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AS MARAVILHAS DE WALTER BENJAMIN J.M. COETZEE TRADUZIDO DO INGLÊS POR JOSÉ RUBENS SIQUEIRA RESUMO Neste texto o escritor sul-africano J. M. Coetzee comenta a vida e a obra de Walter Benjamin (1892-1940), a propósito da publicação de três títulos que compõem o projeto da Harvard University Press de tradução da obra benjaminiana para o inglês. Trata-se do inacabado The arcades project (Trabalho das passagens), lançado em 1999, e dos volumes I e II dos Selected writings, que reúnem textos dos períodos 1913-26 e 1927-34 e foram publicados em 1996 e 1999, respectivamente. PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin; Trabalho das passagens; marxismo; comunismo. SUMMARY Here, the South-African writer J.M. Coetzee comments the life and work of Walter Benjamin (1892-1940) from a review of three titles that compose the Harvard University Press' project of translating Benjamin's oeuvre into English. It deals about the unfinished Arcades Project, issued in 1999, and the two first volumes of the Selected Writings, which gather texts from 1913-26 and 1927-34 and were published respectively in 1996 and 1999. KEYWORDS: Walter Benjamin; The Arcades Project; Marxism; Communism. [*] Originalmente publicado em The New York Review of Books, vol. 48, nº 1, janeiro de 2001. I A história já é tão conhecida que quase não precisa ser contada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, em 1940. Fugindo da França ocupada, Walter Benjamin apresenta-se para a esposa de um certo Fittko, que conhecera num campo de detenção. Soube, diz ele, que Frau Fittko poderia guiá-lo com seus companheiros na travessia dos Pireneus para a Espanha neutra. Ela o leva em uma caminhada para fazer o reconhecimento das melhores rotas; ele carrega uma pasta pesada. A pasta é mesmo necessária? — pergunta ela. Contém um manuscrito, ele responde. "Não posso correr o risco de perder isto. Precisa ser salvo. É mais importante do que eu".

As Maravilhas de Walter Benjamin

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AS MARAVILHASDE WALTER BENJAMIN

J.M. COETZEE

TRADUZIDO DO INGLÊS POR JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

RESUMO

Neste texto o escritor sul-africano J. M. Coetzee comenta a vida e a obra

de Walter Benjamin (1892-1940), a propósito da publicação de três títulos que compõem o projeto da Harvard University Press de

tradução da obra benjaminiana para o inglês. Trata-se do inacabado The arcades project (Trabalho das passagens), lançado em 1999, e dos

volumes I e II dos Selected writings, que reúnem textos dos períodos 1913-26 e 1927-34 e foram publicados em 1996 e 1999,

respectivamente.

PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin; Trabalho das passagens; marxismo; comunismo.

SUMMARY

Here, the South-African writer J.M. Coetzee comments the life and

work of Walter Benjamin (1892-1940) from a review of three titles that compose the Harvard University Press' project of translating

Benjamin's oeuvre into English. It deals about the unfinished Arcades Project, issued in 1999, and the two first volumes of the Selected

Writings, which gather texts from 1913-26 and 1927-34 and were published respectively in 1996 and 1999.

KEYWORDS: Walter Benjamin; The Arcades Project; Marxism; Communism.

[*] Originalmente publicado emThe New York Review of Books,vol. 48, nº 1, janeiro de 2001.

I

A história já é tão conhecida que quase não precisa sercontada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, em 1940. Fugindoda França ocupada, Walter Benjamin apresenta-se para a esposa de umcerto Fittko, que conhecera num campo de detenção. Soube, diz ele,que Frau Fittko poderia guiá-lo com seus companheiros na travessiados Pireneus para a Espanha neutra. Ela o leva em uma caminhadapara fazer o reconhecimento das melhores rotas; ele carrega uma pastapesada. A pasta é mesmo necessária? — pergunta ela. Contém ummanuscrito, ele responde. "Não posso correr o risco de perder isto.Precisa ser salvo. É mais importante do que eu".

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No dia seguinte atravessam as montanhas, Benjamin parando acada poucos minutos por causa do coração fraco. Na fronteira, sãodetidos. Os papéis não estão em ordem, diz a polícia espanhola; têm devoltar para a França. Em desespero, Benjamin toma uma overdose demorfina. A polícia faz um inventário dos pertences do morto. No in-ventário não há nenhum registro de um manuscrito.

O que havia na pasta e como desapareceu, só podemos especular.Gershom Scholem, amigo de Benjamin, sugeriu que era a última revisãodo inacabado Passagen-Werk [Trabalho das passagens], conhecido eminglês como Arcades project. ("Para grandes escritores", escreveuBenjamin, "uma obra terminada pesa menos que aqueles fragmentosem que trabalharam a vida inteira".) O esforço heróico, embora inútil,de salvar seu manuscrito das fogueiras do fascismo, levando-o a salvopara a Espanha e em seguida para os Estados Unidos, torna Benjaminum ícone do scholar para o nosso tempo.

A história tem uma virada feliz. Uma cópia do manuscrito dei-xada em Paris fora escondida na Bibliotèque Nationale por GeorgeBataille, amigo de Benjamin. Recuperado depois da guerra, foi publi-cado em 1982 em sua forma original, isto é, em alemão e com enormestrechos em francês. Agora temos a magnum opus de Benjamin em tra-dução integral para o inglês, e estamos ao menos em posição de fazera pergunta: por que tanto interesse por um tratado sobre compras naFrança do século XIX?

