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ASSIS, Machado de - Falenas.doc
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Falenas
ndice de autores ndice de ttulosFalenasMachado de AssisFLOR DA MOCIDADE
EU CONHEO a mais bela flor
s tu, rosa da mocidade
Nascida, aberta para o amor.
Eu conheo a mais bela flor.
Tem do cu a serena cor
E o perfume da virgindade.
Eu conheo a mais bela flor,
s tu, rosa da mocidade.
Vive s vezes na solido
Como filha da brisa agreste.
Teme acaso indiscreta mo
Vive s vezes na solido.
Poupa a raiva do furaco
Suas folhas de azul-celeste
Vive s vezes na solido
Como filha da brisa agreste.
Colhe-se antes que venha o mal
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flor morta j nada vale.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra mais jovial
Todo o bem nos parece eterno
Colhe-se antes que venha o mal
Colhe-se antes que chegue o inverno.
QUANDO ELA FALA
She speaks! O speak again, bright angel! Shakespeare
QUANDO ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.
Meu corao dolorido
As suas mgoas exala.
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.
Pudesse eu eternamente
Ao lado dela, escut-la,
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.
Minh'alma, j semimorta,
Conseguira ao cu al-la,
Porque o cu abre uma porta
Quando ela fala.
MANH DE INVERNO
COROADA DE NVOAS surge a aurora
Por detrs das montanhas do oriente;
V-se um resto de sono e de preguia
Nos olhos da fantstica indolente.
Nvoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas
Essas que tm por simples ornamento
Puras capelas, lgrimas mais puras.
A custo rompe o sol; a custo invade
O espao todo branco: e a luz brilhante
Fulge atravs do espesso nevoeiro.
Como atravs de um vu fulge o diamante.
Vento frio, mas barato agita as folhas
Das laranjeiras midas da chuva:
Erma de flores, curva a planta o colo
E o cho recebe o pranto da viva.
Gelo no cobre o dorso das montanhas
Nem enche as folhas trmulas a neve;
Galhardo moo, o inverno deste clima
Na verde palma a sua histria escreve.
Pouco a pouco, dissipam-se no espao
As nvoas da manh; j pelos montes
Vo subindo as que encheram todo o vale
J se vo descobrindo os horizontes.
Sobe de todo o pano, eis aparece
Da natureza o esplndido cenrio
Tudo ali preparou cos sbios olhos
A suprema cincia do empresrio.
Canta a orquestra dos pssaros no mato
A sinfonia alpestre, a voz serena
Acorda os ecos tmidos do vale;
E a divina comdia invade a cena.
LA MARCHESA DE MIRAMAR
A misrrima Dido Pelos paos reais vaga ululando. Garo
DE QUANTO sonho um dia povoaste
A mente ambiciosa,
Que te resta? Uma pgina sombria,
A escura noite e um tmulo recente.
abismo! fortuna! Um dia apenas
Viu erguer, viu cair teu frgil trono.
Meteoro do sculo, passaste,
triste imprio, alumiando as sombras.
A noite foi teu bero e teu sepulcro!
Da tua morte os goivos inda acharam
Frescas as rosas dos teus breves dias;
E no livro da histria uma s folha
A tua vida conta; sangue e lgrimas.
No tranqilo castelo,
Ninho d'amor, asilo de esperanas,
A mo de urea, fortuna preparara,
Menina e moa um tmulo aos teus dias.
Junto do amado esposo,
Outra c'roa cingias mais segura,
A coroa do amor, ddiva santa
Das mos de Deus. No cu de tua vida
Uma nuvem sequer no sombreava
A esplndida manh; estranhos eram
Ao recatado asilo
Os rumores do sculo.
Estendia-se
Em frente o largo mar, tranqila face
Como a da conscincia alheia ao crime,
E o cu, cpula azul do equreo leito.
Ali, quando ao cair da amena tarde,
No tlamo encantado do ocidente,
O vento melanclico gemia,
E a onda murmurando,
Nas convulses do amor beijava a areia,
Ias tu junto dele, as mos travadas,
Os olhos confundidos,
Correr as brandas, sonolentas guas,
Na gndola discreta. Amenas flores
Com suas mos teciam
As namoradas Horas; vinha a noite,
Me de amores, solcita descendo,
Que em seu regao a todos envolvia
O mar, o cu, a terra, o lenho e os noivos...
Mas alm, muito alm do cu fechado,
O sombrio destino, contemplando
A paz do teu amor, a etrea vida
As santas efuses das noites belas
O terrvel cenrio preparava
A mais terrveis lances.
Ento surge dos tronos
A proftica voz que anunciava
Ao teu crdulo esposo:
"Tu sers rei, Macbeth!" Ao longe, ao longe.
No fundo do oceano, envolto em nvoas
Salpicado de sangue, ergue-se um trono.
Chamam-no a ele as vozes do destino.
Da tranqila manso ao novo imprio
Cobrem flores a estrada, estreis flores
Que mal podem cobrir o horror da morte.
Tu vais, tu vais tambm, vtima infausta;
O sopro da ambio fechou teus olhos...
Ah! quo melhor te fora
No meio dessas guas
Que a rgia nau cortava, conduzindo
Os destinos de um rei, achar a morte
A mesma onda os dous envolveria.
Uma s convulso s duas almas.
O vnculo quebrara, e ambas iriam
Como raios partidos de uma estrela
eterna luz juntar-se.
Mas o destino, alando a mo sombria,
J traara nas pginas da histria
O terrvel mistrio. A liberdade
Vela naquele dia a ingnua fronte.
Pejam nuvens de fogo o cu profundo.
Orvalha sangue a noite mexicana...
Viva e moa, agora em vo procuras
No teu plcido asilo o extinto esposo.
Interrogas em vo o cu e as guas.
Apenas surge ensangentada sombra
Nos teus sonhos de louca, e um grito apenas,
Um soluo profundo reboando
Pela noite do esprito, parece
Os ecos acordar da mocidade.
No entanto, a natureza alegre e viva,
Ostenta o mesmo rosto.
Dissipam-se ambies, imprios morrem,
Passam os homens como p que o vento
Do cho levanta ou sombras fugitivas
Transformam-se em runa o templo e a choa.
S tu, s tu, eterna natureza,
Imutvel, tranqila
Como rochedo em meio do oceano
Vs baquear os sculos.
Sussurra
Pelas ribas do mar a mesma brisa;
O cu sempre azul, as guas mansas;
Deita-se ainda a tarde vaporosa
No leito do ocidente
Ornam o campo as mesmas flores belas
Mas em teu corao magoado e triste
Pobre Carlota! o intenso desespero
Enche de intenso horror o horror da morte,
Viva da razo, nem j te cabe
A iluso da esperana.
Feliz, feliz, ao menos, se te resta,
Nos macerados olhos
O derradeiro bem: algumas lgrimas!
SOMBRAS
QUANDO, assentada, noite, a tua fronte inclinas,
E cerras descuidada as plpebras divinas,
E deixas no regao as tuas mos cair,
E escutas sem falar, e sonhas sem dormir,
Acaso uma lembrana, um eco do passado,
Em teu seio revive?
O tmulo fechado
Da ventura que foi, do tempo que fugiu,
Por que razo, mimosa, a tua mo o abriu?
Com que flor, com que espinho, a importuna memria
Do teu passado escreve a misteriosa histria?
Que espectro ou que viso ressurge aos olhos teus?
Vem das trevas do mal ou cai das mos de Deus?
saudade ou remorso? desejo ou martrio?
Quando em obscuro templo a fraca luz de um crio
Apenas alumia a nave e o grande altar
E deixa todo o resto em treva, e o nosso olhar
Cuida ver ressurgindo, ao longe, dentre as portas
As sombras imortais das criaturas mortas,
Palpita o corao de assombro e de terror;
O medo aumenta o mal. Mas a cruz do Senhor,
Que a luz do crio inunda, os nossos olhos chama;
O nimo esclarece aquela eterna chama
Ajoelha-se contrito, e murmura-se ento
A palavra de Deus, a divina orao.
Pejam sombras, bem vs, a escurido do templo;
Volve os olhos luz, imita aquele exemplo;
Corre sobre o passado impenetrvel vu;
Olha para o futuro e vem lanar-te ao cu.
ITE, MISSA EST
FECHA O MISSAL do amor e a bno lana
pia multido
Dos teus sonhos de moo e de criana,
Soa a hora fatal. reza contrito
As palavras do rito:
Ite, missa est.
Foi longo o sacrifcio; o teu joelho
De curvar-se cansou:
E acaso sobre as folhas do Evangelho
A tua alma chorou.
Ningum viu essas lgrimas (ai tantas!)
Cair nas folhas santas.
Ite, missa est.
De olhos fitos no cu rezaste o credo
O credo do teu deus;
Orao que devia, ou tarde ou cedo
Travar nos lbios teus;
Palavra que se esvai qual fumo escasso
E some-se no espao.
Ite, missa est.
Votaste ao cu, nas tuas mos aladas
A hstia do perdo,
A vtima divina e profanada
Que chamas corao.
Quase inteiras perdeste a alma e a vida
Na hstia consumida.
Ite, missa est.
Pobre servo do altar de um deus esquivo,
tarde, beija a cruz
Na lmpada em que ardia o fogo ativo,
V, j se extingue a luz.
Cubra-te agora o rosto macilento
O vu do esquecimento.
Ite, missa est.
RUNAS
No hay pjaros [hogao] em los nidos de antao. Provrbio espanhol
COBREM PLANTAS sem flor crestados muros;
Range a porta anci; o cho de pedra
Gemer parece aos ps do inquieto vate.
Runa tudo: a casa, a escada, o horto,
Stios caros da infncia.
Austera moa
Junto ao velho porto o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranas soltas
Por sobre as roxas vestes
Risos no tem, e em seu magoado gesto
Transluz no sei que dor oculta aos olhos,
Dor que face no vem, medrosa e casta
Intima e funda; e dos cerrados clios
Se uma discreta e muda
Lgrima cai, no murcha a flor do rosto
Melancolia tcita e serena,
Que os ecos no acorda em seus queixumes
Respira aquele rosto. A mo lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados stios,
Ermos depois que a mo da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente.
Aos rosas do crepsculo.
"Quem s? pergunta o vate; o solo que foge
No teu languido olhar um raio deixa;
Raio quebrado e frio: o vento agita
Tmido e frouxo as tuas longas tranas.
Conhecem-te estas pedras; das runas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas rvores. E eu mesmo
Sinto no sei que vaga e amortecida
Lembrana de teu rosto."
