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AS CINZAS DA PROCISSÃO DA PENITÊNCIA DOS IRMÃOS DA ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO DO RECIFE Flávia de Sousa Pereira Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Católica de Pernambuco (PPGH-UNICAP) [email protected] Baseado nos estudos e pesquisas desenvolvidas sobre a Capela Dourada do Recife da Venerável Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, irmandade fundada no Recife no século XVI, esse texto faz parte da série de artigos de exposição das fontes documentais e bibliográficas sobre os franciscanos no período colonial 1 , e tem como objetivo dar continuidade a divulgação do tema, além de contribuir para o debate nos meios acadêmicos e fora dele. Palavras chave: Procissão de Cinzas; Ordem Terceira de São Francisco; Capela Dourada do Recife. Podemos dizer que um dos traços mais evidentes na cultura do povo brasileiro seja a religiosidade. Procissões e romarias, arrastam milhares de fiéis com o intuito de homenagear seus santos de devoção, além de exprimirem um sentido de renovação à celebração. Algumas delas são legados do que podemos chamar de religiosidade colonial ou catolicismo popular e foram incorporadas ao calendário religioso brasileiro. Herança portuguesa, em todo o país, diversas manifestações religiosas acontecem o ano inteiro e movimentam muitos devotos. Através delas celebra-se a vida que vence o mal 1 Cabe aqui observar que os textos transcritos trazem sua grafia original conservando assim a poética da escrita do tempo.

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AS CINZAS DA PROCISSÃO DA PENITÊNCIA DOS IRMÃOS

DA ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO DO RECIFE

Flávia de Sousa Pereira

Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da

Universidade Católica de Pernambuco (PPGH-UNICAP)

[email protected]

Baseado nos estudos e pesquisas desenvolvidas sobre a Capela Dourada do

Recife da Venerável Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, irmandade fundada

no Recife no século XVI, esse texto faz parte da série de artigos de exposição das fontes

documentais e bibliográficas sobre os franciscanos no período colonial1, e tem como

objetivo dar continuidade a divulgação do tema, além de contribuir para o debate nos

meios acadêmicos e fora dele.

Palavras chave: Procissão de Cinzas; Ordem Terceira de São Francisco; Capela

Dourada do Recife.

Podemos dizer que um dos traços mais evidentes na cultura do povo brasileiro

seja a religiosidade. Procissões e romarias, arrastam milhares de fiéis com o intuito de

homenagear seus santos de devoção, além de exprimirem um sentido de renovação à

celebração. Algumas delas são legados do que podemos chamar de religiosidade

colonial ou catolicismo popular e foram incorporadas ao calendário religioso brasileiro.

Herança portuguesa, em todo o país, diversas manifestações religiosas acontecem o ano

inteiro e movimentam muitos devotos. Através delas celebra-se a vida que vence o mal

1 Cabe aqui observar que os textos transcritos trazem sua grafia original conservando assim a poética da

escrita do tempo.

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a partir do Cristo. Nelas, a luz e as trevas, o bem e o mal, a vida e a morte, são

representadas em sua forma mais simbólica, dando sentido as festas cristãs. Considerada

um acontecimento de longa duração, as procissões são assinaladas por um profundo

referencial de fé, muito embora sofram influências próprias da região onde são

celebradas. Verônica Nunes referindo-se ao Brasil enquanto colônia portuguesa,

comenta:

No Brasil Colônia a procissão era uma das expressões mais suntuosas da

religiosidade, sendo vista como fenômeno urbano e rural expressando coesão

e diferenciação social. É o momento da festa em que os fiéis estabelecem o

diálogo com o santo padroeiro (NUNES, 2003, p. 4).

Expressão das camadas populares, as festas católicas, durante largo período,

representaram um relevante papel de sociabilidade. Tal costume era percebido como

uma estreita interação da religião com a vida social e comunitária. Segundo Júnia

Fortunato, era precisamente durante as cerimônias públicas religiosas – a procissão – e o

arranjo com que se dispunha as autoridades leigas, civis e eclesiásticas, que se

“mesclava o poder estatal com o religioso, sustentáculos e fundadores da sociedade

colonial” (1997, p. 274).

