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Artigos São Paulo / AGOSTO 2015 1 Artigo publicado no livro “Tributação Brasileira em Evolução – Estudos em Homenagem ao Professor Alcides Jorge Costa”, Editora IASP, São Paulo, 2015, p. 489. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira FORMALISMO E SUBSTANTIVISMO TRIBUTÁRIO. DEVER MORAL E OBRIGAÇÃO JURÍDICA. E A SEGURANÇA JURÍDICA? I - INTROITO O trabalho, recentemente publicado, de autoria do Professor SERGIO ANDRÉ ROCHA, sob o título “O que é Formalismo Tributário?” 1 , é o ponto de partida para os comentários que serão aqui apresentados, pois suscitou todas as considerações ora expostas. O autor dedicou-se a expor várias linhas de pensamento destinadas a catalogar as teorias dos juristas do direito tributário – portanto, para classificar os próprios intérpretes do direito como “formalistas” ou “substantivistas”, estes também identificados como “valorativos”. Sem tomar posição em relação a qualquer dessas linhas de identificação do formalismo jurídico, mas citando vários autores nacionais como possivelmente abrangidos por este ou por aquele critério classificatório, o autor, com razão, ressalva o viés muitas vezes ideológico do debate e recomenda cautela ao se apontar este ou aquele jurista como formalista. Aliás, essa recomendação não é apenas fruto da percuciente observação do professor carioca, pois brota espontaneamente da constatação, que se faz ao longo da sua articulada exposição, de que juristas brasileiros de 1 ROCHA, Sergio André, “O que é Formalismo Tributário?”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 227, Dialética, São Paulo, 2014, p. 146.

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Artigo publicado no livro “Tributação Brasileira em Evolução – Estudos em Homenagem ao Professor Alcides Jorge Costa”, Editora IASP, São Paulo, 2015, p. 489.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira FORMALISMO E SUBSTANTIVISMO TRIBUTÁRIO. DEVER MORAL E OBRIGAÇÃO JURÍDICA. E A SEGURANÇA JURÍDICA?

I - INTROITO O trabalho, recentemente publicado, de autoria do Professor SERGIO

ANDRÉ ROCHA, sob o título “O que é Formalismo Tributário?” 1, é o ponto de partida para os comentários que serão aqui apresentados, pois suscitou todas as considerações ora expostas.

O autor dedicou-se a expor várias linhas de pensamento destinadas

a catalogar as teorias dos juristas do direito tributário – portanto, para classificar os próprios intérpretes do direito – como “formalistas” ou “substantivistas”, estes também identificados como “valorativos”. Sem tomar posição em relação a qualquer dessas linhas de identificação do formalismo jurídico, mas citando vários autores nacionais como possivelmente abrangidos por este ou por aquele critério classificatório, o autor, com razão, ressalva o viés muitas vezes ideológico do debate e recomenda cautela ao se apontar este ou aquele jurista como formalista.

Aliás, essa recomendação não é apenas fruto da percuciente

observação do professor carioca, pois brota espontaneamente da constatação, que se faz ao longo da sua articulada exposição, de que juristas brasileiros de 1 ROCHA, Sergio André, “O que é Formalismo Tributário?”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 227, Dialética, São Paulo, 2014, p. 146.

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escol, e provavelmente a quase totalidade dos tributaristas nacionais, acabam sendo enquadrados como “formalistas”.

Não há qualquer demérito para qualquer cientista por ser

classificado como pertencente a uma determinada corrente de pensamento, ainda que ela seja contraditada por outra corrente de peso. Ocorre, entretanto, que em nossos tempos, ao menos no Brasil, ser formalista adquiriu um tom depreciativo, tanto quanto se alude à “doutrina tradicional” no sentido de estar suplantada por uma pretensa “doutrina moderna”. Daí os “não formalistas” adquirirem uma aura de superioridade em sendo chamados “substantivistas” ou “valorativos”.

Em determinada passagem, o estudo do formalismo encontra-se

com a questão da moral do contribuinte, pois, ao ser exposta uma das espécies de formalismo detectadas por FREDERICK SCHAUER, adotado na exposição 2 – a que considera o sistema jurídico suficiente para resolver todos os problemas, isolando-se de outros critérios cognoscitivos –, é dito que uma teoria formalista negará a existência de um dever tributário de fonte moral, como reforço para que apenas nas situações previstas em lei seja possível falar em dever de contribuir.

O acurado trabalho de Sergio André merece leitura integral, pois

somente assim se pode ter a devida noção do seu conteúdo, mas ele suscita algumas considerações que complementam os pensamentos lá expostos e podem contribuir, ainda que com menor brilho, para a apreciação do assunto e o desenvolvimento de novas ponderações, até mesmo tendo em conta que o autor menciona que seu texto é uma primeira incursão do tema.