Benjamin nasceu em 1892, em Berlim, numa família judia assi-milada. O pai era um bem-sucedido leiloeiro de arte que expandiu suasatividades para o ramo de investimento em propriedades; para amaioria dos padrões, os Benjamin eram abastados. Aos 12 anos, depoisde uma infância doentia e cercada de cuidados, Benjamin foi enviadopara um colégio interno progressista no campo, onde sofreu ainfluência de um de seus diretores, Gustav Wyneken. Após deixar aescola, militou por muito tempo no movimento juvenil antiautoritáriode retorno à natureza liderado por Wyneken, e só o deixou quando estedeclarou apoio à I Guerra Mundial.

Em 1912 Benjamin matriculou-se na Universidade de Freiburgcomo estudante de filologia. Ao concluir que o ambiente intelectual nãolhe apetecia, lançou-se no ativismo pela reforma educacional. Quandoa guerra eclodiu, furtou-se ao serviço militar primeiro fingindo umproblema de saúde e depois mudando-se para a Suíça neutra. Ali ficouaté 1920, lendo filosofia e trabalhando em uma dissertação de douto-ramento para a Universidade de Berna. Sua esposa reclamava que elesnão tinham vida social.

Benjamin tinha atração por universidades assim como Kafka porcompanhias de seguro, observou seu amigo Theodor Adorno. Apesardos escrúpulos, Benjamin cumpriu todos os passos exigidos para obtera Habilitation (doutorado superior) que lhe permitiria tornar-se pro-fessor, e em 1925 submeteu à Universidade de Frankfurt sua dissertação

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sobre o drama barroco alemão. Surpreendentemente, a dissertação nãofoi aceita: ficava entre as cadeiras de literatura e filosofia, e Benjaminnão contava com um orientador preparado para encaminhar o seu caso.Fracassados seus planos acadêmicos, Benjamin lançou-se numa car-reira de tradutor, radialista e jornalista free-lance. Uma das suasencomendas foi a tradução de À Ia recherche de Proust; três dos setevolumes foram terminados.

Em 1924 Benjamin visitou Capri, na época o reduto de férias favo-rito dos intelectuais alemães. Lá conheceu Asja Lacis, diretora de teatroda Letônia e comunista engajada. O encontro foi decisivo. "Toda vezque experimentei um grande amor, passei por uma transformação tãofundamental que assombrava a mim mesmo", escreveu em retrospecto."Um amor genuíno me faz ficar parecido com a mulher que eu amo."Nesse caso, a transformação implicou uma mudança de rumo político."Para pessoas progressistas em seu juízo perfeito, o caminho do pensa-mento leva a Moscou, não à Palestina", disse-lhe Lacis incisivamente.Todos os traços de idealismo do seu pensamento, para não falar do seuflerte com o sionismo, tiveram de ser abandonados. Seu amigo do peitoScholem já havia emigrado para a Palestina e esperava que ele o se-guisse. Benjamin achou uma desculpa para não ir; ficou dando des-culpas até o fim.

Em 1926 Benjamin viajou a Moscou para um encontro com Lacis.Ela não o recebeu calorosamente (estava envolvida com outro homem).Em seu registro da visita Benjamin revolve o seu infeliz estado deespírito, bem como se pergunta se deveria ou não se filiar ao PartidoComunista e submeter-se à sua linha. Dois anos depois eles se reunirambrevemente em Berlim: viviam juntos e freqüentavam as reuniões daLiga dos Escritores Revolucionários-Proletários. A ligação precipitou aação de divórcio em que Benjamin se comportou com notável mes-quinharia para com sua mulher.

Na viagem a Moscou, Benjamin manteve um diário que depoisrevisou para publicação. Ele não falava russo. Em vez de recorrer aintérpretes, tentou ler Moscou a partir de fora — o que depois desig-naria como seu "método fisiognômico" —, esquivando-se de abstraçãoou julgamento e apresentando a cidade de uma tal forma que "todafactualidade já é teoria" (a frase é de Goethe). Algumas das proposiçõesde Benjamin sobre a experiência "histórico-mundial" que ele vê emcurso na União Soviética hoje parecem ingênuas. Mesmo assim, per-manece o seu olhar afiado. Muitos dos novos moscovitas ainda sãocamponeses — observa — vivendo vidas de aldeia em ritmos de aldeia;a distinção de classes pode ter sido abolida, mas dentro do Partido estáse engendrando um novo sistema de castas. Uma cena num mercado derua capta o status degradado da religião: um ícone à venda flanqueadopor retratos de Lênin "como um prisioneiro entre dois policiais".

Embora Asja Lacis seja uma constante presença de fundo no "Diáriode Moscou" e Benjamin insinue que suas relações sexuais eram

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problemáticas, dá-se ali pouca idéia da pessoa física de Lacis. Comoescritor, Benjamin não tinha o dom de evocar as pessoas. Nos escritosde Lacis temos uma impressão muito mais viva do próprio Benjamin:seus óculos como pequenos refletores, suas mãos desajeitadas. Peloresto de sua vida Benjamin se intitulou como um comunista ou umcompanheiro de viagem. Mas quão profundo terá sido o seu caso como comunismo?

Durante anos depois de conhecer Lacis, Benjamin repetiria sen-tenças marxistas sem ter lido Marx — "a burguesia [...] está condenadaao declínio em razão de contradições internas que se tornarão fatais àmedida que se desenvolverem". "Burguesa" tornou-se o seu anátemapara uma mentalidade — materialista, acomodada, egoísta, pudica eacima de tudo autocomplacente — à qual ele era visceralmente hostil.Proclamar-se comunista era um ato de se postar, moral e historicamente,contra a burguesia e sua própria origem burguesa. "Uma coisa [...]jamais poderá ser consertada: ter deixado de fugir de meus pais", escreveBenjamin em Rua de mão única, a coleção de anotações de diário, relatosde sonhos, aforismos, mini-ensaios e mordazes observações sobre aAlemanha de Weimar com a qual se deu a conhecer em 1928 como umintelectual free-lance. Não ter fugido de casa cedo o bastante significavaque ele estava condenado a fugir de Emil e Paula Benjamin pelo resto davida: ao reagir contra a prontidão de seus pais em se assimilar à classemédia alemã, ele se igualava a muitos judeus germanófonos de suageração, inclusive Kafka. O que incomodava os amigos de Benjamin emseu marxismo era que parecia haver nele algo de forçado ou meramentereativo.