Tendo sua origem na Ordem Terceira franciscana da cidade do Porto, a

procissão de cinzas era considerada como o mais importante dos ritos seráficos e, como

a Igreja não conseguia proibir o carnaval2, logo o rito pagão foi oficializado e

incorporado ao cristianismo pelas autoridades eclesiásticas (Concílio de Trento – 1545-

1563), iniciando um período de abstinência e purificação (MARQUES, 2014, p. 122).

2 O Carnaval é comemorado sempre 47 dias antes da Páscoa, numa terça-feira. A festa do Carnaval surgiu

na antiguidade, entretanto, desde o seu nascimento essa festa passou por transformações pelos lugares

onde chegou e evoluiu até se tornar o que conhecemos hoje. No Brasil, esta festa popular começou a ser

comemorada em meados do século XVII, por influência dos europeus, que já festejavam muito antes,

principalmente na França, Portugal e na Itália. Foi apenas no século XX que o Carnaval no Brasil se

consolidou com o formato conhecido contemporaneamente. O samba e as marchinhas carnavalescas

foram grandes impulsionadores desta festa popular entre os brasileiros. Fonte: Origem do Carnaval.

Disponível em: https://www.calendarr.com/brasil/origem-historia-carnaval. Acesso em 14 jun. 2020.

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Então, a partir do século VIII, foi instituída a Quaresma3, e o carnaval passou a

ser realizado antecedendo o período religioso para que os cristãos não cometessem

excessos. A quarta-feira de cinzas4, de acordo com o calendário gregoriano, representa o

primeiro dos 40 dias (Quaresma) entre essa terça-feira e a sexta-feira (Santa) anterior ao

domingo de Páscoa5. Tempo de preparação e mudança, penitência, jejuns, vias-sacras e

sermões. Tempo de reflexão sobre a fragilidade da vida humana.

Como representação de uma sociedade, as procissões eram revestidas de um

híbrido de religiosidade e profano, onde através delas se articulavam interesses sociais e

políticos representados hierarquicamente durante o cortejo. E uma das mais

movimentadas e esplêndidas nos idos do século XVIII, sem dúvida, foi a Procissão de

Cinzas do Recife realizada com requinte pelos irmãos da Ordem Terceira de São

Francisco, irmandade constituída por membros da elite local conhecidos como mascates

e responsáveis pela construção da Capela Dourada do Recife6 entre os anos de 1696 a

1724.

A Procissão dos penitentes do Recife dava-se logo após a folia de momo e teve

sua primeira saída em 1710. No entanto, a primitiva Procissão de Cinzas só era

realizada em Olinda e organizada pelos Irmãos Terceiros daquela cidade, então capital.

Quanto a primazia olindense, Marques destaca:

3 Suas origens remontam ao Novo Testamento, onde está relatado que Jesus ficou quarenta dias no

deserto jejuando e orando, antes de iniciar sua vida pública. Fonte: O Tempo da Quaresma. Disponível

em: http://www.miniweb.com.br/cidadania/dicas/artigos/quaresma.html. Acesso em 12 jun. 2020. 4 De origem exclusivamente religiosa, neste dia (quarta-feira) é celebrada a tradicional missa das cinzas,

onde, ainda de acordo com a tradição, o celebrante durante a cerimônia, utilizando as cinzas obtidas com

a queima dos ramos abençoados no Domingo de Ramos do ano anterior, sinaliza uma cruz na fronte de

cada fiel. Fonte: Mensagem para Quarta-feira de Cinzas e Quaresma. Disponível em:

https://www.cnbb.org.br/cardeal-orani-tempesta-mensagem-para-quarta-feira-de-cinzas-e-quaresma/.