II – CERTEZA NA DETERMINAÇÃO DAS PALAVRAS Uma maneira de identificação do formalismo residiria na crença do

formalista quanto à certeza conceitual das palavras, que é questionada em virtude da possibilidade de haver termos com textura aberta, conceitos indeterminados, tipos jurídicos e outras particularidades.

2 A referência bibliográfica é ao professor norte-americano SCHAUER, Frederick, “Formalism”, The Yale Law Journal v. 97, março de 1988.

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Porém, as apontadas complexidades não justificam uma postura radical que se escude nelas para não aceitar que na maioria das vezes os termos linguísticos têm significados cuja compreensão não apresenta qualquer dificuldade.

Outrossim, não podemos olvidar que as palavras são signos

linguísticos através dos quais as pessoas se comunicam e o legislador transmite a norma que coloca no ordenamento jurídico. Sem elas, estaríamos num mundo de mudos e não teríamos normas jurídicas formadoras do Estado de Direito.

E não há que se confundir formalismo com o respeito aos termos

pelos quais a norma esteja expressa no direito positivo, a menos que alguém pretenda dar-lhe intelecção exclusivamente literal, o que não é admissível pelas regras da boa exegese nem é tolerado pela doutrina e pela jurisprudência até mesmo quando se trate de norma excludente do crédito tributário, a despeito da deficiente redação do art. 111 do CTN aludir à intepretação literal. 3

Com muita felicidade de expressão, PAULO DE BARROS CARVALHO

nos aponta que o texto escrito não é mais do que a “porta de entrada” para o processo de compreensão da lei: “O desprestígio da chamada interpretação literal, como critério isolado de exegese, é algo que dispensa meditações mais sérias, bastando arguir que, prevalecendo como método interpretativo do direito, seríamos forçados a admitir que os meramente alfabetizados, quem sabe com o auxílio de um dicionário de tecnologia jurídica, estariam credenciados a descobrir as substâncias das ordens legisladas, explicitando as proporções dos significados das leis. ... Daí por que o texto escrito, na singela conjugação de seus símbolos, não pode ser mais do que a porta de entrada para o processo de apreensão da vontade da lei ...”. 4

3 A propósito da formulação linguística do art. 111, veja-se o interessante trabalho de AGUIAR, Luciana Ibiapina Lira, “Reflexões Histórias sobre o Artigo 111 do CTN: a Escolha pela Expressão ‘literalmente’ em Oposição à Expressão ‘restritivamente’”, in Revista Direito Tributário Atual, coedição do Instituto Brasileiro de Direito Tributário e da Editora Dialética, São Paulo, 2014, n. 32, p. 245. 4 CARVALHO, Paulo de Barros, “Curso de Direito Tributário”, Editora Saraiva, São Paulo, 4ª ed., 1991, p. 81. Este trecho foi inclusive citado no acórdão n. CSRF/01-0867, de 14.8.1989, da Câmara Superior de Recursos Fiscais.

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GERALDO ATALIBA e AIRES FERNANDINO BARRETO aludiram a que SOUTO MAIOR BORGES “apontava o caminho correto a ser percorrido pelo exegeta, que não quisesse fazer o triste papel de simples leitor, apegado pedestremente à letra do texto, desconsiderando as exigências sistemáticas maiores, que devem prevalecer, por apoiarem-se em princípios, e não em simples normas”. 5

Referindo-se a este trecho de Ataliba e Aires Fernandino, e

associando-o ao de Paulo de Barros, pode-se dizer que tal leitura da lei seria mera “leitura de leigos”.

Mesmo na seara do positivismo, outro não é o pensamento, pois

ninguém menos que HANS KELSEN nos diz que “não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’ – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica”. 6

Enfim, das palavras até a intelecção final e adequada da lei, devemos

passar por um processo de cognição ilimitado. No magistério de FRANCESCO FERRARA, a interpretação, iniciada pela leitura da lei e pela consideração do sentido das palavras, desloca-se de imediato para a interpretação lógica, que se desenvolve “num ambiente mais alto e utiliza meios mais finos de indagação, pois remonta ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que a inspiraram, da gênese histórica que a prenda a leis anteriores, da conexão que a enlaça a outras normas e de todo o sistema”. 7

Assim, o estudioso do direito não é limitado pelas palavras da lei,

nem fica impossibilitado de interpretá-la mesmo perante termos dúbios, imprecisos ou plurívocos, ou face a conceitos indeterminados por ela referidos,

5 ATALIBA, Geraldo, e BARRETO, Aires Fernandino, “Conflitos de Competência e Tributação de Serviços”, Revista de Direito Tributário, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978, n. 6, p. 62. 6 KELSEN, Hans, “Teoria Pura do Direito”, Arménio Amador Editora, Coimbra, 1984, 6ª ed., p. 468, tradução de João Baptista Machado. 7 FERRARA, Francesco “Interpretação e Aplicação das Leis”, Arménio Amador Editor, Coimbra, 3ª ed., p. 140.

