já é uma realidade: após
anos de previsões otimistas e alarmes falsos, as novas tecnologias
de informações e comunicação fazem sentir seus violentos impactos.
Sempre a reboque dos eventos, parece que as pessoas custaram a en-
tender que não lidavam mais com inocentes exercícios de futurolo-
gia, mas com uma realidade a ser vivida aqui e agora.
Em meio a mudança, as pessoas parecem movimentar-se de-
sordenadamente, invalidando qualquer tentativa de controle. Os
administradores, inquietos, se perguntam constantemente: como é
possível conseguir que as pessoas produzam sob condições em que
normalmente não estariam motivadas para trabalhar?
114
Ação interior
Parte da resposta a esse tipo de indagação está ligada à psi-
codinâmica do comportamento motivacional, que representa a fonte
de energia instalada dentro de cada um, praticamente em estado de
ebulição. Quando falamos em motivação, portanto, nos referimos a
um tipo de ação que vem dos próprios indivíduos: um tipo de ação
qualitativamente diferente daquela determinada por prêmios ou pu-
nições oriundos do meio ambiente. Trata-se, mais precisamente, de
uma fonte autônoma de energia, cuja origem se situa no mundo inte-
rior de cada um, e que não responde a qualquer tipo de controle do
mundo exterior.
É importante ressaltar que estar motivado não é o mesmo que
experimentar momentos de alegria, entusiasmo, bem-estar ou eufo-
ria. Esses estados podem, até certo ponto, ser considerados efeitos
posteriores do processo motivacional, mas nada explicam sobre sua
origem nem sobre o caminho percorrido até que sejam alcançados.
Sabe-se que a motivação é muito mais ampla do que os comporta-
mentos ou estados que porventura tenha a capacidade de provo-
car. A simples e imediata observação do comportamento motivado
não responde à pergunta de como conhecer o verdadeiro porquê da
sua existência.
Em 1978, o pesquisador E. Archer desmistificou muitas das fal-
sas interpretações do comportamento motivado. Seu trabalho enfa-
tizava que a motivação nasce somente das necessidades humanas e
não daquelas coisas que satisfazem essas necessidades. Tal posição
é fortalecida por um significativo número de descobertas feitas por
pesquisas da Psicologia Social. A maioria dessas investigações atri-
bui grande peso à valorização da predisposição motivacional gerada
por necessidades que brotam do interior de cada um. O ser humano
possuiria, portanto, necessidades interiores que representam a fonte
115
de energia do seu comportamento. Ele agiria em busca de fatores de
satisfação capazes de evitar a sujeição a graus desagradáveis e ame-
açadores de tensão.
Considerando a motivação um processo, o enfoque atual procu-
ra descobrir como ela ocorre. Parte-se do princípio de que se trata de
um desencadeamento de momentos interiormente experimentados,
que levam o indivíduo a mobilizar a sinergia ou as forças já exis-
tentes em seu interior. Essa é a abordagem mais recente dos estudos
da motivação humana, que não se atêm simplesmente à análise do
conteúdo e à descrição dos objetivos motivacionais, como fizeram
muitas das teorias dos anos 50, como a conhecida hierarquia dos ob-
jetivos motivacionais de Maslow.
O que não é motivação
O entusiasmo a respeito da teoria do condicionamento operante
de Skinner, psicólogo de Harvard, fez com que se passasse a chamar
de motivação aquilo que a Psicologia já consagrara com o nome de
condicionamento. Essa perspectiva partiu das descobertas de Pavlov,
prêmio Nobel de medicina de 1904, sobre o reflexo condicionado. A
principal consequência das teorias daí derivadas, conhecidas como
de enfoque comportamentalista, foi o entendimento de que é sempre
possível conseguir que as pessoas ajam de acordo com certos padrões
de conduta previamente estabelecidos.
Preocupados em modelar o comportamento, os estudiosos do
behaviorismo, como são conhecidos, recomendavam gratificar os com-
portamentos supostamente adequados (reforço positivo) e punir os
inadequados (reforço negativo). Como Skinner, os administradores
que adotaram essa postura acreditavam que, com prêmios ou castigos,
seria possível fazer que seus funcionários seguissem qualquer tipo de
conduta por eles planejada. Dessa forma, um bom administrador de-
116
veria desenvolver suas habilidades de manipulador das variáveis do
ambiente organizacional, servindo-se delas como reforços positivos
ou negativos.
As diretrizes administrativas, em muitos países, tomaram como
ponto de partida o enfoque behaviorista de Pavlov e Skinner. Os ad-
ministradores adotaram definitivamente o caráter de controladores
do comportamento humano, de acordo com os pressupostos que tam-
bém sustentavam a Escola da Administração Científica de Taylor.
Essa perspectiva previa que o administrador poderia e deveria mu-
dar o comportamento dos liderados de forma a conseguir a harmonia
com as diretrizes organizacionais. Os trabalhadores, nesse caso, so-
freriam passivos o efeito da ação das variáveis condicionantes exis-
tentes no ambiente de trabalho. Em última análise, administrar se
resumiria em punir ou premiar os trabalhadores.
As diferentes faces da motivação
No decorrer da década de 70, Herzberg, outro professor de
Harvard, abriu novas perspectivas com suas pesquisas sobre o as-
sunto. Seu trabalho culminou com a proposição de que existem dois
tipos de objetivos motivacionais, considerados qualitativamente
diferentes. Segundo essa teoria, há certos objetivos motivacionais,
cujo papel é simplesmente o de manter a insatisfação das pessoas
no nível mais baixo possível. Esses fatores, denominados “de higie-
ne”, acham-se ligados ao ambiente periférico ou extrínseco ao in-
divíduo. Existem outros fatores, no entanto, que dizem respeito à
busca de um máximo de satisfação motivacional. Estes últimos estão
ligados ao próprio indivíduo e ao tipo de trabalho que ele desenvol-
ve, configurando-se caracteristicamente como os verdadeiros fatores
responsáveis pela motivação intrínseca. Dentre os fatores de higiene
incluem-se amizade com os pares e superiores, condições físicas do
117
ambiente de trabalho, recompensa salarial e segurança em não per-
der o emprego. Dentre os fatores de motivação estão, por exemplo, a
realização pessoal, a responsabilidade, o trabalho em si e o reconhe-
cimento do esforço pessoal.
Ao caracterizar a diferença entre esses dois tipos de fatores, Herz-
berg procurou demonstrar que não basta oferecer fatores de higiene
para ter pessoas motivadas dentro das organizações. Ao atendermos
a esses fatores extrínsecos ao indivíduo, só lhe estamos garantindo o
bem-estar físico. É necessário ir além dessa instância e oferecer aos
liderados as oportunidades para que cheguem aos objetivos de satis-
fação interior, aqueles situados no mais alto nível de prioridade para
o indivíduo.
O sentido do trabalho
Sendo o desenrolar do processo motivacional uma dinâmica
de caráter eminentemente interior, o aspecto mais importante, nesse
caso, é entender o sentido que as pessoas atribuem àquilo que fa-
zem. Referencial que conecta cada indivíduo ao seu “mundo real”, o
trabalho tem, portanto, a propriedade de oferecer parâmetros para
as expectativas e os ideais de cada ser humano. Quando se tem co-
nhecimento desses parâmetros, torna-se possível entender que tipo
de impulso está em jogo e aguardar, a partir desse marco inicial, o
momento mais conveniente para oferecer os fatores que permitem
chegar à recompensadora satisfação motivacional.
Um indivíduo engajado numa atividade que faz sentido para si
mesmo espera ser recompensado quando percebe que merece o prazer
de uma reputação positiva. Isso significa reconhecimento, independên-
cia e acesso a um mundo melhor. Diretamente ligado ao potencial criati-
vo, esse tipo de necessidade possui vida própria no interior de cada um.
O desejo de trabalhar passa a representar uma necessidade de ordem
118
afetiva continuamente alimentada pelo imperativo daqueles valores re-
presentados pelo objetivo almejado. De uma perspectiva de tal profundi-
dade, podemos reconhecer o papel crucial que as necessidades interiores
desempenham no processo motivacional.
Não são os fatores existentes no meio ambiente que criam ne-
cessidades interiores, mas essas necessidades que destacam do meio
aqueles fatores que lhes são complementares. Por isso, ninguém con-
segue motivar ninguém. O administrador é tão somente capaz de sa-
tisfazer as necessidades presentes. Por outro lado, ele pode contras-
satisfazê-las quando não percebe o tipo de necessidade em jogo, ou
quando não tem recursos para atender a elas. Como ressalta Herz-
berg, “se você tiver alguém ocupando um cargo, use-o. Se não puder usá-lo,
livre-se dele, quer pela automação quer pela escolha de outra pessoa com
menor capacidade. Se você não puder usá-lo nem puder livrar-se dele, está
enfrentando um problema de motivação”. Entenda-se aqui o “usar” como
aproveitar o potencial da energia motivacional de cada um.
A administração desse potencial interior é bastante problemá-
tica, uma vez que as necessidades podem estar dormentes dentro do
indivíduo; ou seja, é possível que nem ele mesmo as conheça. Outro
aspecto relevante acerca da dificuldade desse tipo de ação é que os
administradores frequentemente projetam em seus liderados as moti-
vações que são suas. Para trabalhar a favor do potencial de motivação
que existe dentro de cada um, é necessário abordar o comportamento
humano de uma perspectiva mais profunda, baseada em pesquisas
desenvolvidas segundo parâmetros científicos.
Como decorrência lógica do fato de aceitarmos a complexida-
de do comportamento motivacional, acabamos compreendendo que
seria difícil, senão impossível, encontrar a fórmula ideal para moti-
var pessoas. Aqueles que perseguem esse tipo de resultado em curto
prazo devem ser considerados fortes candidatos ao desapontamento.
119
Como todos os outros assuntos relativos ao comportamento humano,
o da motivação guarda sutilezas e complexidades que não podem
ser menosprezadas. Esse parece constituir o principal desafio ao qual
poucos líderes têm conseguido responder adequadamente.
Cecília Whitaker Bergamini
Psicóloga pela Faculdade de Filosofia
Ciências e Letras “Sedes Sapientiae”
da Pontifícia Universitária Católi-
ca de São Paulo. Mestre, Doutora
e Livre-docente em Administração
pela Faculdade de Economia e Ad-
ministração da Universidade de São
Paulo.
122
Muitos acreditam que, por meio de recompensas e ameaças de pu-
nição, motivarão as pessoas, principalmente para o trabalho. Essa crença,
contudo, está ultrapassada. É sabido, hoje, que as pessoas, chegam ao
seu primeiro dia de trabalho motivadas. O imprescindível, portanto, é
não deixar que esses colaboradores percam a motivação inicial e mante-
nham-na constante. Mas isso não é tão simples nem tão fácil depois que
se conhecem as necessidades de cada um.
A princípio, é bom já deixar claro aquilo que, na realidade, não
tem nada a ver com motivação, isto é, o comportamento que as pessoas
exibem em resposta a estímulos que recebem do meio ambiente. Desde
as descobertas de Pavlov, prêmio Nobel de Medicina em 1904, de que é
possível condicionar animais e pessoas, sabe-se que os estímulos não são
puramente inatos, eles podem ser aprendidos também.
Pavlov condicionou a salivação e a secreção do suco gástrico dos
cães quando ouviam um determinado som. Conseguiu isso aliando o
som à apresentação da comida. Depois, não foi mais necessário mostrar
a comida; com o som apenas o animal começava a salivar. O som, portan-
to, era a condição extrínseca que trazia ao animal a lembrança da comida.
Isso é condicionamento e nada tem a ver com necessidades interiores.
No ambiente de trabalho, também é muito comum que se recorra a
estímulos externos, tais como recompensas salariais, prêmios por produ-
tividade, convênios de assistência médica, competência da chefia, e mui-
tos outros, pensando-se estar, com isso, conseguindo motivar pessoas.
- Cecília Whitaker Bergamini
123
Um dos fatores extrínsecos mais utilizado equivocamente para mo-
tivar pessoas é o salário. Como tal, o salário não motiva, condiciona. Uma
vez concedida essa premiação, só se poderá continuar a oferecê-la, e em
proporções cada vez maiores. Caso esse prêmio seja retirado, as pessoas
se sentirão punidas, e as consequências serão desastrosas. Hoje, a Psico-
logia considera que o fator salário condiciona, mas não motiva. E, nesse
sentido, um aspecto importante a ser ressaltado aqui é que – dependen-
do do cargo e exceto nas linhas de produção por peça, como aconteceu
com a descoberta de Taylor, o pai da administração científica – não se
consegue quantificar o trabalho.
Nada existe de mais imprudente ao gerir pessoas, portanto, do
que tentar motivar funcionários pela via de prêmios e punições. Em-
bora isso já se tenha provado como verdade, é fácil cair na tentação de
que uma das principais funções de supervisores seja “motivar seu pes-
soal”. Por anos a fio, os administradores tentariam alcançar sucesso nes-
se tipo de empreitada, não chegando ao resultado almejado. Mesmo
que nada tenham conseguido, os conselhos brotam de todos os lados.
Surgem, então, as mais variadas receitas para que se obtenha aquilo
que grande número de sérias publicações em Psicologia considera um
verdadeiro milagre!
Konrad Lorenz, etologista, prêmio Nobel de Medicina em 1978, faz
descobertas de grande importância tentando entender o comportamento
dos seres vivos quando nada fora deles os leva a uma determinada ati-
tude. Preocupado em descobrir condutas tidas como instintivas, Lorenz
acha aquilo que chamou de “ato instintivo”. Ao colocar um tipo especial
de periquito na porta de uma gaiola, vê o animal, por iniciativa própria,
ir até a fêmea para protagonizar a conduta do cio. O ato instintivo se dá,
portanto, no momento em que uma necessidade interior (cio) se encontra
com o fator de satisfação (fêmea).
124
Isso explica por que, depois de ter comido uma boa quantidade de
carne, um animal bravio não ataca alguém que chega bem perto dele. Ele
atendeu a sua necessidade de fome, que desaparece, e, então, procura um
lugar seguro, tal como a sombra de uma árvore, para digerir sua comi-
da. Assim, o desaparecimento de uma necessidade satisfeita (fome), pelo
próprio fato de já não existir mais, faz surgir uma outra (sono).
Motivação para o trabalho
O conceito de emprego mudou. Com isso, o mundo empresarial
vive o desafio de conseguir administrar uma novidade a uma velocidade
a que não estava acostumado. Pensava-se, até então, que as descober-
tas tecnológicas possibilitariam ao homem maior disponibilidade para
viver sua própria vida, sendo ele mesmo e tirando maior partido dos
seus pontos fortes, pouco se importando com dificuldades que, por ven-
tura, pudesse ter. Passados os primeiros episódios dessa expectativa, o
que ficou claro foi o contrário. Os executivos administradores de grandes
ou pequenas empresas se viram a reboque desses eventos. Em meio à
mudança, administradores submetidos a extrema pressão procuravam
estratégias que levariam as pessoas a produzir sob condições em que,
normalmente, não estariam motivadas.
Desse modo, no mundo organizacional, o conceito clássico de
emprego desaparece, e as pessoas parecem não ter mais uma maneira
organizada de encarar o trabalho. Isso torna o controle mais difícil.
Em tais circunstâncias, tornou-se necessário reformular diretrizes ad-
ministrativas com vistas a chegar mais perto das reais necessidades
das pessoas envolvidas nesse processo. Os administradores perce-
bem que é preciso pesquisar mais de perto como as pessoas se com-
portam e como atendem a suas necessidades motivacionais, uma vez
que, por predisposição própria, reagem negativamente a qualquer
tipo de controle.
125
Muitas pesquisas foram elaboradas no intuito de saber o que faz
com que as pessoas se sintam engajadas e realmente envolvidas em suas
atividades dentro das organizações. Para tanto, o primeiro e mais impor-
tante passo foi considerar o processo motivacional como uma dinâmica
de caráter eminentemente intrínseco. E, nesse sentido, aplica-se com mui-
ta propriedade o que Lorenz chamou de atos instintivos, uma vez que
os seres vivos permanecem em constante estado de carência. Quando o
estado de carência é muito forte, tornando-se difícil de suportar, os seres
vivos sentem-se ameaçados por ele, disparando um comportamento de
busca dos fatores de satisfação capazes de saciar a necessidade que se
tornou insuportável.
Cabe aqui reiterar que, para Lorenz, não faz sentido falar de ins-
tinto de forma inespecífica, mas sim de atos instintivos, quando a neces-
sidade encontra o fator de satisfação que lhe é complementar, saciando,
assim, o estado incômodo de forte privação. Essa dinâmica comporta-
mental, por sua vez, explica aquilo que se entende por dinâmica motiva-
cional. Não se pode falar de motivação de maneira inespecífica; fala-se de
atos motivacionais.
Quando se observam os indivíduos, percebe-se que, normalmen-
te, estão sempre se propondo a determinados objetivos; cada um tem
seus próprios objetivos, diferentes dos demais. Essa constatação infere
que nem todos fazem as mesmas coisas pelo mesmo sentido. Cada um
tem momentos particulares em suas vidas e veem sentidos diferentes nos
trabalhos que executam. Para motivarem-se, mobilizam, dentro de si, os
redutos das forças de impulsão que os farão chegar a objetivos preten-
didos. Essas forças vão vencendo etapas e obstáculos que dificultam a
chegada aos fatores de satisfação. A motivação, portanto, é de dentro
para fora. Ninguém tem a capacidade de motivar quem quer que seja.
Não se pode colocar no íntimo de alguém qualquer tipo de necessidade.
A própria pessoa em si não consegue controlar o ter fome, ter sede, ter
sono num determinado momento e assim por diante.
126
O indivíduo se motiva por algo, quando sente desejo ou carência,
anseio ou privação. O ato motivacional só ocorre se houver a necessidade
e a possibilidade de oferecer um fator de satisfação complementar – fal-
tando um desses fatores, não ocorrerá o ato motivacional. A motivação
nasce das necessidades. Não é o fator de satisfação que motiva – não é
a água que desperta a sede; são as necessidades que têm lugar no cerne
de cada um.
A teoria da cenoura na ponta da vara não explica o ato motivacio-
nal, assim como não é a administração que será capaz de proporcionar
fatores intrínsecos no sentido de motivar quem quer que seja. A seleção
de pessoal deverá adotar procedimentos que assegurem que os aprova-
dos para admissão possam encontrar fatores de satisfação na empresa.
Caso contrário, acaba-se admitindo alguém já desmotivado antes mesmo
do primeiro dia de trabalho.
As janelas da motivação
A predisposição motivacional caracteriza-se como uma contingên-
cia, na qual cada um procura fatores de satisfação que sejam complemen-
tares às próprias necessidades. Nesse sentido, são quatro as principais
orientações:
1ª. Participação (pessoas motivadas porque querem contribuir
para o desenvolvimento delas e da organização):
Situações que causam satisfação Situações que causam insatisfação
• Orientação grupal. Tratamento impessoal.
• Consultar e ser consultado. Atividades sem significado.
• Desenvolvimento das pessoas. Clima de falsidade.
127
2ª. Ação (pessoas motivadas porque podem comprovar sua com-
petência pessoal):
• Desafio de comprovar a própria eficiência. Ação cerceada, rotinas repetitivas.
• Autonomia. Objetivos não fixados.
• Atividades variadas. Falta de responsabilidade.
3ª. Manutenção (pessoas motivadas porque desenvolvem ativida-
des da melhor qualidade):
• Oportunidade de usar lógica. Informações confusas.
• Tempo para garantir a qualidade. Clima de constantes mudanças.
• Informações confiáveis. Superficialidade.
4ª. Conciliação (pessoas motivadas porque convivem harmonica-
mente com os demais):
• Harmonia. Socialmente ridículo.
• Ambiente flexível. Socialmente esquecido.
• Repercussão social positiva. Ambiente sério demais.
Pode-se recorrer a essas orientações de forma produtiva ou exces-
siva, disfuncional ou negativa. O uso excessivo de um ponto forte pode
se transformar em fraquezas ou pontos fracos e certamente transforma-se
em patologia comportamental, quando se perde o controle da situação.
Liderança e motivação
Esses dois termos estão necessariamente ligados e, se separados,
perdem seu verdadeiro sentido. O superior não motiva seus funcionários
que já entraram motivados no seu primeiro dia de trabalho. No entanto,
ele tem um poder excepcional de desmotivar seus seguidores.
É bem por isso que, na atualidade, o treinamento dos executivos
que têm a missão de liderar se concentra em torno dos tópicos que dizem
128
respeito ao comportamento humano no trabalho. O líder eficaz conhece
a si mesmo em profundidade e consegue diagnosticar e aproveitar seus
pontos fortes, sabendo que tais recursos são próprios da sua diferença
individual. Ele não vai pensar que seu pessoal é igual a ele, não mistu-
ra as características comportamentais dos diferentes seres humanos com
quem lida no trabalho.