As primeiras incursões de Benjamin pelo discurso da esquerda sãodeprimentes de se ler. Há um deslize para o que só se pode chamar deestupidez voluntária quando ele tece rapsódias sobre Lênin (cujas car-tas têm "a melodiosidade da grande épica", diz em um texto não in-cluído nos Selected writings da Harvard) ou recita os execráveis eufe-mismos do Partido:

O comunismo não é radical. Portanto, não tem intenção de simplesmente

abolir as relações familiares. Ele meramente põe à prova essas relações para

determinar sua capacidade de mudança. Ele pergunta a si mesmo: a família

pode ser desmantelada de modo que seus componentes possam ser so-

cialmente refuncionalizados?

Essas palavras vêm de uma resenha de uma peça de Brecht, queBenjamin conheceu por intermédio de Lacis e cujo "pensamento rude",despido de amenidades burguesas, atraiu Benjamin por algum tempo."Esta rua se chama Asja Lacis em honra daquela que como um en-genheiro a abriu através do autor", diz a dedicatória de Rua de mão única.A comparação tem um intento elogioso. O engenheiro é o homem oumulher do futuro, aquele que, impaciente com palavrório e provido de

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conhecimento prático, age, e age decisivamente para transformar a pai-sagem (Stálin também admirava os engenheiros: para ele os escritoresdeviam se tornar engenheiros das almas humanas, no sentido de tomarcomo tarefa sua "refuncionalizar" a humanidade de dentro para fora).

Um dos textos mais conhecidos de Benjamin, "O autor como pro-dutor" (1934), demonstra muito claramente a influência de Brecht. Emquestão, a velha ladainha da estética marxista: o que é mais importante,forma ou conteúdo? Benjamin propugna que uma obra literária será"politicamente correta somente se for também literariamente correta"."O autor como produtor" é uma defesa da ala esquerdista da vanguardamodernista, tipificada para Benjamin pelos surrealistas, contra a linhado Partido em matéria de literatura, com seu pendor para históriasrealistas facilmente compreensíveis e com acentuada propensão pro-gressista. Para defender sua causa, Benjamin se sente obrigado a apelarmais uma vez para o glamour da engenharia: o escritor, como o en-genheiro, é um especialista técnico e deveria ter voz em questõestécnicas.

Discutir nesse nível tão tosco não era fácil para Benjamin. Sua fide-lidade ao Partido não lhe causava nenhum mal-estar num momento emque a perseguição de artistas por Stálin estava a pleno vapor? (A própriaAsja Lacis viria a se tornar uma das vítimas de Stálin, passando anosnum campo de trabalho.) Um breve texto do mesmo ano pode forneceruma pista. Ali Benjamin zomba dos intelectuais que "fazem de pontode honra ser inteiramente eles mesmos em todas as questões", recusan-do-se a entender que para ser bem-sucedidos têm de apresentar facesdiferentes para públicos diferentes. São, diz ele, como um açougueiroque se recusa a cortar uma carcaça, insistindo em vendê-la inteira.

Como ler esse texto? Benjamin está ironicamente louvando a anti-quada integridade intelectual? Está confessando veladamente que ele,Walter Benjamin, não é o que parece ser? Está fazendo uma colocaçãoprática, mesmo que amarga, sobre a vida do escritor de aluguel? Umacarta a Scholem (a quem no entanto ele nem sempre conta toda a verda-de) sugere a última leitura. Ali Benjamin defende seu comunismo como"a óbvia, razoável tentativa de um homem que está completamente ouquase completamente privado de quaisquer meios de produção deproclamar seu direito a eles". Em outras palavras, ele segue o Partidopela mesma razão que move qualquer proletário: porque é de seuinteresse material.

II

Na época em que os nazistas chegaram ao poder, muitos doscompanheiros de Benjamin, inclusive Brecht, constataram o inevitávele fugiram. Benjamin, que de qualquer forma há muito se sentia des-locado na Alemanha e passava temporadas na França ou em Ibizasempre que podia, logo os acompanhou (seu irmão mais novo, Georg,

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foi menos prudente: preso por atividades políticas em 1934, pereceu emMauthausen em 1942). Ele se estabeleceu em Paris, onde levou umaexistência precária colaborando para jornais alemães (sob pseu-dônimos que soavam arianos: Detlef Holz, K. A. Stempflinger) e docontrário vivendo de doações. Com a eclosão da guerra ele se viu detidocomo estrangeiro inimigo. Solto graças a instâncias do PEN francês,imediatamente fez arranjos para fugir para os Estados Unidos, partindoassim em sua viagem fatal rumo à fronteira espanhola.

Os insights mais agudos de Benjamin sobre o fascismo, esse inimigoque o privou de um lar e de uma carreira e que acabou por matá-lo,dizem respeito ao expediente por ele usado para vender-se ao povoalemão: transformar-se a si próprio em teatro. Esses insights estão maisplenamente expressos em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidadetecnológica" (para usar o título preferido pelos tradutores dos Selectedwritings), de 1936, mas são prenunciados numa resenha de 1930 sobrea coletânea Guerra e guerreiros, organizada por Ernst Jünger. É lugar-comum observar que os comícios de Hitler em Nuremberg, com suacombinação de declamação, música hipnótica, coreografia de massa eiluminação dramática, encontraram seu modelo nas produções deWagner em Bayreuth. O que é original em Benjamin é a sua proposiçãode que a política como teatro grandioso, mais que como debate, não eraapenas uma armadilha do fascismo, mas fascismo em essência.