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pois sempre deve encontrar o sentido que seja mais apropriado, inclusive atento ao ensinamento do mesmo FERRARA no sentido de que “é preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ‘ratio iuris’, como o meio para com o fim: quem quer o fim, quer também os meios”. 8

Entre nós, ao tratar do que chamou “cânone da totalidade do

ordenamento jurídico”, ALFREDO AUGUSTO BECKER alertou para a atitude mental exigida do intérprete: “A regra jurídica embute-se no sistema jurídico e tal inserção não é sem consequências para o sistema jurídico. Daí, quando se lê a lei, em verdade se ter na mente o sistema jurídico, em que ela entra e se ler na história, no texto e na exposição sistemática. Os erros de expressão da lei são corrigidos facilmente porque o texto fica entre esses dois componentes do material para a fixação do verdadeiro sentido”. 9

Deve-se notar que todos os preceitos de hermenêutica, acima

referidos, são universais, mas no Brasil eles subsistem a par do requisito de escorreita dicção das normas, por exigência do processo legislativo estatuído pela Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998, a qual requer “clareza” e “precisão” na redação das normas e impõe ao legislador a obrigação de “usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando” (art. 11, “caput” e inciso I, letra “a”).

Em suma, apesar de que a lei deve ser bem escrita e de ser pelo

modo como está escrita que se inicia o entendimento da norma por ela prescrita, o jurista não se reduz à leitura gramatical, e não pode ser classificado como formalista por respeitar as palavras da lei. Tal respeito é prescrito já para a atividade legislativa, o que tornaria essa própria função como meramente formal, e a lei que a regula igualmente seria formalista.

Afinal, “summum jus, summa injuria”, proclamou o SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL ao condenar o apego à interpretação literal, quando do indeferimento, em 25.9.1984, do Recurso Extraordinário nos Embargos Infringentes na Apelação Cível n. 35920-RS, repetindo dito do tribunal “a quo”. 8 Ob. cit., p. 141. 9 BECKER, Alfredo Augusto, "Teoria Geral do Direito Tributário", Editora Saraiva, São Paulo, 1972, 2ª ed., p. 103, com transcrição de E. Betti.

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III – NEGAÇÃO DA POSSIBILIDADE DE NÃO APLICAÇÃO DE NORMA Outra maneira de identificar o formalismo seria pela possibilidade

ou não de aplicar uma norma clara. Diferentemente da anterior maneira, que envolve a negação da possibilidade de escolha de sentidos dentro da norma, esta outra caracteriza o formalista por não admitir a opção de não aplicação de uma norma clara.

O trabalho ora referenciado reconhece que, sob este prisma, o

direito tributário brasileiro é formalista quanto às obrigações principais, e ele tem toda razão, embora, acrescenta-se aqui, não seja apropriado definir o formalismo por este ângulo, quando temos na mente que em nosso direito constitucional tributário predomina o princípio da legalidade.

Ou melhor, se for verdade que o princípio constitucional da

legalidade implica em formalismo, é verdade que estamos todos num sistema formalista, até mesmo por ordem da lei maior. Até o agente público lançador do tributo será um formalista, pois sua atividade está adstrita a ser vinculada à lei (Código Tributário Nacional – CTN, art. 142).

Mas, segundo a cultura brasileira e nosso direito constitucional, não

é possível confundir formalismo com a interpretação e aplicação das normas sob o primado do princípio da legalidade.

E essa prática da legalidade não importa em, como já visto no item

precedente, apegar-se irrestritamente à letra da lei, mas, sim, em receber o mandamento legal tal como ele está no ordenamento e como pode ser melhor entendido segundo esse mesmo ordenamento.

Na mesma prática não há a opção de deixar de aplicar a norma que

esteja positivada no direito em vigor, como também não é lícito aplicar ou deixar de aplicar qualquer norma sem antes dar a ela a devida interpretação, ainda que o leitor da lei a considere clara “prima facie”.

Duas objeções se apresentam a qualquer dessas atitudes: não há

como considerar desnecessária a interpretação por se supor que a letra da lei

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seja clara, mas também não se pode correr o risco de afastar a norma vigente ao pretexto de dar-lhe uma interpretação divorciada dos seus dizeres.