Desceu de todo a noite,
Pelo espao arrastando o manto escuro
Que a loura Vsper nos seus ombros castos,
Como um diamante, prende. Longas horas
Silenciosas correram. No outro dia,
Quando as vermelhas rosas do oriente
Ao j prximo sol a estrada ornavam,
Das runas saam lentamente
Duas plidas sombras...
MUSA DOS OLHOS VERDES
MUSA dos olhos verdes, musa alada,
divina esperana,
Consolo do ancio no extremo alento,
E sonho da criana;
Tu que junto do bero o infante cinges
Cos flgidos cabelos
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;
Tu que fazes pulsar o seio s virgens;
Tu que s mes carinhosas
Enches o brando, tpido regao
Com delicadas rosas;
Casta filha do cu, virgem formosa
Do eterno devaneio
S minha amante, os beijos recebe,
Acolhe-me em teu seio!
J cansada de encher lnguidas flores
Com as lgrimas frias,
A noite v surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.
Asas batendo luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves.
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silncios graves.
Dentro de mim, a noite escura e fria
Melanclica chora
Rompe estas sombras que o meu ser povoam
Musa, s tua a aurora!
NOIVADO
VS, QUERIDA, o horizonte ardendo em chamas?
Alm desses outeiros
Vai descambando o sol, e terra envia
Os raios derradeiros;
A tarde, como noiva que enrubesce,
Traz no rosto um vu mole e transparente;
No fundo azul a estrela do poente
J tmida aparece.
Como um bafo suavssimo da noite,
Vem sussurrando o vento.
As rvores agita e imprime s folhas
O beijo sonolento.
A flor ajeita o clix: cedo espera
O orvalho, e entanto exala o doce aroma;
Do leito do oriente a noite assoma;
Como uma sombra austera.
Vem tu, agora, filha de meus sonhos,
Vem, minha flor querida;
Vem contemplar o cu, pgina santa
Que amor a ler convida;
Da tua solido rompe as cadeias;
Desce do teu sombrio e mudo asilo;
Encontrars aqui o amor tranqilo...
Que esperas? que receias?
Olha o templo de Deus, pomposo e grande;
L do horizonte oposto
A lua, como lmpada, j surge
A alumiar teu rosto;
Os crios vo arder no altar sagrado,
Estrelinhas do cu que um anjo acende;
Olha como de blsamos recende
A c'roa do noivado.
Iro buscar-te em meio do caminho
As minhas esperanas;
E voltaro contigo, entrelaadas
Nas tuas longas tranas
No entanto eu preparei teu leito sombra
Do limoeiro em flor; colhi contente
Folhas com que alastrei o solo ardente
De verde e mole alfombra.
Pelas ondas do tempo arrebatados,
At morte iremos,
Soltos ao longo do baixel da vida
Os esquecidos remos.
Firmes, entre o fragor da tempestade,
Gozaremos o bem que amor encerra,
Passaremos assim do sol da terra
Ao sol da eternidade.
A ELVIRA (LAMARTINE)
QUANDO, contigo a ss, as mos unidas,
Tu, pensativa e muda, e eu, namorado,
s volpias do amor a alma entregando,
Deixo correr as horas fugidias
Ou quando s solides de umbrosa selva
Comigo te arrebato; ou quando escuto
To s eu,teus ternssimos suspiros
E de meus lbios solto
Eternas juras de constncia eterna;
Ou quando enfim, tua adorada fronte
Nos meus joelhos trmulos descansa,
E eu suspendo meus olhos em teus olhos,
Como s folhas da rosa vida abelha;
Ai, quanta vez ento dentro em meu peito
Vago terror penetra, como um raio,
Empalideo, tremo;
E no seio da glria em que me exalto,
Lgrimas verto que a minha alma assombram!
Tu, carinhosa e trmula,
Nos teus braos me cinges,e assustada,
Interrogando em vo, comigo choras!
"Que dor secreta o corao te oprime?"
Dizes tu. "Vem, confia os teus pesares
Fala! eu abrandarei as penas tuas!
Fala! eu consolarei tua alma aflita!"
Vida do meu viver, no me interrogues!
Quando enlaado nos teus nveos braos
A confisso de amor te ouo, e levanto
Languidos olhos para ver teu rosto,
Mais ditoso mortal o cu no cobre!
Se eu tremo, porque nessas esquecidas
Afortunadas horas
No sei que voz do enleio me desperta,
E me persegue e lembra
Que a ventura coo tempo se esvaece,
E o nosso amor facho que se extingue!
De um lance, espavorida,
Minha alma voa s sombras do futuro,
E eu penso ento: "Ventura que se acaba
Um sonho vale apenas".
LGRIMAS DE CERA
PASSOU; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.
Ajoelhou-se defronte
Para fazer a orao;
Curvou a plida fronte
E ps os olhos no cho.
Vinha trmula e sentida.
Cometera um erro, a cruz
a ncora da vida,
A esperana, a fora, a luz.
Que rezou? No sei. Benzeu-se
Rpidamente. Ajustou
O vu de rendas. Ergueu-se
E pia se encaminhou.
Da vela benta que ardera,
Como tranqilo fanal,
Umas lgrimas de cera
Caam no castial.
Ela porm no vertia
Ma lgrima sequer.
Tinha f, - a chama a arder -
Chorar que no podia.
LIVROS E FLORES
TEUS OLHOS so meu livros.
Que livro h a melhor,
Em que melhor se leia
A pgina do amor?
Flores me so teus lbios.
Onde h mais bela flor
Em que melhor se beba
O blsamo do amor?
PSSAROSJe veux changer mes penses em oiseaux.. C. MAROT
OLHA COMO, cortando os leves ares,
Passam do vale ao monte as andorinhas;
Vo pousar na verdura dos palmares,
Que, tarde, cobre transparente vu;
Voam tambm como essas avezinhas
Meus sombrios, meus tristes pensamentos;
Zombam da fria dos contrrios ventos,
Fogem da terra, acercam-se do cu.
Porque o cu tambm aquela estncia
Onde respira a doce criatura,
Filha de nosso amor, sonho da infncia,
Pensamento dos dias juvenis.
L, como esquiva flor, formosa e pura,
Vives tu escondida entre a folhagem,
rainha do ermo, fresca imagem
Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!
Vo para aquela estncia enamorados,
Os pensamentos de minh'alma ansiosa;
Vo contar-lhe os meus dias mal gozados
E estas noites de lgrimas e dor.
Na tua fronte pousaro, mimosa,
Como as aves no cimo da palmeira,
Dizendo aos ecos a cano primeira
De um livro escrito pela mo do amor.
Diro tambm como conservo ainda
No fundo de minh'alma essa lembrana
De tua imagem vaporosa e linda,
nico alento que me prende aqui
E diro mais que estrelas de esperana
Enchem a escurido das noites minhas
Como sobem ao monte as andorinhas
Meus pensamentos voam para ti.
O VERME
EXISTE uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mo benfica de um nume.
Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.
Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o clix inclina;
As folhas, leva-as o vento.
Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solido...
Esta flor o corao.
Aqule verme o cime.
UN VIEUX PAYS . . . juntamente choro e rio. CAMES.
IL EST UN VIEUX pays, plein d'ombre et de lumire,
O l'on rve le jour, o l'on pleure le soir,
Un pays de blasphme, autant que de prire,
N pour la doute et pour l'espoir.
On n'y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge,
Point de mer sans tempte, ou de soleil sans nuit;
Le bonheur y parat quelquefois dans un songe
Entre les bras du sombre ennui.
L'amour y va souvent, mais c'est tout un dlire
Un dsespoir sans fin, une nigme sans mot;
Parfois il rit gament, mais de cet affreux rire
Qui n'est peut-tre qu'un sanglot.
On va dans ce pays de misre et d'ivresse,
Mais on le voit peine, on en sort, on a peur
Je l'habit pourtant, j'y passe na jeunesse...
Hlas! ce pays, c'est mon coeur.
LUZ ENTRE SOMBRAS
NOITE medonha e escura,
Muda como o passamento,
Uma s no firmamento
Trmula estrela fulgura.
Fala aos ecos da espessura
A chorosa harpa do vento,
E num canto sonolento
Entre as rvores murmura.
Noite que assombra a memria,
Noite que os medos convida
Erma, triste, merencria.
No entanto... minh'alma olvida
Dor que se transforma em glria,
Morte que se rompe em vida.
LIRA CHINESA
I / O POETA A RIR ( HAN-TI )
TAA D'GUA parece o lago ameno;
Tm os bambus a forma de cabanas,
Que as rvores em flor, mais altas, cobrem
Com verdejantes tectos
As pontiagudas rochas entre flores,
Dos pagodes o grave aspecto ostentam...
Faz-me rir ver-te assim, natureza,
Cpia servil dos homens.
II / A UMA MUI IIER (TCH-TSI)
Cantigas modulei ao som da flauta,
Da minha flauta d'bano;
Nelas minh'alma segredava tua
Fundas, sentidas mgoas.
Cerraste-me os ouvidos. Namorados
Versos compus de jbilo,
Por celebrar teu nome, as graas tuas,
Levar teu nome aos sculos.
Olhaste, e, meneando a airosa frente,
Com tuas mos purssimas,
Folhas em que escrevi meus pobres versos
Lanaste s ondas trmulas.
Busquei ento por encantar tu'alma
Uma safira esplndida,
Fui dep-la a teus ps... tu descerraste
Da tua boca as prolas.
III / O IMPERADOR (THU-FU)
Olha. O Filho do Cu, em trono de ouro,
E adornado com ricas pedrarias,
Os mandarins escuta: um sol parece
De estrelas rodeado.
Os mandarins discutem gravemente
Cousas muito mais graves. E ele? Foge-lhe
O pensamento inquieto e distrado
Pela janela aberta.
Alm, no pavilho de porcelana,
Entre donas gentis est sentada
A imperatriz, qual flor radiante e pura
Entre viosas folhas.
Pensa no amado esposo, arde por v-lo,
Prolonga-se-lhe a ausncia, agita o leque...
Do imperador ao rosto um sopro chega
De recendente brisa.
"Vem dela este perfume", diz, e abrindo
Caminho ao pavilho da amada esposa,
Deixa na sala, olhando-se em silncio,
Os mandarins pasmados.
IV / O LEQUE (TAN-JO-LU)
Na perfumada alcova a esposa estava.
Noiva ainda na vspera. Fazia
Calor intenso; a pobre moa ardia,
Com fino leque as faces refrescava.