Ademais, é necessário reconhecer os pontos fracos dos seus segui-
dores e não perder tempo querendo resolvê-los; isso não é possível, uma
vez que as pessoas não mudam o perfil da sua personalidade que foi
sendo desenhado ao longo de toda uma vida de experiências pessoais.
De posse do conhecimento do reduto de forças com o qual pode contar,
será necessário redesenhar as atividades de trabalho nas quais seja pos-
sível colocar em ação esses pontos, administrando apenas as forças mal
desenvolvidas. O redesenho das tarefas deverá ter como principal objeti-
vo evitar atividades que solicitem o uso dos pontos fortes que as pessoas
não possuem.
No passado, os setores de treinamento tinham a missão de convo-
car as pessoas para programas de formação, em que elas deveriam corri-
gir suas deficiências. Como isso, invadiam a individualidade de cada um
e despertavam um quadro de reação fulminante a esse tipo de programa.
Hoje, esse cenário inverteu-se totalmente. Os executivos que orientam as
pessoas para que façam aquilo que deve ser feito têm sido preparados
de modo que reconheçam os recursos dessas pessoas em situação de
trabalho e, então, redesenhem as atividades individuais, grupais e orga-
nizacionais, tirando o maior proveito possível delas.
Essa filosofia parte de um pressuposto básico: seja aquilo que você
é e não se lamente por aquilo que não é. Basta pensar na felicidade da-
queles que sentem que passam a maior parte das horas de trabalho utili-
zando seus pontos fortes. Isso favorece o autoconhecimento e sua autoa-
ceitação e, por conseguinte, o autogerenciamento de seus pontos fortes.
E o resultado final é....a própria felicidade!
129
Só a própria pessoa pode tirar partido dos recursos dos seus
pontos fortes, ninguém o fará por ela. É necessário conhecer-se em
profundidade, mergulhando fundo naquilo que existe dentro de
cada um para fazer com que essas forças trabalhem a favor da pró-
pria autorrealização.
Cada um precisa sentir-se responsável pelos recursos pessoais que
possui, considerando que escondê-los não significa humildade louvável,
mas sim uma irresponsabilidade perante as solicitações de suas ativida-
des de vida pessoal e também no trabalho. Estar motivado pode parecer
difícil, mas nunca impossível. Por isso: seja quem você é e não perca
tempo querendo melhorar aquilo que não é!
Graduada em Psicologia pela
Universidade Federal de Uberlandia
(1987) e mestre pela Faculdade
de Medicina da USP (2009).
Atualmente é psicóloga do trabalho
do Sesmt do Hospital das Clínicas
da Fmusp.
Miryam Cristina Mazieiro Vergueiro da Silva
132
Nos dias atuais, o trabalho aparece como fator central na vida do
indivíduo, sendo reconhecido como potencial gerador de estresse – de-
nominação que o trabalhador utiliza para designar a sensação de descon-
forto ou de sofrimento psíquico, por conta de uma situação desgastante,
contra a qual ele não possui recursos suficientes (PRETO et al., 2010).
Mas o trabalho também é importante fonte de satisfação e realização
pessoal, uma vez que trabalhar compreende pensar, conviver, desenvolver
capacidades e habilidades, construir a identidade e obter reconhecimento.
O trabalho, assim, pode configurar-se como fonte tanto de saúde
como de sofrimento mental e potencial adoecimento. Mas, em que cir-
cunstâncias o trabalho se torna potencialmente adoecedor? Quais seriam
as possíveis causas dos adoecimentos por transtornos mentais relaciona-
dos ao trabalho? É possível ter saúde mental no trabalho?
O crescimento dos transtornos mentais relacionados ao trabalho
tornou-se a terceira causa de concessão de benefício previdenciário em
2011, seja na forma de auxílio-doença, afastamento do trabalho por mais
de 15 dias ou aposentadorias por invalidez, segundo dados do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS)1.
Se compararmos o número de dias de trabalho perdidos por conta
1 Auxílio-doença é o benefício temporário concedido ao segurado do INSS que comprove
o efetivo comprometimento de sua capacidade laborativa, decorrente de algum agravo
à saúde.
- Miryam Cristina Mazieiro Vergueiro da Silva
133
de afastamentos por transtornos mentais, em relação aos afastamentos
motivados por outras doenças, os transtornos mentais se destacam pelo
fato de a recuperação ser mais lenta e demorada. Segundo estudiosos da
área, as depressões são as principais causas de incapacitação para o tra-
balho nos países desenvolvidos (LAM; MOK, 2008 apud HIRATA, 2014);
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão será, em
2030, a segunda causa de incapacitação para o trabalho no mundo (HI-
RATA, 2014).
Esses dados apontam para a relevância do tema e para a necessida-
de de melhor entendê-lo, a fim de que ações sejam realizadas no sentido
de diminuir e controlar os fatores que influenciam negativamente a saú-
de do trabalhador.
É fato que o trabalho vem sofrendo profundas modificações no sé-
culo 21, com a introdução de novas tecnologias de produção e de gestão,
o desenvolvimento cada vez mais intenso da informática e, com isso,
uma maior pressão sobre o trabalhador. A necessidade de tomar deci-
sões rápidas, a falta de controle sobre o próprio tempo e sobre o ritmo
de trabalho, as jornadas prolongadas ou que invadem a vida privada,
a distância entre o planejamento e a execução, o acúmulo de tarefas, a
fragmentação do trabalho, etc. levam o indivíduo a sentir-se pressiona-
do, sem que encontre, em seu repertório de respostas, o comportamento
adequado para lidar com todas essas demandas (SCHMIDT, 2010). A
enfermidade surge quando, ao tentar utilizar suas possibilidades inte-
lectuais e psicoafetivas para lidar com as imposições da organização,
os trabalhadores percebem que nada podem fazer para se adaptar ou
transformar o trabalho.
As mudanças organizacionais têm alterado a natureza do traba-
lho humano e o perfil esperado do trabalhador. O desenvolvimento de
uma tensão crescente e permanente é fruto da exigência de garantir um
padrão de excelência na geração de produtos e serviços, o que requer
trabalhadores motivados e extremamente comprometidos. Dado que
134
essa tensão pode ser excessiva ao psiquismo e gerar estresse, ansiedade,
depressão, torna-se o componente central dos transtornos mentais e com-
portamentais relacionados ao trabalho.
Dejours (2003) localiza a etiologia do sofrimento psíquico relacio-
nado ao trabalho nas relações entre a subjetividade do trabalhador e a
organização do trabalho. Por organização do trabalho, entendam-se: (i)
a forma como as tarefas são divididas e distribuídas entre os trabalha-
dores; (ii) a forma como as tarefas são prescritas; e (iii) a forma como se
operam a fiscalização, o controle, a ordem, a direção e a hierarquia.
Para o referido autor, o trabalho não é neutro, mas fonte de adoe-
cimento ou de saúde mental. Heloani e Capitão (2003), citando Dejours,
destacam dois tipos de sofrimento: o criador e o patogênico. O sofrimen-
to patogênico sobrevém quando “todas as possibilidades de transforma-
ção, aperfeiçoamento e gestão da forma de organizar o trabalho já foram
tentadas, ou melhor, quando somente pressões fixas, rígidas, repetitivas
e frustrantes configuram uma sensação generalizada de incapacidade”
(HELOANI; CAPITÃO, 2003).
Compreender a importância do trabalho e seus efeitos sobre a psi-
que significa dar visibilidade aos aspectos subjetivos, mobilizados no ato
de trabalhar.
O trabalho é elemento central na constituição da saúde e da identi-
dade, assim como o principal elo entre os indivíduos e a sociedade. Mui-
tos trabalhadores, à medida que são reconhecidos pela importância de
seu trabalho para a sociedade, passam a se ver como profissionais, num
processo em que a atividade adquire significação e sentido, conferindo-
lhe status e valorização (UCHIDA et al., 2010).
Nesse sentido, o desemprego traz para as pessoas uma realidade
geralmente marcada pela humilhação e a dessocialização progressiva,
com reflexos diretos na identidade. A privação do trabalho é associada à
desvalorização social do indivíduo. Daí que ter um trabalho pode signi-
ficar ter saúde mental.
135
Mas, então, quando é que o trabalho é fonte de prazer?
(i) Quando o indivíduo se sente útil, pertencente ao grupo e à or-
ganização do trabalho, e é reconhecido por essa utilidade (jul-
gamento da utilidade). Esse reconhecimento é dado principal-
mente pelos superiores hierárquicos e pelos clientes.
(ii) Quando o trabalho executado é reconhecido pela beleza e ori-
ginalidade das soluções dadas aos entraves do dia a dia, isto é,
quando as soluções que cria são únicas, singulares, originais.
Esse reconhecimento é formulado pelos pares, que identificam
no sujeito o “saber-fazer” e a contribuição para o coletivo (jul-
gamento estético).
O reconhecimento pelos pares, segundo Dejours, é especialmen-
te importante, uma vez que tais pessoas estão diretamente envolvidas
e conhecem a fundo o trabalho, podendo, assim, avaliar seu mérito com
mais propriedade. Ao passar pelo crivo dos pares e receber a aprovação
deles, o trabalhador sai fortalecido e sente-se valorizado (LANCMAN;
UCHIDA, 2003).
Esses dois mecanismos são importantes, uma vez que remetem à
formação da identidade individual, construída com base no reconhe-
cimento social. O trabalho, nesse sentido, é um campo privilegiado na
conquista da identidade, determinante na construção de como a pessoa
se vê, podendo ser o mediador entre a saúde e a doença, podendo ser
fecundo ou patogênico (HELOANI; CAPITÃO, 2003).
Quando não pode contribuir com sua experiência, seu saber, sua
marca, quando não consegue cumprir suas tarefas de acordo com seus
princípios e crenças, o trabalhador vê-se impedido de transformar o so-
frimento em ações efetivas que levem ao prazer. Ao contribuir com seu
conhecimento e com sua inteligência para o aprimoramento dos proces-
sos de trabalho, o indivíduo cria a possibilidade de transformar em pra-
zeroso e realizador aquilo que poderia ser penoso.
136
Nesse sentido, os gestores podem desempenhar papel fundamental
no estabelecimento de um ambiente mais saudável, que dê margem de
liberdade para o trabalhador ajustar a realidade do trabalho aos seus de-
sejos e necessidades, o que torna possível a transformação do sofrimento,
do reconhecimento e do prazer. Quando a impossibilidade de negociar
impera no ambiente de trabalho, tornam-se mais problemáticas a supera-
ção do sofrimento e a resistência dos trabalhadores.
O gestor deve também reconhecer o esforço do trabalhador e elo-
giar seu desempenho, a fim de eliminar o mal-estar no trabalho. Atitudes
que favoreçam a apropriação do processo produtivo pelos trabalhado-
res, tornando-os protagonistas de mudanças, favorecendo o diálogo, a
cooperação e a solidariedade, também são importantes aspectos para o
estabelecimento de boas relações no trabalho entre os pares e entre traba-
lhadores e chefias (UCHIDA et al., 2010).
Até agora, a questão do adoecimento mental relacionado ao traba-
lho foi abordada como fruto das mudanças ocorridas na sociedade e na
organização do trabalho –, cuja dinâmica interna gera prazer ou sofri-
mento, saúde ou adoecimento mental. Mas fatores individuais também
podem predispor ao adoecimento. Indivíduos psiquicamente mais frá-
geis, ou cujos recursos disponíveis na dinâmica psíquica se esgotaram
para dar conta de determinada situação de trabalho, podem vir a de-
senvolver algum transtorno mental. Determinadas situações, nas quais
grandes exigências no trabalho combinam-se com recursos insuficientes
para enfrentá-las, acabam resultando em forte estresse.
Abordar a questão apenas como dificuldade pessoal resulta na
responsabilização do trabalhador pelo adoecimento, com o que se deixa
de lado um aspecto muito importante da atualidade, que é a organi-
zação do trabalho como fonte de adoecimento. Os indivíduos, mesmo
apresentando alguma fragilidade, podem trabalhar sem nunca desen-
volver um transtorno mental, se o trabalho for gerador de saúde e não
de doença. Ao considerar que o adoecimento pode advir das condições
137
em que o trabalho é executado, diminui-se a tendência a culpabilizar o
indivíduo pelo desenvolvimento de transtornos mentais, seja por fragi-
lidade pessoal, predisposição genética ou problemas externos ao am-
biente de trabalho.
Há estressores no trabalho que geram doenças mentais. Escalas es-
pecíficas medem o estresse individual ligado exclusivamente a situações
do trabalho, como a Escala de Estresse no Trabalho (EET), estudada no
Brasil por Paschoal e Tamayo (2004). A EET tem contribuído tanto para
pesquisas sobre o tema quanto para o diagnóstico do ambiente organiza-
cional, podendo orientar medidas que visem à melhoria da qualidade de
vida do trabalhador. Os sintomas usualmente investigados por meio de
questionários e escalas mostram a presença de: ansiedade, irritabilidade,
frustração, preocupação, depressão, distração, inabilidade para concen-
trar-se, dificuldade de controlar a agressividade, dentre outras emoções.
O estresse apresenta um efeito somatório que torna a pessoa cada
vez mais vulnerável; o estressor em uma esfera da vida do sujeito pode
“contaminar” as demais esferas, assim como o sujeito submetido a gran-
des estressores pode “contaminar” o ambiente social e profissional.
As teorias que abordam o estresse consideram duas vertentes: os
efeitos sociais ambientais (eventos de vida) e a resistência e a vulnera-
bilidade do indivíduo exposto (GLINA, 2010). As teorias do estresse
mostram-nos como os indivíduos reagem às forças externas que incidem
sobre o organismo e produzem uma resposta específica, resultado da in-
teração do indivíduo com o ambiente. O estresse ocorreria por conta do
desequilíbrio entre essas duas forças, quando o indivíduo percebe que
não possui recursos internos suficientes para enfrentar determinada si-
tuação. Portanto, baseia-se na percepção individual sobre o estressor e
nos recursos do organismo para enfrentar esses eventos, assim como na
consequência disso para a sua saúde.
O enfrentamento (coping) dos eventos estressores (LAZARUS; FOLK-
MAN, 1984) leva a respostas cognitivas e comportamentais utilizadas pelos
138
indivíduos para lidar com demandas internas ou externas, em que o estí-
mulo é interpretado com base em suas próprias características e nas carac-
terísticas de personalidade do sujeito. Portanto, há diferenças inter e intra-
pessoais na percepção da situação estressora (NODARI et al., 2014).
Quanto aos estressores no trabalho, podemos pensá-lo através das
condições de trabalho e dos fatores psicossociais. As condições de tra-
balho dizem respeito ao ambiente físico – que são as características pe-
culiares de cada instituição, como a cultura organizacional e as políticas
da empresa, além de incluir a legislação trabalhista e ambiental vigente
no país e o momento histórico. Os fatores psicossociais dizem respeito a
como o trabalho é desenhado, ao gerenciamento do trabalho por super-
visores e gestores e pelo próprio trabalhador, ao clima ou cultura orga-
nizacional, aos relacionamentos interpessoais, e ao conteúdo da tarefa
(variedade, significado, escopo, repetitividade). Também englobam o
ambiente extraorganizacional, como as demandas domésticas, e aspectos
do próprio indivíduo (personalidade e atitudes) que podem influenciar o
desenvolvimento de estresse no trabalho.
Assim, a exposição a riscos físicos e psicossociais pode afetar a saú-
de física e a saúde psicológica dos trabalhadores. Mas como o indivíduo
pode enfrentar o estresse?
No enfrentamento do estresse relacionado ao trabalho, há fatores
moderadores que vão minimizar o potencial adoecimento, quais sejam:
os aspectos relacionados à personalidade, o apoio social, e a percepção
da existência de controle por parte do trabalhador.
Nos aspectos relativos à personalidade, quanto mais resistente se
apresenta um indivíduo, mais ele tenderá a se manter saudável. Kobasa
(1979) definiu um constructo relativo à personalidade – o hardiness –
que pode ser entendido como um recurso de resistência e proteção da
saúde física e mental, dado seu efeito amortizador, moderador ou anula-
dor das consequências nocivas do estresse no indivíduo.
139
Guimarães et al. (2008) pontuam que “o hardiness representa a ca-
pacidade de um ser humano de sobreviver a um trauma, a resistência
do indivíduo face às adversidades, não somente guiada pela resistência
física, mas pela visão positiva de reconstruir sua vida”.
O desenvolvimento de hardiness em trabalhadores é desejável, uma
vez que se trata de uma característica de personalidade que é moderado-
ra do estresse e que auxilia na busca de suporte social, além de melhorar
o desempenho. Os indivíduos com personalidade resistente: (i) tendem
a se envolver em atividades e eventos dos quais participam os colegas
de trabalho (o que favorece a ocorrência de eventos estressantes); (ii) têm
a impressão de que estão no controle dos eventos, agindo diretamente
nos fatores de estresse; e (iii) tendem a interpretar as mudanças como
oportunidade para o desenvolvimento (ou desafio) pessoal, mais do que
como uma ameaça.
As pessoas podem melhorar seu hardiness através da mudança da
percepção sobre como as coisas acontecem. Um dos fatores que contri-
buem para o aparecimento do hardiness é o apoio e o acolhimento recebi-
dos. A habilidade de resistir e contornar crises também é algo que pode
ser treinada e estimulada.
Quanto ao apoio social, pode-se dizer que quanto melhor for o
nível de interação do trabalhador com colegas e supervisores, quanto
maior for a percepção de estar sendo cuidado e assistido por outras pes-
soas (familiares e outros), e ver-se como participante de uma rede social,
mais esse apoio intervém entre o estressor e a resposta de estresse para
reduzir os efeitos deletérios.
Aos gestores, cabe adotar uma postura de escuta atenta que permita
a manifestação dos sofrimentos, das angústias, dos receios, dos medos,
dos desafios, das engenhosidades diante das dificuldades e imprevistos,
até a superação e resolução de problemas aparentemente insolúveis. Para
isso, podem ser criados “espaços de escuta” e “espaços públicos de circula-
140
ção da palavra” (DEJOURS, 2004) que favoreçam a apropriação pelos tra-
balhadores do seu próprio processo produtivo, tornando-os protagonistas
de mudanças, facilitando o diálogo e a expressão de cooperação e solida-
riedade. A cooperação e o reconhecimento de eixos para o estabelecimen-
to de boas relações no trabalho – entre os pares e entre trabalhadores e
chefias – são a chave para um clima organizacional saudável.
Do ponto de vista do trabalhador, é necessário investir em treina-
mento e desenvolvimento, uma vez que a habilidade para resistir e con-
tornar crises pode ser treinada e estimulada. Cuidar para que se estabele-
ça no trabalhador um sentimento de pertencimento ao grupo, bem como
estimular a crença em sua competência, é enfatizar os fatores protetores
e preventivos do adoecimento e do sofrimento relacionados ao trabalho.
141
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Mirian Matsura Shirassu
Médica Sanitarista, com especiali-
zação em Administração em Saúde
Pública – USP, mestrado em Epi-
demiologia – Unifesp, extensão em
Promoção da Saúde – UnBe. Dire-
tora do Centro de Promoção e Pro-
teção à Saúde do Servidor – Preve-
nir, Iamspe.
Milton Morales Filho
Médico formado pela Unesp – Fa-
culdade de Medicina de Botucatu,
com residência em Medicina Pre-
ventiva no Iamspe, mestrando em
área da saúde no Iamspe. Pós-gra-
duação em acupuntura pela Amba.
Trabalha com promoção da saúde
no Iamspe, no Programa Prevenir.
146
Introdução
No decorrer do século 20, o aumento da prevalência das doenças
crônicas não transmissíveis mudou o perfil epidemiológico da popula-
ção. Essa tendência mundial, resultante de avanços tecnológicos e de
novos tratamentos disponíveis, possibilitou o controle de enfermidades
e o aumento da expectativa de vida. Um dos principais desafios para o
século 21 é desenvolver estratégias para que a população, além de viver
mais, tenha também saúde e qualidade de vida.
Este capítulo apresenta algumas considerações históricas a respeito
de Promoção da Saúde e as ações do Programa Prevenir – Iamspe, vol-
tadas para servidores públicos do Estado de São Paulo.
Programa Prevenir
O Programa Prevenir é uma iniciativa do Instituto de Assistência
Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe), que presta assistência
médica a uma população fechada, de servidores, seus dependentes e
agregados, do Estado de São Paulo. O Programa, implantado em 1998
com vistas a contribuir para a qualidade de vida dos servidores públicos
estaduais, introduziu um conjunto de atividades voltadas à melhoria do
estado de saúde desse público.
- Mirian Matsura Shirassu, Milton Morales Filho
147
O Programa tem como objetivos:
• conhecer o perfil da saúde dos servidores para que se possa atuar so-
bre as principais causas de morbidade e afastamentos entre os servi-
dores do Estado;
• definir ações de monitoramento de doenças crônicas não transmissí-
veis entre os servidores públicos estaduais do Estado de São Paulo; e
• pactuar ações de promoção da saúde com as secretarias de Estado.