Nos filmes de Leni Riefensthal, assim como nos documentários deatualidades exibidos em todos os cinemas do país, as massas alemãsrecebiam imagens de si mesmas conforme seus líderes determinavamque fossem. O fascismo usou o poder da arte do passado — o queBenjamin chama de "arte aurática" — somado ao poder multiplicadordas novas mídias pós-auráticas, o cinema sobretudo, para criar seusnovos cidadãos fascistas. Para os alemães comuns, a única identidadeà mostra, aquela que olhava de volta para eles da tela, era a identidadefascista em uniforme fascista e com posturas fascistas de dominação ouobediência.

A análise de Benjamin sobre o fascismo como teatro suscita muitasquestões. O cerne do fascismo alemão de fato residiria antes na políticacomo espetáculo do que no ressentimento e nas aspirações de revidehistórico? Se Nuremberg era política estetizada, por que não o seriamigualmente as extravanganzas e os julgamentos-espetáculo do 1° de Maiode Stálin? Se a marca do fascismo foi a supressão da divisa entrepolítica e mídia, onde estaria o elemento fascista na política midiáticadas democracias ocidentais? Não haveria diversas modalidades de po-lítica estética?

O conceito-chave que Benjamin inventa (embora no seu diário insi-nue que na verdade foi idéia original da livreira e editora AdrienneMonnier) para descrever o que acontece com a obra de arte na era desua reprodutibilidade tecnológica (principalmente a era da câmera:Benjamin tem pouco a dizer acerca dos processos de impressão) é o da

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perda da aura. Até meados do século XIX, diz ele, persistia uma relaçãopropriamente intersubjetiva entre a obra de arte e seu espectador: oespectador olhava e a obra de arte, por assim dizer, olhava de volta."Perceber a aura de um fenômeno [significa] investi-lo da capacidadede nos olhar de volta." Há assim algo de mágico na aura, derivado deelos remotos, ora evanescentes, entre arte e ritual religioso.

Benjamin fala pela primeira vez em aura na sua "Pequena históriada fotografia" (1931), em que tenta explicar por que (a seus olhos) osprimeiríssimos retratos fotográficos — incunábulos da fotografia, porassim dizer — têm aura, ao passo que as fotografias da geração pos-terior a perderam. Em "A obra de arte" a noção de aura é um tantotemerariamente estendida das velhas fotografias para as obras de arteem geral. O fim da aura, diz Benjamin, será mais que compensado pelascapacidades emancipatórias das novas tecnologias de reprodução. Ocinema substituirá a arte aurática.

Até mesmo os amigos de Benjamin achavam difícil apreender aaura. Brecht, a quem Benjamin expusera o conceito durante longasvisitas à sua casa na Dinamarca, escreve o seguinte em seu diário:

[Benjamin] diz: quando você sente o olhar de alguém pousar em você, mesmo

às suas costas, você reage (!). A expectativa de que tudo o que você olha está

olhando para você cria a aura [...]. Tudo muito místico, apesar das atitudes

antimísticas dele. E assim que a abordagem materialista da história é

adaptada! Isso é um tanto chocante.

Outros amigos não foram mais encorajadores.Ao longo dos anos 1930 Benjamin se empenhou para desenvolver

uma definição plausivelmente materialista de aura e perda de aura. Ofilme é pós-aurático, diz ele, porque a câmera, sendo um instrumento,não pode ver (uma asserção questionável: os atores certamente reagemà câmera como se ela estivesse olhando para eles). Numa revisão pos-terior, Benjamin sugere que o fim da aura pode ser fixado no momentoda história em que as multidões urbanas ficam tão densas que as pes-soas — os passantes — não mais retribuem o olhar alheio. No Trabalhodas passagens ele insere a perda da aura num processo histórico maisamplo: a propagação de uma desencantada conscientização de que aunicidade, inclusive a da obra de arte tradicional, converteu-se numamercadoria como outra qualquer. Aponta nessa direção a indústriada moda, dedicada à fabricação de trabalhos manuais únicos —"criações" — destinados à reprodução em massa.

Benjamin não estava especialmente interessado no romance comogênero. Como evidenciado pelos relatos pessoais incluídos no segundovolume dos Selected writings, ele não tinha talento como escritor de nar-rativas. Seus escritos autobiográficos são construídos a partir de mo-mentos intensos e descontínuos. Seus dois ensaios sobre Kafka tratam-no mais como um parabolista e professor de sabedoria do que como

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um escritor. Mas a hostilidade mais insistente de Benjamin era reser-vada para a história narrativa: "A história se decompõe em imagens,não em narrativas", escreveu. A história narrativa impõe causalidade edeterminação a partir de fora, e as coisas deveriam ter uma chance defalar por si mesmas.

"Infância em Berlim por volta de 1900", a obra autobiográfica maisinteressante de Benjamin, inédita durante sua vida, aparecerá no ter-ceiro volume dos Selected writings. O que temos no volume 2 é a anterior"Crônica berlinense", também escrita à sombra de Proust. Apesar dotítulo, esse texto não é construído cronologicamente, mas como umamontagem de fragmentos do passado intercalados com reflexões sobrea natureza da autobiografia, de modo que se trata mais das vicissitudesda memória do que de eventos reais da sua infância. Benjamin usa umametáfora arqueológica para explicar sua oposição à autobiografia comoa narrativa de uma vida. O autobiógrafo deveria pensar em si mesmocomo um escavador, diz ele, cavando mais e mais fundo nos mesmospoucos lugares em busca das ruínas enterradas do passado.