Ora, no leque em boa letra feito
Havia neste conceito:
"Quando, imvel o vento e o ar pesado,
Arder o intenso estio
Serei por mo amiga ambicionado;
Mas, volte o tempo frio,
Ver-me-eis a um canto logo abandonado".
L a esposa este aviso, e o pensamento
Volve ao jovem marido.
"Arde-lhe o corao neste momento
(Diz ela) e vem buscar enternecido
Brandas auras de amor. Quando mais tarde
Tornar-se em cinza fria
O fogo que hoje lhe arde,
Talvez me esquea e me desdenhe um dia."
V / A FOLHA DO SALGUEIRO (TCHAN-TI-LIN)
Amo aquela formosa e terna moa
Que, janela encostada, arfa e suspira;
No porque tem do largo rio margem
Casa faustosa e bela.
Amo-a, porque deixou das mos mimosas
Verde folha cair nas mansas guas.
Amo a brisa de leste que sussurra,
No porque traz nas asas delicadas
O perfume dos verdes pessegueiros
Da oriental montanha.
Amo-a porque impeliu coas tnues asas
Ao meu batel a abandonada folha.
Se amo a mimosa folha aqui trazida,
No porque me lembre alma e aos olhos
A renascente, a amvel primavera,
Pompa e vigor dos vales.
Amo a folha por ver-lhe um nome escrito,
Escrito, sim, por ela, e esse... meu nome.
VI / AS FLORES E OS PINHEIROS (TIN-TUN-SING )
Vi os pinheiros no alto da montanha
Ouriados e velhos;
E ao sop da montanha, abrindo as flores
Os clices vermelhos.
Contemplando os pinheiros da montanha,
As flores tresloucadas
Zombam deles enchendo o espao em torno
De alegres gargalhadas.
Quando o outono voltou, vi na montanha
Os meus pinheiros vivos,
Brancos de neve, e meneando ao vento
Os galhos pensativos.
Volvi o olhar ao stio onde escutara
Os risos mofadores;
Procurei-as em vo; tinham morrido
As zombeteiras flores.
VII / REFLEXOS (THU-FU )
Vou rio abaixo vogando
No meu batel e ao luar;
Nas claras guas fitando,
Fitando o olhar.
Das guas vejo no fundo,
Como por um branco vu
Intenso, calmo, profundo,
O azul do cu.
Nuvem que no cu flutua,
Flutua n'gua tambm;
Se a lua cobre, outra lua
Cobri-la vem.
Da amante que me extasia,
Assim, na ardente paixo,
As raras graas copia
Meu corao.
VIII / CORAO TRISTE FALANDO AO SOL (SU-TCHON)
No arvoredo sussurra o vendaval do outono,
Deita as folhas terra, onde no h florir,
E eu contemplo sem pena esse triste abandono,
S eu as vi nascer, vejo-as s eu cair.
Como a escura montanha, esguia e pavorosa,
Faz, quando o sol descamba, o vale enoitecer,
Esta montanha da alma, a tristeza amorosa,
Tambm de ignota sombra enche todo o meu ser.
Transforma o frio inverno a gua em pedra dura,
Mas torna a pedra em gua um raio de vero;
Vem, sol, vem, assume o trono teu na altura,
V se podes fundir meu triste corao.
UMA ODE DE ANACREONTE
(A MANUEL DE MELO)
PERSONAGENS:
LSIAS. CLEON. MIRTO.
TRS ESCRAVOS
A cena em Samos.
Sala de festim em casa de Lsias. esquerda a mesa do festim; direita uma mesa tendo em cima uma lmpada apagada, e junto da lmpada um rolo de papiro.
CENA PRIMEIRA: LSIAS, CLEON, MIRTO
(Esto no fim de um banquete, os
dous homens deitados maneira
antiga, MIRTO sentada entre as
dous leitos. Trs escravos)
LSIAS Melanclica ests, bela Mirto. Bebamos!
Aos prazeres!
CLEON Eu bebo memria de Samos.
Samos vai terminar os seus dourados dias;
Adeus, terra em que achei consolo s agonias
Da minha mocidade; adeus, Samos, adeus!
MIRTO Querem-lhe os deuses mal?
CLEON No; dous olhos, os teus.
LSIAS Bravo, Cleon!
MIRTO Poeta! os meus olhos?
CLEON So lumes
Capazes de abrasar at os prprios numes.
Samos nova Tria, e tu s outra Helena.
Quando Lesbos, a me de Safo, a ilha amena,
No vir a bela Mirto, a alegre cortes,
Armar-se- contra ns
LSIAS Lesbos boa irm.
MIRTO Outras belezas tem, dignas da loura Vnus.
CLEON Menos dignas que tu.
MIRTO Mais do que eu.
LSIAS Muito menos.
CLEON Tens vergonha de ser formosa e festejada,
Mirto? Vnus no quer beleza envergonhada.
Pois que dos imortais houveste esse condo
De inspirar quantos vs, inspira-os, Mirto.
MIRTO No;
So teus olhos, poeta, eu no tenho a beleza
Que arrasta coraes.
CLEON Divina singeleza!
LSIAS ( parte)
Vejo atravs do manto as galas da vaidade.
(alto)
Vinho, escravo!
(O escravo deita vinho na taa de Lsias)
Poeta, um brinde mocidade. Trava da lira e invoca o deus inspirador.
CLEON "Feliz quem junto a ti, ouve a tua fala, amor!"
MIRTO Versos de Safo!
CLEON Sim.
LSIAS Vs? modstia pura
Ele na poesia o que s na formosura.
Faz versos de primor e esconde-os ao profano;
Tem vergonha. Eu no sei se o vcio lesbiano. . .
MIRTO Ah! tu s. . .
CLEON Lesbos foi minha ptria tambm,
Lesbos, a flor do Egeu.
MIRTO J no ?
CLEON Lesbos tem
Tudo o que me fascina e tudo o que me mata:
As festas do prazer e os olhos de uma ingrata.
Fugi da ptria e achei, j curado e tranqilo,
Em Lsias um irmo, em Samos um asilo.
Bem hajas tu que vens encher-me o corao!
LSIAS Insacivel! No tens em Lsias um irmo?
MIRTO Volto ptria.
CLEON Pois qu! tu vais?
MIRTO Em poucos dias. . .
LSIAS Fazes mal; tens aqui os moos e as folias,
O gozo, a adorao; que te falta?
MIRTO Os meus ares.
CLEON A que vieste ento?
MIRTO Sucessos singulares.
Vim por acompanhar Lisicles, mercador
De Naxos, tanto pode a constancia no amor!
Corremos todo o Egeu e a costa inia; fomos
Comprar o vinho a Creta e a Tnedos os pomos.
Ah! como doce o amor na solido das guas!
Tem-se vida melhor- esquecem-se-lhe as mgoas.
Zfiro ouviu por certo os sculos febris,
Os jbilos do afeto, as falas juvenis;
Ouviu-os, delatou ao deus que o mar governa
A indiscreta ventura, a efuso doce e terna.
Para a fria acalmar da sombria deidade,
Nave e bens varreu tudo a horrvel tempestade.
Foi assim que eu perdi a Lisicles, assim
Que eu semimorta e fria tua plaga vim.
CLEON Oh! coitada!
LSIAS O infortnio os nimos apura;
As feridas que faz o mesmo Amor as cura;
Brandem armas iguais Aquiles e Cupido.
Queres ver noutro amor o teu amor perdido?
Samos o tem de sobra.
CLEON Eu, Mirto, eu sei amar
No fio o corao da inconstncia do mar.
No tenho galees rompendo o seio a Ttis
Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Letes.
Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte;
Podes doar-me a vida ou decretar-me a morte.
MIRTO Mas, se eu volto. . .
CLEON Pois bem! aonde quer que te vs Irei contigo; a deusa indmita e falaz
Ser-me- hspede amiga; ao p de ti a escura
Noite parece aurora, e bero a sepultura.
MIRTO Quando fala o dever, a vontade obedece;
Eu devo ir s; tu ficas, ama-me um pouco e esquece.
LSIAS Tens razo, bela Mirto; escuta o teu dever.
MIRTO Ai! fcil amar, difcil esquecer.
LSIAS (a MIRTO)
Queres pr termo festa? Um brinde a Vnus, filha
Do mar azul, beleza, encanto, maravilha;
Nascida para ser perpetuamente amada.
A Vnus!
(Depois do brinde os escravos tra- zem os vasos com gua perfuma- da em que os convivas lavam as mos; os escravos saem, levando os restos do banquete. Levantam-se todos.)
Queres tu, mimosa naufragada,
Ouvir de hemnia serva, em lira de marfim,
Uma alegre cano? Preferes o jardim?
O prtico talvez?
MIRTO Lsias, sou indiscreta;
Quisera antes ouvir a voz do teu poeta.
LSIAS Nume no pede, impe.
CLEON O mando lisonjeiro.
LSIAS Pois comea.
CENA II: Os mesmos, um escravo.
Procura a Mirto um mensageiro.
MIRTO Um mensageiro! a mim!
LSIAS Manda-o entrar.
ESCRAVO No quer.
LSIAS Vai, Mirto.
MIRTO (saindo) Volto j.
(Sai o ESCRAVO).
CENA III: LSIAS, CLEON.
CLEON (Olhando para o lugar por onde MIRTO saiu)Oh! deuses! que mulher!
LSIAS Ah! que prola rara!
Onde a encontraste?
LSIAS Achei-a
Com Partnis que dava uma esplndida ceia;
Partnis, ex-bonita, ex-jovem, ex-da-moda,
Sabes que v fugir-lhe a enfastiada roda;
E, para no perder o grupo adorador,
Fez do templo deserto uma escola de amor.
Foi ela quem achou a nufraga perdida,
Exposta ao vento e ao mar, quase a expirar-lhe a vida.
A beleza pagava o emprego de uma esmola;
Dentro em pouco era Mirto a flor de toda a escola.
CLEON Lembrou-te convid-la ento para um festim?
LSIAS Foi um pouco por ela e um pouco mais por mim.
CLEON Tambm amas?
LSIAS Eu sou mestre em matria de amor.
Vnus e o louro Apolo, a poesia e a beleza.
CLEON Oh! a beleza, sim! Viste j tanta graa,
To celestes feies?
LSIAS Cuidado! Aquela caa
Zomba dos tiros vos de ingnuo caador!
CLEON Incrdulo !
LSIAS Eu sou mestre em matria de amor.
Se tu, atento e calmo, a narrao Ihe ouvisses
Conheceras melhor o engenho desta Ulisses.