Ambas essas atitudes culminam com a extensão da interpretação a

patamar correspondente à criação de uma nova norma, hipótese esta que mereceu dura crítica de CARLOS MAXIMILIANO, nosso maior mestre da hermenêutica jurídica: “Cumpre evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto ideias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos”. 10

Aliás, a propósito das disposições legais claras, o brocardo latino “in

claris cessat interpretatio” há muito perdeu valor, pois a melhor doutrina reconhece que mesmo as regras legais que não apresentem falhas redacionais precisam ser interpretadas.

CARLOS MAXIMILIANO, já no seu tempo, anotou no prefácio da

primeira edição da sua obra, a respeito expressamente desse axioma, mas também de todos em geral, que “a Dogmática prestigiava e a ciência moderna abateu”, acrescentando sua observação: “Quantos erros legislativos e judiciários decorrem da orientação retrógrada na exegese!”. 11

E, no corpo da obra, a propósito dos brocardos, diz que: “Não raro os

brocardos já se acham destituídos de valor científico (exemplo – ‘in claris cessat interpretatio’), ou pelo menos, são falsos e inexatos na sua generalização forçada, em desacordo com a origem”. 12

Nem se conseguiria discordar dessas afirmações do mestre, pois a

certeza de que a disposição legal reflete claramente a norma que veicula somente pode ser afirmada após a devida interpretação.

10 MAXIMILIANO, Carlos, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Ed. Freitas Bastos, São Paulo, 1941, 3ª ed., p. 133. 11 Ob. cit., p. 8 relativa ao prefácio da 1ª edição. 12 Ob. cit., p. 289.

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É ainda MAXIMILIANO quem anota: “Embora seja verdadeira a máxima atribuída ao apóstolo Paulo – a letra mata, o espírito vivifica –, nem por isso é menos certo caber ao juiz afastar-se das expressões claras da lei, somente quando ficar evidenciado ser isso indispensável para atingir a verdade em sua plenitude. O abandono da fórmula explícita constitui um perigo para a certeza do Direito, a segurança jurídica: o de uma solução contrária ao espírito dos dispositivos, examinados em conjunto. As audácias do hermeneuta não podem ir ao ponto de substituir, de fato, a norma por outra”. 13

Tais audácias, inclusive, não podem ir ao ponto de não aplicar a

norma. De qualquer modo, nossas concepções não misturam formalismo

com inexistência de opção de não aplicação de normas, claras ou não. Em direito tributário, seguramente no Brasil, nem em nome da

justiça é possível deixar de aplicar a norma que seja fonte da obrigação tributária, pois, conforme o parágrafo 2º do art. 108 do CTN, “o emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”.

Portanto, não haver opção para deixar de aplicar norma não é formalismo teórico, mas parte do nosso sistema jurídica, além de determinação legal expressa.

IV – CRENÇA NA DEDUÇÃO SILOGÍSTICA MECÂNICA Um terceiro modo de identificar o formalismo seria pela redução do

fenômeno hermenêutico a uma aplicação silogística mecânica. Todavia, o fenômeno de incidência das normas jurídicas é,

rigorosamente, um processo que exige o exercício de lógica dedutiva, muito embora ele jamais deva ser praticado de modo automático e acrítico, pois requer o emprego de atenta racionalidade.

Quer dizer, o bom aplicador da lei não se apega ao linguajar da lei e

não deixa de adotar outros processos de exegese para entender esse linguajar. E também não se adstringe à lógica meramente formal, embora não tenha como

13 Ob. cit., p. 142.

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deixar de adotá-la para verificar a ocorrência ou não da subsunção do fato à norma.

Mais explicitamente, enquanto hermeneuta, o homem interpreta as

palavras da lei, fazendo-o racionalmente, teleologicamente, sistematicamente, etc., e, como aplicador, deve verificar se a norma cuja interpretação finalizou é adequada ao fato objeto da possível subsunção.

Quer dizer, a norma legal é, em si, uma formulação silogística, sobre

o que me permito fazer alusão a estudo no qual o assunto foi um pouco mais elaborado. 14

Sem ter a mínima relação com a doutrina norte-americana

referenciada no artigo ora em tela, escrevi esse estudo antes dele, mas poderia ter sido escrito para o fim das presentes considerações, inclusive porque foi afastada a simplicidade da aplicação mecânica da lógica. Por estas razões, é muito apropriado reproduzir a seguir uma parte daquele estudo.