Acesso em 14 jun. 2020. 5 Este período entre essas duas datas compreende 47 dias, mas os domingos não são contados, pois estes

são dias em que os fiéis não devem fazer penitência, nem sacrifícios. A cor da liturgia quaresmal é o roxo,

que lembra o recolhimento e será esta tonalidade que estará nos paramentos dos sacerdotes e nos templos.

Fonte: O Tempo da Quaresma. Disponível em:

http://www.miniweb.com.br/cidadania/dicas/artigos/quaresma.html. Acesso em 12 jun. 2020. 6 A Capela Dourada do Recife, obra de notável mérito arquitetônico e elevado valor monumental e que

faz parte da Venerável Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, irmandade fundada no Recife no

século XVI, tem esse nome pelo fato do seu interior se encontrar revestido por talhas esculpidas em cedro

e cobertas por finas lâminas de ouro velho. Também conhecida como Capela dos Noviços, foi construída

perpendicularmente à Igreja da Ordem I e a ela ligada com abertura do muro da nave, do lado do

Evangelho. A Capela integra o complexo de edifícios do Conjunto Franciscano do Recife formado pela

Igreja Conventual de Santo Antônio e pela Igreja de São Francisco além do Museu Franciscano de Arte

Sacra (PIO, 2004, p. 15-17).

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Não há registro documental a respeito da data precisa referente à primeira

saída da procissão das cinzas de Olinda. Sabe-se, entretanto, que a procissão

promovida pela Ordem Terceira da vila saiu por volta de 1620, portanto, pelo

menos duas décadas antes da procissão dos Terceiros de Salvador, o que

garantia a primazia e certas prerrogativas aos irmãos olindenses em relação

às demais irmandades franciscanas quanto à organização do rito penitente no

ambiente colonial (MARQUES, 2014, p. 127-128).

O quadro a seguir especifica as datas de saída de algumas das Procissões de

Cinzas organizadas no Brasil e suas respectivas localidades7. O historiador da Ordem

recifense, Fernando Pio, nos dá conta de que o primeiro préstito que ocorreria em 1709

e que, para tanto a Ordem recifense se preparou, não aconteceu (PIO, 2004, p. 94).

Localidade Início / Término

Olinda (PE)8 1620 / (-)

Recife (PE)9 1710 (sexta-feira) –

1720 (quarta-feira) / 1864

Salvador (BA)10 1649 / 1862

Rio de Janeiro (RJ)11 1640 / 1862

São Paulo (SP)12 1686 / 1886

No que se refere a Procissão dos Penitentes do Recife, objeto deste estudo, entre

os anos de 1710 e 1864 – última vez que saiu às ruas –, houve ocasião em que não lhe

foi permitida a saída ou que lhe foi autorizado a sair em outro dia que não tenha sido o

7 Segundo Adalgisa Campos “Na documentação consultada até então, não consta ter havido a procissão

de Cinzas na primeira metade do setecentos mineiro, mas tão somente o ritual de imposição das cinzas,

que era de alçada do vigário paroquial” (CAMPOS, 2001, p. 139) No entanto, Furtado de Menezes nos

diz que em Minas Gerais, a procissão de Cinzas alcançou maior longevidade, mantendo-se até meados do

próprio século XX (MENEZES, 1975, p. 121). 8 Fernando Pio nos dá conta de que no ano de 1893, depois de longos anos de intervalo, a Ordem Terceira

de São Francisco de Olinda, realizou pela última vez a sua Procissão de Cinzas (PIO, 2004, p. 119). 9 PIO, 2004, p. 95. 10 CAMPOS, 2001, p. 196. 11 BARATA, 1975, p. 55. 12 ORTMANN, 1951, p. 114.

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primeiro dia da quaresma, isto por conta de uma demanda judicial impetrada pelos

franciscanos de Olinda que, alegando proximidade entre as cidades13, embargou a saída

da Procissão dos Terceiros recifenses.