Aquele ardente amor a Lisicles, aquele
Fundo e intenso pesar que sua ptria a impele,
Armas so com que a astuta os nimos seduz.
CLEON Oh! no creio.
LSIAS Por qu?
CLEON No vs como Ihe luz
Tanta expresso sincera em seus olhos divinos?
LSIAS Sim, tem muita expresso... para iludir meninos.
CLEON Pois tu no crs?
LSIAS Em qu? No naufrgio? Decerto.
Em Lisicles? Talvez. No amor? mais incerto.
Na inteno de voltar a Lesbos? Isso no!
Sabes o que ela quer? Prender um corao.
CLEON Impossvel!
LSIAS Poeta! ests na alegre idade
Em que a cincia da vida a credulidade.
Vs tudo azul e em flor; eu j me no iludo.
Pois amar cortess! isso demanda estudo,
No vai assim, que as tais abelhitas do amor
Correm de bolsa em bolsa e no de flor em flor.
CLEON Mas no as amas tu?
LSIAS Decerto minha moda,
Meu grande corao cos vcios se acomoda;
Sacrifcios de amor no sonha nem procura;
No Ihes pede iluses, pede-lhes s ternura.
No me empenho em achar alma ungida no cu:
Se crime este sentir, confesso-me, sou ru.
No peo amor ao vinho- irei pedi-lo s damas?
Delas e dele exijo apenas estas chamas
Assim que eu estimo as nforas e os beijos.
L protestos de amor, eternos e leais,
Tudo isso fumo vo. Que queres? Os mortais
Somos todos assim.
CLEON Ai, os mortais! dize antes
Os filsofos maus, ridculos pedantes
Os que no sabem crer, os fartos j de amores
Esses sim. Os mortais !
LSIAS Refreia os teus furores
Poeta; eu no quisera amargurar-te, e enfim
No podia supor que a amasses tanto assim.
Cspite! Vais depressa!
CLEON Ai, Lsias, verdade,
Amo-a, como no amo a vida e a mocidade;
De que modo nasceu esta afeio que encerra
Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra
Por que mais bela ao sol e s auras matinais?
Amores estes so terrveis e fatais.
LSIAS Vs com olhos do cu cousas que so do mundo;
Acreditas achar esse afeto profundo,
Nestas filhas do mal! Se a todo o transe queres
Obter a casta flor dos clicos prazeres
Deixa a alegre Corinto e todo o luxo seu;
Outro porto achars: procura o gineceu.
Escolhe aquele amor doce, inocente e puro,
Que ainda no tem passado e vive do futuro.
Para mim, j to disse, o caso diferente;
No me importa um nem outro; eu vivo no presente.
CLEON Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal:
Viver, sem iluses, no bem como no mal;
No conhecer o amor que morde, que se nutre
Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre;
No beber gota a gota este brando veneno
Que requeima e destri; no ver em mar sereno
Subitamente erguer-se a voz dos aquiles.
Afortunado s tu.
LSIAS Lei de compensaes!
Sou filsofo mau, ridculo pedante
Mas invejas-me a sorte; oh! lgica de amante.
CLEON a do corao.
LSIAS Terrvel mestre!
CLEON Ensina
Dos seres imortais a transfuso divina!
LSIAS A lio profunda e escapa ao meu saber;
Outra escola professo, a escola do prazer!
CLEON Tu no tens corao.
LSIAS Tenho. mas no me ilude,
Circe que perdeu o encanto e a juventude.
CLEON Velho Stiro!
LSIAS Justo: um semideus silvestre.
Nestas cousas do amor nunca tive outro mestre.
Tu gostas de chorar; eu c prefiro rir.
Trs artigos de lei: gozar, beber, dormir.
CLEON Compras com isso a paz; a mim coube-me o tdio,
A solido e a dor.
LSIAS Queres um bom remdio,
Um filtro da Tesslia, um blsamo infalvel?
Esquece empresas vs, no tentes o impossvel;
Prende o teu corao nos laos de Himeneu;
Casa-te; encontrars o amor no gineceu.
Mas cortess! Jamais! So Grgones! Medusas!
CLEON Essas que conheceste e to severo acusas
- Pobres moas! - no so o universal modelo;
De outras sei a quem coube um corao singelo,
Que preferem a tudo a glria singular
De conhecer somente a cincia de amar;
Capazes de sentir o ardor da intensa chama
Que eleva, que resgata a vida que as infama.
LSIAS Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-to.
CLEON Basta um passo, ach-lo-ei.
LSIAS Bravo ! chama-se?
CLEON Mirto.
Que pode conquistar at o amor de um deus!
LSIAS Crs nisso?
CLEON Por que no?
Tu s um nscio; adeus!
CENA IV: CLEON
CLEON Vai, cptico! tu tens o vicio da riqueza:
Farto, no crs na fome... A minha singeleza
Faz-te rir; tu no vs o amor que absorve e mata;
Mirto, vinga-me tu da calnia insensata;
Amemo-nos. ela!
CENA V: CLEON, MIRTO
MIRTO Ests triste!
CLEON Oh! que no!
Mas deslumbrado, sim, como se uma viso...
MIRTO A viso vai partir.
CLEON Mas muito tarde...
MIRTO Breve.
CLEON Quem te chama?
MIRTO O destino. E sabes quem me escreve?
CLEON Tua me.
MIRTO J morreu.
CLEON Algum antigo amante?
MIRTO Lisicles.
CLEON Vive?
MIRTO Sim. Depois de andar errante
Numa tbua, merc das ondas, quis o cu
Que viesse encontr-lo um barco do Pireu.
Pobre Lisicles! teve em to cruenta lida
A dor da minha morte e a dor da prpria vida.
Em vo interrogava o mar cioso e mudo.
Perdera, de uma vez, numa s noite, tudo,
A ventura, a esperana, o amor, e perdeu mais:
Naufragaram com ele os poucos cabedais.
Entrou em Samos pobre, inquieto, semimorto,
Um barqueiro, que a tempo atravessava o porto,
Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura
Da malfadada Mirto.
CLEON isso, a sorte escura
Voltou-se contra mim; no consente, no quer
Que eu me farte de amor no amor de uma mulher.
Vejo em cada paixo o fado que me oprime;
O amar j sofrer a pena do meu crime.
Ixion foi mais audaz amando a deusa augusta;
Transps o obscuro lago e sofre a pena justa;
Mas eu no. Antes de ir s regies infernais
So as graas comigo Eumnides fatais!
MIRTO Caprichos de poeta! Amor no falta s damas;
Damas, tem-las aqui; inspira-lhe essas chamas.
CLEON Impe-se leis ao mar? O corao isto;
Ama o que Ihe convm; convm amar a Egisto
Clitemnestra, convm a Cntia Endimio;
caprichoso e livre o mar do corao;
De outras sei que eu houvera em meus versos cantado;
No Ihes quero... no posso.
MIRTO Ai, triste enamorado!
CLEON E tu zombas de mim!
MIRTO Eu zombar? No, lamento
A tua acerba dor, o teu fatal tormento.
No conheo eu tambm esse cruel penar?
S dous remdios tens; esquecer, esperar.
De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcana;
Contenta-se ao nascer coas auras da esperana;
Vive da prpria mgoa; a prpria dor o alenta.
CLEON Mas, se a vida to curta, a agonia to lenta!
MIRTO No sabes esperar? Ento cumpre esquecer.
Escolhe entre um e outro; preciso escolher.
CLEON Esquecer? sabes tu, Mirto, se a alma esquece
O prazer que a fulmina, e a dor que a fortalece?
MIRTO Tens na ausncia e no tempo os velhos pais do olvido;
O bem no alcanado como o bem perdido,
Pouco a pouco se esvai na mente e corao;
Pe o mar entre ns... dissipa-se a iluso.
CLEON Impossvel!
MIRTO Ento espera; algumas vezes
A fortuna transforma em glrias os reveses.
CLEON Mirto, valem bem pouco as glrias j tardias.
MIRTO Urn s dia de amor compensa estreis dias.
CLEON Compensar, rnas quando? A mocidade em flor
Bem cedo morre, e essa a que convm a amor.
Vejo cair no ocaso o sol da minha vida.
MIRTO Cabea de poeta, exaltada e perdida!
Pensas estar no ocaso o sol que mal desponta?
CLEON A clepsidra do amor no conta as horas, conta
As iluses; velhice perd-las assim;
Breve a noite abrira seus vus por sobre mim.
MIRTO No hs de envelhecer; as iluses contigo
Flores so que respeita olo brando e amigo.
Guarda-as, talvez um dia, e no tarde, as colhamos.
CLEON Se eu a Lesbos no vou.
MIRTO Podem colher-se em Samos.
CLEON Voltas breve?
MIRTO No sei.
CLEON Oh! sim, deves voltar!
MIRTO Tenho medo.
CLEON De qu?
MIRTO Tenho medo... do mar.
CLEON Teu sepulcro j foi; o medo justo; fica.
Lesbos para ti mais formosa e mais rica.
Mas a ptria o amor; o amor transmuda os ares.
Muda-se o corao? Mudam-se os nossos lares.
Da importuna memria o teu passado exclui;
Vida nova nos chama, outro cu nos influi.
Fica; eu disfararei com rosas este exlio;
A vida um sonho mau; faamo-la um idlio.
Cantarei a teus ps a nossa mocidade,
A beleza que impe, o amor que persuade,
Vnus que faz arder o fogo da paixo,
Teu olhar, doce luz que vem do corao.
Pricles no amou com tanto ardor a Aspsia,
Nem esse que morreu entre as pombas da sia,
A Las siciliana. Aqui as Horas belas
Tecero para ti vivssimas capelas.
Nem morrers; teu nome em meus versos h de ir,
Vencendo o tempo e a morte, aos sculos por vir.
MIRTO Tanto me queres tu!
CLEON Imensamente. Anseio
Por sentir, bela Mirto, arfar teu brando seio,
Bater teu corao, tremer teu lbio puro,
Todo viver de ti.
MIRTO Confia no futuro.
CLEON To longe!
MlRTO No, bem perto.
CLEON Ah! que dizes?
MIRTO Adeus!
(Passa junto da mesa da direita e v o rolo de papiro)
Curiosa que sou!
CLEON So versos.
Versos teus?
(LSIAS aparece ao fundo)
CLEON De Anacreonte, o velho, o amvel, o divino.
MIRTO A musa toda inia, e o estro peregrino.
(Abre o papiro e l)
"Fez-se Niobe em pedra e Filomena em pssaro.