Além do "Diário de Moscou" e da "Crônica berlinense", os doisvolumes em pauta contêm algumas outras peças autobiográficas: umrelato mais propriamente literário sobre ficar esperando uma amanteque não aparece, registros de experiências com haxixe, transcriçõesde sonhos, fragmentos de diário (Benjamin estava preocupado com osuicídio em 1931 e 1932) e um diário de Paris trabalhado para publi-cação, que inclui uma excursão a um bordel masculino freqüentado porProust. Entre as revelações mais surpreendentes, uma admiração porHemingway ("uma lição de como pensar direito por escrever correto") euma antipatia por Flaubert (arquitetônico demais).

Os fundamentos da filosofia da linguagem de Benjamin foramestabelecidos no começo de sua carreira. No ensaio-chave "Sobre alinguagem enquanto tal e sobre a linguagem do homem" (1916) eleargumenta que a palavra não é um mero signo, um substituto para algo,mas o nome de uma Idéia. Em "A tarefa do tradutor" (1921) ele tenta darcorpo à sua idéia da Idéia recorrendo ao exemplo de Mallarmé e a umalinguagem poética libertada de sua função comunicativa. Não fica clarocomo um conceito de linguagem simbolista poderia jamais ser recon-ciliado com o posterior materialismo histórico de Benjamin, mas elesustentou que uma ponte podia ser construída, "por mais forçada eproblemática que essa ponte pudesse ser". Em seus ensaios literáriosdos anos 1930 ele dá uma idéia sobre com o quê tal ponte poderia separecer. Em Proust, em Kafka, nos surrealistas, a palavra, diz ele, recuada significação no sentido "burguês" e retoma seu elementar podergestual. Assim, n'O castelo os dois ajudantes do agrimensor K. projetamseus estados fetais entrelaçando os membros sempre que podem ese embolando um com o outro. O gesto é "a forma suprema emque a verdade pode nos aparecer numa era desprovida de doutrinateológica".

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No tempo de Adão, a palavra e o gesto de nomear eram a mesmacoisa. Desde então a linguagem sofreu uma longa queda, da qual Babelfoi apenas um estágio. A tarefa da teologia é recuperar a palavra, emtodo o seu poder mimético originário, dos textos sagrados em que elafoi preservada. A tarefa da crítica não é essencialmente diferente, poislinguagens decaídas ainda podem, na totalidade de suas intenções, nosapontar para a linguagem pura. Daí o paradoxo de "A tarefa do tradu-tor": uma tradução é superior a seu original, no sentido de que remete àlinguagem anterior a Babel.

Benjamin escreveu diversos textos sobre astrologia, os quais cons-tituem importantes apêndices a seus escritos sobre a filosofia da lin-guagem. A ciência astrológica que temos hoje, diz ele, é uma versãodegenerada de um corpo de conhecimento de tempos remotos, quandoa faculdade mimética, sendo muito mais vigorosa, permitia corres-pondências realmente imitativas entre as vidas dos seres humanos e osmovimentos das estrelas. Hoje só as crianças preservam e aplicam umpoder mimético comparável.

Em ensaios datados de 1933 Benjamin esboça uma teoria da lin-guagem baseada na mimese. A linguagem adâmica era onomatopaica,diz ele. Sinônimos de línguas diferentes, embora possam não soar ouparecer semelhantes (a teoria pretende funcionar tanto para a linguagemescrita quanto para a falada), têm semelhanças "não-sensoriais" com oque significam, conforme sempre o reconheceram teorias da linguagem"místicas" ou "teológicas". Embora superficialmente diferentes, as pala-vras pain, Brot e xleb são semelhantes num nível mais profundo aocorporificarem a Idéia de pão. (Persuadir-nos de que essa proposiçãonão é tão vã quanto parece demanda o máximo das capacidades deBenjamin.) A linguagem, que constitui o desenvolvimento supremo dafaculdade mimética, carrega consigo um arquivo dessas semelhançasnão-sensoriais. A leitura tem o potencial de se tornar uma espécie deexperiência onírica que dá acesso a um inconsciente humano comum,o lugar da linguagem e das Idéias.

A abordagem de Benjamin acerca da linguagem está em total des-compasso com a ciência lingüística do século XX, mas lhe propicia ummajestoso acesso ao mundo do mito e da fábula, particularmente aoprimevo, quase pré-humano, "mundo pantanoso" de Kafka, conformeele o concebe. Uma intensiva leitura de Kafka iria deixar marcas inde-léveis nos últimos — e pessimistas — escritos de Benjamin.

III

A história do Trabalho das passagens é mais ou menos a seguinte. Nofinal dos anos 1920 Benjamin concebeu uma obra inspirada nas pas-sagens de Paris, que trataria da experiência urbana. Seria uma versão dahistória da Bela Adormecida, um conto de fadas dialético narrado sur-realisticamente por meio de uma montagem de textos fragmentários:

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como o beijo do príncipe, a obra despertaria as massas européias paraa verdade de suas vidas sob o capitalismo. Ao se preparar para redigir oque imaginava como algo em torno de cinqüenta páginas, Benjamincomeçou a copiar citações de suas leituras sob títulos como Tédio,Moda, Poeira. Mas à medida que ele as articulava ao texto as páginas sedilatavam cada vez mais com novas citações e notas. Ele discutiu seusproblemas com Adorno e Horkheimer, que o convenceram de que nãopodia escrever sobre o capitalismo sem um domínio adequado deMarx. A idéia da Bela Adormecida perdeu o brilho.