“O processo intelectivo, acima desenvolvido de modo simples, tem

acentuada feição de lógica geral aplicada à lógica jurídica, porque, afinal, o processo de interpretação jurídica é um processo mental lógico dedutivo, no qual, invertendo-se a ordem com que as premissas são geralmente apresentadas nos exercícios de lógica, havendo o fato (premissa menor), tal como descrito na hipótese de incidência (premissa maior), incide a norma (dá-se o consequente normativo próprio para o antecedente da norma). 15

14 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, “Consequência da concomitância na incidência de normas jurídicas – Elementos de lógica e subsunção – O caso das despesas financeiras contraídas no exterior”, Revista de Direito Tributário Atual, coedição Instituto Brasileiro de Direito Tributário e Editora Dialética, São Paulo, 2013, n. 29, p. 306. 15 Neste sentido, em lógica jurídica, RANGEL JUNIOR, Hamilton inverte a ordem da formulação do silogismo, colocando a premissa menor antes da maior, sem prejuízo da obtenção de conclusão igual a que seria obtida na ordem tradicionalmente empregada na lógica pura e formal. Diz ele: “No entanto, o silogismo jurídico apresenta a seguinte sutileza: o fato, premissa menor do jurista, sempre, é o primeiro elemento a ser analisado; na sequência, a título de premissa maior, segue a interpretação do ordenamento acerca do fato; finalmente, da coerência, entre as premissas menor e maior, vem a conclusão, que se manifesta na forma de decisão” (“Manual de Lógica Jurídica Aplicada”, Editora Atlas, São Paulo, 2009, p. 25).

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Em lógica, onde se demonstra a validade ou invalidade de qualquer conclusão, todo raciocínio deve ser construído através de um silogismo formado por duas premissas (premissa maior e premissa menor) que, se verdadeiras 16 e coerentes (logicamente coordenadas e consistentes para a formação do raciocínio), ao serem associadas entre si acarretam a verdade de uma conclusão.17

A coerência entre a premissa maior e a menor significa deverem elas

ser logicamente consistentes para a conclusão do raciocínio, o que se explica porque este procura determinar uma conclusão afirmativa ou negativa, a qual somente pode decorrer se houver a referida coordenação e consistência, porque a conclusão será no sentido de que a premissa menor se enquadra ou não na premissa maior. 18 16 A exigência de a verdade estar contida nas duas premissas é praticamente intuitiva, mas afirmada pelos compêndios de lógica. Veja-se KANT, Immanuel, “Manual dos Cursos de Lógica Geral”, tradução de CASTILHO, Fausto, Editora Unicamp, Campinas, 2006, 2ª ed., p. 241. Veja-se, também, WALTON, Douglas N., “Lógica Informal”, tradução de FRANCO, Ana Lúcia R. e SALUM, Carlos A. L., com revisão de tradução de SANTOS, Fernando, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, que é expressivo: “Num argumento dedutivamente válido, se as premissas são verdadeiras, a conclusão tem que ser verdadeira. A validade dedutiva é um padrão muito rigoroso. Se um argumento é dedutivamente válido, é impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão, falsa” (p. 277). 17 Sobre a estrutura do raciocínio lógico: KANT, Immanuel, ob. cit., p. 239; ALVES, Alaôr Caffé, “Lógica – Pensamento Formal e Argumentação”, Editora Quartier Latin, São Paulo, 2ª ed., p. 264. 18 KANT, Immanuel, ob. cit.: segundo a tradução de Fausto Castilho, “uma ilação da razão (silogismo) é o conhecimento da necessidade de uma proposição pela subsunção de sua condição sob uma regra universal dada” (p. 239); a correlação das premissas também deriva de que da verdade das premissas se chega à correção da consequência, que é a conclusão (p. 241); veja-se, também, as regras de formação das “ilações da razão categóricas” na p. 247. Sobre a coerência das premissas, vide RANGEL JUNIOR, Hamilton, ob. cit., p. 16, sendo que esse autor repete esse termo e também alude à “compatibilização ... entre a análise do fato (premissa menor) e hermenêutica (premissa maior)” na p. 61, em passagem transcrita logo adiante. GOLDSTEIN, Laurence, BRENNAN, Andrew, DEUTSCH, Max, e LAU, Joe Y. F. referem-se a “consequência lógica” e “seguir-se logicamente” (“Lógica – Conceitos-chave em Filosofia”, tradução de LEVY, Lia, Artmed, São Paulo, 2007, p.45). Reflete a condição de “dispositivo adaptável a um fato”, como diz MAXIMILIANO na Introdução da sua obra, conforme trechos transcritos adiante (p. 11 e 19).