Assim
Folgaria eu tambm me transformasse Jpiter
A mim.
Quisera ser o espelho em que o teu rosto mgico
Sorri;
A tnica feliz que sempre se est prxima
De ti;
O banho de cristal que esse teu corpo cndido
Contm;
O aroma de teu uso e donde eflvios mgicos
Provm;
Depois esse listo que de teu seio trgido
Faz dous;
Depois do teu pescoo o rosicler de prolas;
Depois . . .
Depois, ao ver-ter assim, a nica e to sem mulas
Qual s,
At quisera ser teu calado, e pisarem-me
Teus ps". *
Que magnficos so!
CLEON Minha alma assim te fala.
MIRTO Atendendo ao poeta eu pensava escut-la.
CLEON Eco do meu sentir foi o velho amador;
Tais os desejos so do meu profundo amor.
Sim, eu quisera ser tudo isto, o espelho, o banho,
O calado, o colar... Desejo acaso estranho,
Louca ambio talvez de peta exaltado...
MIRTO Tanto sentes por mim'?
CENA VI: CLEON, MIRTO, LSIAS
LSIAS (entrando)
Amor, nunca sonhado.
Se a musa dele s tu!
CLEON Lsias!
MIRTO Ouviste?
LSIAS Ouvi .
Versos que Anacreonte houvera feito a ti,
Se vivesses no templo em que, pulsando a lira,
Estas odes comps que a velha Grcia admira.
(A CLEON)
Quer falar-te um sujeIto, um Clnias, um colega,
Ex-mercador, como eu.
MIRTO Ai, que importuno!
Alega
LSIAS Que no pode esperar, que isto no pode ser,
Que um processo... Afinal no no pude entender.
Pode ser que contigo o homem se acomode.
Prometeste talvez compor-lhe alguma ode?
CLEON No. Adeus, bela Mirto; espera-me um instante
MIRTO No tardes!
LSIAS ( parte) Indiscreta!
CLEON Espera.
LSIAS Petulante!
CENA Vll: MIRTO, LSIAS
MIRTO Sou curiosa. Quem Clnias, ex-mercador?
Amigo dele?
LSIAS Mais do que isso; um credor.
MIRTO Ah!
LSIAS Que belo rapaz! que alma fogosa e pura,
Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura!
Queira o cu pr-lhe termo profunda agonia,
Surja enfim para ele o sol de um novo dia.
Merece-o. Mas v l se h destino pior;
Que o alado Mercrio obstar o alado Amor.
Com beijos no se paga a pompa do vestido,
O espetculo e a mesa; e se o gentil Cupido
Gosta de ouvir canes, o outro no vai com elas;
Vale uma dracma s vinte odezinhas belas.
Um poema no compra um simples borzeguim.
Versos! so bons de ler, mais nada; eu penso assim.
MIRTO Pensas mal! A poesia sempre um dom celeste;
Quando o gnio o possui quem h que o no requeste?
Hermes, com ser o deus dos graves mercadores,
Tocou lira tambm.
LSIAS J sei que ests de amores.
MIRTO Que esperana! Bem vs que eu j no posso amar.
LSIAS Perdeste o corao?
MIRTO Sim; perdi-o no mar.
LSIAS Pesquemo-lo; talvez essa prola fina
Venha ornar-me a existncia agourada e mofina.
MIRTO Mofina?
LSIAS Pois ento? Enfaram-me estas belas
Da terra samiana; assaz vivi por elas.
Outras desejo amar, filhas do azul Egeu.
Varia de feies o Amor, como Proteu.
MIRTO Seu carter melhor foi sempre o ser constante.
LSIAS Serei menos fiel, no sou menos amante.
Cada beleza em si toda a paixo resume.
Pouco me importa a flor; importa-me o perfume.
MIRTO Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flor;
Nem fere o objeto amado a mo que implora o amor.
LSIAS Ofendo-te com isto? Esquece a minha ofensa.
MIRTO J a esqueci; passou.
LSIAS Quem fala como pensa
Arrisca-se a perder ou por sobra ou por mngua.
Eu confesso o meu mal; no sei tentear a lngua.
Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens
A graa das feies, o sumo bem dos bens
Moa, trazes na fronte o doce beijo de Hebe
Como um filtro de amor que, sem sentir, se bebe
De teus olhos destila a eterna juventude
De teus olhos que um deus, por Ihes dar mais virtude
Fez azuis como o cu, profundos como o mar.
Quem tais dotes rene, Mirto, deve amar.
MIRTO Falas como um poeta, e zombas da poesia!
LSIAS Eu, poeta? jamais.
MIRTO A tua fantasia
Respirou certamente o ar do monte Himeto.
Tem a expresso to doce!
LSIAS a expresso do afeto.
Sou em cousas de Apolo um simples amador.
A minha grande musa Vnus, me do Amor.
No mais no aprendi (os fados meus adversos
Vedaram-mo! ) a cantar bons e sentidos versos.
Cleon, esse que sabe acender tantas almas
Conquistar de um s lance os coraes e as palmas.
MIRTO Conquistar, oh! que no!
LSIAS Mas agradar?
MIRTO Talvez.
LSIAS Isso mesmo; j muito. O que o poeta fez
F-lo-ei jamais? Contudo, inda tent-lo quero;
Se no me inspira a musa, alma filha de Homero,
Inspira-me o desejo, a musa que delira,
E o seu canto concerta aos sons da eterna lira.
MIRTO Tambm desejas ser alguma cousa?
LSIAS No;
Eu caso o meu amor s regras da razo.
Cleon quisera ser o espelho em que teu rosto
Sorri; eu, bela Mirto, eu tenho melhor gosto.
Ser espelho! ser banho! e tnica! Tolice!
Estril ambio! loucura! criancice!
Por Vnus! sei melhor o que a mim me convm.
Homem sisudo e grave outros desejos tem.
Fiz, a este respeito, aprofundado estudo;
Eu no quero ser nada; eu quero dar-te tudo.
Escolhe o mais perfeito espelho do ao fino,
A tnica melhor de pano tarentino,
Vasos de leo, um colar de prolas, -enfim
Quanto enfeita uma dama aceit-lo-s de mim.
Brincos que vo ornar-te a orelha graciosa;
Para os dedos o anel de pedra preciosa;
A tua fronte pede ureo, rico anadema;
T-lo-s, divina Mirto. este o meu poema.
MIRTO lindo!
Queres tu, outras estrofes mais?
LSIAS Dar-tas-ei quais as teve a celebrada Las.
Casa, rico jardim, servas de toda a parte;
E esttuas e painis, e quantas obras d'arte
Podem servir de ornato ao templo da beleza,
Tudo havers de mim. Nem gosto nem riqueza
Te h de faltar, mimosa, e s quero um penhor.
Quero... quero-te a ti.
MIRTO Pois qu! j que a flor,
Quem desdenhando a flor, s lhe pede o perfume?
LSIAS Esqueceste o perdo?
MIRTO Ficou-me este azedume.
LSIAS Vnus pode apag-lo.
MIRTO Eu sei! creio e no creio.
LSIAS Hesitar ceder; agrada-me o receio.
Em assunto de amor vontade que flutua
Ests prestes a entregar-se. Entregas-te?
MIRTO Sou tua!
CENA VIII: LSIAS, MIRTO, CLEON
CLEON Demorei-me demais?
LSIAS Apenas o bastante
Para que fosse ouvido um corao amante.
A Lesbiana minha.
CLEON s dele, Mirto!
MIRTO Sim.
Eu ainda hesitava, ele falou por mim.
CLEON Quantos amores tens, filha do mal?
LSIAS Pressinto
Uma lamentao intil. "A Corinto
No vai quem quer", l diz aquele velho adgio.
Navegavas sem leme; era certo o naufrgio.
No me viste sulcar as mesmas guas'?
CLEON Vi
Mas contava com ela, e confiava em ti.
Mais duas iluses! Que importa? Inda so poucas;
Desfaam-se uma a uma estas quimeras loucas.
rvore bendita, minha juventude,
Vo-te as flores caindo ao vento spero e rude!
No vos maldigo, no; eu no maldigo o mar
Quando a nave soobra, o erro confiar.
Adeus, formosa Mirto; adeus, Lsias; no quero
Perturbar vosso amor, eu que j nada espero;
Eu que vou arrancar as profundas razes
Desta paixo funesta; adeus, sede felizes!
LSIAS Adeus! Saudemos ns a Vnus e a Lieu.
AMBOS Io Poenan! Baco! Himeneu! Himeneu!
PLIDA ELVIRA
A FRANCISCO PAZ
Ulysse, jet sur les rives d'Ithaque, ne les reconnait pas et pleure sa patrie. Ainsi l'homme dans le bonheur possd ne reconnait pas son rve et soupire.
Daniel Stern
I
QUANDO, leitora amiga, no ocidente
Surge a tarde esmaiada e pensativa;
E entre a verde folhagem recendente
Lnguida geme virao lasciva;
E j das tnues sombras do oriente
Vem apontando a noite, e a casta diva
Subindo lentamente pelo espao,
Do cu, da terra observa o estreito abrao;
II
Nessa hora de amor e de tristeza,
Se acaso no amaste e acaso esperas
Ver coroar-te a juvenil beleza
Casto sonho das tuas primaveras
No sentes escapar tua alma acesa
Para voar s lcidas esferas?
No sentes nessa mgoa e nesse enleio
Vir morrer-te uma lgrima no seio?
III
Sente-lo? Ento entenders, Elvira,
Que assentada janela, erguendo o rosto,
O vo solta alma que delira
E mergulha no azul de um cu de agosto;
Entenders ento por que suspira,
Vtima j de um ntimo desgosto,
A meiga virgem, plida e calada,
Sonhadora, ansiosa e namorada.
IV
Manso de riso e paz, manso de amores
Era o vale. Espalhava a natureza,
Com dadivosa mo, palmas e flores
De agreste aroma e virginal beleza;
Bosques sombrios de imortais verdores,
Asilo prprio inspirao acesa,
Vale de amor, aberto s almas ternas
Neste vale de lgrimas eternas.
V
A casa. junto encosta de um outeiro
Alva pomba entre folhas parecia;
Quando vinha a manh, o olhar primeiro
Ia beijar-lhe a verde gelosia;
Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro
Do sol quente a janela protegia;
Pouco distante, abrindo o solo adusto,
Um fio dgua murmurava a custo.
Vl
Era uma jia a alcova em que sonhava
Elvira, alma de amor. Tapete fino
De apurado lavor o cho forrava.