Em 1934 Benjamin tinha um novo plano, filosoficamente maisambicioso: usando o mesmo método de montagem, remeteria a super-estrutura cultural da França do século XIX às mercadorias e seu poderde se tornar fetiches. Uma vez que suas notas se avolumavam, passoua dispô-las num complexo sistema de arquivo baseado em 36"convolutas" (do alemão Konvolut: maço, dossiê) com palavras-chavee referências cruzadas. Sob o título "Paris, capital do século XIX"redigiu um résumé do material que havia reunido, o qual submeteu aAdorno (à época Benjamin recebia um estipêndio — e portanto estavaem alguma medida devedor — do Instituto de Pesquisa Social, queAdorno e Horkheimer haviam transferido de Frankfurt para NovaYork). Recebeu dele uma crítica tão severa que resolveu deixar de ladoo projeto por um tempo e extrair da sua massa de materiais um livrosobre Baudelaire. Adorno leu parte do livro e mais uma vez foi crítico:os fatos eram deixados a falar por si mesmos, disse-lhe — não haviateoria suficiente. Benjamin fez várias revisões, que tiveram umarecepção mais cálida.

Baudelaire era figura central para o projeto das Passagens porquen'As flores do mal ele pela primeira vez teria revelado a cidade moder-na como um assunto para poesia. (Benjamin parece não ter lidoWordsworth, que cinqüenta anos antes de Baudelaire escrevera sobrecomo era fazer parte de uma multidão de rua, bombardeado por olharesde todos os lados, aturdido com anúncios.) Contudo, Baudelaireexpressara sua experiência da cidade em alegoria, um modo literáriofora de moda desde o período barroco. Em "O cisne", por exemplo, elealegoriza o poeta como um nobre pássaro patinando comicamente nochão pavimentado do mercado, incapaz de abrir as asas e levantar vôo.Por que Baudelaire optou pelo modo alegórico? Benjamin usa O capitalde Marx para responder à sua própria pergunta.

A promoção do valor de mercado a única medida de riqueza, dizMarx, reduz a mercadoria a nada mais do que um signo — o signo dovalor pelo qual será vendida. Sob o reinado do mercado as coisas têm aver com seu valor real tão arbitrariamente quanto, por exemplo, umacaveira tem a ver com a sujeição do homem ao tempo na emblemáticabarroca. Emblemas assim fazem uma inesperada reaparição no palcohistórico na forma de mercadorias, que sob o capitalismo não são maiso que parecem, mas, como advertiu Marx, sobejam "em sutilezas

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metafísicas e amenidades teológicas". A alegoria, argumenta Benjamin,é o modo exatamente certo para uma era de mercadorias.

Enquanto trabalhava no jamais terminado livro sobre Baudelaire,Benjamin continuava tomando notas para o projeto das Passagens e aacrescentar novas convolutas. Os papéis recuperados do seu escon-derijo na Bibliothèque Nationale depois da guerra somavam cerca denovecentas páginas de extratos, sobretudo de autores do século XIXmas também de contemporâneos de Benjamin, agrupados sob títulos ecom comentários intercalados, além de uma variedade de planos esinopses. Esse material foi publicado em 1982 na Alemanha comoPassagen-Werk, com edição de Rolf Tiedemann. O Arcades project daHarvard usa o texto de Tiedemann mas omite muito de seu material defundo e seu aparato crítico. Traduz todo o francês para o inglês e acres-centa notas de apoio, além de uma profusão de ilustrações. É um belolivro e um triunfo de engenhosidade tipográfica no trato com ascomplexas referências cruzadas de Benjamin.

A história do Trabalho das passagens — uma história de procras-tinações e falsas largadas, de perambulações por labirintos arquivís-ticos na busca de exaustividade tão característica do temperamentocolecionador, de fundamentações teóricas movediças, de crítica exer-cida precipitadamente e, em termos gerais, de um Benjamin que nãosabia aonde queria chegar — denota que o livro que nos restou é radi-calmente incompleto: incompletamente concebido e dificilmente com-posto em qualquer acepção convencional. Tiedemann o compara aosmateriais de construção de uma casa. Na hipotética casa terminadaesses materiais teriam sido juntados pelo pensamento de Benjamin.Retemos boa parte desse pensamento na forma das interpolações deBenjamin, mas nem sempre podemos ver como o pensamento encaixaou abrange os materiais. Sob tais condições, diz Tiedemann, talveztivesse sido melhor publicar apenas as palavras de Benjamin, deixandode fora as citações. Mas a intenção de Benjamin, por mais utópica quefosse, era que em algum ponto o seu comentário seria discretamenteremovido, deixando o material citado sustentar todo o peso daestrutura.

As passagens de Paris, diz um guia de 1852, são

bulevares internos [...], corredores com teto de vidro e painéis de mármore que

se estendem por quarteirões inteiros de edifícios [...]. Ladeando ambos os lados

[...] estão as lojas mais elegantes, de forma que uma tal passagem é uma

cidade, um mundo em miniatura.