Outra Procissão de Cinzas, na mesma diocese e mesma data, despertou a inveja

dos terceiros olindenses, sendo necessária a intervenção do bispo D. Manoel Alves da

Costa que, no ano de 1710, autorizou a saída da Procissão de Cinzas do Recife, na

primeira sexta-feira da quaresma, ficando a de Olinda na quarta-feira de Cinzas (PIO,

2004, p. 95). Nos anos seguintes não foi mais possível a saída da procissão do Recife,

uma vez que aproveitando a ausência do bispo, o Cabido Diocesano proferiu decisão

suspendendo o préstito, travando uma longa demanda de dez anos, o que obrigou os

irmãos terceiros a recorrer aos tribunais de Lisboa. Vários foram os ofícios

encaminhados ao Padre Provincial, até que recorrendo a Ordem do Recife aos tribunais

de Lisboa, em última instância, saiu vencedora por sentença final favorável e lavrada

em 1719. O rito penitente então, voltou a sair, com regularidade, a partir de 1720 e

começou a ter lugar no seu próprio dia, a quarta-feira de cinzas, tornando-se um evento

religioso de grande importância, como registrado por Frei Antônio de Santa Maria

Jaboatão:

No ano de 1720 a catorze de fevereiro, sendo Provincial a primeira vez Frei

Hilário da Visitação, ministro reeleito Manuel Lopes Santiago, Comissário

Frei Serafim da Porciúncula, depois de vencidas algumas dificuldades, e

oposições, entre os da cidade de Olinda e estes do Recife, querendo aqueles,

pela vizinhança das praças, embaraçar os de Recife, se fez a sua procissão de

cinza, continuando-se até agora, com todo ornato e culto, que pede tão devota

religiosa e agradável função (JABOATÃO, 1980, p. 466).

A Procissão do Recife mexia com a vida da freguesia, e este cenário não passou

despercebido por Mário Sette, que assim descreve tal situação:

Indubitavelmente, no entanto, a cerimônia católica externa de maior ressalto

era a procissão, espetáculo a que todos os anos a população assistia com

fervente curiosidade e recolhimento. Precedia-o, até, uma expectativa

característica: a encomenda do traje novo ou a reforma do antigo; a escolha

do ponto ou da casa de onde se iria ver o desfile (SETTE, 1978, p. 225).

13 Nesta mesma época, Recife e Olinda viviam em meio aos conflitos políticos relativos à elevação do

Recife a categoria de vila, originando a chamada Guerra dos Mascates.

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Carneiro Vilella, em 1901, no jornal A Província, em coluna intitulada

Recordações de Infância, descreve a Procissão de Cinzas que saia pelas ruas do Recife,

que assim começa:

Quantos que vão por ahi passeiado orgulhosamente a sua mocidade

seductora, enchendo as ruas com os seus ademanes de triumpho, saberão

dizer o que era uma procissão de cinzas em tempos idos (...). Quantos, um

pouco mais velhos, tendo já passado a quadra dos namoros, que é também a

quadra das ilusões e das mentiras, embora tenha sido a das esperanças e quasi

a das venturs, quererão ou poderão reconstruir esse passado, e lembram-se

dessas quaresmas cheias de fé e de festas que faziam a gloria de seus pais, o

orgulho de seus parochos, a preocupação supersticiosa de suas velhas tias e o

terror, sim, o terror dos seus escravos pelo accrescimo de trabalho, que sobre

eles pezava, na limpeza e no enfeite das ruas por onde deviam passar as

longas e luxuosas procissões (...) (VILELLA, 1901, ed. 45).

A lembrança ingênua dos acontecimentos descortina um cenário que se

materializa na mente do leitor distante daquela época.

Uma procissão, naquele tempo, posto que houvesse em mais abundancia e

com muito mais luzimento do que hoje, não era uma cousa de nonada, uma

cousa de somenos importância, uma cousa enfim que exercesse na massa

popular intelligente a pequena ou quasi nenhuma influencia moral que exerce

actualmente porquanto em muitos casos e para muitos taes exhibições

religiosas já vão sendo consideradas um anactronismo repugnante ao nosso

estado de civilização, muito mais prejudiciais a manutenção da fé do que

auxiliadoras da santa causa que têm por fim advogar. Não, senhores: uma

procissão naquelles tempos era uma cousa de peso e medida, seria e aceiada.