De um lado oval espelho cristalino
Pendia. Ao fundo, sombra, se ocultava
Elegante, engraado, pequenino
Leito em que, repausando a face bela,
De amor sonhava a plida donzela.
VII
No me censure o crtico exigente
O ser plida a moa meu costume
Obedecer lei de toda a gente
Que uma obra compe de algum volume.
Ora, no nosso caso, lei vigente
Que um descorado rosto o amor resume.
No tinha Miss Smolen outras cores;
No as possui quem sonha com amores.
VIlI
Sobre uma mesa havia um livro aberto;
Lamartine, o cantor areo e vago,
Que enche de amor um corao deserto;
Tinha-o lido; era a pgina do Lago.
Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto
Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;
Chorava aos cantos da divina lira...
que o grande poeta amava Elvira!
IX
Elvira! o mesmo nome! A moa os lia,
Com lgrimas de amor, os versos santos,
Aquela eterna e lnguida harmonia
Formada com suspiros e com prantos;
Quando escutava a musa da elegia
Cantar de Elvira os mgicos encantos,
Entrava-lhe a voar a alma inquieta,
E com o amor sonhava de um poeta.
X
Ai, o amor de um poeta! amor subido!
Indelvel, purssimo, exaltado,
Amor eternamente convencido,
Que vai alm de um tmulo fechado,
E que atravs dos sculos ouvido
O nome leva do objeto amado
Que faz de Laura um culto, e tem por sorte
Negra fouce quebrar nas mos da morte.
Xl
Fosse eu moa e bonita. . . Neste lance
Se o meu leitor j homem sisudo,
Fecha tranqilamente, o meu romance,
Que no serve a recreio nem a estudo;
No entendendo a fora nem o alcance
De semelhante amor, condena tudo:
Abre um volume srio, farto e enorme,
Algumas folhas l, boceja... e dorme.
XII
Nada perdes, leitor, nem perdem nada
As esquecidas musas; pouco importa
Que tu, vulgar matria condenada,
Aches que um tal amor letra morta.
Podes, cedendo opinio honrada,
Fechar minha Elvira a esquiva porta.
Almas de prosa ch, quem vos daria
Conhecer todo o amor que h na poesia?
XIII
Ora, o tio de Elvira, o velho Antero,
Erudito e filsofo profundo,
Que sabia de cor o velho Homero,
E compunha os anais do Novo Mundo;
Que escrevera uma vida de Severo
Obra de grande tomo e de alto fundo;
Que resumia em si a Grcia e Lcio,
E num salo falava como Horcio;
XIV
Disse uma noite plida sobrinha:
"Elvira, sonhas tanto! devaneias!
Que andas a procurar, querida minha?
Que ambies, que desejos ou que idias
Fazem gemer tua alma inocentinha?
De que esperana v, meu anjo, anseias?
Teu corao de ardente amor suspira;
Que tens?" - "Eu? nada", respondia Elvira.
XV
"Alguma cousa tens! tornava o tio;
Por que olhas tu as nuvens do poente,
Vertendo s vezes lgrimas a fio,
Magoada expresso d'alma doente?
Outras vezes olhando a gua do rio,
Deixas correr o esprito indolente
Como uma flor que ao vento ali tombara,
E a onda murmurando arrebatara.
XVI
Latet anguis in herba.. ." Neste instante
Entrou a tempo o ch... Perdo, leitores,
Eu bem sei que preceito dominante
No misturar comidas com amores;
Mas eu no vi, nem sei se algum amante
Vive de orvalho ou ptalas de flores;
Namorados estmagos consomem;
Comem Romeus, e Julietas comem.
XVII
Entrou a tempo o ch, e foi servi-lo,
Sem responder, a moa interrogada,
Com ar to soberano e to tranqilo
Que o velho emudeceu. Ceia acabada,
Fez o escritor o costumado quilo,
Mas um quilo de espcie pouco usada,
Que consistia em ler um livro velho;
Nessa noite acertou ser o Evangelho.
XVIII
Abrira em S. Mateus, naquele passo
Em que o filho de Deus diz que a aucena
No labora nem fia, e o tempo escasso
Vive, coo ar e o sol, sem dor nem pena;
Leu e estendendo o j trmulo brao
triste, melanclica pequena,
Apontou-lhe a passagem da Escritura
Onde lera lio to reta e pura.
XIX
"Vs? diz o velho, escusas de cansar-te;
Deixa em paz teu esprito, criana:
Se existe um corao que deva amar-te,
H de vir; vive s dessa esperana.
As venturas do amor um deus reparte;
Queres t-las? pe nele a confiana.
No persigas com splicas a sorte;
Tudo se espera; at se espera a morte!
XX
A doutrina da vida esta: espera,
Confia, e colhers a ansiada palma;
Oxal que eu te apague essa quimera.
L diz o bom Demfilo que alma,
Como traz a andorinha a primavera,
A palavra do sbio traz a calma.
O sbio aqui sou eu. Ris-te, pequena?
Pois melhor; quero ver-te uma aucena!"
XXI
Falava aquele velho como fala
Sobre cores um cego de nascena.
Pear a juventude! Conden-la
Ao sono da ambio vivaz e intensa!
Coas leves asas da esperana orn-la
E no querer que rompa a esfera imensa!
No consentir que esta manh de amores
Encha com frescas lgrimas as flores!
XXII
Mal o velho acabava e justamente
No rija porta ouviu-se urna pancada.
Quem seria? Uma serva diligente,
Travando de uma luz, desceu a escada.
Pouco depois rangia brandamente
A chave, e a porta aberta dava entrada
A um rapaz embuado que trazia
Uma carta, e ao doutor falar podia.
XXIII
Entrou na sala, e lento, e gracioso,
Descobriu-se e atirou a capa a um lado
Era um rosto potico e vioso
Por soberbos cabelos coroado;
Grave sem gesto algum pretensioso,
Elegante sem ares de enfeitado;
Nos lbios frescos um sorriso amigo,
Os olhos negros e o perfil antigo.
XXIV
Demais, era poeta. Era-o. Trazia
Naquele olhar no sei que luz estranha
Que indicava um aluno da poesia,
Um morador da clssica montanha,
Um cidado da terra da harmonia,
Da terra que eu chamei nossa Alemanha,
Nuns versos que hei de dar um dia a lume,
Ou nalguma gazeta, ou num volume.
XXV
Um poeta! e de noite! e capote!
Que isso, amigo autor? Leitor amigo,
Imaginas que ests num camarote
Vendo passar em cena um drama antigo
Sem lana no conheo D. Quixote,
Sem espada apcrifo um Rodrigo;
Heri que s regras clssicas escapa,
Pode no ser heri, mas traz a capa.
XXVI
Heitor (era o seu nome) ao velho entrega
Uma carta lacrada; vem do Norte.
Escreve-lhe um filsofo colega
J quase a entrar no tlamo da morte.
Recomenda-lhe o filho, e lembra, e alega
A provada amizade, o esteio forte,
Com que outrora, acudindo-lhe nos transes,
Salvou-lhe o nome de terrveis lances.
XXVII
Dizia a carta mais: "Crime ou virtude,
meu filho poeta; e corre fama
Que j faz honra nossa juventude
Coa viva inspirao de etrea chama;
Diz ele que, se o gnio no o ilude,
Cames seria se encontrasse um Gama.
Deus o fade; eu perdo-lhe tal sestro;
Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro''
XXVIII
Lida a carta, o filsofo erudito
Abraa o moo e diz em tom pausado:
"Um sonhador do azul e do infinito!
hspede do cu, hspede amado.
Um bom poeta hoje quase um mito.
Se o talento que tem j provado,
Conte coo meu exemplo e o meu conselho;
Boa lio sempre a voz de um velho".
XXIX
E trava-lhe da mo, e brandamente
Leva-o junto d'Elvira. A moa estava
Encostada janela, e a esquiva mente
Pela extenso dos ares lhe vagava.
Voltou-se distrada, e de repente
Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava,
Sentiu... Intil fora relat-lo;
Julgue-o quem no puder experiment-lo.
XXX
santa e pura luz do olhar primeiro!
Elo de amor que duas almas liga!
Raio de sol que rompe o nevoeiro
E casa a fIor flor! palavra amiga
Que, trocada um momento passageiro,
Lembrar parece uma existncia antiga!
Lngua, filha do cu, doce eloqncia
Dos melhores momentos da existncia!
XXXI
Entra a leitora numa sala cheia;
Vai isenta, vai livre de cuidado:
Na cabea gentil nenhuma idia?
Nenhum amor no corao fechado.
Livre como a andorinha que volteia
E corre loucamente o ar azulado.
Venham dous oIhos, dous, que a alma buscava...
Eras senhora? ficars escrava!
XXXII
com s olhar escravos ele e ela
J Ihes pulsa mais forte o sangue e a vida;
Rpida corre aquela noite, aquela
Para as castas venturas escolhida;
Assoma j nos lbios da donzela
Lampejo de alegria esvaecida.
Foi milagre de amor, prodgio santo.
Quem mais fizera? Quem fizera tanto?
XXXIII
Preparara-se ao moo um aposento.
Oh! reverso da antiga desventura!
T-lo perto de si! viver do alento
De um poeta, alma lnguida, alma pura!
D-lhe, fonte do casto sentimento,
guas santas, batismo de ventura!
Enquanto o velho, amigo de outra fonte,
Vai mergulhar-se em pleno Xenofonte.
XXXIV
Devo agora contar, dia por dia,
O romance dos dous? IntiI fora;
A histria sempre a mesma; no varia
A paixo de um rapaz e uma senhora.
Vivem ambos do olhar que se extasia
E conversa coa alma sonhadora;
Na mesma luz de amor os dous se inflamam,
Ou, como diz Filinto: "Amados, amam".
XXXV
Todavia a leitora curiosa
Talvez queira saber de um incidente;
A confisso dos dous; - cena espinhosa
Quando a paixo domina a alma que sente.
Em regra, confisso franca e verbosa
Revela um corao independente;
A paz interior tudo confia,
Mas o amor, esse hesita e balbucia.
XXXVl
O amor faz monosslabos; no gasta
O tempo com anlises compridas;
Nem prprio de boca amante e casta
Um chuveiro de frases estendidas;
Um volver d'olhos lnguido nos basta
A conhecer as chamas comprimidas;
Corao que discorre e faz estilo,
Tem as chaves por dentro e est tranqilo.