A arquitetura aérea de vidro e aço logo foi imitada em outras cidades doOcidente. O auge das passagens se estendeu até o final do século,quando foram eclipsadas pelas lojas de departamentos. O livro dasPassagens nunca foi pensado como uma história econômica (emboraparte de sua ambição fosse funcionar como corretivo para toda a disci-

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plina da história econômica). Um esboço inicial sugere algo muitomais parecido com "Infância em Berlim":

Sabia-se de lugares na Grécia antiga onde o percurso conduzia ao mundo

inferior. Nossa existência em vigília é igualmente uma terra que, em certos

pontos ocultos, conduz ao mundo inferior — uma terra repleta de lugares

inconspícuos de onde brotam os sonhos. O dia inteiro, sem nada suspeitar,

passamos por eles, mas tão logo vem o sono nos vemos ansiosamente tateando

o caminho de volta para nos perder em seus escuros corredores. Durante o dia,

o labirinto de moradas urbanas parece com a consciência; as passagens [...]

fluem despercebidas para as ruas. A noite, porém, sob a tenebrosa massa das

casas, sua escuridão carregada projeta-se como uma ameaça e o pedestre

noturno passa depressa — a menos porém que o tenhamos imbuído de ousadia

para enveredar pelo caminho estreito.

Dois livros serviram de modelo a Benjamin: Un paysan de Paris[Um camponês de Paris], de Louis Aragon, com seu afetuoso tributo àPassage de l'Opéra, e Spazieren in Berlin [Passeando em Berlim], deFranz Hessel, que enfoca a Kaisersgalerie e seu poder de evocar a sen-sação de uma era passada. Em seu livro Benjamin tentaria captar a"fantasmagórica" experiência do parisiense vagando entre vitrines demercadorias, uma experiência ainda recuperável em seus dias, quando"as passagens pontilham a paisagem metropolitana como cavernas quecontêm os restos fossilizados de um monstro desaparecido: o con-sumidor da era pré-industrial do capitalismo, o último dinossauro daEuropa".

A grande inovação do Trabalho das passagens estaria em sua forma.Funcionaria sobre o princípio da montagem, justapondo fragmentostextuais do passado e do presente na expectativa de que eles, faiscandoentre si, iluminassem uns aos outros. Assim, por exemplo, se o item 2.1da convoluta L, que se refere à abertura de um museu de arte no Paláciode Versalhes em 1837, for lido em conjunção com o item 2.4 da con-voluta A, que delineia a transição das passagens para as lojas de depar-tamentos, então a analogia "o museu está para a loja de departamentoscomo a obra de arte para a mercadoria" idealmente irá lampejar namente do leitor.

Segundo Max Weber, o que marca o mundo moderno é a perdade crença, o desencantamento. Benjamin tem um ângulo diferente: ocapitalismo pôs as pessoas para dormir, e elas só despertarão de seuencantamento coletivo quando forem levadas a entender o que lhesaconteceu. A inscrição da convoluta N vem de Marx: "A reforma daconsciência consiste tão-somente em [...] despertar o mundo de seusonho sobre si mesmo". Os sonhos da era capitalista estão corpo-rificados nas mercadorias. Estas, em seu conjunto, constituem umafantasmagoria, constantemente mudando de forma de acordo com asmarés da moda e oferecidas a multidões de idólatras encantados como

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a corporificação de seus desejos mais profundos. A fantasmagoria sem-pre esconde as suas origens (que residem no trabalho alienado).A fantasmagoria em Benjamin é, assim, um pouco como a ideologia emMarx — um tecido de mentiras públicas sustentadas pelo poder docapital —, mas está mais para o trabalho do sonho freudiano operandoem âmbito coletivo, social.

"Não preciso dizer nada. Apenas mostrar" — diz Benjamin. E emoutro ponto: "As idéias estão para os objetos como as constelações es-tão para as estrelas". Se o mosaico de citações é construído corretamentedeve emergir um padrão, um padrão que é mais que a soma de suaspartes mas não pode existir independentemente delas: essa é a essênciada nova forma de composição materialista histórica que Benjaminacreditava estar praticando. O que desalentava Adorno quanto aoprojeto era a fé de Benjamin em que uma mera assemblage de objetos(no caso, citações descontextualizadas) pudesse falar por si mesma:Benjamin estava "na encruzilhada entre magia e positivismo", escreveuele em 1935. Adorno teve a oportunidade de ver todo o corpus dasPassagens em 1948, e mais uma vez expressou dúvidas sobre a densidadeda sua teorização.

A reação de Benjamin a críticas desse tipo foi inventar a noção deimagem dialética, e para isso voltou-se à emblemática do barroco —idéias representadas por imagens — e à alegoria baudelairiana — ainteração de idéias substituída pela interação de objetos emblemáti-cos. A alegoria, sugeriu ele, poderia assumir o papel do pensamentoabstrato. Os objetos e figuras que habitam as passagens — jogadores,prostitutas, espelhos, poeira, figuras de cera, bonecas mecânicas — são(para Benjamin) emblemas, e suas interações geram significados quenão precisam da intromissão da teoria. Na mesma linha, fragmentos detextos tomados do passado e colocados no campo carregado do pre-sente histórico são capazes de se comportar à maneira dos elementos deuma imagem surrealista, interagindo espontaneamente para fornecerenergia política. ("Os eventos que cercam o historiador e nos quais eletoma parte", escreveu Benjamin, "fundamentariam sua representaçãocomo um texto escrito com tinta invisível.") Assim é que os fragmentosconstituem a imagem dialética, movimento dialético momentanea-mente congelado, aberto à inspeção, "dialética em suspenso". "Apenasimagens dialéticas são imagens genuínas."