Era mesmo um acontecimento (VILELLA, 1901, ed. 48).

Agarrado ao corrimão da sacada de uma casa localizada na rua do Crespo (hoje

Rua 1º de março), descreve ele, que podia ver a procissão se formando para saída.

Lembro-me ainda do alarido que então se erguia lá para os lados do convento

de s. Francisco, de cuja Ordem Terceira devia sahir a procissão e para onde

tinha eu os olhos pregados n´uma fixidez contínua, hypnotica poderia dizer...

(VILELLA, 1901, ed. 52).

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E com suas recordações infantis, Carneiro Vilella ressalta o quanto era

movimentada e saudosa era a Procissão dos Terceiros recifenses e, conclui:

Era esplendido... grandioso, quasi sublime, porque sentia-se na alma do povo

a fibra da sinceridade, e a pairar sobre tudo isto um frêmito de crença, uma

como convicção de que cumpria-se um dever, e de que realmente, graças a

esse acto de piedade de adoração, não obstante a alegria e a galhofa, senão

talvez por isso mesmo, a nossa lama se havia posto em comunicação com o

Verbo Eterno. Disseram-me isto e eu acreditei. Ah! Eu era tão creança... tão

creança! Ainda hoje o sou n´um tal grau de sensibilidade e de amor, que

tenho saudades desses tempos, em que as procissões me influíam, os santos

diziam-me alguma cousa e a fé religiosa, por não estudada ainda, por

totalmente desconhecida nos seus processos, se me afigurava uma cousa real,

verdadeira, santa e honesta. Mas..., quanto dista a verdade da mentira! A

realidade da ilusão! (VILELLA, 1901, ed. 66).

A desfilar por diversas ruas, a população destas localidades era convidada a

promover o asseio das mesmas, sob pena de o cortejo tomar outra direção. Considerada

como uma das comemorações religiosas de mais rígida observância por parte dos fiéis e

em relação à qual se impunham as regras da Ordem III – multas e penitências –,

curiosamente os moradores das ruas do Recife por onde passava a procissão, eram

convidados a varrê-las sob pena de serem multados. Assim, as chamadas “ruas de

procissão” além de estabelecer uma certa valorização aos sobrados ali construídos,

serviam de chamariz para as visitas, como descreve Sette:

Esse seria um dos maiores atrativos para quem andasse à procura de nova

residência. Um chamariz, como se dizia. Porque se teria à porta, durante o

ano, o espetáculo, jamais cansativo, desses pomposos cortejos em que se

reverenciava a divindade, e ao mesmo tempo via-se tanta gente conhecida

(SETTE, 1978, p. 224).

E continua Sette, que, por sua vez, quem morasse em casa por onde passasse a

procissão que a zelasse para tal acontecimento. Este asseio, porém, não se limitava

somente aos interiores das casas, conforme relata:

O fiscal da freguesia do Recife intima; aos moradores das ruas por onde

passa a procissão das Cinzas para que limpem as testadas de suas casas e

varram as ruas, sob pena de multa. Que não se chamem à ignorância (SETTE,

1978, p. 225-226).

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Além do mais, a procissão mexia com o comércio local. Ter uma criança da

família como anjo na procissão era quase uma obrigação religiosa ou um status social.

Graças a isso surgiram as especialistas em “vestir anjos de procissão”, que se

anunciavam em jornais locais: “Vestideiras de anjos – Trajos de Anjo Gabriel –

Centuriões – Nossa Senhora – Novos e baratos” (SETTE, 1978, p. 225-226). Ou em

anúncio mais completo:

ANJOS DE PROCISSAO – Na Rua do Cruz n.º 50; por cima do escritório

dos Srs. Seve Filhos & C. vestem-se anjos para procissão com o maior asseio

e gôsto, e cômodo preço, na mesma casa acham-se vestuários bordados,

recebidos pelo vapor inglês e, portanto, qualquer pessoa que queira uma

figura ricamente vestida, poderá dirigir-se à mesma casa, onde serão

satisfeitos seus desejos (SETTE, 1978, p. 243).