XXXVII
Deu-se o caso uma tarde em que chovia,
Os dous estavam na varanda aberta
A chuva peneirava, e alm cobria
Cinzento vu o ocaso; a tarde incerta
J nos braos a noite recebia,
Como amorosa me que a filha aperta
Por enxugar-lhe os prantos magoados.
Eram ambos imveis e calados.
XXXVIII
Juntos, ao parapeito da varanda,
Viam cair da chuva as gotas finas,
Sentindo a virao fria, mas branda,
Que balanava as frouxas casuarinas.
Raras, ao longe, de uma e de outra banda,
Pelas do cu tristssimas campinas,
Via correr da tempestade as aves
Negras, serenas, lgubres e graves.
XXXIX
De quando em quando vinha uma rajada
Borrifar e agitar a Elvira as tranas.
Como se fora a brisa perfumada
Que palmeira sacode as tnuas franas.
A fronte gentilssima e engraada
Sacudia coa chuva as ms lembranas;
E ao passo que chorava a tarde escura
Ria-se nela a aurora da ventura.
XL
"Que triste a tarde vai! que vu de morte
Cobrir parece a terra! (o moo exclama).
Reproduo fiel da minha sorte,
Sombra e choro." "'Por qu? pergunta a dama;
Diz que teve dos cus uma alma forte..."
" forte o cedro e no resiste chama;
Leu versos meus em que zombei do fado?
Iluses de poeta malogrado!
XLI
Somos todos assim. nossa glria
Contra o destino opor alma de ferro;
Desafiar o mal, eis nossa histria,
E o tremendo duelo sempre um erro.
Custa-nos caro uma falaz vitria
Que nem consola as mgoas do desterro,
O desterro, - esta vida obscura e rude
Que a dor enfeita e as vtimas ilude.
XLII
Contra esse mal tremendo que devora
A seiva toda nossa mocidade,
Que remdio haveramos, senhora,
Seno versos de afronta e liberdade?
No entanto, bastaria acaso umhora,
Uma s, mas de amor, mas de piedade,
Para trocar por sculos de vida
Estes de dor acerba e envilecida.
XLIII
Al no disse, e, fitando olhos ardentes
Na moa, que de enleio enrubescia,
Com discursos mais fortes e eloqentes
Na exposio do caso prosseguia;
A pouco e pouco as mos inteligentes
Travaram-se; e no sei se conviria
Acrescentar que um sculo . . . Risquemos,
No bom mencionar estes extremos.
XLIV
Duas sombrias nuvens afastando,
Tnue raio de sol rompera os ares,
E, no amoroso grupo desmaiando,
Testemunhou-lhe as npcias singulares.
A nesga azul do ocaso contemplando,
Sentiram ambos irem-lhes os pesares,
Como noturnas aves agoureiras
Que luz fogem medrosas e ligeiras.
XLV
Tinha mgoas o moo? A causa delas?
Nenhuma causa; fantasia apenas;
O eterno devanear das almas belas,
Quando as dominam frvidas camenas;
Uma ambio de conquistar estrelas,
Como se colhem lcidas falenas;
Um desejo de entrar na eterna lida,
Um querer mais do que nos cede a vida.
XLVI
Com amores sonhava, ideal formado
De celestes e eternos esplendores,
A ternura de um anjo destinado
A encher-lhe a vida de perptuas flores.
Tinha-o, enfim, qual fora antes criado
Nos seus dias de mgoas e amargores;
Madrugavam-lhe n'alma a luz e o riso;
Estava porta enfim do paraso.
XLVII
Nessa noite, o poeta namorado
No conseguiu dormir. A alma fugira
Para ir velar o doce objeto amado
Por quem, nas nsias da paixo, suspira;
E provvel que, achando o exemplo dado,
Ao p de Heitor viesse a alma de Elvira;
De maneira que os dous, de si ausentes,
L se achavam mais vivos e presentes.
XLVIII
Ao romper da manh, coo sol ardente,
Brisa fresca, entre as folhas sussurrando,
O no dormido vate acorda, e a mente
Lhe foi dos vagos sonhos arrancando.
Heitor contempla o vale resplendente,
A flor abrindo, o pssaro cantando;
E a terra que entre risos acordava,
Ao sol do estio as roupas enxugava.
XLIX
Tudo ento lhe sorria. A natureza,
As musas, o futuro, o amor e a vida;
Quanto sonhara aquela mente acesa
Dera-lhe a sorte, enfim compadecida.
Um paraso, uma gentil beleza,
E a ternura castssima e vencida
De um corao criado para amores,
Que exala afetos como aroma as flores.
L
E ela? Se conheceste em tua vida
Leitora, o mal do amor, delrio santo,
Dor que eleva e conforta a alma abatida,
Embriaguez do cu, divino encanto,
Se a tua face ardente e enrubescida
Palejou com suspiros e com prantos,
Se ardeste enfim, naquela intensa chama,
Entenders o amor de ingnua dama.
Ll
Repara que eu no fao desse enleio
De uma noite de baile ou de palestra;
Amor que mal agita a flor do seio,
E ao ch termina e acaba com a orquestra;
No me refiro ao simples galanteio
Em que cada menina velha mestra.
Avesso ao sacrifcio, dor e ao choro;
Falo do amor, no falo do namoro.
LII
den de amor, solido fechada
Casto asilo a que o sol dos novos dias
Vai mandar, como a furto, a luz coada
Pelas frestas das verdes gelosias,
Guarda-os ambos; conserva-os recatada.
Almas feitas de amor e de harmonias,
Tecei, tecei as vvidas capelas,
Deixai correr sem susto as horas belas.
LlIl
C fora o mundo inspido e profano
No d, nem pode dar o enleio puro
Das almas novas, nem o doce engano
No busqueis penetrar neste oceano
Com que se esquecem males do futuro.
Em que se agita o temporal escuro.
Por fugir ao naufrgio e aosofrimento,
Tendes uma enseada, - o casamento.
LIV
Resumamos, leitora, a narrativa.
Tanta estrofe a cantar etreas chamas
Pede compensao, musa insensiva,
Que fatigais sem pena o ouvido s damas.
Demais, regra certa e positiva
Que muitas vezes, as maiores famas
Perde-as uma ambio de tagarela;
Musa, aprende a lio; musa, cautela!
LV
Meses depois da cena relatada
Nas estrofes, a folhas, - o poeta
Ouviu do velho Antero uma estudada
Orao cicernica e seleta;
A concluso da arenga preparada
Era mais agradvel que discreta.
Dizia o velho erguendo olhos serenos:
"Pois que se adoram, casem-se, pequenos!"
LVI
Lgrima santa, lgrima de gosto
Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto
Veio inundar-lhe de prazer o rosto
Como uma flor que abrisse no deserto.
Se iam j longe as sombras do desgosto;
lnda at li era o futuro incerto
Fez-lhe certo o ancio; e a moa grata
Beija a mo que o futuro lhe resgata.
LVII
Correm os banhos, tiram-se dispensas,
Vai-se buscar um padre ao povoado;
Prepara-se o enxoval e outras pertenas
Necessrias agora ao novo estado.
Notam-se at algumas diferenas
No modo de viver do velho honrado,
Que sacrifica noiva e aos deuses lares
Um estudo dos clssicos jantares.
LVIII
"Onde vais tu?" " serra!" "Vou contigo".
"No, no venhas meu anjo, longa a estrada.
Se cansares ? "Sou leve, meu amigo;
Descerei nos teus ombros carregada".
"Vou compor encostado ao cedro antigo
Canto de npcias" . "Seguirei calada;
Junto de ti, ter-me-s mais em lembrana;
Musa serei sem perturbar" "Criana!"
LIX
Brandamente repele Heitor a Elvira;
A moa fica; o poeta lentamente
Sobe a montanha. A noiva repetira
O primeiro pedido inutilmente.
Olha-o de longe, e tmida suspira.
Vinha a tarde caindo frouxamente,
No triste, mas risonha e fresca e bela
Como a vida da plida donzela.
LX
Chegando, enfim, a c'roa da colina,
Viram olhos de Heitor o mar ao largo,
E o sol, que despe a veste purpurina,
Para dormir no eterno leito amargo.
Surge das guas, plida e divina,
Essa que tem por deleitoso encargo
Velar amantes, proteger amores,
Lua, musa dos cndidos palores.
LXI
Respira Heitor; livre. O casamento?
Foi sonho que passou, fugaz idia
Que no pde durar mais que um momento.
Outra ambio a alma lhe incendeia.
Dissipada a iluso, o pensamento
Novo quadro a seus olhos patenteia,
No lhe basta aos desejos de sua alma
A enseada da vida estreita e calma.
LXII
Aspira ao largo; pulsam-lhe no peito
Uns mpetos de vida; outro horizonte,
Tmidas vagas, temporal desfeito,
Quer com eles lutar fronte por fronte.
Deixa o tranqilo amor, casto e perfeito,
Pelos brdios de Vnus de Amatonte;
A existncia entre fores esquecida
Pelos rumores de mais ampla vida.
LXIII
Nas mos da noite desmaiara a tarde;
Descem ao vale as sombras vergonhosas;
Noite que o cu, por mofa ou por alarde,
Torna propcia s almas venturosas.
O derradeiro olhar frio e covarde
E umas no sei que estrofes lamentosas
Solta o poeta, enquanto a triste Elvira,
Viva antes de noiva, em vo suspira!
LXIV
Transpe o mar Heitor, transpe montanhas;
Tu, curiosidade, o ingrato levas
A ir ver o sol das regies estranhas,
A ir ver o amor das peregrinas Evas.
Vai, em troco de palmas e faanhas,
Viver na morte, bracejar nas trevas;
Fazer do amor, que livro aos homens dado,
Copioso almanaque namorado.
LXV
Inscreve nele a moa de Sevilha,
Longas festas e noites espanholas,
A indiscreta e diablica mantilha
Que a fronte cinge a amantes e a carolas.
Quantos encontra coraes perfilha,
Faz da bolsa e do amor largas esmolas;
Esquece o antigo amor e a antiga musa
Entre os beijos da lpida andaluza.
LXVI
Canta no seio trgido e macio
Da fogosa, indolente italiana,
E dorme junto ao laranjal sombrio
Ao som de uma cano napolitana.
Do-lhe, para os seres do ardente estio,
Asti, os vinhos, mulheres, a Toscana.
Roma adora, embriaga-se em Veneza,
E ama a arte nos braos da beleza.
LXVII
V Londres, v Paris, terra das ceias,
Feira do amor a toda a bolsa aberta;
No mesmo lao, as belas como as feias.