Qualidade de Vida e Promoção da Saúde
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define Qualidade de
Vida (QV) como a percepção do indivíduo sobre sua posição na vida,
no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em
relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. O uso do
termo Qualidade de Vida em saúde é recente e decorre do surgimento de
novos paradigmas, principalmente da ampliação do conceito de saúde,
no qual aspectos econômicos, socioculturais, experiência pessoal e estilo
de vida foram incorporados à definição de saúde no século 20.
Diante desse quadro, a promoção da saúde se desenvolveu e pas-
sou a intervir também no ambiente físico e estilo de vida, ultrapassando
os limites do consultório, cujo modelo era centrado no indivíduo.
A Promoção da Saúde pode ser reunida em dois grandes grupos
(SUTHERLAND; FULTON, 1992 apud BUSS, 2004). No primeiro deles,
ela atua na transformação dos comportamentos dos indivíduos, incen-
tivando a mudança do estilo de vida individual, familiar e comunitá-
rio com programas ou atividades concentrados na educação focada em
riscos comportamentais passíveis de mudanças, como, por exemplo, o
hábito de fumar, a dieta e a atividade física.
Já no segundo grupo, há um entendimento ampliado; a saúde com-
põe um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida,
que inclui alimentação, habitação, saneamento, condições de trabalho, edu-
148
cação, ambiente físico limpo, apoio social, estilo de vida responsável e cui-
dados à saúde. Esses fatores estão intimamente ligados às políticas públicas
que podem tornar o ambiente favorável para a promoção da saúde, além
de reforçar a capacidade dos indivíduos e das comunidades (empowerment).
Essa visão ampliada de promoção da saúde teve como marco a
publicação da Carta de Otawa, apresentada em 1986, na Primeira Con-
ferência Internacional sobre Promoção da Saúde, quando esse tema pas-
sou a ser visto não só como responsabilidade exclusiva do setor saúde,
mas também como busca de um bem-estar global. A Carta de Otawa
resultou de um processo de mudança de paradigmas na saúde no sé-
culo 20, cujo debate começou a ser estendido a partir da década de 60,
época em que se ampliou a visão de saúde além da orientação centrada
na enfermidade, realçando os aspectos econômicos e sociais. O Relatório
Lalonde – The new perspective for the Health of Canadians (1974) e o relato
das missões enviadas à China entre 1973-1974, referindo-se às atividades
para a melhoria de saúde desde 1965, foram duas bases importantes para
conformar um novo paradigma formalizado na conferência de Alma-Ata
(1978), com a proposta de saúde para todos no ano 2000, e a Primeira
Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (1986), promulgada
na Carta de Otawa.
A Carta coloca como condições e recursos fundamentais para a
saúde: paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema está-
vel, recursos sustentáveis, justiça social e equidade. Para que essas con-
dições e recursos sejam viáveis, muitas esferas da sociedade devem estar
envolvidas na Política de Promoção da Saúde. A partir daí, a definição
de saúde foi definitivamente ampliada, sendo um marco na Promoção
da Saúde, e seu apontamento para o ano 2000 ainda se faz presente como
desafio para nossa sociedade, em direção a um bem-estar global.
149
Reflexão histórica
Se voltarmos nosso olhar para a medicina grega nos séculos 5-4
a.C., veremos que, apesar de não haver uma evolução histórica direta,
existem certas permanências históricas, isto é, questões levantadas há
2.500 anos e que podem fazer sentido para a compreensão do que é saú-
de hoje. A ideia de um equilíbrio dinâmico entre saúde e doença tem
um início histórico no Ocidente, quando a filosofia da natureza, presente
nas doutrinas dos filósofos pré-socráticos, e a medicina começaram a se
integrar, em torno do século 5 a.C. A saúde era compreendida como um
equilíbrio das propriedades do corpo, enquanto a doença se configurava
como um desequilíbrio pelo predomínio de uma dessas propriedades.
Baseado no conhecimento das relações de um organismo perante os efei-
tos das forças do processo da natureza, a existência física do homem,
tanto no estado normal como na doença, só era compreendida dentro
desse todo.
A partir de Hipócrates, com base no conhecimento empírico desen-
volvido pelos filósofos naturalistas, um “método” de busca de conheci-
mento foi racionalizado. Esse método é considerado o início da perspec-
tiva científica no Ocidente. Uma importante contribuição foi em relação
à dieta, que pode ser entendida não como regime alimentar, mas como
“modo de vida”. A alimentação, os exercícios, a atividade profissional, o
grupo social, o entorno geográfico e climático, as atividades políticas e
sociais da cidade em que o indivíduo vivia, a idade e o sexo, todos eram
fatores que influenciavam a saúde. A dieta deveria restaurar a saúde nos
doentes ou mantê-la nos indivíduos sãos, dentro da perspectiva de um
equilíbrio. Nos tratados hipocráticos, foram correlacionados pela primei-
ra vez na história do Ocidente os hábitos, a cultura e o meio ambiente
com a saúde da população.
É curioso que, após séculos de história, os movimentos científicos dos
séculos 20 e 21 culminaram com uma Carta, cujo conteúdo sobre saúde e
150
doença vai além da materialidade do corpo humano. A Carta de Otawa, ao
colocar como condições e recursos fundamentais para a saúde paz, habi-
tação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos susten-
táveis, justiça social e equidade, devolveu à saúde a visão do todo. Assim
como os primeiros filósofos, temos o desafio, segundo um novo grau de
consciência, de compreender esse novo paradigma de saúde, em que con-
ceitos tão antigos como os apresentados não parecem tão distantes e ainda
fazem sentido na maneira como formulamos questões contemporâneas.
Determinantes Sociais da Saúde
Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) podem ser definidos como
os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e
comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e
seus fatores de risco na população, conforme define a Comissão Nacional
sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), criada em 2006.
Um dos modelos que tentam explicar a dinâmica complexa dos
DSS é o de Dahlgren e Whitehead, que dispõe os DSS em diferentes ca-
madas, desde os determinantes individuais até os macrodeterminantes,
como se pode ver na Figura 1.
As características individuais de idade, sexo e fatores genéticos es-
tão na base do modelo, pois, evidentemente, influenciam as condições de
saúde. O estilo de vida, apesar de parecer uma escolha individual, tam-
bém pode ser condicionado pelos determinantes sociais, como informa-
ção, acesso, propaganda, dentre outros. As redes sociais e comunitárias
estão na próxima camada do modelo. Essas relações de solidariedade
e confiança entre pessoas e grupos demonstram que não são as socie-
dades mais ricas as que possuem melhores níveis de saúde, mas as que
são mais igualitárias e com alta coesão social. No próximo nível, estão
151
representados os fatores relacionados às condições de vida e de trabalho.
Populações em desvantagem social estão expostas a piores condições de
acesso a alimentação, saúde, educação e moradia. Os macrodeterminan-
tes, no último nível, possuem grande influência sobre as demais camadas
e estão relacionados às condições econômicas, culturais e ambientais da
sociedade, com a crescente influência da globalização.
Promoção da saúde na população de servidores estaduais
Com base nesses conceitos, não há como planejar promoção da
saúde sem envolver várias esferas do Poder Público. O Programa Pre-
venir, em consonância com a Política Nacional de Promoção da Saúde,
de acordo com o conceito ampliado de promoção da saúde, desenvolve
estratégias para os servidores públicos estaduais, as quais contemplam
diferentes níveis de atuação.
COND
IÇÕ
ES SOCIOECONÔMICAS, CULTURAIS E AMBIENTAIS GERAIS
REDES SOCIAIS E COMUNITÁRIAS
ESTIL
O DE VIDA DOS INDIVÍDUOS
PRODUÇÃOAGRÍCOLA E DE
ALIMENTOS
AMBIENTE DE
TRABALHO DESEM
PREG
O
ÁGUA E
ESGOTOEDUCAÇÃO
SERVIÇOS
SOCIAIS DE
SAÚDE
HABITAÇÃO
CONDIÇÕES DE VIDAE DE TRABALHO
IDADE, SEXO E FATORES
HEREDITÁRIOS
Figura 1: Modelo de Dahlgren e Whitehead (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007)
152
Estimular as ações intersetoriais é uma das estratégias do Progra-
ma, que busca parcerias com as secretarias de Estado para desenvolver
ações de promoção da saúde, estimulando a participação social com o
empoderamento individual e comunitário.
Uma das bases do Programa Prevenir é sua rede de interlocutores
espalhados por todo o Estado. Um interlocutor é um servidor da secreta-
ria, órgão ou instituição, que foi capacitado pela equipe do Prevenir para
ser um disseminador da cultura de promoção da saúde e prevenção de
doenças dentro de seu ambiente de trabalho.
Uma rede de interlocutores, coordenada pela Comissão Intersecre-
tarial do Programa Prevenir, foi a forma encontrada para descentralizar o
trabalho de prevenção e atender um número cada vez maior de servidores
públicos estaduais. Assim, o contato da equipe Prevenir não se restringe
aos servidores lotados nas sedes das secretarias na Capital, mas, também, a
todo o interior paulista. A rede trabalha com as seguintes diretrizes:
• identificar necessidades de promoção da saúde, conforme dados so-
ciodemográficos e de levantamento das condições de saúde dos ser-
vidores de cada local de trabalho, além da informação produzida no
contato com a população local de servidores (necessidades de promo-
ção da saúde percebidas pela população como prioritárias para sua
qualidade de vida e do ambiente profissional);
• avaliar a capacidade instalada no local de trabalho: serviços e profis-
sionais que estarão diretamente envolvidos nas ações e aqueles que
servirão de referência, caso necessário;
• priorizar iniciativas que, no seu planejamento e gestão, incluam os ei-
xos estabelecidos pela Comissão Intersecretarias do Programa Preve-
nir – Iamspe: valorização do servidor, atenção à saúde do servidor,
educação em saúde, ações socioculturais e de meio ambiente;
• integrar-se com os instrumentos de gestão das secretarias, para inserir
ações de promoção da saúde em seu planejamento; e
153
• priorizar o envolvimento dos conselhos ligados às secretarias na elabora-
ção, execução, no acompanhamento e na avaliação da proposta de ação.
Eixos temáticos
A partir de 2009, a Comissão Intersecretarial do Programa Prevenir
definiu os seguintes quatro eixos temáticos como norteadores do traba-
lho em promoção da saúde.
Eixo I – Ações de valorização do servidor: ações relacionadas à
valorização do capital intelectual, estímulo a habilidades e atitudes po-
sitivas dos profissionais; bem como ao apoio à gestão participativa nas
unidades do governo do Estado.
• Elaborar e implantar o Programa de Desenvolvimento Individual/Insti-
tucional, com vistas ao desenvolvimento de habilidades e competências.
• Desenvolver e implantar o Programa de Preparação para Aposentadoria.
• Implantar/implementar um programa de benefícios para o servidor.
• Implementar o banco de talentos na instituição.
Eixo II – Ações de assistência à saúde: ações de atenção à saúde
do trabalhador nas áreas de: Medicina, Psicologia, Fonoaudiologia, Fi-
sioterapia, Nutrição, práticas integrativas, atividade física e outras afins.
• Desenvolver e implantar o Programa de Controle Médico e de Saúde
Ocupacional e do Trabalhador (PCMSOT) e o Programa de Prevenção
de Riscos Ambientais (PPRA) para os servidores.
• Estabelecer um fluxo e protocolo de atendimento e encaminhamento
para os casos de doença identificados, com a rede do Iamspe e sob
sua coordenação.
Eixo III – Ações de Educação em Saúde – Promoção e Preven-
ção à Saúde: ações realizadas por meio de campanhas, eventos, oficinas
pedagógicas relacionadas a promoção e prevenção das doenças crônicas
não transmissíveis, sedentarismo, alimentação saudável, utilização de
equipamentos de proteção individual e coletiva, dentre outros.
154
• Planejar e organizar ações coletivas de educação em saúde, com temas
definidos previamente, priorizando a promoção da atividade física,
da alimentação saudável e da cessação do tabagismo.
Eixo IV – Ações Socioculturais e de Meio Ambiente: ações de
estímulo à integração social, cultural e manutenção e preservação do
meio ambiente.
• Planejar e organizar a participação de servidores em eventos culturais
e esportivos.
• Implementar o Programa de Desenvolvimento Sustentável.
Os eixos, além de definirem as ações de diferentes aspectos liga-
dos à promoção da saúde, também revelam a dimensão do trabalho e a
potencialidade do Programa, que tem margem para crescimento e desen-
volvimento devido à grande abrangência das ações.
Para as ações de educação em saúde, em especial, sugere-se que
cada interlocutor trabalhe temas pontuais mensais e temas de maneira
contínua de acordo com os pilares Prevenir (alimentação saudável, ativi-
dade física e ambiente 100% livre do tabaco), de acordo com a realidade
local. Campanhas alusivas a datas comemorativas como o Outubro Rosa,
o Novembro Azul e a Campanha Nacional de Vacinação são exemplos
dos temas pontuais, com suporte técnico do Prevenir.
Mensalmente, os interlocutores preenchem um formulário eletrô-
nico mensurando a quantidade de servidores atingidos pelas ações de
promoção da saúde. É por meio desse formulário que a Equipe Prevenir
acompanha todo o trabalho realizado nas mais diversas secretarias e cen-
tros de atendimento médico ambulatorial (Ceamas). Os Ceamas, distribu-
ídos pelo Estado, também são grandes parceiros do Programa nas cam-
panhas de vacinação, atividades e distribuição de material de educação
em saúde e no rastreamento de doenças crônicas não transmissíveis. Na
Tabela 1, estão descritas algumas atividades do Programa de 1998 a 2013.
155
Vigitel Iamspe
Em 2013, com intuito de aperfeiçoar as ações de vigilância para o
controle das doenças crônicas não transmissíveis no Iamspe, a Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo decidiu aplicar o Vigitel (inquérito tele-
fônico para monitoramento de fatores de risco e de proteção para doenças
crônicas), realizado pela Secretaria de Estado da Saúde entre os servidores
públicos estaduais. O impacto das ações do Programa Prevenir, descen-
tralizadas a partir de 2009, foi aferido positivamente. Os resultados mos-
tram que os servidores alimentam-se de forma mais saudável e são menos
inativos comparados com a população do Estado; não foram observadas
diferenças nas frequências de tabagismo. Entretanto, a proporção de ta-
bagistas foi reduzida de 18,7% (2006) para 12% (2013) entre os servidores
públicos. Atribuímos parte desses resultados às ações de educação em
saúde do Programa Prevenir, conforme exposto na Tabela 2.
Atividade 1998-2008 2009 2010 2011 2012 2013
Material educativo (folhetos e cartilhas)
169.125 415.863 413.435 251.996 288.891 136.721
Procedimentos de rastreamento
63.404 17.341 17.538 22.086 78.495 58.104
Participações em atividades educativas
__ 182.241 102.534 143.307 104.838 105.261
Tabela 1: Atividades de educação e prevenção, segundo período. Prevenir Iamspe,
1998 a 2013
Fonte: Centro de Promoção e Proteção à Saúde do Servidor – Prevenir – Iamspe, 2014.
156
Prêmio Prevenir
Como incentivo a pesquisa e práticas em promoção da saúde, o
Programa instituiu em 2013 o Prêmio Prevenir de Promoção e Proteção
à Saúde do servidor, premiando as melhores iniciativas de promoção de
saúde entre as secretarias da capital e do interior.
Em dois anos, o Prêmio teve 56 trabalhos inscritos, revelando ini-
ciativas de promoção da saúde estruturadas por todo o Estado.
Indicador VigitelIamspe (%)
VigitelSP (%) Resultado
% indivíduos com excesso de peso 61,7 52,6 Maior no Iamspe
% indivíduos com obesidade 22,9 19,4 Sem diferença
% indivíduos com consumo regular de frutas e hortaliças 47,7 32,3 Maior no Iamspe
% indivíduos com consumo diário recomendado de frutas e hortaliças 35,9 22,0 Maior no Iamspe
% indivíduos com consumo de carne com excesso de gordura 29,7 37,9 Maior no Estado
SP
% indivíduos com consumo de leite com teor integral de gordura 47,4 58,5 Maior no Estado
SP
% indivíduos com consumo excessivo de refrigerantes 20,4 31,5 Maior no Estado
SP
% mulheres (50-69 anos) que realizaram mamografia nos últimos dois anos 82,2 77,8 Maior no Iamspe
% indivíduos fisicamente inativos 9,8 14,3 Maior no Estado SP
% indivíduos que assistem a TV três ou mais horas/dia 17,2 26,5 Maior no Estado
SP
% indivíduos que referiram diagnóstico médico de diabetes
5,4 8,5 Maior no Estado
SP
Tabela 2: Resultados do Vigitel Iamspe, 2013
Fonte: Vigitel Iamspe, 2013.
157
Considerações finais
Dentro desse quadro apresentado, as ações do Programa Prevenir,
voltadas para os servidores públicos estaduais, abrangem diversas secre-
tarias de Estado. A população de servidores estaduais está envelhecen-
do, predominando aqueles com mais de 40 anos de idade, fato que, iso-
ladamente, aumentaria o risco de desenvolvimento de doenças crônicas
não transmissíveis.
Estima-se que 37% dos servidores com mais de 55 anos apresentem
risco moderado e alto de acometimento por infarto do miocárdio em 10
anos, segundo aplicação de um escore em risco cardiovascular.
Apesar de apresentarem menos riscos para doenças crônicas não
transmissíveis que a população em geral, existe ainda um grande con-
tingente de servidores com alimentação inadequada, sedentários e taba-
gistas. Nossos servidores apresentam elevada prevalência de excesso de
peso (61,7%).
Dentro da definição de promoção da saúde e seus determinantes
sociais, trabalhar com as secretarias de Estado não poderia ser mais pro-
pício. A visão é que as ações de promoção de saúde e seus Determinantes
Sociais de Saúde (DSS), no que compete a cada Secretaria, também sejam
incorporados pelas ações das próprias secretarias no seu trabalho com
a população. Cada secretaria pode e deve, dentro de suas atribuições,
desenvolver ações para a melhoria das condições de vida da população,
seja saúde, saneamento básico, planejamento urbano, educação, redes
sociais e outras no âmbito do conceito contemporâneo de Promoção
da Saúde.
As ações de intervenção sobre essas condições de saúde envolvem
os conceitos de determinantes sociais de saúde e promoção da saúde.
Nos 15 anos de atuação do Programa Prevenir, os princípios da promo-
ção da saúde, participação social e intersetorialidade são constantes na
atuação da Comissão Intersecretarial do Programa.
158
Essa Comissão, ao definir eixos de atuação que transcendem o setor
saúde, possibilitou a inclusão do tema promoção da saúde de variadas
formas nas agendas de suas secretarias, o que em muito vem contribuin-
do para a efetivação de uma política de qualidade de vida no trabalho e
saúde do servidor.
159
Referências
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da promoção da saúde. Brasília, DF, 2002. Projeto Promoção da Saúde.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secre-
taria de Atenção à Saúde. Política nacional de promoção da saúde. 3.ed.Bra-
sília, DF, 2010.
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& Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 163-177, 2000.
BUSS, Paulo Marchiori; PELLEGRINI FILHO, Alberto. A saúde e seus
determinantes sociais. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17,
n.1, p.77-93, 2007.
CAIRUS, Henrique F. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença.
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.
CARVALHO, Sérgio Resende. As contradições da promoção à saúde em rela-
ção à produção de sujeitos e a mudança social. Ciência & Saúde Coletiva [on-
line], v. 9, n. 3, p. 669-678, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/
pdf/csc/v9n3/a13v09n3.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2014.
CHAUÍ, Marilena. História da filosofia - dos Pré-Socráticos a Aristóteles. São
Paulo: Cia. das Letras, 2002.
FRIAS, Ivan. Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na Gré-
cia clássica. Rio de Janeiro: PUC; São Paulo: Loyola, 2004.
INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA AO SERVIDOR PÚBLICO ES-
TADUAL. Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por
inquérito telefônico – VITIGEL. São Paulo: Núcleo de Pesquisas Epidemio-
lógicas em Nutrição e Saúde. Universidade de São Paulo, 2013.
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
Felix Lopez
Doutor em Sociologia pela UFRJ,
com doutorado-sanduíche no MIT.
Pesquisador da Diretoria de
Estudos sobre Estado, Instituições e
Democracia e professor do mestrado
em políticas públicas, ambos no
Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea).
Sérgio Praça
Mestre e doutor em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo,
com pós-doutorado pela FGV-SP.
É professor de políticas públicas
da Universidade Federal do ABC.
Atua como consultor na área de
transparência e combate à corrupção
em organizações multilaterais como
Global Integrity e Transparency
International.
162
A destinação de parte dos cargos de poder da alta burocracia para a
nomeação com base em escolhas discricionárias, políticas, por assim dizer, é
característica presente em todos os sistemas políticos contemporâneos, em-
bora exista ampla variação no escopo e na lógica que informa a nomeação.