Elementos significativos nas procissões, a imaginária está ligada a vivência

religiosa da comunidade. As imagens que foram utilizadas nas Procissões das Cinzas

dos Terceiros do Recife, bem como as vestimentas, vieram de Lisboa e foram

encomendadas em 1708 (PIO, 2004, p. 66, 77 e 109). Classificadas como imagens de

roca14, uma vez que são estruturalmente compostas sobre ripas de madeira, as esculturas

são articuladas e preparadas para uso da indumentária e atributos. No entanto não se

tratam de imagens mal-acabadas ou feitas ao acaso. Tal estrutura era pensada com o

intuito de deixá-la mais leve, de forma a diminuir o esforço daqueles que carregavam os

andores. Debret, com relação à Procissão de Cinzas no Rio de Janeiro, e sobre as

imagens em tamanho natural, mais o andor, pondera: “A marcha é interrompida para

muitas paradas, porque o peso enorme de alguns andores impede os irmãos de carregá-

los durante mais de trezentos a quatrocentos passos sem descansar os ombros”

(DEBRET, 1995, p. 372-374).

No grupo de imagens de vestir que se encontram em exposição no Museu de

Arte Sacra do Recife e na Capela Dourada, pode-se observar que as partes visíveis das

esculturas – rosto, mãos e eventualmente os pés –, são finamente acabadas, com

recursos expressivos, carnação e anatomia delicada, embora sofram com o desgaste do

14 As imagens de roca têm como principal função o seu uso em procissões, e por isso podem servir a mais

de uma invocação dependendo das necessidades de culto da igreja ou da ordem religiosa.

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tempo. Este gênero de imagens adquiriu considerável importância no culto católico

especialmente durante o período barroco, estendendo-se até meados do século XIX. Se

em Salvador (ALVES, 1951, p. 103) e São Paulo (ORTMANN, 1951, p. 131) foram

construídos espaços destinados a guarda dos santos processionais para evitar os estragos

nas imagens, no Recife não foi bem assim. Personagens chave dos ritos processionais,

cuja força persuasiva e capacidade de impressionar o âmbito afetivo, as imagens usadas

na Procissão dos Terceiros, devido ao seu tamanho, não serviam aos retábulos da Igreja

e eram guardadas em caixotões durante todo o ano.

As despesas eram, indiscutivelmente, vultuosíssimas e já com vários meses

de antecedência cuidava-se, na Ordem Terceira do Recife, de retirar dos

enormes caixões as imagens desse desfile, de encarnar-lhes as partes

porventura estragadas, de preparar-lhes as cabeleiras, de limpar e aprimorar

todos os objetos de prata ou de madeira a ela pertencentes, enfim de “armar a

procissão” (PIO, 1967, p. 83. Grifo meu).

E a respeito das imagens da Procissão de Cinzas dos Terceiros do Recife,

Araripe Júnior, em artigo publicado no Jornal do Brasil (1893), em nota de página, nos

descreve sua impressão infantil:

Criança era eu ainda nessa época. Uma vez levado pela curiosidade, finda a

cerimônia e recolhidos os andores ao depósito do Convento de Santo Antônio

de Pernambuco, ousei penetrar nesse recanto. Os santos tinham sido

despojados de suas ricas vestimentas; e como a maior parte deles não era

destinada senão a servir no ato de quarta-feira de cinzas, o imaginário

encarnara apenas a cabeça, as mãos e os pés e aqueles membros que

apareciam desnudados, de sorte que o resto existia em forma de sarrafos. Este

espetáculo horrorizou-me. Não haveria em tudo aquilo uma grande

profanação? Pensei eu, recordando-me dos bastidores do Teatro de Santa

Isabel. Neste instante convergiram para mim os olhos de todas aquelas caras

macilentas e terríveis, aparelhadas como cabeças de guilhotinados em

sarrafos de pinho. Não pude por longo tempo suportar os olhares

inquisitoriais, que me seguiam, e fugi do claustro para nunca mais voltar ao

depósito dos santos (ARARIPE JÚNIOR, 1893, ed. 87).