Não é preciso dizer mais sobre a teoria, engenhosa como é, à qualapela o livro profundamente antiteórico de Benjamin. Mas para o leitornão convencido pela teoria, o leitor para quem as imagens dialéticasnunca ganham vida como deveriam, o leitor talvez não receptivo ànarrativa mestra sobre o longo sono do capitalismo seguido pela aurorado socialismo, o que o Trabalho das passagens tem a oferecer? A maisbreve das listas incluiria o seguinte: um rico tesouro de informaçõescuriosas sobre Paris, uma profusão de citações intencionalmente pro-vocantes, a coleta de uma mente aguda e idiossincrática passando sua

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rede de pescar por milhares de livros, observações sucintas, polidas aum alto grau de lustro aforístico, sobre uma série de assuntos caros aoautor (exemplo: "A prostituição pode ter pretensões a ser considerada'trabalho' no momento que o trabalho se torna prostituição") e lam-pejos de Benjamin brincando com uma nova maneira de ver a si mesmo— como colecionador de "palavras-chave num dicionário secreto",compilador de uma "enciclopédia mágica". Inesperadamente, esse leitoresotérico de uma cidade alegórica parece próximo de seu contem-porâneo Jorge Luis Borges, fabulista de um universo reescrito.

Aos olhos de hoje, a magnum opus de Benjamin tem um curioso pa-rentesco com outra grande ruína da literatura do século XX, os Cantos deEzra Pound. Ambas as obras são resultado de anos de leitura babélica.Ambas são construídas a partir de fragmentos e citações e filiam-se àestética de imagem e montagem do alto-modemismo. Ambas têmambições econômicas e economistas como figuras norteadoras (Marxnum caso, Gesell e Douglas no outro). Ambos os autores investiram emcorpos de conhecimento antigos cuja relevância para seus tempossuperestimaram. Nenhum dos dois sabia quando parar. E ambos foramtragados pelo monstro do fascismo — Benjamin, tragicamente; Pound,vergonhosamente.

O destino dos Cantos tem sido o de um punhado de excertosreunidos em antologias, o resto sendo placidamente ignorado. Odestino das Passagens pode bem ser semelhante. Pode-se prever umaedição condensada para estudantes, extraída sobretudo das convolutasB ("Moda"), H ("O colecionador"), I ("O interior"), J ("Baudelaire"),K ("Cidade de sonho"), N ("Da teoria do conhecimento") e Y ("Fo-tografia"), na qual as citações serão reduzidas a um mínimo e a maiorparte do texto sobrevivente será do próprio Benjamin. E isso não seriade todo mau.

IV

É ampla a gama de interesses representada pelos Selected writings deBenjamin. Além dos textos aqui comentados, há uma seleção de seusprecoces e diligentemente idealistas escritos sobre educação; numerososensaios de crítica literária, incluindo dois textos longos sobre Goethe,uma interpretação d'As afinidades eletivas e um magistral panorama dacarreira do poeta; excursões por vários tópicos de filosofia (lógica,metafísica, estética, filosofia da linguagem, filosofia da história); en-saios sobre pedagogia, sobre livros infantis, sobre brinquedos; umcativante texto pessoal sobre o hábito de colecionar livros; uma va-riedade de peças de viagem e investidas na ficção. O ensaio sobre asAfinidades eletivas se destaca como uma performance particularmenteestranha: uma ária prolongada, em prosa supersutil e apurada, sobre oamor e a beleza, o mito e o destino, levada a um alto tom de intensidadepelas semelhanças secretas que Benjamin viu entre a trama do romance

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e a tragicômica relação erótica a quatro em que ele e sua mulher estavamenvolvidos.

As traduções são excelentes, e entre os vários tradutores merece serdestacado Rodney Livingstone, por sua discreta eficiência em lidarcom as mudanças de estilo e tom que marcam a evolução de Benjamincomo escritor. As notas explicativas estão próximas do mesmo altopadrão, mas não chegam lá. As informações sobre as figurasrelacionadas a/por Benjamin por vezes estão ultrapassadas (como nocaso de Robert Walser) ou incorretas: as datas referentes a Karl Korsch(que foi expulso do Partido Comunista Alemão por suas opiniõesindependentes e a quem Benjamin recorre copiosamente na suainterpretação de Marx) são dadas como 1892-1939 quando na verdadesão 1886-1961. Há erros de grego e latim.

Algumas práticas gerais dos editores e tradutores também sãoquestionáveis aqui. Benjamin tinha o hábito de escrever parágrafos depáginas inteiras: certamente, o tradutor deveria se sentir livre parafracioná-los. Aqui e ali são incluídas duas versões do mesmo texto semque se esclareça por quê. Para textos em alemão citados por Benjaminusam-se traduções já existentes mesmo quando estas estão claramenteabaixo do padrão.

v

Quem foi Walter Benjamin? Um filósofo? Um crítico? Um his-toriador? Um mero "escritor"? A melhor resposta talvez seja a deHannah Arendt: ele foi um dos "inclassificáveis [...], cuja obra não seencaixa na ordem existente nem introduz um novo gênero".

Sua peculiar abordagem — chegar a um assunto não diretamente,mas por um ângulo, movendo-se gradativamente de um sumário per-feitamente formulado para o próximo — é tão imediatamente re-conhecível quanto inimitável, apoiada em agudeza de intelecto, emuma erudição levemente desgastada e num estilo de prosa que, depoisque ele desistiu de se ver como o Professor Doutor Benjamin, se tornouuma maravilha de acuidade e concisão.

Na base de seu projeto de chegar à verdade dos nossos tempos há umideal que ele encontrou expresso em Goethe: estabelecer os fatos de talforma que eles sejam sua própria teoria. O livro das Passagens, seja qual fornosso veredicto sobre ele — ruína, fracasso, projeto impossível —, sugereum novo modo de interpretar uma civilização, tomando por materialseus refugos em vez de suas obras de arte, escrevendo a história a partir debaixo em vez de por cima. E seu apelo (nas "Teses sobre o conceito dehistória") por uma história centrada no sofrimento dos vencidos em vezde nas conquistas dos vencedores é profético do modo como a escrita dahistória começou a pensar em si mesma em nossos tempos.

J.M.COETZEE é escritor.