No caso brasileiro, o sistema de nomeações – em particular no ní-
vel federal, de que tratamos neste texto – é tomado por interpretações,
difundidas principalmente por jornalistas ou propaladas no calor acusa-
tório do debate político, que nem sempre espelham de forma adequada a
lógica efetiva de preenchimento daqueles quadros. Apresentar algumas
considerações conceituais e alguns dados empíricos sobre as nomeações
para os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) é o objetivo
deste texto. Com esses dados, teremos oportunidade de olhar com novas
lentes aquele processo, temperar as fortes conotações negativas associa-
das a ele, e desfazer alguns mitos sobre as lógicas que regem a definição
dos quadros da burocracia política brasileira no nível federal.
Para discutir as características da burocracia política, é apropria-
do, antes, saber o que denominamos politização do serviço público. Em
uma definição neutra, a politização deveria ser considerada o processo de
nomeação com base em escolhas discricionárias, como sugeriu Grindle
(2012). Por quê? Porque evitamos, de antemão, atribuir vício ou virtude
às escolhas, tanto em termos de eficiência, quanto de critérios que regeram
essas escolhas (por exemplo, se política partidária, o conhecimento técnico
- Felix Lopez, Sérgio Praça
163
ou a patronagem, distinções que, sem dúvida, são mais analíticas que em-
píricas). Essas são questões que devem ter respostas com base em análise
empírica, e, nesse particular, as pesquisas disponíveis são exíguas1.
Então, antes de discutirmos o espaço para manipulações espúrias e
nomeações sem nobreza para cargos de poder no serviço público federal,
vejamos em que consiste esse espaço.
Os cargos DAS se dividem em hierarquia de seis níveis, e o nível
6 é o mais importante. Embora tenha variado nos últimos anos a distri-
buição de competências sobre quem é responsável por exercer as nomea-
ções, em diferentes níveis, em geral prevaleceu a regra de que o presiden-
te da República ou a Casa Civil devem autorizar apenas as nomeações
dos níveis mais altos, DAS 5 ou 6. Lameirão (2014) mostra que o processo
caminhou no sentido de maior controle sobre as nomeações e redução
dos graus de partidarização das escolhas. Quando observamos quantos
são esses cargos DAS 5 e 6, verifica-se que representam pouco menos de
6% dos atuais 23 mil cargos de livre nomeação disponíveis na adminis-
tração federal.
1 Uma pesquisa de Bersch, Praça e Taylor (2013) mostra que o senso comum está correto:
analisando cem agências burocráticas do governo federal, descobriram que a probabili-
dade de corrupção aumenta com a politização de cargos de confiança.
DAS 1 7332 31,93%
DAS 2 6291 27,40%
DAS 3 4393 19,13%
DAS 4 3615 15,74%
DAS 5 1107 4,82%
DAS 6 223 0,97%
TOTAL 22961 100%
Tabela 1 : porcentagem de cargos DAS, por nível hierárquico, em 2013
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) (Data Warehouse).
Elaboração dos autores.
164
Embora a disputa política pelas escolhas não se limite a esses car-
gos, estamos distantes do argumento segundo o qual o Executivo detém
“mais de 20 mil cargos” para manipular politicamente por meio de “lo-
teamentos”. O presidente pode influir nos cargos mais importantes, mas
está longe de ser o principal responsável por definir o maior número de
cargos. Sem dúvida, pode influir em um conjunto mais seleto de posições
sujeitas à alta cobiça partidária, como se discutirá adiante.
Outros aspectos legais também reduzem a liberdade e o espaço de
pressupostas escolhas destituídas de mérito no preenchimento dos cargos.
Desde 2005, a legislação restringe a 25% o número total de cargos DAS
1, 2 e 3 provenientes de fora das carreiras do serviço público. Para o ní-
vel 4, o percentual sobe para 50%. A Tabela 2 apresenta a proporção de
ocupantes que pertencem ao serviço público federal, no universo de ocu-
pantes de cargos nos três níveis superiores. Adotamos um critério mais
restritivo, incluindo apenas membros das carreiras federais e excluindo
aqueles que pertencem ao serviço público estadual ou municipal, embo-
ra a legislação atual adote essa acepção ampla de serviço público.
Observe que a proporção de ocupantes de cargos vinculados às car-
reiras do serviço público federal no nível 4 (em que a lei exige o mínimo
Nível do cargo
Total ocupado
Servidores federais
% servidores federais
DAS 4 3685 2206 60%
DAS 5 1132 645 57%
DAS 6 219 91 42%
Tabela 2: Proporção servidores públicos federais ocupando
cargos de DAS 4, 5 e 6, em 2014
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Recursos
Humanos (Siape) (Data Warehouse). Elaboração dos autores.
165
de 50%, porém em acepção mais ampla de serviço público) chega a 60%;
e, nos níveis 5 e 6, em que a escolha não é constrangida por exigências mí-
nimas de vínculos institucionais, tem percentuais bastante altos. Os dados
indicam que estamos longe de um cenário de domínio das nomeações de
patronagem na burocracia de livre nomeação federal. Vale, contudo, res-
salvar que incorremos em erro potencial supor que nomeações de servi-
dores indicam menor influência partidária, salvo melhor juízo ou evidên-
cias empíricas em contrário. Servidores têm preferências e interesses tanto
quanto não servidores. Mesmo que as preferências dos servidores variem
tanto quanto as de gestores oriundos de fora dos quadros do Estado – o
que continua a dar margem de escolha grande de acordo com afinidades
por policies ou afinidades pessoais –, o fato é que a maior parte dos cargos
é ocupada por membros do serviço público federal.
Outro argumento frequentemente utilizado sugere que o crescimen-
to do volume de cargos de livre nomeação atesta a ampliação da política
de patronagem no aparelho do Estado. De fato, o crescimento do volume
de cargos foi expressivo desde 1999 (início da disponibilidade confiável
de dados), como indicam as Figuras 1 e 2. Comparado a 1999, 2014 indica
8.000
7.000
6.000
5.000
4.000
3.000
2.000
1.000
1999 2000
1.856
675148 219
1.132
3.685
4.429
6.377
7.414
201420132012201120102009200820072006200520042003200220010
DAS-1
DAS-2
DAS-3
DAS-4
DAS-5
DAS-6
2.720
5.4255.822
Figura 1: Evolução do quantitativo de cargos DAS, por ano e por nível (1999-2014)
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) (Data Warehouse).
Elaboração dos autores.
166
crescimento de aproximadamente 40%, e o percentual de crescimento foi
maior nos níveis superiores (5 e 6). Todavia, o crescimento ocorreu tam-
bém nos quadros da burocracia, no contexto da recomposição do número
de servidores, após a redução histórica de meados da década de 1990.
O crescimento observado parece ser razoável, ainda mais se considerar-
mos que grande parte do crescimento do aparato estatal nos últimos anos
decorreu da criação de novos órgãos e secretarias, que exigem a criação
correlata de novos cargos e funções “de confiança”, mesmo quando não se
dispõe de quadro funcional amplo a eles subordinados.
Cabe também indagar: quais são as formas concretas da politiza-
ção? Imagine que elas indiquem sempre nomeações que definam perfis
com preferências similares àquele que exerce o comando político do ór-
gão. Definir nomes que estejam alinhados com essa motivação é negativo
ou positivo? Afinal, o que se espera do mercado político é ofertar alterna-
tivas de políticas selecionadas em cada rodada eleitoral. Caberia à buro-
140
135
130
125
120
115
110
105
100
95
902000
98%99% 99%101%
106% 106%107%
111%
116% 117%119%
122%
126%
98% 98%
122%
117%
125%
129%
133% 134%136%
138%140%
120%
109%
113%
109%107%
20142013201220112010200920082007200620052004200320022001
% crescimento DAS% crescimento servidores totais
Figura 2: Evolução percentual do total de cargos de DAS ocupados e do total de servidores
civis ativos da União, por ano (1999-2014) – ano base 1999.
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) (Data Warehouse).
Elaboração dos autores.
167
cracia política – se ela fosse correia de transmissão perfeita dos agentes
políticos – implementar aquilo que lideranças alçadas ao poder pelas
preferências do eleitorado preferem. Uma forma de se fazer isso é compor
quadros da burocracia em que a cadeia de comando político funcione com
o mínimo de ruído. Em outros termos, as nomeações políticas, se consi-
deradas como instrumento de controle político-ideológico das agências,
podem constituir importante meio para pôr em marcha os projetos prefe-
renciais do eleitorado. Se quem exerce o comando político do órgão deseja
imprimir algum ritmo homogêneo à agência que comanda, é esperado
que lance mão do recurso à nomeação política para tal. Lewis (2009) de-
monstrou, para o caso norte-americano, que esse é o principal instrumen-
to do presidente da República (em contexto bipartidário, lembre-se) para
influir sobre agência tomada por servidores muito distantes das políticas
preferenciais do chefe do Executivo. No caso do Brasil, o cenário se torna
bem mais complexo pela combinação de multipartidarismo das coalizões
de governo e ausência de orientação programática das agremiações.
Não há dúvida de que muitas das nomeações indicam politização
por patronagem, não por políticas públicas. Mais do que isso, em muitos
setores, politizar é quase equivalente a um exercício explícito de patri-
monialização do Estado. Essa prática, contudo, se concentra, sobretudo,
nas franjas da administração pública federal, notadamente nas estatais
(potencialmente, fundos de pensão), em que o controle formal sobre as
condutas dos agentes públicos é mais débil (JEFFERSON, 2006). O caso
das estatais é exemplar de como a patrimonialização pela via da politiza-
ção contamina a imagem geral que se tem do processo de nomeação dos
quadros ministeriais nos demais setores do Executivo.
Ainda que o cenário mais amplo apresentado até aqui seja um con-
traponto ao argumento de uma política de patronagem e espólio na buro-
cracia de nomeação discricionária federal, quando se desce no nível das
centenas de agências do governo federal, é encontrada ampla variação
nas lógicas e no volume de nomeações de patronagem e nomeações de
168
políticas públicas. Cabe indagar, de forma mais precisa, como os partidos
atuam e dividem entre si o trabalho de indicação para os quadros da alta
burocracia política federal. Discutimos a questão na próxima seção.
Líderes partidários e cargos de confiança em jogo
Os cargos mais disputados são, naturalmente, aqueles que detêm
maior poder político. Os cargos mais atraentes i) detêm forte capacidade
de influir em políticas públicas; ii) podem atuar sobre concessões de servi-
ços; iii) têm capacidade de influir em aspectos regulatórios; ou iv) são um
ordenador (autorizador) de recursos públicos. Esses cargos estão sempre
nos níveis 4, 5 e 6, e ali se concentra de forma mais intensa o interesse dos
partidos. A lógica da divisão de poder não é completamente desestrutu-
rada. De forma estilizada, o líder partidário ou da bancada recebe as de-
mandas individuais por cargos e as apresenta e negocia com a Casa Civil.
Embora possa haver mecanismos de bypass da autoridade das lideranças,
esse é o padrão, conforme descrições realizadas por líderes partidários e
membros da alta burocracia que entrevistamos. Lideranças políticas que
eventualmente não atuem em posições de poder oficial também cumprem
esse papel de interlocutores de bancadas e facções políticas.
Cabe uma ressalva importante. Os cargos de menor nível hierárquico
se tornam disputados apenas quando se localizam fora da capital, na base
eleitoral dos parlamentares (federais e estaduais). O valor desses cargos se
eleva em ambiente de escassez, como é o caso dos cargos federais nas uni-
dades federativas (UFs). A Tabela 3 apresenta da distribuição desses car-
gos e indica que quase 40% deles são alocados fora de Brasília, apesar de
a maior parte deles ser dos primeiros níveis da hierarquia. Os nomes para
esses cargos são definidos em acordos das bancadas regionais (UFs, geral-
mente) e que integram os partidos da coalizão. A compreensão da dinâmica
de apoio dos parlamentares ao presidente passa, sem dúvida, por entender
as injunções e os acordos de nomeação para cargos no nível dos Estados.
169
Diversos ministros e líderes partidários por nós entrevistados nos
últimos dois anos sustentam esse raciocínio. De acordo com um ex-mi-
nistro, “no meu ministério, cabia ao secretário-executivo definir os preen-
chimentos dos cargos de superintendentes regionais. Três critérios eram
observados. O primeiro era que o escolhido tivesse formação técnica
UF DAS1 DAS 2 DAS 3 DAS 4 DAS 5 DAS 6 Total Total %
DF 3.161 3.941 3.260 3.027 1.048 201 14.638 62,9%
RJ 985 710 366 212 55 14 2.342 10,1%
SP 555 279 116 38 5 1 994 4,3%
PA 242 126 65 38 4 1 476 2,0%
PE 174 128 89 53 9 1 454 2,0%
MG 232 126 42 23 423 1,8%
AM 186 86 99 41 4 416 1,8%
RS 191 117 38 21 3 370 1,6%
BA 167 90 30 19 306 1,3%
PR 155 86 22 18 281 1,2%
MT 161 65 23 16 265 1,1%
CE 132 63 33 17 3 1 249 1,1%
SC 128 64 28 15 235 1,0%
RO 118 44 21 14 197 0,8%
MS 91 52 13 12 168 0,7%
GO 73 41 18 15 147 0,6%
MA 77 34 19 11 141 0,6%
AL 74 33 16 12 135 0,6%
AC 68 35 17 11 131 0,6%
ES 73 32 14 11 1 131 0,6%
PB 55 33 18 9 115 0,5%
RR 59 30 14 10 113 0,5%
TO 55 32 14 8 109 0,5%
SE 54 30 15 8 107 0,5%
PI 47 35 14 9 105 0,5%
RN 52 32 11 10 105 0,5%
AP 49 33 14 7 103 0,4%
Total 7.414 6.377 4.429 3.685 1.132 219 23.256 100%
Tabela 3: Número e proporção dos cargos DAS, por nível e unidade federativa, em 2014
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) (Data
Warehouse). Elaboração dos autores.
170
consistente na área. Segundo, que tivesse apoio da classe econômica re-
ferente àquela política pública de cada Estado. Isso é muito importante
para que a comunicação entre o ministério e o setor privado fosse fluida
e também atendesse a critérios políticos. Finalmente, o terceiro critério
era que o nomeado tivesse uma boa ligação com os secretários estaduais
daquela política pública”.
Outro ex-ministro destacou a possível relevância de indicações par-
lamentares e experiência prévia na burocracia federal para que alguém
fosse nomeado para um cargo de confiança regional. “Se viesse um depu-
tado e falasse ‘lá no meu Estado tem um funcionário da agência burocrá-
tica que é muito competente e eu queria que ele assumisse uma gerência
regional’, eu tinha total liberdade para examinar o currículo e dizer sim
ou não”, disse ele. “Quando as pessoas se encaixavam nos meus critérios
como ministro – não tem nenhum tipo de denúncia contra ele, é prepa-
rado, tem desempenho funcional bom – aí o parlamentar podia nomear”.
Finalmente, o líder de um partido pertencente à coalizão no governo
Fernando Henrique Cardoso afirmou que “havia muita reivindicação dos
colegas deputados para cargos da administração federal nos Estados”.
Não há monopólio do partido que exerce o comando político do
ministério sobre todos os cargos do respectivo órgão. O que se conven-
cionou denominar de “nomeações verticalizadas” ou “de porteira fecha-
da” é pouco comum nos acordos para divisão de cargos (LOPEZ; PRA-
ÇA, 2015).
A capacidade de influir politicamente sobre as nomeações varia en-
tre áreas de governo. Em áreas prioritárias para a agenda presidencial ou
mais complexas, o espaço para nomeações de patronagem é menor, e o
tempo de permanência dos nomeados é maior, a exemplo da área econô-
mica. Lewis (2008) testou e validou essa hipótese no caso norte-america-
no, confirmando que a “politização de patronagem” varia em função da
complexidade dos temas sob jurisdição do órgão. Para o caso do Brasil,
Borges e Coelho (2015) indicaram, nesse mesmo sentido, as diferenças no
171
espaço para politização em função da natureza das políticas executadas
por diferentes órgãos e ministérios.
Um dos líderes partidários entrevistados destacou quais ele consi-
dera os ministérios mais disputados por partidos políticos. “As áreas de
infraestrutura e transportes – sobretudo escritórios regionais do Depar-
tamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) – são dispu-
tadas. As áreas de saúde, assistência social e educação também, apesar de
serem áreas nas quais as políticas públicas são mais engessadas, já defi-
nidas. Também os ministérios de Minas e Energia e Cidades são bastante
procurados pelos parlamentares”.
E são os líderes partidários os principais responsáveis pela inter-
locução entre parlamentares e ministros para a nomeação dos cargos.
Conforme um ex-ministro nos disse, “qualquer líder tem de ter o apoio
de uma parte da sua bancada ou de toda a bancada. Então ele procura
evidentemente ouvir as demandas e propostas dos parlamentares, ou-
vir suas demandas, suas propostas. O parlamentar que tem em uma de-
terminada área maior afinidade temática, por exemplo, um parlamentar
vinculado à área de ciência e tecnologia pode indicar uma pessoa para
um cargo de confiança para que o líder negocie no Planalto”, disse ele.
“Ou seja, o líder concentra uma interlocução que ele pode, em maior ou
menor grau, influenciar quem será mais e menos contemplado. Isso para
as nomeações ‘benignas’, sem contar quando as pessoas nomeiam para
ter acesso a relações empresariais e participar de proximidades que re-
sultem em financiamento de campanha”.
E quais são os tipos de cargos mais desejados pelos parlamentares?
Para um líder partidário que entrevistamos, “os mais cobiçados são car-
gos de gestão referentes às áreas finalísticas dos ministérios, Por exem-
plo, o delegado regional do trabalho, o superintendente de agricultura, o
departamento de defesa do consumidor dos Estados vinculados ao Mi-
nistério da Justiça, da Saúde. Esses cargos permitem que os deputados
tenham muito espaço para fazer política eleitoral nas próximas eleições”.
172
Há outras variáveis que influenciam nomeações. Por exemplo, há
setores da administração federal sem carreiras estruturadas, principal-
mente porque são mais recentes. Ali, o volume de nomeados de fora das
carreiras tende a ser maior pela simples indisponibilidade de alternativas
no interior do serviço público. Esse seria um bom exemplo de quadros
externos ao serviço público que não significam nomeações de patrona-
gem. O grau de institucionalização de órgãos e carreiras também afeta a
capacidade de influência político-partidária dos órgãos, pois começam a
se cristalizar tradições administrativas que fortalecem a lógica de compo-
sição dos quadros com membros do próprio órgão.
Outro fator relevante diz respeito ao interesse político partidário em
áreas de políticas. Ministérios com capacidade de realizar investimentos
discricionários (como é o caso de Ministérios da área de infraestrutura)
sofrem maior cobiça política e estão mais sujeitos às injunções partidá-
rias. Áreas que exercem papel carimbador de liberação de recursos de
uso não discricionário tendem a se desvalorizar na disputa política por
emplacar nomes. Mas o cálculo dessa equação deve considerar também
o potencial de serviços a distribuir por cada órgão. Um bom exemplo são
as agências da previdência social2 e sua ramificação pelo território. Ali há
forte espaço para exercício do clientelismo no nível municipal, apesar de
o Ministério da Previdência não ser particularmente atraente pelo volu-
me de recursos discricionários a investir.
Gradualmente, a discussão sobre nomeações com base em indica-
ções feitas por parlamentares foi assumindo status público. Em 2014 e
2015, por exemplo, a relutância da Casa Civil em realizar nomeações que
atendessem às demandas de parlamentares da base de apoio ao governo
era publicamente conhecida como uma das razões para o mal-estar entre
2 Hoje, essas agências já não sofrem mais forte influência política em função da mudan-
ça nas regras que exigem um servidor de carreira na direção de cada uma delas. Esse é,
de resto, um bom exemplo de profissionalização silenciosa que foi ganhando espaço no
serviço público federal.
173
a base parlamentar e a presidente da República. Tratava-se, a rigor, de
cargos do segundo escalão da hierarquia burocrática, mas com relevân-
cia suficiente para redefinir os padrões de apoio parlamentar ao governo.
De forma esquemática, pode-se dividir a administração federal em
quatro grandes setores, sujeitos a graus diferentes de influência político-
partidária. O primeiro, denominado “junta orçamentária”, é de terreno
exclusivo do presidente da República, e há um acordo implícito entre
os políticos que assim deve ser. A junta é composta dos Ministérios da
Fazenda, do Planejamento e a Casa Civil.
O segundo setor é referente aos ministérios que são áreas de po-
líticas centrais para o exercício do governo e, normalmente, incluem os
Ministérios da Educação e da Saúde e, nos governos Lula e Dilma, o mi-
nistério das políticas de transferência de renda, que é o Ministério do De-
senvolvimento Social. Ainda que não seja regra inviolável o domínio des-
sa seara por outros partidos que não o do presidente, esse é um padrão.