Por capricho ou razo, iguais aperta;
A idade no pergunta s taas cheias;
S pede o vinho que o prazer desperta;
Adora as outonias, como as novas,
Torna-se heri de rua e heri de alcovas.
LXVIII
Versos, quando os compe, celebram antes
O alegre vcio que a virtude austera;
Canta os beijos e as noites delirantes,
O estril gozo que a volpia gera;
Troca a iluso que o seduzia dantes
Por maior e tristssima quimera;
Ave do cu, entre sculos criada,
Espalha as plumas brancas pela estrada.
LXIX
Um dia, enfim, cansado e aborrecido,
Acorda Heitor; e, olhando em roda ao largo,
V um deserto, e do prazer perdido
Resta-lhe unicamente o gozo amargo;
No achou o ideal apetecido
No longo e profundssimo letargo;
A vida exausta em festas e esplendores,
Se algumas tinha, eram j murchas flores.
LXX
Ora, uma noite, costeando o Reno,
Ao luar melanclico, - buscava
Aquele gozo simples, doce, ameno,
Que vida toda outrora lhe bastava;
Voz remota, cortando o ar sereno,
Em derredor os ecos acordava;
Voz alde que o largo espao enchia,
E uma cano de Schiler repetia.
LXXI
"A glria! diz Heitor, a glria vida!
Por que busquei nos gozos de outra sorte
Esta felicidade apetecida,
Esta ressurreio que anula a morte?
iluso fantstica e perdida!
mal gasto, ardentssimo transporte!
Musa, restaura as apagadas tintas!
Revivei, revivei, chamas extintas!"
LXXII
A glria? Tarde vens, pobre exilado!
A glria pede as iluses viosas,
Estro em flor, corao eletrizado.
Mos que possam colher etreas rosas;
Mas tu, filho do cio e do pecado,
Tu que perdeste as foras portentosas
Na agitao que os nimos abate,
Queres colher a palma do combate?
LXXIII
Chamas em vo as musas; deslembradas,
tua voz os seus ouvidos cerram;
E nas pginas virgens, preparadas,
Pobre poeta, em vo teus olhos erram;
Nega-se a inspirao; nas despregadas
Cordas da velha lira, os sons que encerram
Inertes dormem; teus cansados dedos
Correm debalde; esquecem-lhe os segredos.
LXXIV
Ah! se a taa do amor e dos prazeres
J no guarda licor que te embriague;
Se nem musas nem lnguidas mulheres
Tm corao que o teu desejo apague;
Busca a cincia, estuda a lei dos seres,
Que a mo divina tua dor esmague;
Entra em ti, v o que s, observa em roda,
Escuta e palpa a natureza toda.
LXXV
Livros compra, um filsofo procura;
Resolve a criao, perscruta a vida;
V se espancas a longa noite escura
Em que a estril razo andou metida;
Talvez aches a palma da ventura
No campo das cincias escondida.
Que a tua mente as iluses esquea:
Se o corao morreu, vive a cabea!
LXXVI
Ora, por no brigar coos meus leitores,
Dos quais, conforme a curta ou longa vista,
Uns pertencem aos grupos novadores
Da fria comunho materialista;
Outros, seguindo exemplo dos melhores,
Defendem a teoria idealista;
Outros, enfim fugindo armas extremas,
Vo curando por ambos os sistemas;
LXXVII
Direi que o nosso Heitor, aps o estudo
Da natureza e suas harmonias,
(Opondo conscincia um forte escudo
Contra divagaes e fantasias);
Depois de ter aprofundado tudo,
Planta, homem, estrelas, noites, dias,
Achou esta lio inesperada:
Veio a saber que no sabia nada.
LXXVIll
"Nada! exclama um filsofo amarelo
Pelas longas viglias, afastando
Um livro que h de dar um dia ao prelo
E em cujas folhas ia trabalhando.
Pois eu, doutor de borla e de capelo,
Eu que passo o.s meus dias estudando,
Hei de ler o que escreve pena ousada,
Que a cincia da vida acaba em nada?"
LXXIX
Aqui convinha intercalar com jeito,
Sem pretenso, nem pompa nem barulho,
Uma arrancada apstrofe do peito
Contra as vs pretenses do nosso orgulho;
Conviria mostrar em todo o efeito
Essa que dos espritos entulho,
Cincia v, de magnas leis to rica,
Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica.
LXXX
Mas, urgindo acabar este romance,
Deixo em paz o filsofo, e procuro
Dizer ao vate o doloroso trance
Quando se achou mais peco e mais escuro.
Valera bem naquele triste lance
Um sorriso do cu plcido e puro,
Raio do sol eterno da verdade,
Que a vida aquece e alenta a humanidade.
LXXXI
Qu! nem ao menos na cincia havia
Fonte que a eterna sede lhe matasse?
Nem do amor, nem no seio da poesia
Podia nunca repousar a face;
Atrs desse fantasma correria
Sem que jamais as formas lhe palpasse?
Seria acaso a sua ingrata sorte
A ventura encontrar nas mos da morte?
LXXII
A morte! Heitor pensara momentos
Nessa sombria porta aberta vida;
Plido arcanjo dos finais alentos
De alma que o cu deixou desiludida;
Mo que, fechando os olhos sonolentos,
Pe o termo fatal humana lida;
Templo de glria ou regio do medo,
Morte, quem te arrancara o teu segredo?
LXXXIII
Vazio, intil, ermo de esperanas
Heitor buscava a noiva ignota e fria,
Que o envolvesse ento nas longas tranas
E o conduzisse cmara sombria,
Quando, em meio de plidas lembranas,
Surgiu-lhe a idia de um remoto dia,
Em que cingindo a cndida capela
Estava a pertencer-te uma donzela.
LXXXIV
Elvira! o casto amor! a esposa amante!
Rosa de uma estao, deixada ao vento!
Riso dos cus! estrela rutilante
Esquecida no azul do firmamento!
Ideal, meteoro de um instante!
Glria da vida, luz do pensamento!
A gentil, a formosa realidade!
nica dita e nica verdade!
LXXXV
Ah! por que no ficou terno e tranqilo
Da ingnua moa nos divinos braos?
Por que fugira ao casto e alegre asilo?
Por que rompera os mal formados laos?
Quem pudera jamais restitu-lo
Aos estreitos, fortssimos abraos
Com que Elvira apertava enternecida
Esse que lhe era o amor, a alma e a vida?
LXXXVl
Ser tempo? Quem sabe? Heitor hesita;
Tardio pejo lhe enrubesce a face;
Punge o remorso; o corao palpita,
Como se vida nova o reanimasse;
Tnue fogo, entre a cinza, arde e se agita...
Ah! se o passado ali ressuscitasse
Reviveriam iluses viosas,
E a gasta vida rebentara em rosas!
LXXXVl l
Resolve Heitor voltar ao vale amigo,
Onde ficara a noiva abandonada.
Transpe o mar, afronta-lhe o perigo,
E chega enfim terra desejada.
Sobe o monte, contempla o cedro antigo,
Sente abrir-se-lhe n'alma a flor murchada
Das iluses que um dia concebera;
Rosa extinta da sua primavera!
LXXXVIII
Era a hora em que os serros do oriente
Formar parecem luminosas urnas;
E abre o sol a pupila resplendente
Que s folhas sorve as lgrimas noturnas;
Frouxa brisa amorosa e diligente
Vai acordando as sombras taciturnas;
Surge nos braos dessa aurora estiva
A alegre natureza rediviva.
LXXXIX
Campa era o mar; o vale estreito bero;
De um lado a morte, do outro lado a vida,
Canto do cu resumo do universo,
Ninho para aquecer a ave abatida.
Inda nas sombras todo o vale imerso,
No acordara costumada lida;
Repousava no plcido abandono
Da paz tranqila e do tranqilo sono.
XC
Alto j ia o sol, quando descera
Heitor a oposta face da montanha;
Nada do que deixou desaparecera;
O mesmo rio as mesmas ervas banha.
A casa como ento, garrida e austera,
Do sol nascente a viva luz apanha;
Iguais flores, nas plantas renascidas...
Tudo ali fala de perptuas vidas!
XCI
Desce o poeta cauteloso e lento.
Olha de longe; um vulto ao sol erguia
A veneranda fronte, monumento
De grave e celestial melancolia.
Como sulco de um fundo pensamento
Larga ruga na testa abrir se via,
Era a runa talvez de uma esperana...
Nos braos tinha uma gentil criana
XCII
Ria a criana; o velho contemplava
Aquela flor que s auras matutinas
O perfumoso clix desbrochava
E entrava a abrir as ptalas divinas.
Triste sorriso o rosto lhe animava,
Como um raio de lua entre runas.
Alegria infantil, tristeza austera,
O inverno torvo, a alegre primavera!
XCIII
Desce o poeta, desce, e preso, e fito
Nos belos olhos do gentil infante,
Treme, comprime o peito. . . e aps um grito
Corre alegre, exaltado e delirante.
Ah! se jamais as vozes do infinito
Podem sair de um corao amante.
Teve-as aquele... lgrimas sentidas
Lhe inundaram as faces ressequidas!
XCIV
"Meu filho!" exclama, e sbito parando
Ante o grupo ajoelha o libertino;
Geme, solua, em lgrimas beijando
As mos do velho e as tranas do menino.
Ergue-se Antero, e frio e venerando,
Olhos no cu, exclama: "Que destino!
Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura;
Morta, insultar-lhe a paz da sepultura!"
XCV
"Morta!'' "Sim!" "Ah! senhor! se arrependido
Posso alcanar perdo, se com meus prantos
Posso apiedar-lhe o corao ferido
Por tanta mgoa e longos desencantos;
Se este infante, entre lgrimas nascido,
Pode influir-me os seus afetos santos...
meu filho, no ? perdo lhe imploro!
Veja senhor! eu sofro, eu creio, eu choro!"
XCVI
Olha-o com frio orgulho o velho honrado;
Depois, fugindo quela cena estranha,
Entra em casa. O poeta, acabrunhado,
Sobe outra vez a encosta da montanha;
Ao cimo chega, e desce o oposto lado
Que a vaga azul entre soluos banha.
Como fria ironia a tantas mgoas,
Batia o sol de chapa sobre as guas.
XCVll
Pouco tempo depois ouviu-se um grito,
Som de um corpo nas guas resvalado;
flor das vagas veio um corpo aflito...
Depois. . . o sol tranqilo e o mar calado.
Depois... Aqui termina o manuscrito,
Que ora em letra de forma publicado,
Nestas estrofes plidas e mansas,
Para te divertir de outras lembranas.
FIM