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O que pode ser dito de outra maneira: a incidência da norma, para

ser correta segundo o ordenamento jurídico a que ela pertence, depende do trabalho do aplicador da lei, consistente em ele constatar e provar a ocorrência de um fato real, com segurança e certeza (é o correspondente à premissa menor), compará-lo com uma dada hipótese descrita abstratamente na norma, esta devidamente entendida e corretamente interpretada (é o correspondente à premissa maior), e assim declarar (e praticar) o consequente normativo da norma (que corresponde à conclusão correta).

A esta altura da presente exposição, conquanto sucinta, já se pode

perceber que o raciocínio lógico, em termos de exegese jurídica, nada mais representa do que a subsunção do fato à norma, ou, em palavras mais diretas, verificar se o fato concreto corresponde à hipótese eventual de incidência da norma. 19

É o que diz com todas as letras HAMILTON RANGEL JUNIOR: 20

“A partir da compatibilização já promovida entre a análise do fato (premissa menor) e hermenêutica (premissa maior) – subsunção é o nome que se dá a essa compatibilização fato/hermenêutica – a coerência disso resultante irá apontar a solução da questão, do conflito apresentado ao jurista. Eis a conclusão do processo lógico-jurídico”.

Aliás, o art. 114 do CTN diz com toda propriedade que o “fato

gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”.

Daí a necessidade de a premissa maior ser uma proposição ou

afirmação verdadeira, segundo a norma legal, porque é desta que ela é extraída, ou, por outra, nada mais é do que a repetição do que a norma legal afirma, ainda que esta derive da conjugação de mais de um dispositivo legal. Mas, para a validade da relação jurídica decorrente, a premissa maior precisa estar devidamente entendida, tal e qual, e somente tal e qual, esteja na lei.

19 Conforme já afirmado e visto em KANT, Immanuel, ob. cit., p. 123. 20 RANGEL JUNIOR, Hamilton, ob. cit., p. 61.

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Daí, também, por consequência, a premissa menor não poder ser

outra proposição legal, porque elas, a toda evidência, são incomparáveis entre si. Por isso, a premissa menor, no silogismo jurídico, é sempre um fato. 21

Como, também, para haver subsunção, não se pode colocar como

premissa menor um fato que não seja aquele previsto na norma declarada como premissa maior. Isto é assim porque o raciocínio dedutivo de confrontação do fato com a norma legal deve conduzir à afirmação de subsunção do fato a essa norma, jamais à outra norma que não se refira a esse fato. Quando há incompatibilidade entre o fato e a hipótese da norma, o resultado é a não subsunção.

Outrossim, como a premissa menor é o fato, e como qualquer

premissa de um silogismo válido deve ser verdadeira, o fato a ser declarado na premissa menor deve ser o fato cuja verdade material foi devidamente constatada mediante os meios de prova admitidos.

Pensadores jurídicos de nossos tempos afirmam com razão que o

conhecimento da lógica não é suficiente para determinar a solução de casos concretos, pois a atividade do jurista não se reduz a formalizar um silogismo correto, cabendo-lhe uma atitude de interpretação ativa. 22

Neste sentido, também se afirma que o exegeta não desenvolve um

trabalho passivo, pois que se espera dele uma atuação positiva na construção da norma concreta aplicável a determinado fato, em virtude do que se percebe a inserção daquela carga construtiva na interpretação, já referida anteriormente.

Isto se deve a que a correta aplicação da lei ao fato – função do

intérprete enquanto aplicador da lei – pressupõe a existência de dois pré-requisitos distintos e logicamente subsequentes, quais sejam:

- primeiramente, a noção exata do conteúdo normativo da norma

jurídica considerada, seja na exata delimitação do fato previsto no seu 21 RANGEL JUNIOR, Hamilton, ob. cit., p. 16. 22 CASTRO JR., Torquato, “A Pragmática das Nulidades e a Teoria do Ato Jurídico Inexistente”, Ed. Noeses, São Paulo, 2009, p. 200.

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antecedente, seja na compreensão do sentido normativo por ela dado ao fato em seu consequente;

- ao depois, a apreensão correta do fato 23 a ser ou não subsumido à

disposição normativa previamente determinada por interpretação adequada, sendo esta segunda atividade aquela que persegue a usualmente denominada “verdade material”.

MAXIMILIANO já explicita este mecanismo de atuação nas primeiras

páginas da sua clássica e já referida obra, cujo título – “Hermenêutica e Aplicação do Direito” – por si só já permite denotar a decomposição da atuação do jurista. Diz ele na respectiva Introdução: 24

“A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direto. ..... A Aplicação do Direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado.”