O terceiro grupo de órgãos diz respeito a todos os demais Ministé-
rios, cujo interesse decorre do casamento de orientações dos partidos e
capacidade de distribuição de bens e serviços. Mesmo não existindo de
forma clara associações explícitas entre áreas de políticas e programas
partidários, há interesse maior de alguns partidos pelo Ministério da Ci-
ência e Tecnologia (PSB), pelo Ministério do Meio Ambiente (PV), pelo
Ministério da Integração Nacional (PMDB), e assim por diante. Essa é
uma associação até certo ponto fraca. Todos estão sujeitos a negociação
partidária, em função de necessidades e interesses em construir uma co-
alizão governista que funcione.
O quarto grupo são as estatais. Aqui reside um dos maiores filões
de atração político-partidária, em particular pelo potencial econômico
que tais empresas carregam e o potencial de patrimonialização a que es-
tão sujeitos. Deter o controle de setores de estatais pode apaziguar seto-
res inteiros dentro de bancadas partidárias. Exemplos não faltam e boas
descrições se encontram em Jefferson (2006) e diversos relatórios de Co-
174
missões Parlamentares de Inquérito, essa fonte inesgotável de material
empírico sobre formas e lógicas de imbricamento entre política e buro-
cracia na administração brasileira.
As estatais, sim, sofrem forte disputa político-partidária motivadas
por um tipo especial de patronagem, visando a extrair recursos públicos
para alimentar legendas partidárias e seus membros. Nas estatais se con-
centram os principais casos de corrupção que contagiam o imaginário so-
bre fraudes e práticas ilícitas associados à lógica das nomeações. Grande
parte do interesse das estatais decorre do excessivo volume de recursos
em contratos e de investimento associado à baixa capacidade pelo siste-
ma oficial de controles da burocracia3.
Quando se discutem formas de qualificar os quadros da alta buro-
cracia e tornar mais produtiva a relação entre a esfera política e a esfera
burocrática, é na qualidade das políticas públicas que se pensa. E essa é,
de fato, uma questão crucial. Até que ponto a politização da alta burocra-
cia se relaciona à qualidade das políticas públicas.
Há dois pontos a considerar. O primeiro é distinguir os efeitos ad-
vindos da politização e os efeitos da alta rotatividade dos cargos sobre a
qualidade das políticas. O efeito mais nocivo do volume de nomeações
3 Os órgãos de controle da burocracia, principalmente a Controladoria Geral da União
(CGU) não dispõem, até o presente, de instrumentos legais para exercer escrutínio das
empresas estatais (em particular, as de economia mista) vinculadas à administração fe-
deral, nas quais se concentram as fatias mais expressivas do investimento público federal
anual. Para Jorge Hage, ex-ministro da CGU, “essas empresas situam-se praticamente fora
do alcance do sistema, a não ser pela via das auditorias anuais de contas, procedimento
basicamente formal e burocrático, de baixíssima efetividade para fins de controle. Fora
daí, tem-se apenas, da parte dos órgãos centrais, a possibilidade de auditorias por amos-
tragem ou em decorrência de denúncias, o que é absolutamente insuficiente, na medida
em que se alcançam somente alguns contratos, num universo onde eles se contam pelos
milhares”. (Jornal O Globo, “CGU critica falta de fiscalização na Petrobras, 8/12/2014. Dis-
ponível em <http://oglobo.globo.com/brasil/cgu-critica-falta-de-fiscalizacao-nas-estatais-
cita-petrobras-durante-evento-contra-corrupcao-14767273>
175
discricionárias é o estímulo à rotatividade nessas posições. O tempo de
permanência é baixo (LOPEZ et al. 2014; PRAÇA et al. 2012), devido à al-
teração “natural” nas posições, que é da ordem de 30% para o conjunto
dos cargos DAS. As alterações político-partidárias decorrentes da entrada
e saída de ministros e recomposições de partidos elevam a rotatividade em
20 pontos porcentuais acima daquela taxa média (que desconta o efeito da
mudança do partido e da facção partidária). A rotatividade dos quadros
nomeados constitui um obstáculo importante à capacidade de planejar e
implementar as políticas, por aumentar a descontinuidade administrativa.
É principalmente nesse sentido – e não na patronagem política ou da no-
meação de membros externos às carreiras de Estado – que se deve pensar
em um dos efeitos nocivos que um volume grande de cargos de nomeação
discricionária exerce sobre o desempenho das agências e a eficiência delas
na execução das políticas. Essa implicação negativa sobre eficiência é agra-
vada porque os mecanismos de coordenação interministerial por parte do
Executivo são frágeis. Em um cenário em que esses mecanismos operas-
sem, as nomeações discricionárias seriam menos importantes.
Outra implicação potencial negativa da associação entre alta ro-
tatividade, alto volume de indicações de nomes externos às carreiras –
maior politização – e frágil estrutura institucional de mérito é que ela
pode fomentar “um ambiente no qual há poucas motivações tanto para
carreiristas quanto para nomeados de fora desenvolverem competências
orientadas às agências em que atuam ou motivadas pelo seu próprio de-
senvolvimento profissional” (LEWIS, 2008, p.144) 4.
Um último ponto a ter em mente, ao considerar os efeitos da poli-
tização sobre as políticas, é a evidência de que a influência programática
dos partidos sobre os programas ministeriais é pequena. Até onde nome-
4 “Politicization means more managerial turnover. New appointed positions often engen-
der additional appointed positions, and the deeper penetration of appointees means that
fewer high-level, policy-relevant, and well-paying jobs are available to career employe-
es.” (LEWIS, 2008, p.146)
176
ações da alta burocracia fazem do partido senhor das políticas executa-
das em sua área de ascendência? Em termos claros: se um partido assu-
me o Ministério e parlamentares nomeiam para cargos, há reorientação
das políticas então em vigor? Em grande medida, uma resposta mais se-
gura demanda saber a importância do núcleo das burocracias de carreira
na definição das principais políticas de cada órgão ou das orientações
emanadas do núcleo da Presidência institucional. Mas as evidências que
temos para isso ainda requerem mais pesquisa empírica, em particular
sobre a origem política das proposições emanadas por cada Ministério.
177
Referências
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cratic politicization, and governance outcomes. In: AMERICAN POLITI-
CAL SCIENCE ASSOCIATION ANNUAL MEETING, 2013, Chicago. An-
nals of the American Political Science Association Meeting. Chicago: APSA, 2013.
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rocracia pública federal no presidencialismo de coalizão brasileiro: aná-
lise comparada de dois Ministérios (MCTI e M. Integração). In: LOPEZ,
Felix. (Org.) Cargos de confiança, política e presiden cialismo no Brasil. Brasí-
lia, DF: Ipea, 2015. No prelo.
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JEFFERSON, Roberto. Nervos de aço. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
LAMEIRÃO, Camila. A ordenação dos cargos de direção e assessoramen-
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do presidente da República. In: CARDOSO, José Celso; PIRES, Roberto.
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LOPEZ, Felix; BUGARIN, Maurício; BUGARIN, Karina. Turnover of po-
litical appointments in Brasil, 1999 to 2012 – key indicators. Journal of
International Cooperation Studies, Kobe, Japan, v. 22, n. 1, p. 109-120, 2014.
LOPEZ, Felix; PRAÇA, Sérgio. Cargos de confiança, partidos políticos e
burocracia federal. Revista Ibero-Americana de Estudos Legislativos, Rio de
Janeiro, v. 4, n.1, p. 33-42, maio 2015.
PRAÇA, Sérgio; FREITAS, Andréa; HOEPERS, Bruno. A rotatividade dos
servidores de confiança no governo federal brasileiro, 2010-2011. Novos
Estudos Cebrap, São Paulo, n. 94, p. 91-107, nov. 2012.
Maria Fernanda Alessio
Doutoranda em Administração Pú-
blica e Governo pela FGV-Eaesp e
especialista em Políticas Públicas,
atuando na Unidade Central de Re-
cursos Humanos da Secretaria de Pla-
nejamento e Gestão do Estado de São
Paulo.
Regina Sílvia Pacheco
Professora do quadro permanente
da FGV-Eaesp e coordenadora do
mestrado profissional em Gestão de
Políticas Públicas. Foi presidente da
Escola Nacional de Administração
Pública (Enap) entre 1995 e 2002.
180
As transformações sofridas pelos Estados contemporâneos ao
longo das últimas décadas representam tema ainda muito presente no
debate sobre gestão pública no Brasil e no mundo. Administradores e
acadêmicos buscam soluções e explicações para um conjunto de pro-
blemas ainda não suficientemente equacionados nem debatidos, dentre
os quais merece destaque a gestão de pessoas no setor público. São inú-
meras as inovações propostas nesse campo, dentre elas o uso da gestão
por competências como eixo central para o desenho de políticas de re-
crutamento e seleção, e o uso de instrumentos de remuneração variável
orientada ao alcance de resultados preestabelecidos, mensurados por
meio de metas e indicadores. Outras experiências se voltam à seleção de
dirigentes públicos, com destaque, dentre os países latino-americanos,
para o caso chileno1.
O presente texto tem por objetivo apresentar o debate sobre as recentes
transformações vivenciadas pelos sistemas de alta direção públicos. As mu-
danças vêm sendo observadas tanto nas democracias avançadas, nas quais
se desenvolveram sólidas burocracias, como em alguns países de sistemas
1 Tratamos o caso chileno como exceção porque tal experiência dialoga diretamente com
as principais inovações e tendências adotadas por países europeus e membros da OCDE.
Internacionalmente reconhecido, o Sistema de Alta Direção Pública chileno representa um
conjunto de regras e atores orientados a seleção, nomeação, remuneração e gestão do de-
sempenho dos principais dirigentes públicos do país, responsáveis pela direção e moder-
nização de organizações descentralizadas da estrutura governamental do Chile.
- Maria Fernanda Alessio, Regina Sílvia Pacheco
181
burocráticos mais recentes ou incompletos. No primeiro grupo de países,
mudanças vêm sendo introduzidas nas regras que regem o senior civil ser-
vice, com a adoção de flexibilidades na gestão do alto escalão. Na América
Latina, apesar do tímido avanço na consolidação das estruturas burocráti-
cas e das recorrentes críticas às práticas de clientelismo e patrimonialismo,
também vêm sendo observados avanços no sentido da profissionalização
do alto escalão governamental, em alguns casos num contexto mais amplo
de reforma de toda a burocracia pública; em outros, de forma isolada.
Um aspecto inicial a ser ressaltado é a emergência da figura do di-
rigente público, foco das experiências em curso, que surge também como
nova categoria analítica e que modifica o debate predominante na lite-
ratura sobre política e burocracia, até então pautado pela dicotomia da
relação entre políticos e burocratas. Esse é o conteúdo da primeira parte
do presente texto. Em seguida, serão apresentadas iniciativas voltadas
aos sistemas de alta direção, destacando as inovações introduzidas por
países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômi-
co (OCDE) no âmbito das reformas empreendidas nas últimas três déca-
das e, em menor escala, nos últimos anos, por países da América Latina.
Na seção final do texto, as experiências de seleção de novos dirigentes pú-
blicos serão confrontadas com o modelo burocrático tradicional, por meio
do qual os cargos de direção são reservados a integrantes de carreiras.
O eixo deste texto está ancorado na atualização do conceito de me-
ritocracia e sua aplicação aos cargos de direção no setor público. Experi-
ências em curso em diversos países vêm buscando distintas combinações
entre mérito e flexibilidade, visando a selecionar com mais precisão os
dirigentes públicos. Por meio de sistemas abertos a funcionários e não
funcionários, com critérios claros, os novos sistemas têm buscado alcan-
çar melhor equilíbrio entre política e gestão. Tais sistemas representam,
ao mesmo tempo, a redução da discricionariedade política de nomear
livremente os dirigentes e um reforço à legitimidade dos governantes
182
por meio da escolha de dirigentes que demonstrem maior capacidade de
entregar melhores resultados aos cidadãos.
Dirigentes Públicos, uma nova categoria de atores
e de análise
Em diversos estudos da ciência política e da gestão pública, predo-
minam dois grupos de atores fundamentais para os processos de formula-
ção e implementação de políticas públicas: os atores políticos, conduzidos
a seus postos por meio de processos eleitorais, responsáveis por formular
políticas públicas conectadas aos interesses dos cidadãos; e os burocratas,
entendidos como servidores de carreira que compõem o corpo profissio-
nal e meritocrático do Estado, voltados ao cumprimento impessoal da
regra, devendo a seus superiores subordinação e obediência e evitando,
ao mesmo tempo, a ocupação patrimonial dos cargos públicos (WEBER,
1970; DE BONIS, 2008; ABRUCIO; LOUREIRO; PACHECO, 2010).
O debate sobre o dirigente público permanece negligenciado na
maior parte dos estudos da ciência política voltados ao funcionamento do
aparelho do Estado, apesar de sua crescente importância para o desem-
penho das organizações públicas e da institucionalização de sistemas de
alta direção em curso em diversos países (DE BONIS; PACHECO, 2010).
A emergência do dirigente público tem sido relacionada à crise do Estado
do Bem-Estar Social e à crescente demanda da sociedade por um Estado
mais eficiente e transparente, o que, segundo Longo (2003), trouxe novos e
mais complexos desafios aos políticos e burocratas, que já não são capazes
de alcançar os resultados desejados pela sociedade de forma satisfatória.
Assim, o dirigente público passa a ser entendido como peça funda-
mental para o alcance de resultados no setor público: sua atuação torna-se
necessária ante as transformações recentes do Estado e adquire importân-
cia para o sucesso das reformas gerenciais em curso em diversas democra-
183
cias modernas. Esse ator, denominado dirigente público ou public manager2,
responde por especificidades que o diferenciam dos dois tipos ideais we-
berianos – os políticos e os burocratas (LONGO, 2003; DE BONIS, 2008;
PACHECO, 2008a; 2008b). Espera-se do dirigente público uma orientação
voltada à eficiência, à eficácia e à efetividade das políticas públicas. Se-
gundo estudo comparativo sobre sistemas de alta direção nos países da
União Europeia,
many reforms in public administration in the past have led to changes in
the role, position, organisation and steering of senior civil servants
(SCS) or top managers. Due to decentralisation and globalisation, and to
the introduction of other management philosophies, their responsibili-
ties and the competences required of them have changed. Compe-
tition with the private market, the increased importance of customer and/
or citizen orientation and of quality of public services as well as the need
for permanent change, demands strong strategic and operational top ma-
nagement. Senior civil servants have to develop into leaders. They should
be able to lead innovation and change, to communicate effectively
and work in permanent dialogue with all stakeholders, to manage
the human and financial resources and processes, and to achieve the
agreed results (KUPERUS; RODE, 2008, p. 1, grifos nossos).
2 Em Martínez Puón (2011), encontramos diversas denominações para tratar o dirigente
público: public manager, top manager, senior civil servant, alto funcionário público, alto di-
rigente público, funcionários de alto escalão, dentre outros. Gostaríamos de ressaltar, no
entanto, que tais conceitos, nem sempre bem delimitados pela literatura, expressam situa-
ções e atores diferentes. Para fins deste trabalho, compreendemos o dirigente público como
funcionários do alto escalão governamental, recrutados por meio de processos de seleção
abertos e competitivos que permitem a nomeação tanto de funcionários já pertencentes ao
setor público como provenientes do setor privado, responsáveis pela direção de organiza-
ções públicas, e cuja atuação é marcada pela celebração de contratos de resultados.
184
Vários estudos e autores analisam o tema dos dirigentes públicos.
Jiménez Asencio (2012) entende os dirigentes como atores fundamentais
para impulsionar um amplo leque de reformas estruturais e inovado-
ras, ao lado dos outros dois conjuntos de atores tradicionais presentes
nos tipos ideais weberianos: “el sector público [...] necesita estar dirigido por
políticos responsables, por directivos públicos profesionales que hagan de la ex-
celencia su guía de actuación y por empleados públicos competentes, dotados de
alto sentido de pertenencia institucional” (JIMÉNEZ ASENCIO, 2012). Para
esse autor, o dirigente público é aquele que contribui para o desenvolvi-
mento de um projeto de governo com base em ferramentas profissionais,
competências gerenciais, lealdade institucional e responsabilidade pela
gestão, servindo ao político, quem detém a visão estratégica.
O dirigente público pode ser definido segundo um ethos específico de
atuação, orientado não para o cumprimento impessoal das regras como o
burocrata weberiano, mas segundo o uso eficiente de recursos visando à ma-
ximização dos resultados (LONGO, 2003) ou, conforme Moore (1995), para a
criação de valor público3. Mais do que o burocrata, o dirigente público pos-
sui margem de discricionariedade em sua atuação (LONGO, 2007), que lhe
permite converter propósitos e propostas políticas em resultados concretos
(DE BONIS; PACHECO, 2010). Da leitura de Moore (1995), Martínez Puón
(2011, p. 47) propõe que o dirigente público seja definido como ator:
Responsable dentro de una estructura burocrática de tener la capacidad de
interpretar y llevar a cabo las políticas (derivadas de los políticos), por medio
3 No setor privado, a criação de valor pode referir-se tanto ao retorno financeiro dos in-
vestimentos dos acionistas como aos produtos entregues pela organização à sociedade,
gerando utilidade, satisfação, status, dentre outros valores. No setor público, a criação
de valor refere-se, de modo similar, tanto ao atingimento dos objetivos da organização
pública, relacionados ao cumprimento dos objetivos políticos; como ao impacto gerado
pelas políticas públicas desenvolvidas, em termos quantitativos (número de cidadãos
beneficiados) e qualitativos (os resultados entregues geraram impactos positivos para os
cidadãos) (MOORE, M.; MOORE, G.; 2005, p. 17).
185
de un cuerpo de servidores públicos profesionales (regularmente miembros
de una estructura administrativa profesionalizada). Algunas de sus princi-
pales características son la de ser líder y visionario del proyecto o programa
a su cargo, portavoz de los avances alcanzados, interlocutor y negociador
con actores internos y externos, coordinador y evaluador de las actividades
realizadas y gestor de resultados en el marco de la rendición de cuentas.
Enquanto Martínez Puón (2011) enfatiza as competências espera-
das desse ator, Arantes et al. (2010, p. 112) propõem uma definição ba-
seada na posição institucional ocupada, na relação com o governo e na
forma de responsabilização a que deve estar submetido:
Cargos no alto escalão governamental, com responsabilidade significativa pe-
las políticas públicas. Oriundos ou não das carreiras do funcionalismo, eles
dirigem organizações públicas, procurando alinhá-las às políticas de governo
e mobilizando recursos para maximização dos resultados. São integrantes de
uma equipe de governo e podem ser responsabilizados perante os políticos que
os nomearam e, em certas circunstâncias, perante a própria sociedade.
De modo similar, a Carta Ibero-americana da Função Pública
(CARTA, 2003, p. 26), estabelecida no início dos anos 2000 pelo Conselho
Latinoamericano de Administração para o Desenvolvimento (Clad), vai
tratar tais atores como:
Aquel segmento de cargos de dirección inmediatamente subordinado al ni-
vel político de los gobiernos, cuya función es dirigir, bajo la orientación
estratégica y el control de aquél, las estructuras y procesos mediante los
cuales se implementan las políticas públicas y se producen y proveen los
servicios públicos. Se trata de una función diferenciada tanto de la política
como de las profesiones públicas que integran la función pública ordinaria4.
4 Clad é um organismo intergovernamental integrado por países da América Latina,
Caribe e Península Ibérica. As “Cartas” que o Clad publica são documentos que refletem
186
Já para Morey Juan (2012), o conceito de dirigente público remete a
distintas figuras, dada a diversidade de organizações e naturezas de fun-
ções de direção na administração pública, de modo que a análise desse
ator deve ser realizada caso a caso, para precisar o debate. Esse autor
entende que o ocupante do cargo máximo de cada organização pode ser
definido como dirigente público na medida em que apresenta uma atua-
ção mais profissional, conforme o desenho e a estrutura formalizada do
centro decisório da organização.
Morey Juan (2012) considera que existem dois níveis de direção
nas organizações públicas, sendo o primeiro ocupado por pessoas de
confiança dos políticos, geralmente por pertencerem a partidos, mais do
que por seu conhecimento técnico. Já o segundo nível, localizado ime-
diatamente abaixo do primeiro, seria ocupado por pessoas com maior
conhecimento da realidade organizacional na qual atuam. Tais dirigen-
tes apresentariam maior contato com os burocratas e seriam fundamen-
tais para tornar possível à organização o alcance das decisões políti-
cas em suas distintas fases. Desse modo, o dirigente público de Morey
Juan (2012) pode ser mais político ou mais profissional, mas nos dois
casos deve ter ampla compreensão tanto do mundo político quanto da
esfera administrativa:
Si considerábamos como directivo a quien está en contacto tanto con el
nivel político como con el organizativo de la Administración Pública, he-
mos de convenir que el directivo debe tener un alto nivel de comprensión
de ambos sectores y que sus actividades van a desarrollarse básicamente
en orden al análisis de programas políticos, realizando sus síntesis y co-
nectándolos con la realidad administrativa existente, para valorar su via-
bilidad y programar las acciones administrativas que los lleven a cabo o
certo consenso dos governos dos países que o integram e servem de orientação sobre
diretrizes a serem seguidas por aqueles países.