É certo que a Procissão de Cinzas dos Terceiros do Recife mexia com toda a

cidade, criava moda e provocava crítica da imprensa, como referido pelo padre Miguel

do Sacramento Lopes Gama, que em seu jornal de críticas, O Carapuceiro, de 5 de abril

de 1834, se mostra inflamado:

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...não reprovo pois nas nossas procissões se não os abusas, palhaçarias e

indecencias, que nellas ha introduzido a desgraçada fantazia de alguns, talvez

devotos, mas pouco assisados, e bem assim que se não vá a ellas com aquelle

espirito de Religiosidade, com que forão instituidas. (...). Ferve namoro por

todas as ruas e d´humas para outras varandas; e os gamenhos andão divididos

em patrulhas (...). A sucia dos gamenhos nem dá fé das Imagens, q´vão na

procissão; porque tem os olhos cravados nas sanetinhas da terra; (...). Ainda

alcancei o inferno nas Procissões de Cinza; e já nesse tempo era objecto de

rizota para a maior parte do Povo. (...) A religião não consiste em mascaradas

(GAMA, 1834, ed. 10).

Fernando Pio em sua obra, transcreve um documento pertencente à Ordem II do

Recife e intitulado “Anno de 1739 – Livro em q seacha a forma de compor as procições

de cinza e enterro do Snor” (PIO, 2004, p. 68-85). Descreve ele, minunciosamente a

procissão, com toda sua pompa, delineando com detalhes a disposição dos andores e das

figuras que a compunham, o que nos dá uma ideia remota do esplendor da Procissão da

irmandade do Recife. Constituía-se de um grande cortejo pelo seu elevado número de

andores, anjos, figuras alegóricas, grupos diversos. Mas partir do ano de 1804, em nova

pauta, a procissão sofreu algumas modificações no seu conjunto.

A última Procissão de Cinzas realizada pela Ordem Terceira de São Francisco

do Recife que marcou época em nosso meio através da expressividade de execução foi

no ano de 1864. Imagens e paramentos confeccionados em Lisboa, em 1708, e que

restaram da Procissão dos Irmãos Terceiros, estão expostos no Museu de Arte Sacra do

Recife, com destaque para um dos andores (4º andor em hierarquia) da Procissão de

Cinzas de 1739: a representação do Papa Honório XIII abençoando a Regra Franciscana

(PIO, 2004, p. 73). Ainda merecem destaque a imagem de São Roque (12º andor),

entronizada no terceiro altar do lado da epístola, e São Ivo doutor (14º andor),

entronizada no segundo altar do lado do Evangelho, ambas na Capela Dourada, bem

como a imaginária de Nossa Senhora da Conceição que figurava na Procissão de Cinzas

no primeiro andor, acompanhada por dois anjos), e que hoje encontra-se na sacristia da

Ordem Terceira.

Centrada na prática da penitência como um meio para a obtenção da salvação da

alma, as procissões penitenciais podem ser consideradas um instrumento para se obter

benefícios tanto de ordem espiritual, quanto material, concedidos por Deus à

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humanidade. Embora, com o passar do tempo, tenham ocorrido mudanças nas crenças,

hábitos e costumes da sociedade, estas ainda se fazem presentes nas ruas. Hoje em dia,

as procissões perderam os efeitos causados em tempos coloniais, embora não tenham

desaparecido por completo. Tida como um evento inadiável e imperioso devido sua

importância religiosa, a realização de uma procissão, foi e ainda é, um momento solene

para os fiéis.

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FONTES CONSULTADAS

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