Ou seja, segundo esta nomenclatura, a hermenêutica se dá em torno

da premissa maior, e a aplicação em relação à premissa menor. Neste quadro, percebe-se que a prática da lógica no direito,

realmente, não é meramente mecânica, porque não se reduz à comodidade de dispor de duas premissas previamente declaradas como verdades, pois, ao contrário disso, apresenta suas complexidades consistentes na exigência de previamente construir a verdade das premissas, o que exige a correta exegese da norma e a adequada prova do fato.

23 O mais perfeitamente possível, perante a realidade natural que é limitadora da capacidade humana de apreendimento e comprovação das ocorrências factuais. Neste sentido, é a verdade suficientemente comprovada, hábil a obter uma sentença que nela se baseie. 24 MAXIMILIANO, Carlos, ob. cit., p. 11 e 19.

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Porém, a partir do estabelecimento dos pressupostos verdadeiros, a

aplicação ou não da lei devidamente interpretada (premissa maior 25) ao fato (premissa menor 26) passa a ser um simples (e único) procedimento dedutivo, cuja conclusão será afirmativa ou negativa, e será correta ou incorreta dependendo do respeito ou não aos critérios lógicos. 27

A coerência entre a lógica pura e formal e a lógica jurídica – este

processo lógico dedutivo que estamos abordando – está denotada no art. 142 do CTN, se devidamente decomposto, eis que a autoridade lançadora deve verificar a ocorrência do fato (premissa menor) e, vinculando-se à norma possivelmente aplicável (premissa maior), concluir pela ocorrência, ou não, do fato gerador (conclusão).

Esta correlação ainda pode ser conferida quando, levando em

consideração os preceitos acima expostos, percebe-se claramente que a verdade da conclusão (interpretação correta 28), portanto, a validade da interpretação, pressupõe irrestrita justaposição do fato à norma, vale dizer inteira consideração das duas premissas da conclusão, sem alterá-las ou muito menos criá-las.

25 Atento a isto, RANGEL JUNIOR, Hamilton refere-se à premissa maior como “hermenêutica” (ob. cit., p. 61, conforme transcrição retro). 26 No caso do pressuposto relativo ao fato, a verdade segundo a prova. 27 “A lógica dá embasamento às normas – padrões de correção – do raciocínio certo, de modo que podemos dizer que alguém está errado quando as desrespeita”: GOLDSTEIN, Laurence, BRENNAN, Andrew, DEUTSCH, Max, LAU, Joe Y. F., ob. cit., p. 20. Em nota, o tradutor transcreve o original como sendo o seguinte: “... the laws of logic are (...) the most general laws, which prescribe universally the way in which one ought to think if one is to think at all”. 28 O Professor LUÍS EDUARDO SCHOUERI e outros juristas sustentam que não existe uma única interpretação correta, dizendo que pode haver mais de uma que seja razoável. Não obstante, nenhuma delas poderá ser aceita e considerada razoável se não estiver lastreada no processo de intelecção e de aplicação da norma, ora dissecado. (acrescenta-se aqui a advertência de KELSEN, Hans, no sentido de que “a interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’”; ob.cit., p. 472).

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Realmente, o fato (premissa menor) tem que ter verdadeiramente ocorrido, e a hipótese de incidência à qual ele se subsume, somente pode ser o antecedente da norma tal como descrito em sua inteireza pelo ordenamento jurídico.

Em outras palavras, bem mais claras pela reunião dos conceitos

acima, e observadas as limitações impostas pelo regime jurídico, tal como proclamadas pela doutrina e pela jurisprudência, a construção que o intérprete faz ao interpretar a norma, é a construção da conclusão (resultado da interpretação) sem que ele crie ou modifique as premissas de direito e de fato das quais ele deve se servir, mas sendo absolutamente fiel à norma, tal como ela é, e ao fato, tal como ele é.

O menor desvio, seja da norma, seja do fato, acarreta conclusão

imprópria e inaceitável. Em suma, quanto à norma, o jurista que a interpreta e aplica, não a cria, mas a conhece e a põe na concreta condução da relação jurídica pertinente ao fato verdadeiro e atestado.

Semelhantemente, no mundo fenomênico, o construtor de uma obra

civil não cria os elementos materiais da coisa, mas, mediante seu intelecto (sua participação ativa, e não meramente passiva), reúne os elementos que estão disponíveis para a obtenção do seu desiderato, que deve ser a coisa final em seu melhor estado possível (resultado).

Novamente voltando à coerência entre a lógica pura e formal e a

lógica jurídica, e outra vez considerado o art. 142 do CTN, pode-se constatar que a exigência de inteira submissão à premissa maior (norma, com seus dois elementos) está presente na declaração do parágrafo único, de que o lançamento é atividade vinculada.