187
creando, de ser imprescindible, la organización y sistemas necesarios para
ello (MOREY JUAN, 2012, grifo nosso).
Definição similar é apresentada por Martínez Puón:
Entre las múltiples vías de solución a esta dicotomía política-administra-
ción, está la de crear un vaso comunicante o ‘bisagra’ entre la política y
la administración que recae precisamente en la función directiva o en el
papel de los directivos públicos, al otorgarles el ejercicio de funciones po-
livalentes a lo largo de toda la administración; en el interés de que en su
calidad de negociadores y coordinadores con otros actores distintos a los
de la estructura burocrática y a nivel interministerial puedan mantener
un permanente dinamismo en el funcionamiento de las administraciones
(MARTÍNEZ PUÓN, 2011, p. 30, grifo nosso).
Alguns estudos vêm buscando aprimorar a definição conceitual do
dirigente público por meio da comparação de suas características com
aquelas que caracterizam os tipos ideais weberianos. Longo (2007) pro-
põe as seguintes variáveis, entendidas em um contínuo que vai do âmbi-
to mais profissional até o mais político, para diferenciar analiticamente a
atuação política daquela exercida pelo dirigente público:
1) Matéria: o universo temático com o qual o dirigente lida em ter-
mos de conteúdo e tomada de decisão; quanto mais politizada, mais po-
lítica; quanto menos politizada, mais característica do dirigente. Assim,
diferentes matérias vão exigir diferentes perfis e competências, mais polí-
ticas ou mais técnicas.
2) Papel: nível de politização da função a ser desempenhada; quan-
to mais frequente o relacionamento com atores políticos, sindicatos, mí-
dia e sociedade, mais política; quanto menos, mais técnica.
3) Estabilidade do Produto: considera o tipo de resultado esperado
(output) do exercício da função, em termos de consolidação institucional
188
e permanência no tempo: quanto menos estável, mais político; quanto
mais estável, mais profissional.
4) Suscetibilidade de Padronização do Produto: a entrega de resultados
dotados de maior previsibilidade e capacidade de medição e avaliação
é mais característica do espaço de direção. Nesse sentido, o marco de
responsabilização dos dirigentes públicos diferencia-se do dos demais
atores, uma vez que o primeiro implica a existência de sistemas de pla-
nejamento e controle baseados em resultados; atores políticos atuam em
ambientes mais dinâmicos e fluidos, com alta dificuldade de mensuração
e baixa previsibilidade, e com formas de controle e responsabilização de-
finidas não em termos de resultados entregues, mas de responsividade
aos cidadãos que o elegeram.
5) Sistema de Gestão: considera a variável sofisticação das políticas,
práticas e procedimentos adotados para o alcance dos objetivos definidos
para determinado cargo: quanto menos aprimorado, mais político; quan-
to mais aprimorado, mais próprio do dirigente público.
Com base nesse contínuo proposto por Longo (2007), pode-se con-
cluir que a atuação dos dirigentes públicos se situa no centro do eixo,
equidistante tanto da função ou atuação mais política (reservada aos polí-
ticos) como da atuação estritamente técnica (característica dos burocratas).
Os conceitos desenvolvidos por Longo (2007) são coerentes com as
ideias desenvolvidas por Moore (1995), que sugere uma matriz baseada em
competências gerenciais e na capacidade do dirigente público de mobilizá-
las visando à criação de valor público. Tais competências são as seguintes
(LONGO, 2007; MOORE, 1995): 1) Gestão Estratégica: capacidade de refletir
estrategicamente, inovar e reformular para que possa criar o máximo valor
público; 2) Gestão do Entorno Político: capacidade de obter legitimidade em
seu entorno – superiores, outros dirigentes, grupos de interesse, cidadãos,
mídia, ou seja, atores externos à organização –, a fim de conseguir apoio
e recursos necessários para que possa desenvolver sua estratégia; 3) Gestão
Operacional: capacidade para conseguir que a organização atue com foco
189
nos objetivos e responsabilize-se pelos resultados, conforme os meios e re-
cursos sob sua autoridade. Para Longo (2007), o dirigente público atua nas
três esferas, porém com diferentes intensidades, de acordo com cada situ-
ação vivenciada, segundo diferentes posições institucionais ou contextos.
Martínez Puón (2011), por sua vez, sugere a seguinte divisão para
diferenciar as funções desempenhadas por políticos, dirigentes públicos e
burocratas: 1) Direção Política: o trabalho essencial é de natureza política e
não exige conhecimentos técnicos ou administrativos para o desempenho
da função, embora sempre sejam recomendáveis (seriam os secretários de
Estado e subsecretários, ou seja, postos de designação estritamente polí-
tica); 2) Direção Político-Administrativa: o trabalho apresenta componentes
político-administrativos e administrativo-técnicos; requer um conjunto de
habilidades e atitudes de direção, mas, também, e na mesma intensidade,
sensibilidade política para compreender os jogos de força e poder pró-
prios de toda ação social (aqui corresponderiam cargos de diretores gerais
e diretores gerais adjuntos, ou cargos equivalentes); 3) Direção Burocrática:
tem função de subsidiar os cargos superiores com competências de exe-
cução de políticas públicas, desenho de projetos ou avaliação de políticas
(seria composto de diversos diretores de área e cargos equivalentes).
Tal classificação se reveste de homogeneidade e generalização,
considera Martínez Puón (2011), ressaltando que, entre cada uma des-
sas tipologias, é possível encontrar diversos subtipos ou combinações,
tendo, por exemplo, dirigentes político-administrativos desempenhando
papéis mais políticos em um Ministério do Interior, ou mais técnicos em
um Ministério da Fazenda.
Sintetizando, apesar de distintas definições analíticas sobre a figu-
ra do dirigente público, é possível identificar certo consenso sobre seu
papel como ator que transita entre as esferas da política e da técnica,
responsável pelo desempenho de ações gerenciais, diferenciadas segun-
do as posições institucionais ocupadas (nível hierárquico e natureza da
política pública) e orientadas a resultados.
190
Considerando a importância da atuação dos dirigentes públicos
para o alcance de resultados das organizações que lideram, também é
necessário que as reformas avancem no sentido de permitir sistemas
mais profissionais de recrutamento, seleção e de gestão do desempenho
desses profissionais, a fim de que exerçam seu papel na orientação aos
resultados desejados pelo público (LONGO, 2003).
Sistemas de Alta Direção
Segundo pesquisas já realizadas, o surgimento e a consolidação da
figura do dirigente público também exige a consolidação de espaços insti-
tucionais de direção (LONGO, 2007). São apresentados, a seguir, alguns sis-
temas de alta direção pública e seu contexto, tendo em vista compreender
transformações introduzidas pelas reformas gerenciais recentes, tais como
a maior descentralização na prestação dos serviços públicos e a introdução
de regras mais flexíveis para a gestão dos funcionários do alto escalão.
Em paralelo à entrada em cena da figura dos dirigentes públicos,
vários países reformaram seus sistemas de carreira, separando um cor-
po específico voltado a funções similares às dos dirigentes – chamado
Senior Civil Service, definido pela OCDE como um corpo estruturado de
alto escalão, com regras estabelecidas, com posições destinadas a atores
não eleitos, gerenciadas centralizadamente por organizações ou por pro-
cedimentos próprios, e que combinam regras voltadas à estabilidade e
ao profissionalismo desse grupo com flexibilidades de gestão, tais como
contratos de trabalho de duração determinada e avaliação de resultados
baseada em acordos com metas preestabelecidas.
A Senior Civil Service is a structured and recognised system of per-
sonnel for the higher non-political positions in government. It is a
career civil service providing people to be competitively appointed
to functions that cover policy advice, operational delivery or corporate
191
service delivery. The service is centrally managed through appropriate
institutions and procedures, in order to provide stability and profes-
sionalism of the core group of senior civil servants, but also allowing the
necessary flexibility to match changes in the composition of Government
by using appropriate due processes (OCDE, 20085, apud KUPERUS;
RODE, 2008, grifo nosso).
A nova orientação concentra-se em prover tais cargos por meio de
processos competitivos, dos quais podem participar integrantes dos cor-
pos permanentes do Estado e pessoas de fora da administração.
A ênfase recai sobre aspectos como: a) formas de acesso ao cargo de
direção e de nomeação (via critérios meritocráticos, políticos ou a combina-
ção de ambos); b) origem6 e experiência anterior dos dirigentes; c) compe-
tências gerenciais (tais como liderança, gestão de redes, negociação, inovação,
dentre outras); d) uso de mecanismos de contratualização e avaliação do
desempenho, com base em metas e indicadores, e, em alguns casos, com re-
muneração variável atrelada aos resultados alcançados; e e) políticas de trei-
namento e desenvolvimento específicas para o alto escalão; dentre outros.
Há diversos estudos, especialmente Velarde et al. (2014), Kuperus e
Rode (2008), Longo (2003), OECD (2003), Figueroa (2002), que defendem
a relevância da emergência e consolidação desses sistemas para a profis-
sionalização do serviço público, sob o argumento de que:
[...] Muchas de las manifestaciones de ejercicio de la dirección en el sector
público han carecido del reconocimiento de un estatuto propio, entendien-
do por tal la aceptación del régimen normativo, tanto formal como infor-
mal, que dota a la gerencia profesional de un papel propio y característi-
5 OECD (GOV/PGC/PEM) (2008). The Senior Civil Service in National Governments of OECD
Countries. Paris, 31 January.
6 Insiders, se provenientes de organizações públicas; e outsiders, quando provenientes do
setor privado.
192
co en los sistemas de gobernanza pública (LONGO apud MARTÍNEZ
PUÓN, 2011, p. 9).
Conforme Longo (apud MARTÍNEZ PUÓN, 2011), o processo de ex-
pansão da função de direção pública tem surgido e se desenvolvido de
modo desigual e heterogêneo em diversos países. Uma das dificuldades
para essa consolidação estaria associada à resistência política de permitir
a profissionalização da administração pública nos países onde prevalece
a livre nomeação para os cargos de direção, especialmente nos casos de
introdução de sistemas meritocráticos e abertos, ou seja, que introduzem
regras relativas ao recrutamento para aqueles cargos, restringindo a livre
discricionariedade dos políticos que até então nomeavam outsiders ou mes-
mo servidores sem ter de submeter os escolhidos a qualquer processo de
verificação de perfil e competências. Importante ressaltar, entretanto, que
essa resistência política parece pouco fundamentada quando analisamos o
crescimento da alta direção pública como um grupo profissional que bus-
cará apoiar a direção política, ajudando-a a governar a máquina pública,
em vez de buscar ocupar os cargos políticos para a realização de interesses
próprios. Nesse sentido, destacamos a opinião de Longo (apud MARTÍ-
NEZ PUÓN, 2011, p. 11), segundo a qual política e gestão constituem não
um jogo de soma zero, mas esferas que se reforçam e complementam:
La autodelimitación de la política resulta necesaria para la creación de un
espacio directivo, pero refuerza, a cambio, las capacidades de quienes go-
biernan para dirigir estratégicamente. En este sentido, una DPP7 adecua-
damente articulada con la política hace a ésta más capaz de lograr sus obje-
tivos de gobierno y refuerza, en definitiva, la gobernanza de estos sistemas.
Martínez Puón (2011) trata desses sistemas de direção pública
como instituições que se posicionam paralelamente às já existentes, co-
7 DPP significa Direção Pública Profissional.
193
nhecidas como serviço civil, ou seja, que representam o espaço institucio-
nal de atuação e regramento dos funcionários públicos de determinada
administração pública. Tais senior civil services constituiriam formas al-
ternativas, e não substitutas, para profissionalizar certo estamento que se
diferencia do restante do funcionalismo público.
Análises, em geral embasadas em estudos empíricos, preocupam-
se em compreender as diferentes configurações institucionais que carac-
terizam esses sistemas. No início dos anos 2000, a OECD (2003) os dife-
renciou de acordo com a tipologia de sistemas de carreira ou de emprego;
o primeiro, representado pela experiência francesa, historicamente va-
lorizou a entrada de funcionários de carreira nos postos do alto escalão
governamental, favorecendo a mobilidade vertical e a formação de um
grupo coeso de altos administradores públicos em termos de valores e
competências, e impossibilitando ou restringindo a entrada dos chama-
dos outsiders; esse modelo, no início dos processos de mudança, deu pou-
ca ênfase à atuação voltada a resultados8.
Já o sistema de emprego, como o do Reino Unido, quando recruta
para cargos de direção, valoriza tanto a entrada de profissionais internos
como externos ao serviço público, realizando concursos abertos e compe-
titivos, cuja seleção é baseada no mérito, mas também em competências
de gestão. Nessa tipologia, é observada a adoção de contratos de empre-
go flexíveis, similares aos praticados no setor privado; aos dirigentes pú-
blicos não é garantida a estabilidade, não havendo, portanto, a previsão
de planos de carreira, nem de políticas de mobilidade entre diferentes
cargos ou organizações. Por outro lado, é valorizado o desempenho com
base em resultados. Cabe ressaltar, ainda, que a OCDE cita a existência
de sistemas mistos ou híbridos, que contêm elementos tanto dos sistemas
8 Em países como França, Alemanha e Bélgica, classificados pela OCDE como sistemas
de carreira, os contratos de resultados não foram utilizados, no início das reformas, como
instrumentos de gestão da alta direção pública (OECD, 2003).
194
de carreira como dos sistemas de emprego, como Itália, Bulgária e Polô-
nia (KUPERUS; RODE, 2008; OECD, 2003).
Jiménez Asencio (2007 apud MARTÍNEZ PUÓN, 2011)9 oferece
três modelos alternativos à tipologia proposta pela OCDE, classificados
em: 1) modelo corporativo (fechado, de carreira ou burocrático): a função
de direção tem origem na própria organização, é regulada estatutaria-
mente, define regras de ingresso baseadas no mérito acadêmico, possui
sistema altamente hierarquizado e valoriza a carreira pública vertical;
2) modelo de politização (ocupação pela política): qualquer pessoa pode
ocupar o cargo de direção, independentemente de suas capacidades ou
procedência; possui como critério de escolha a confiança política e se ba-
seia em discricionariedade absoluta, ou seja, a vantagem da flexibilida-
de para nomear; e 3) modelo gerencial (ou profissional): apresenta como
valores a eficácia e eficiência; possui influência do setor privado, requer
conhecimentos e habilidades vinculados à função de direção e valoriza
a gestão por competências; é marcado pela delegação do poder político
para aquele que vai dirigir a organização; a gestão é baseada em planos
ou contratos definidos previamente, com metas e objetivos a atingir. De
acordo com o citado autor, a primeira esfera seria profissional, mas não
de direção; e a segunda, seria de direção, mas não profissional. Nessas
dimensões, residiria a diferença da esfera própria do dirigente público,
de direção profissional – representada pela terceira alternativa.
Em que consiste um sistema de direção pública coerente com o
propósito de direção profissional? Para Longo (2003), um sistema volta-
do à institucionalização do cargo de dirigente público contempla quatro
principais áreas de intervenção: 1) estrutura organizacional, caracterizada
pela predominância de desenhos descentralizados, que permitem aos
9 JIMÉNEZ ASENCIO, Rafael (2007). La Función Directiva en el Sector Público Español: ten-
dencias de futuro. En: Sánchez Morón et al. (coords.). La Función Pública Directiva en Francia,
Italia y España. MAP, España.
195
dirigentes maior discricionariedade e autonomia para a tomada de de-
cisões, e sistemas de planejamento e controle baseados em resultados; 2)
regras formais de gestão de pessoas para cargos de direção e existência de
mecanismos adequados para a gestão de dirigentes, tais como garantias
jurídicas capazes de proteger da politização e da arbitrariedade e regu-
lamentação que permita a gestão dos dirigentes por meio de regras es-
pecíficas e flexíveis de recrutamento, nomeação, carreira e remuneração;
3) definição das competências gerenciais, entendidas como eixo central das
ações de recrutamento, seleção e avaliação de desempenho; e 4) incorpo-
ração da cultura de direção pública, em oposição à cultura burocrática, nas
organizações governamentais (LONGO, 2003).
Em síntese, os sistemas de alta direção pública têm flexibilizado
seus instrumentos para recrutamento e gestão dos dirigentes, caminhan-
do rumo à direção profissional apontada por Jiménez Asencio (2007,
apud MARTÍNEZ PUÓN, 2011).
No que se refere aos países latino-americanos, tanto as experiências
quanto os estudos sobre o tema são em menor número; pesquisas tendem
a focalizar os sistemas de serviço civil, com alguma menção aos sistemas
de alta direção. Recente estudo publicado pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (VELARDE et al., 2014) concluiu que, apesar de alguns
avanços e diversidade de desenhos organizacionais adotados, a profis-
sionalização dos sistemas de alta direção nos países da América Latina
ainda é muito tímida. Para os autores, a maior resistência ao avanço de
iniciativas voltadas à institucionalização dos sistemas de alta direção
residiria na redução da possibilidade de livre nomeação por parte dos
atores políticos.
Nos Estados membros da União Europeia e da OCDE, por outro
lado, cada vez mais os sistemas de alta direção vêm ganhando posição de
destaque, sendo tratados como um grupo especial, com regras específicas
e próprias dos altos dirigentes. Atenção especial é dada à qualificação dos
196
dirigentes e à introdução de mecanismos como recrutamento de candida-
tos externos à função pública, à celebração de contratos de resultados e à
adoção de mecanismos de avaliações de desempenho periódicas.
Nesses casos, vem sendo observada a convergência entre ele-
mentos dos sistemas de carreira e de emprego, em novas configurações
denominadas de modelos híbridos. Sistemas baseados em carreiras vêm
adotando elementos dos sistemas de emprego, como, por exemplo, o uso
do recrutamento de candidatos externos; já sistemas de emprego vêm
adotando regras dos sistemas de carreira, como a introdução da pró-
pria perspectiva da carreira para os recrutados para cargos específicos
de direção, visando à retenção dos melhores dirigentes no sistema por
meio da revisão de mecanismos de promoção e mobilidade (KUPERUS;
RODE, 2008; OECD, 2003), com o objetivo de reduzir a rotatividade de
altos dirigentes, promover sua mobilidade entre as organizações e forta-
lecer uma cultura comum (OECD, 2003).
Apesar da apontada convergência na combinação de diversos ele-
mentos, os diferentes sistemas vêm avançando segundo ritmos e estra-
tégias variadas. A OECD (2003) constatou, em estudo comparativo de 12
países membros10, que, enquanto alguns países implementam reformas
mais radicais, outros adotam estratégias mais incrementais, reformando,
em alguns casos, todo o sistema de pessoal; em outros, tratando primei-
ramente da modernização de seus sistemas de alto escalão.
Tal movimento ocorre, com avanços mais tímidos, mas seguindo
as mesmas tendências, na América Latina, onde vale destacar o reconhe-
cido caso chileno, em implementação desde 2003, e merecem atenção as
recentes experiências de Peru e Uruguai, o primeiro mais bem-sucedido,
até o momento, que o segundo (VELARDE et al., 2014), além de outros
países, incluindo México e Argentina.
10 Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Itália, Coreia, México, Holanda, Nova Zelândia,
Espanha, Reino Unido e Estados Unidos.
197
As experiências desses países, apesar de constituírem avanços tí-
midos, são tendências a serem observadas e acompanhadas. Em alguns
casos, como Chile e Peru, a adoção de mecanismos de profissionalização
do alto escalão é parte de uma reforma mais ampla do serviço público.
Em outros países, como o Uruguai, trata-se de uma iniciativa isolada de
reforma. Cabe, no entanto, ressaltar que ambos constituem tendências
que demonstram transformações em curso, sendo pertinente supor que
dificilmente retornarão ao patamar inicial da completa politização dos
cargos do alto escalão governamental.
Devido a seu caráter pioneiro e sua longevidade, o caso do Chi-
le tem sido objeto de estudo dos autores deste artigo (ALESSIO, 2014,
2013; ALESSIO; PACHECO, 2013), dentre outros autores (CHILE, 2012;
SILVA DURÁN, 2011; COSTA; WAISSBLUTH, 2007). Tal experiência re-
presenta importante mudança tanto nas instituições como na cultura
política chilena, anteriormente marcada por um sistema desestruturado
de carreira e por uso político dos cargos púbicos (IACOVIELLO et al.;
2011). O país vem buscando um patamar de profissionalização, trans-
parência, probidade, competência e mérito dos seus quadros de direção
como primeiro passo para uma mudança mais ampla em toda sua es-
trutura de emprego.
Também encontramos, na América Latina, o debate sobre os mode-
los de carreira e de emprego. Iacoviello et al. (2011), com base em análise
comparada dos sistemas de direção pública de Chile, México, Argentina
e Peru, observaram que, no Chile, assim como no México (cujos siste-
mas de alta direção são classificados como sistemas de emprego, segun-
do tipologia da OCDE anteriormente apresentada), a origem do sistema
de alta direção deu-se em contexto de profundo questionamento das
consequências de politização dos cargos do alto escalão e originou-se
no Poder Legislativo. Por outro lado, as iniciativas de Argentina e Peru
(caracterizadas por sistemas de carreira) tiveram origem no âmbito do
próprio Poder Executivo, que buscava formas de profissionalização da
198
carreira pública na geração de massa crítica de gestores inovadores (IA-
COVIELLO et al.; 2011). Apesar do uso de estratégias distintas, tais inicia-
tivas avançam no mesmo sentido das tendências observadas nos países
europeus e da OCDE.
Dirigentes públicos, mérito substantivo e flexibilidade
É crescente a importância do debate sobre os sistemas de alta di-
reção para a seleção e o acompanhamento dos dirigentes responsáveis
pela condução das organizações públicas e prestação dos serviços com
qualidade e responsividade aos cidadãos. Apesar das distintas estraté-
gias adotadas ou dos diferentes modelos e instrumentos utilizados, a
profissionalização e o fortalecimento de sistemas de alta direção são uma
tendência observada tanto nos países da OCDE como, mais recentemen-
te, em países da América Latina.
Segundo Longo (2009), mérito e flexibilidade não são excludentes
e podem se combinar na composição dos sistemas de serviço civil e dos
sistemas de alta direção. Assim, ainda que o surgimento de sistemas de
alta direção não seja precedido da consolidação do emprego público, no
sentido weberiano do termo (acesso competitivo a cargos públicos, es-
tabilidade no emprego, progressão baseada no mérito, dentre outros), é
possível adotar inovações de sistemas mais flexíveis. Para esse autor, as
razões para essa afirmação seriam: a) mesmo em sistemas públicos não
meritocráticos, a introdução de práticas flexíveis constitui também uma
necessidade inadiável; b) é difícil distinguir quando um sistema de mé-
rito está plenamente consolidado e preparado, portanto, para iniciar a
segunda fase de reformas, mais flexível; c) governos que restringem sua
reforma apenas ao sistema meritocrático estão fadados ao fracasso, por
não considerar aspectos de decisão discricional e por renunciar, portanto,
a incentivos que levem a revisar as práticas de clientelismo; e d) a ins-
piração puramente meritocrática faz da reforma legal o eixo dos novos
199
sistemas de garantias; a atenção volta-se para a criação e promulgação
de regras que, no fundo, manterão as rotinas preexistentes com pequenas
adaptações – criando assim sistemas de mérito formal, sem garantias à
prevalência do mérito substantivo.
Quando mérito e flexibilidade são combinados, o provável é que as
reformas prestem atenção aos processos e articulem iniciativas de mu-
dança normativa com o desenvolvimento de novas capacidades internas,
usando estratégias de gestão da mudança e tornando-se mais viáveis e
sustentáveis (LONGO, 2009).
A reflexão proposta por Longo (2009) dialoga com os movimentos
em curso na América Latina, de profissionalização de espaços institucio-
nais de direção em contextos de burocracias ainda pouco consolidadas.
Tais movimentos, conforme discutido por Iacoviello et al. (2011), também
vêm moldando-se segundo diferentes estratégias, inspirando-se nos mo-
delos de emprego ou de carreira.
É possível identificar convergência entre diversas tendências
observadas em países latino-americanos e em países desenvolvidos.
No caso da América Latina, notamos a institucionalização de sistemas
voltados à profissionalização do alto escalão governamental e à ado-
ção de um conjunto de critérios baseados na gestão por competências
e na análise de mérito para a seleção de dirigentes responsáveis por
dirigir as principais organizações do País. Em alguns casos, a profis-
sionalização do alto escalão convive com movimentos de profissio-
nalização da burocracia de Estado, até então caracterizada como uma
burocracia pouco consolidada; em outros, é tratada de modo isolado
e distinto. Dessa maneira, diferentes países, com distintas estratégias
adotadas, vêm implementando ações no sentido de profissionalizar o
alto escalão, independente da consolidação prévia de estruturas bu-
rocráticas tradicionais.
Em sistemas europeus e de países da OCDE, a profissionalização
vem ganhando novo significado, na medida em que em cada caso é ado-
200
tada uma combinação de diferentes elementos, de emprego e de carreira,
na busca pela configuração que melhor represente os interesses e resul-
tados desejados. Segundo a OCDE:
One of the early findings is that the focus on the implementation of perfor-
mance-oriented management has led to a convergence in the systems
of senior civil services. It seems that there are different centralisation
and decentralisation tendencies of the reforms, leading to a form of con-
vergence between the two main senior civil service types (OECD,
2003, p. 8, grifo nosso).
Destacar um espaço próprio para o exercício da função de direção,
no setor público, não significa negar a política. Importante ressaltar que,
em todas as experiências em curso, o que se busca é clarear os diferentes
espaços – da política e da direção profissional, em alguns casos fazen-
do recuar os limites da burocracia (nos países de sistemas burocráticos
consolidados); em outros, fazendo retroceder a ampla discricionariedade
dos políticos (nos países de sistemas burocráticos incompletos ou inexis-
tentes). Em ambos os casos, visa-se a desenhar sistemas compatíveis com
a natureza do setor público, ainda que inspirados em iniciativas de re-
crutamento do setor privado. Assim, o caso chileno sempre se apresenta
como uma experiência de racionalização do processo decisório, por meio
da qual se prepara a melhor decisão dos políticos – já que a eles cabe a
palavra final em termos de escolha do dirigente, desde que certificado
por meio de um processo estruturado de escolha e seleção.
No panorama das experiências em curso, o Brasil é um grande au-
sente. Nosso sistema combina amplas margens de discricionariedade aos
políticos com discursos em favor do modelo burocrático clássico – como
se a solução estivesse em reservar todos os cargos de direção a integran-
tes de carreiras burocráticas. O desafio, portanto, no Brasil, é duplo: a um
só tempo modificar as práticas e atualizar o discurso.
201
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Clóvis de Barros Filho
Doutor em Direito pela Universidade
de Paris e Doutor em Comunicação
pela Universidade de São Paulo
(USP). Professor de Ética da Escola
de Comunicação e Artes (ECA/USP)
e da HSM Educação. Consultor de
Ética da Unesco.
Franklin Leopoldo e Silva
Professor, colunista e conferencista do
Espaço Ética. Professor livre-docente
aposentado do Departamento de
Filosofia da FFLCH-USP. Professor
de Filosofia da Faculdade São Bento.
Thiago Souza Santos
Bacharel em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e diretor na
Unidade Central de Recursos Hu-
manos da Secretaria de Planejamen-
to e Gestão do Estado de São Paulo.
208
Thiago Souza Santos – Toda vez que falamos de serviço público,
um tema que sempre vem à mente é a ética. Seja para falar em falta de
ética ou que precisamos de mais ética no serviço público, que precisamos
fazer as coisas corretas. E é a partir daí que inicio a nossa conversa. Pro-
fessor Franklin, o que é ética? Que conceito encerra esse termo?
Franklin Leopoldo e Silva – A ética faz parte da Filosofia. Então,
ela é tão difícil de conceituar quanto a Filosofia. Mas isso não é necessá-
rio. O que menos se precisa fazer com a ética é defini-la e conceituá-la.
Porque ela é uma prática humana e nós sabemos o que ela é ao praticá-
la. Não temos que defini-la, temos que praticá-la. Há muitos assuntos
acerca dos quais a definição não é importante. O conhecimento, do ponto
de vista teórico, não é importante. É muito mais importante a prática, a
conduta e aquilo que nós fazemos entre nós, conosco mesmos e com os
demais. A ética é uma prática humana que se define exatamente por essa
sua característica de aparecer na conduta humana, de se manifestar nas
nossas ações. Sabemos o que é ética quase que intuitivamente, quando
observamos as pessoas e o comportamento delas. E quando julgamos e
avaliamos as nossas possibilidades de agir. Então, a vivência, a experiên-
cia, vale muito mais, em termos éticos e em todas as práticas humanas,
do que o conhecimento teórico e qualquer definição.
Thiago Souza Santos – E como você, professor Clóvis, entende
a ética?
- Clóvis de Barros Filho, Franklin Leopoldo
e Silva, Thiago Souza Santos
209
Clóvis de Barros Filho – O professor Franklin observou bem. A
ética tem um componente prático que é a sua parte mais visível. Mas a
ética implica algum tipo de reflexão sobre essa prática, sobre a vida e a
conduta. E eu me permito aqui avançar algumas coisas positivas, concei-
tuais, que me parecem relevantes. Penso que a ética é uma atividade inte-
lectiva e coletiva. Nesse sentido, poderíamos dizer que ela é uma produ-
ção intelectual da qual muita gente participa e que tem por objeto maior
buscar o aperfeiçoamento da convivência. Então, essa reflexão coletiva
busca o aperfeiçoamento de uma prática também coletiva. Estamos, as-
sim, diante de uma atividade intersubjetiva que vai além das nossas di-
vagações pessoais mais íntimas. No fim das contas, a ética nos oferece
uma excelente oportunidade de superar a nossa convivência de hoje. E
isso se dá no mundo real, na vida. Observem: se estivéssemos dando essa
palestra a 10 anos atrás, certamente teríamos aqui pessoas fumando, sem
o menor problema. Há cinco anos, talvez tivéssemos muitos avisos de
“proibido fumar”, indicando até o número da lei que proíbe fumar em
lugares fechados. Mas hoje, nem avisos nem gente fumando. Temos que
admitir que a convivência mudou, e não pela intervenção de uma força
transcendente qualquer. Mudou porque nós deliberamos, discutimos, ar-
gumentamos, e chegamos à conclusão que, nesse mundo que comparti-
lhamos, é melhor que não se fume em lugares fechados.
Agora, veja o que é interessante: a ética no fundo apresenta um
grande problema, que é um certo desajuste entre a convivência que que-
remos para nós e as pretensões individuais (ou mesmo de grupos) que
atentam contra essa nossa aspiração coletiva. A ética se torna um proble-
ma toda vez que se exige que alguém adote uma estratégia, um protocolo
ou uma conduta contrárias à sua vontade particular, a fim de não agredir
o que entendemos ser a melhor convivência possível. Aí fica fácil perce-
ber que, no final das contas, a ética é uma espécie de triunfo da convivên-
cia sobre as vidas particulares, é uma espécie de vitória da vontade geral
sobre a vontade de cada um. E, nesse sentido, é preciso entender que
210
a ética só tem razão de ser porque temos certa liberdade para escolher
como queremos conviver e para definir o modelo de convivência que
pretendemos pra nós, ou os princípios que pretendemos respeitar. As
formigas, por exemplo, também convivem e interagem, mas não há ética
no formigueiro, porque a ação das formigas é definida, inexoravelmente,
pelo seu instinto, pela sua natureza. Então, não há o que aperfeiçoar no
formigueiro. No nosso caso, a ética parte da premissa de que a convivên-
cia, a interação, pode ser diferente do que é, pois temos a prerrogativa de
aperfeiçoar e buscar uma solução de convivência que supere a de hoje.
Eis aí o que proponho à reflexão: que não nos limitemos a constatar como
as coisas são, mas que reflitamos sobre o “dever-ser”, sobre o que poderia
ser diferente e que não é, sobre o que poderia ser melhor do que é. E a
ética diz respeito a isso.
Thiago Souza Santos – Professor Clóvis, você deu o exemplo da
proibição de fumar motivada por uma lei que restringiu o fumo em lo-
cais fechados. Isso é interessante, pois muitas vezes as pessoas ligam a lei
à ética, e ser ético passa a ser “cumprir uma lei”. A atuação legal ou fora
da legalidade tornam-se, assim, correlatas à ética. Como você vê isso? Há
uma relação direta entre o legal e o ético?
Clóvis de Barros Filho – Antes de mais nada, acreditar que a
proibição do fumo em espaços internos tenha começado com a lei é des-
merecer tudo o que houve antes dela. Aliás, toda lei tem esse “mérito”
higienizante, de nos fazer acreditar que nada aconteceu antes. Eu estudei
muito a nossa constituinte e a força simbólica do texto constitucional,
considerado sagrado e revestido de grande força simbólica. Mas isso nos
faz esquecer o processo de elaboração do texto legal, obviamente marca-
do pela participação de muita gente, por pontos de vista diferentes, por
argumentos variados.
A sua pergunta é excelente porque, realmente, uma parte dos en-
tendimentos éticos visando à boa convivência traduz-se em leis. Portan-
to, de certa maneira, podemos dizer que a lei tem de fato a ver com a
211
ética, porque confere uma forma própria de manifestação do Estado a
certos princípios que são de natureza ética. Mas que fique claro que a
ética é infinitamente mais ampla do que a dimensão legal e normativa,
naquilo que se estabelece como lei no ordenamento jurídico vigente. E,
ao inverso, muitas normas jurídicas poderiam e deveriam ser problema-
tizadas a partir de uma reflexão ética. Com isso, acho que matizei um
pouco a sua reflexão.
Thiago Souza Santos – Professor Franklin, como você definiria a
corrupção a partir da reflexão ética?
Franklin Leopoldo e Silva – Em relação à reflexão que o Clóvis
nos propõe, acerca da legalidade, do direito, da ordenação jurídica e da
legitimidade ética, a corrupção não é um conceito que se pode facilmente
definir. Isso porque à medida que a corrupção vai se tornando sistemáti-
ca e se incorporando nos costumes, como tem acontecido de forma signi-
ficativa na nossa história, ela vai adquirindo ares de legalidade. Ou seja,
a moral deriva sempre dos costumes, e os costumes podem incorporar
a corrupção. Nesse sentido, até há meios de legalizar a corrupção. Daí a
importância de se diferenciar a ética e a lei, a ética e a moralidade. Houve
momentos na história em que, de maneira muito positiva, se via toda a
ética resolvida nas obrigações morais da sociedade. Hoje, já não se pensa
mais assim, porque a própria experiência desmentiu isso. A experiên-
cia ética, como o Clóvis falou, vai muito além da lei, e é preciso sempre
questionar a legitimidade das leis que, muitas vezes, ao ser elaboradas,
não seguem princípios éticos. A questão decisiva é esta: que valor está
em jogo, quando queremos entender uma conduta ética? Não se trata
apenas de uma conduta legal; não se trata apenas daquilo que se institui
como lei. O exemplo que sempre ocorre quando se fala disso refere-se ao
nazismo. Na Alemanha de Hitler, todas as medidas terríveis que levaram
à morte de pessoas, às torturas, ao holocausto, ao extermínio... todas elas
foram legalizadas. Tanto é que a resposta mais comum que os oficiais
nazistas presos deram em seus julgamentos era: “Eu cumpria ordens,
212
cumpria leis – se não tivesse feito aquilo, teria ido contra a lei”. Então, é
muito importante entender essa relatividade da lei e separá-la da ética.
A ética e o direito têm uma relação bastante próxima, mas não se pode
confundi-los, ao custo de se perder o valor da conduta ética, valor que é
intrínseco e que independe da lei. Nesse sentido, a corrupção só seria de-
finitivamente extirpada se houvesse uma mudança nas condutas éticas,
e não apenas reformas legais. Isto é, você não extingue a corrupção refor-
mulando as leis ou fazendo leis mais severas, para punir de maneira mais
efetiva quem pratica a corrupção. Quanto mais leis você faz na tentativa
de prevenir a corrupção, mais estratégias são elaboradas no sentido de
burlar essas leis. É por isso que o valor ético é superior, e muito maior, do
que o significado jurídico de qualquer lei.
Thiago Souza Santos – Já que estamos falando da corrupção
incorporando-se em nossa moral, lembro uma reflexão do filósofo Luc
Ferry que diz não gostar da indignação porque pressupõe que aquele
que se indigna o faz sempre em relação aos outros, e nunca a si próprio,
e isso passa uma ideia de limpeza moral individual. Então, uma vez que
a corrupção “frequenta” o nosso hábito, e uma vez que o excesso de leis
nos obriga a uma contínua obediência, muitas vezes sem nenhuma refle-
xão, sobre, inclusive, se se deve ter essa obediência ou não, eu pergunto:
Como vocês veem a corrupção no dia a dia, sempre com base na discus-
são ética?
Clóvis de Barros Filho – A partir de um exemplo, vou tentar
pinçar algumas características que possam servir de matéria-prima con-
ceitual para essa discussão. Vamos imaginar um servidor público, cuja
competência jurídica e atribuição administrativa lhe conferem a respon-
sabilidade de adquirir material escolar para uma rede pública signifi-
cativa, de, por exemplo, 50 mil escolas. Esse servidor público tem au-
toridade decisória para fazer uma escolha, em nome de alguém, dentre
vários fabricantes de material escolar. A que interesses ele vai atender?
213
Evidentemente que aos interesses de quem o colocou ali. Ora, essa prer-
rogativa de escolha que ele tem é legitimada pelo posto que ocupa. E isso
provavelmente decorre de seu histórico profissional: pode ter chegado a
esse posto por meio de um concurso público, de uma filiação partidária,
de um investimento eleitoral significativo.
Então, são vários fabricantes; imaginem que um deles tenha delibe-
rado no sentido de atender aos interesses da sociedade como um todo e,
em particular, aos das crianças que vão usar o material escolar, e por isso
adotou como estratégia investir na qualidade dos produtos oferecidos.
O seu principal concorrente adota uma estratégia diferente. Ele faz
uma visita ao servidor e mostra que a decisão que ele tomar poderá rede-
finir os caminhos da disputa de mercado daquele segmento, e aí, então,
oferece ao servidor a mesma soma de dinheiro que o outro empresário
teria que investir para obter a melhor qualidade do material escolar. O
servidor se deixa “sensibilizar” por essa abordagem e muda o seu critério
de escolha: se o critério anterior era o de beneficiar a sociedade com a
melhor qualidade, o critério que ele enfim adota atende à abordagem do
segundo fabricante. Na próxima compra de material escolar, o fabricante
já saberá quem procurar, e o servidor já estará esperando a abordagem.
E assim se estabelece uma parceria. E o que acontece, depois, é que essa
parceria se torna habitual, rotineira, de tal maneira que, se algum outro
empresário quiser entrar nesse mercado, será prontamente desencoraja-
do. Essa é a realidade que se estabelece, que se consagra, que se legitima
na tradição.
E alguém poderá perguntar: por que chamamos isso de corrupção?
Para mim é muito claro: assim como em colaboração trata-se do labor com
mais de um; em coabitação, da habitação com mais de um; ou em coope-
ração, da operação com mais de um... Na corrupção consagra-se uma rea-
lidade que leva à destruição, à degeneração, um caminhar para a morte
através da ação de mais de um. O que está sendo destruído? O tecido
214
social, a confiança nas instituições, a confiança nas pessoas. E isso se legi-
tima porque as relações de corrupção raramente se esgotam numa única
operação. E então você entende que nenhuma sociedade eticamente de-
senvolvida pode tolerar que alguns obrem no sentido da sua destruição.
A corrupção é um problema ético justamente porque consagra a vitória,
a satisfação do interesse de alguns poucos contra o interesse da convi-
vência entendida como a melhor possível.
Ainda faço uma outra reflexão: na relação de corrupção – porque
a corrupção é um atributo da relação –, os meios de comunicação, às
vezes acovardados, costumam destacar só uma parte do problema, que
é o lado mais fraco dessa relação, acovardados porque, do outro lado da
relação, estão os custeadores, patrocinadores, garantidores econômicos
da empresa de comunicação. A gente só se lembra de que existe sujeito
ativo e sujeito passivo quando algum jurista toma a palavra para falar de
corrupção, senão você tem a impressão de que a corrupção é um ato iso-
lado e de que o fulano é isoladamente corrupto. O servidor público, com-
prador de material escolar, torna-se vendedor de seu poder de compra.
E o empresário, vendedor de material escolar, torna-se, episodicamen-
te, comprador do poder de venda. Então existe uma inversão de papéis,
o “enxovalhamento” de identidades – e isso nenhuma sociedade pode
tolerar, porque, na hora que você violenta a sua identidade, você invia-
biliza a sua responsabilidade. Daí por que as relações de corrupção são
feitas na surdina, na opacidade, na calada da noite. E como nem sempre a
sociedade é eficaz para denunciá-las, essas relações se protraem no tem-
po, fazendo a alegria de alguns e a tristeza da imensa maioria.
Thiago Souza Santos – Falou-se, agora, da confiança, e acredito
que, quando falamos do serviço público, a confiança é essencial, por-
que você confia quando entra num processo eleitoral, num determinado
programa, confia em boa parte dos serviços públicos, nos servidores, na
administração pública. Mas o que temos notado é o aumento da descon-
215
fiança da sociedade em relação à administração pública. E um tema que
tem fervilhado nas discussões diz respeito à transparência. Mas, muitas
vezes, a transparência é discutida como um meio por si só, que se re-
troalimenta, quase como aquela cobra que engole o próprio rabo. Como
vocês veem a questão da transparência e do aumento da desconfiança da
população em relação à administração pública?
Franklin Leopoldo e Silva – O Clóvis tocou em um problema
que é histórico e que data do início da modernidade, ou seja, o interesse
pessoal tornou-se virtude. Houve um tempo em que falar do interesse
pessoal em detrimento dos interesses da cidade, da comunidade, do in-
teresse público, era alguma coisa de aberrante. Hoje, consideramos que
cada um deve trabalhar pelo seu interesse pessoal, enaltecemos a figura
do empreendedor, daquele que cuida de si, que investe em si mesmo. E
esse interesse próprio faz com que o indivíduo se sinta legitimado para
defendê-lo até as últimas consequências. O que aqueles dois persona-
gens que o Clóvis descreveu fazem é exatamente isso, cuidam de seu
interesse próprio, o que, do ponto de vista da sociedade contemporâ-
nea, é considerado normal, é o que todo mundo faz. E quem não faz isso
não está sendo fiel ao espírito do capitalismo. Porque capitalismo é isso:
é você empreender, você investir para que consiga competir de forma
mais eficaz e ganhar. É o que está acontecendo naquela parceria. Cada
um investiu no seu próprio interesse. O interesse limitado ao de um só
indivíduo tornou-se critério para tudo, inclusive critério moral. Presumo
que nenhum deles perca o sono por conta da história que o Clóvis nos
contou; pelo contrário, estão muito satisfeitos porque estão atendendo
aos seus interesses próprios, que vêm antes de tudo. O servidor público
– e a palavra “público” tornou-se bastante trivial no nosso vocabulário
– deveria tentar recuperar o peso e o significado de sua função. Mas isso
se tornou muito difícil, porque o privado supera largamente o público.
O interesse individual supera largamente o interesse geral, e é nesse sen-
216
tido que cada vez mais vemos essas batalhas pelo interesse pessoal na
esfera pública. A esfera pública não privilegia mais o interesse público.
Tornou-se o lugar onde prevalecem os interesses privados – e vence
aquele que conseguir a melhor estratégia. Então a questão ética se coloca
desta forma: os costumes substituíram o interesse público pelo interesse
privado. E o interesse privado é o critério – isso é que é importante –,
aquele que não defende o seu interesse, que não investe em si mesmo,
que não luta pela sua própria sobrevivência, competindo eficazmente
com o outro, utilizando todos os meios, esse é um fracassado social, não
está à altura da sociedade em que vivemos, uma sociedade que encoraja
o interesse pessoal. Então, esse conflito entre o público e o privado vai
se acirrando cada vez mais, e o interesse privado (sempre com base no
critério pessoal, no investimento em si mesmo, no individualismo exa-
cerbado) ganha cada vez mais espaço, em detrimento dos interesses da
cidade, da comunidade, do espaço público.
Thiago Souza Santos – E você acha que essa inversão de valores
tem ampliado a desconfiança da população em relação ao serviço pú-
blico? Porque se eu considero apenas os meus valores e reconheço como
norma apenas aquilo que é do interesse pessoal, então eu acabo crian-
do uma desconfiança em relação àqueles que estão no serviço público,
achando que eles também estão tentando tomar a máquina pública para
defender apenas os seus interesses individuais.
Franklin Leopoldo e Silva – Do ponto de vista ético, só existe va-
lor quando ele é compartilhado. Isso que você chama de desconfiança
deriva do fato de que o valor agora está vinculado ao interesse pessoal.
Então eu tenho que desconfiar do outro, porque do ponto de vista da
sociabilidade competitiva é o valor dele contra o meu valor, e nós não
compartilhamos valores éticos, sociais, públicos. Então, tenho sempre
que tentar passar uma rasteira, porque esse é o modo pelo qual o meu va-
lor vai prevalecer. O problema é entender que um valor exclusivamente
pessoal possa realmente ser considerado como um valor ético. Ele pode
217
ser considerado como um interesse, mas não como um valor. A grande
confusão que se faz hoje é entre interesse e valor.
Thiago Souza Santos – E você, professor Clóvis, confia ou não
confia no serviço público?
Clóvis de Barros Filho – A confiança, no final das contas, é um
tipo de certeza. Uma certeza que temos em relação a alguma coisa e que
não podemos verificar ou demonstrar. Assim, temos certeza de que o sol
se põe toda tarde. Isso é confiança no pôr do sol; só que essa confiança
não nos interessa. A confiança que nos interessa é aquela que diz respeito
à ação do outro. É nesse momento que a confiança entra no nosso cam-
po de reflexão. É fato que, na nossa convivência, confiamos. Não poderia
ser diferente, até porque não podemos estar em verificação permanente.
Assim, a confiança é necessária aos líderes, porque eles não podem estar
vigiando seus subordinados o tempo inteiro. Quando se contrata alguém
para fazer algum trabalho, que deverá ser iniciado num dia determinado,
a confiança é necessária, pois não podemos antecipar se o trabalho será
ou não começado no dia marcado. O que se percebe é que a gente confia o
tempo inteiro porque a nossa capacidade de verificação é pífia. A confian-
ça é um jeito de conviver, assim como a desconfiança, sobretudo porque
não somos todos confiáveis o tempo inteiro. Quanta decepção você teria
evitado se tivesse desconfiado mais? Quanto parceiro canalha, quanto ro-
edor de corda, quanto traidor, em quanta gente indigna você apostou e
que o deixou triste, que determinou em você uma queda de potência.
Então chegamos aqui a uma situação interessantíssima que o filó-
sofo Edgar Morin chama de complexidade dos valores. Pois, no final das
contas, a confiança não é bem um instrumento de deliberação livre sobre
a conduta. Você não confia porque quer nem desconfia porque quer. A
confiança é uma espécie de resultado de outro critério de convivência,
que é a fidelidade. O que você pode escolher é ser ou não fiel, é ser ou não
digno de confiança. A fidelidade é condição da confiança que depositam
em você. Fidelidade aos próprios valores, àquilo que você deu como ga-
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rantia, às coisas que você enunciou a seu respeito. Isso é uma espécie de
vínculo com o passado, que mantemos para garantir certa identidade que
nos permita conviver em sociedade. A fidelidade, sim, está em nossas
mãos. Você poderá ser fiel ou infiel, e a confiança em você dependerá
dessa maior ou menor fidelidade.
Agora, respondendo a sua pergunta sobre o fato de ninguém mais
confiar na administração pública. Será que poderia ser diferente? Afinal
de contas, o que ficamos conhecendo sobre o trabalho dos gestores públi-
cos e sobre a administração pública? Principalmente aquilo que a mídia
jornalística nos apresenta. Fora disso, é extremamente difícil ter acesso
ao trabalho do gestor. E todos sabemos que o trabalho jornalístico é reali-
zado com base em crivos propriamente jornalísticos. O jornalista estabe-
lece uma espécie de teoria do espelho entre o que aconteceu e a notícia;
sabemos que ele “reconstrói” a realidade segundo critérios consagrados
no campo jornalístico. Então é claro que, quando se vai, por exemplo,
avaliar as informações que se têm a respeito dos governos estadual, mu-
nicipal ou federal, o que se tem na mão é o que nos chegou através das
páginas dos jornais, dos noticiários da televisão, da Internet. Então, ante
os critérios propriamente jornalísticos de identificação do que é notici-
ável, a desconfiança é inexorável. Porque você tem servidores públicos
que trabalham há décadas na mais estrita honestidade, no cumprimento
de seu dever, com eficiência e competência, e nada disso atende a ne-
nhum critério de noticiabilidade; e esse servidor permanecerá obscuro;
suas qualidades, ignoradas. Por outro lado, aquele servidor público que
resvalar na ilicitude vai ticar o primeiro critério para se tornar notícia; e
como a gente só tem acesso àquilo com que a pauta nos brindou, tomare-
mos a parte pelo todo – e uma parte enviesada, ideologizada, marcada
por intervenções e análises complexíssimas, que limitam nosso olhar e o
tornam completamente desconfiado em relação ao contexto completo da
administração pública.
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Thiago Souza Santos – Chegaram aqui algumas perguntas que
tocam no assunto abordado pelo professor Clóvis e que dizem respeito
aos mecanismos para tentar resgatar a confiança. E um dos temas re-
correntes é a respeito dos valores. Muitas empresas, ao falarem de sua
missão, colocam como um dos valores a ética. Ética seria um valor a ser
tratado dentro desse conceito?
Clóvis de Barros Filho – Há um erro aí, uma inversão. A ética
é um campo enorme de conhecimento, e os valores morais são apenas
um aspecto desse saber complexíssimo que é a ética. A reflexão sobre os
valores é apenas uma forma de discutir a ética, dentre tantas outras. O
estudo da ética passa por Aristóteles, pela ética cósmica, pela harmoni-
zação da natureza com o cosmos, pela questão do meio-termo; podemos
até pensar numa ética cristã, no pragmatismo, no utilitarismo, no kantis-
mo, etc., e fazer toda uma análise. Os valores se inscrevem na história do
pensamento moral. Dizer que a ética é um valor é uma inversão da parte
pelo todo, o que, a meu ver, é um equívoco conceitual.
Thiago Souza Santos – E o que você acha, professor Franklin?
Franklin Leopoldo e Silva – Eu concordo, mas acho que é mais
do que um equívoco conceitual. Quando se transforma a ética em valor e
ela é colocada como componente do comportamento empresarial, faz-se
a mesma coisa que se fez com a sustentabilidade, que começou como um
valor e acabou se tornando um critério de marketing. Isso é uma trivia-
lização da ética e uma utilização da ética a serviço de interesses empre-
sariais. Voltamos à mesma questão: não se trata, portanto, de valor, mas
da utilização da ética como um pseudovalor, quer dizer, como um falso
valor que, na verdade, tem como objetivo vender mais produtos. Então, a
ética – e hoje isso é muito comum – passa a fazer parte da publicidade,
a fazer parte de um universo de qualificações que a empresa recebe em
troca de certa imagem que ela quer projetar. E isso, digamos assim, é um
uso antiético da ética.
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Clóvis de Barros Filho – Gostaria de destacar algumas aberrações
complementares. Você entra numa empresa e está lá: “Valores: hones-
tidade, transparência, inovação, ética e foco no resultado”. Você já viu
alguma lista com foco na honestidade? O foco é sempre no resultado.
Agora pense: uma lista em que um dos itens seja a palavra “foco”. Essa
é uma palavra da óptica recentemente importada para a ética. Você vai
ao oftalmologista e ele diz: “foca a terceira letra”. E eu pergunto: quando
você foca uma letra, o que acontece com a visão das outras letras? Você
desfoca todo o campo de visão restante. Então, o banner corporativo, que
prega como valores: a honestidade, a transparência, a ética e o foco no
resultado, deixa claro esse efeito cosmético da ética.
Thiago Souza Santos – Eu acredito que as pessoas começam a
perceber as questões práticas da ética, como o próprio professor Franklin
apontou no início: a ética, mais do que um conceito, um tema, é uma
prática. Mesmo assim, constantemente ouvimos dizer: “Isso é muito bo-
nito, mas não serve para nada, isso é muito conceitual, não passa de te-
oria”. O que poderíamos dizer a respeito disso? A ética é, de fato, muito
teórica, ou tem a ver com a nossa prática, com o nosso dia a dia, com a
nossa convivência?
Clóvis de Barros Filho – Dizer que a ética é muito teórica é de
uma estupidez sem precedente. A ética tem por objeto a conduta hu-
mana. Como pode ser teórica? A etimologia de teoria é: contemplando o
divino – e, portanto, tem a ver com a certeza de que o divino, sobretudo
para os estoicos, era a própria beleza da complementaridade funcional
do cosmos. Nada tem a ver com o que estamos falando... Aristóteles, jus-
tamente, dividia os saberes dessa forma. A ética é tudo menos teórica;
ela tem por objeto o mundo da vida “de carne e osso”, a vida das pessoas
exatamente como elas agem e convivem. A ética, portanto, é saber vivido.
Uma ética estritamente conceitual é uma ética amputada da sua parte
fundamental. Sem a dimensão executiva e prática, a ética não existe – e
por isso não se trata, evidentemente, de um saber estritamente teórico. O
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que acontece é que, muitas vezes, ao discutir o modo como devemos agir,
o pensamento do homem pode ir longe e tornar ultracomplexa a análise,
a investigação, mas isso é outra coisa! O fato de a investigação ética po-
der ser ultracomplexa não quer dizer que a ética não seja voltada para a
ação; ela se consubstancia na ação e ela só existe para o agir, para a vida
“de carne e osso”.
Franklin Leopoldo e Silva – Eu acrescentaria que isso de se dizer
tanto que a ética é teórica se deve ao fato de que, no nosso mundo, o que
prevalece é a ciência técnica. Assim sendo, tendemos a ver a ética como
uma técnica de conduta. O que seria, então, a ética? A maneira como
devo me conduzir, com base em uma certa técnica. E, a partir daí, cria-se
a confusão entre a técnica do comportamento humano e a ética. Ou seja,
o fato de me comportar assim ou assado, e o valor que corresponde a
esse comportamento. E se uma característica da nossa época é que tudo é
científico e tudo é técnico, por que a ética não seria também? A resposta
já tinha sido dada por Aristóteles, que dizia que não se pode demonstrar
a certeza de uma ação – por exemplo, o fato de que você faz o bem –, da
mesma forma como se demonstra um teorema matemático, o que é ób-
vio. O enfoque ético da conduta é muito diferente da apreciação factual
da conduta, e é essa a confusão que se faz. E é por isso que, quando se fala
em ética, a pergunta que se faz é: como ser ético? Ou seja, qual a receita
técnica para agir eticamente? E nunca se vai chegar a nenhuma resposta,
porque o universo é outro, e outro é o horizonte, a visão de mundo que
faz com que possamos transformar nossa conduta, os fatos da nossa vida,
em critérios éticos e em valores.
Thiago Souza Santos – O senhor colocou uma coisa muito inte-
ressante, que é essa busca de uma receita pronta que nos ensine como ser
éticos, como ter uma atuação mais correta no dia a dia. O que podería-
mos falar a respeito disso?
Franklin Leopoldo e Silva – O Clóvis certamente se lembra de
um livro que fez sucesso alguns anos atrás, cujo título era: Vida, modo de
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usar. Ilustra perfeitamente essa busca por uma bula ética e o fato de, sem
isso, as pessoas se sentirem impossibilitadas de se conduzir eticamente.
Clóvis de Barros Filho – Eu vou citar o título de outro livro que vi
numa livraria no aeroporto de Congonhas: Dicas para ser feliz para sempre.
Não deixou por menos, porque para sempre provavelmente vai além do
fim da vida. Eu penso mais... Imagine você que a ética tenha a ver com es-
colhas que fazemos coletivamente, e aí você percebe que estamos lidando
com uma ideia anterior de liberdade. No seu livro Discurso sobre a origem
e o fundamento da desigualdade entre os homens, Rousseau explica que o gato
nasce gato e já nasce sabendo como viver como gato, já tem nos seus ins-
tintos todas as respostas para uma vida de gato. Se você pegar um gato
com fome e colocar, na frente dele, um prato de cereais, de alpiste, ele
morre de fome mas não come o alpiste, assim como um pombo não come
filé porque não arrisca. O pombo e o gato não descolam da sua natureza,
são escravos dela, são regidos por ela, limitados pela sua natureza e pelo
seu instinto. Qual é a graça disso? Eu diria que a gente até entende um
pouco a natureza humana a partir daí. Quer dizer, o homem não é gato
nem pombo por uma razão: porque seu instinto não dá conta da vida. O
instinto é pobre. A frase de Rousseau é assim: “A vontade do homem fala
ainda quando sua natureza se cala”. Isso significa que o homem precisa
ir além, precisa aprender a viver, porque a natureza não dá conta da sua
vida. Por isso ele inventa, cria, improvisa, inova, empreende, pensa em
soluções nunca pensadas, e assim por diante. Isso quer dizer, então, que
somos privilegiados? É essa a impressão que dá, tanto que o homem se
define como filho de Deus, a meio caminho entre os animais e Deus. O ho-
mem sempre se deu essa liberdade. Agora, é claro que essa liberdade não
é nenhum privilégio. O professor Franklin, provavelmente o mais profun-
do conhecedor de Sartre no Brasil, sabe que ele dizia que somos conde-
nados a ser livres. Não tem outro jeito. Mas essa liberdade pode ser unha
e carne com certa angústia, pois não é fácil escolher, não é fácil decidir,
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não é fácil avançar, e muitas vezes essa liberdade pesa sobre os ombros
como uma coisa muito desagradável. Então eu pergunto a você: Como
faço para diminuir essa sensação desagradável de ter que livremente de-
cidir? Eu tenho 30 opções, isso me mata, mas como faço para diminuir
esse sentimento? Eu vou à livraria do aeroporto de Congonhas e compro
dez lições para ser feliz, porque aí não preciso escolher mais nada, eu
vendi a minha vida a um especialista, eu terceirizei meu poder de escolha.
Agora, você acha que um americano que nunca o viu tem dicas que nem
você, que convive consigo mesmo há tantos anos, conseguiu achar?
Thiago Souza Santos – Aproveitando o gancho que o professor
Clóvis ofereceu, eu pergunto ao professor Franklin: somos mesmo con-
denados a ser livres?
Franklin Leopoldo e Silva – Sim, segundo essa “teoria” que o Cló-
vis citou. A liberdade sempre foi vista como uma faculdade que enaltece
o homem. Daí que o homem seria diferente dos animais porque pode
escolher, etc. etc. Mas Sartre colocou essa questão de uma forma mais
lúcida: talvez melhor seria se não fôssemos livres. Há uma anedota que
se conta, e vou voltar ao formigueiro, que diz o seguinte: a gente vê todas
aquelas formiguinhas em fila, levando uma folhinha para o formigueiro
e tal e imagina a seguinte situação: e se, de repente, uma formiga parasse
no meio do caminho e dissesse: “O que estou fazendo? Qual o sentido da
minha vida? Por que estou aqui? De onde eu vim e para onde eu vou?”. O
que aconteceria então? Seria a desestabilização da espécie, a implosão do
formigueiro. E o que acontece conosco é que corremos todos os dias esse
risco, porque volta e meia estamos nos perguntando: “Qual o sentido da
minha vida? Por que vou fazer isso? Por que tenho que escolher? Por que
isso e não aquilo?”. A estratégia não é nos alegrarmos com a liberdade;
pelo contrário, é ocultá-la e nos determinarmos o máximo possível, de
várias maneiras. Uma das estratégias é esta: encontrarmos um manual
de vida que já escolheu por nós e, assim, apenas seguir aquela receita
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dada. E isso parece muito natural porque, evidentemente, a escolha e a
liberdade pesam. Sartre dizia que a liberdade pesa tanto quanto a fatali-
dade, porque não podemos nos livrar dela. Mesmo quando renunciamos
à liberdade, fazemos isso porque somos livres para fazer isso. Quando
deixamos de escolher, quando nos omitimos, etc., estamos sempre exer-
cendo a nossa liberdade. É impossível não exercê-la, mas é possível, com
algumas estratégias, ocultarmos essa liberdade para que não nos sinta-
mos responsáveis, a todo o momento, por todas as nossas ações. Essa é a
questão, digamos assim, que leva à angústia: se a liberdade for completa,
a responsabilidade também será. O alcance da liberdade e o alcance da
responsabilidade se correspondem, e ninguém se sente bem assim, nin-
guém se sente à vontade com isso. Então, procuramos estratégias que
ocultem essa liberdade e que venham, então, a nos determinar. Há certa
ideia de que, quando a pessoa se deixa determinar, ela não é livre, é he-
terônoma. Mas o que mais gostaríamos que acontecesse é que fôssemos
determinados a fazer aquilo que fazemos. O primeiro livro do Sartre cha-
ma-se Náusea. Nele, o personagem diz que, infelizmente, nossa vida não
é um romance policial bem escrito. Num romance policial bem escrito
está tudo encaixado, tudo arrumadinho até chegar ao desfecho, que é a
revelação do assassino. Na nossa vida não. Ela vai por muitos caminhos
e nós não conseguimos o encadeamento, parece que não há autor. Então,
o que nossa vida precisa é de um bom autor de romance policial para
colocar tudo em ordem e dar sentido a tudo o que fazemos.
Thiago Souza Santos – Não há melhor forma de interromper esse
papo senão sem concluí-lo, porque concluir isso seria um absurdo, em-
bora o estejamos interrompendo com a perspectiva de futuros bons en-
contros como este.
“Não pode haver pacto com a mediocridade. Não basta a entrega
de serviços públicos à população, é preciso que eles sejam de excelên-
cia. O cidadão paulista não deve apenas procurar pelos serviços públicos
quando não tem escolha – seja por falta de recursos financeiros para
recorrer a serviços privados, seja por ser atividade exclusiva da admi-
nistração pública –, mas sim por escolha, por acreditar no prestador de
serviços. Deve ser uma opção. O serviço público deve ser o que há de
melhor na sociedade, e para todos.”
Com as linhas iniciais da introdução deste livro, o tom do conteú-
do apresentado ao leitor é dado. São 11 artigos/ensaios que debatem a
gestão de pessoas pensando em novas práticas que podem potencializar
o desempenho do setor público para entregar mais valor e melhores re-
sultados para a sociedade.