Quer dizer, o lançamento somente será válido (logicamente

verdadeiro, juridicamente correto) se refletir a disposição da norma legal, o que somente é possível nos limites desta, sem qualquer novidade, sem qualquer acréscimo, sem qualquer redução.

Em outras palavras, para que o crédito tributário possa ser

constituído e exigido corretamente, o agente lançador não faz a lei, mas se serve

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obrigatoriamente da lei, tal como está posta. Do mesmo modo, em qualquer interpretação da lei o intérprete – e também o lançador, que é primeiramente intérprete, depois aplicador da lei – circunscreve-se ao que nela encontra.”

A correta prática da lógica não é, portanto, sinônimo de formalismo,

mas parte do sistema jurídico, parte substantiva e não meramente formal. V – INTERPRETAÇÃO LITERAL DOS TEXTOS JURÍDICOS Esta outra maneira apontada como sendo modo de identificação do

formalismo, verdadeira extensão da primeira, afigura-se mais como interpretação defeituosa, por todas as razões já vistas anteriormente.

O verdadeiro intérprete do direito não é qualquer alfabetizado

(PAULO) que se contenta com fazer o triste papel de simples leitor de normas (SOUTO, ATALIBA, AIRES), pois este não passa de intérprete incauto e falho, talvez nem mesmo intérprete, mas simples leitor de textos.

É como disse MAXIMILIANO: “Quem só atende à letra da lei, não

merece o nome de jurisconsulto; é simples pragmático (dizia Vico)”. 29 De qualquer modo, nesta perspectiva a discussão começa sob a

colocação de haver um sentido literal mínimo nos textos legais. A este propósito, em adendo ao que foi deduzido anteriormente,

vale trazer à nossa recordação a doutrina do Supremo Tribunal Federal, reiteradamente manifestada ao julgar diferentes casos relacionados à discriminação constitucional de rendas tributárias, quando surgiram termos que podemos reunir e sintetizar na expressão “limites semânticos mínimos intransponíveis”.

Talvez a primeira oportunidade tenha sido no julgamento do

Recurso Extraordinário n. 71758-GB, decidido pelo Tribunal Pleno em 14.6.1972, quando o Ministro THOMPSON FLORES afirmou que a lei “não deve ir além dos limites semânticos, que são intransponíveis”.

29 Ob. cit., p. 143.

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Nesse mesmo julgamento, em homenagem às palavras empregadas

pela Constituição, o Ministro LUIZ GALLOTTI proferiu frase que ficou na história da jurisprudência brasileira – “se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema inscrito na Constituição. Tenho um amo implacável, que é a natureza das coisas” –, a qual foi lembrada pelo Ministro MARCO AURÉLIO ao relatar a decisão proferida no Recurso Extraordinário n. 166772-9-RS, julgado pelo Tribunal Pleno em 12.5.1994, e muitas vezes mencionadas em outros acórdãos.

Doutra feita, o Plenário do Supremo Tribunal, julgando em

11.10.2000 o Recurso Extraordinário n. 116121-3-SP, disse pelo Ministro OCTAVIO GALLOTTI que “a terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação”.

E, ainda em plenário, em 9.11.2005 o Ministro CEZAR PELUSO

prelecionou no Recurso Extraordinário n. 357950-9-RS que “há sempre um limite de resistência, um conteúdo semântico mínimo recognoscível a cada vocábulo”.

Há outras manifestações importantes, como o Recurso

Extraordinário n. 195059-5-SP, no qual o Ministro MOREIRA ALVES declarou que “não pode a lei infraconstitucional definir como renda o que insitamente não o seja” (Primeira Turma, em 2.5.2000.

Portanto, não há como confundir pensamento formalista ou

aplicação formalista da lei com a atenção devidamente dada aos limites semânticos mínimos intransponíveis das palavras empregadas pela lei. Nem estes podem ser ignorados sob o argumento de que possa haver termos ambíguos, vagos, dúbios ou que exprimam conceitos indeterminados (que corresponde à primeira linha proposta para identificar o formalismo).

VI – ISOLAMENTO DO SISTEMA JURÍDICO – O DEVER MORAL Considerar que o sistema jurídico é suficiente para responder todos

os problemas sociais seria outro traço do formalismo. Segundo o autor de “O que é Formalismo Tributário?”, entre outras ponderações:

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“A ideia de fechamento de um sistema se relaciona como outra, típica do pensamento positivista, que é a crença na completude do sistema. Conforme descreve Norberto Bobbio ‘com o requisito da completude, o positivismo jurídico afirma que, das normas explícita ou implicitamente contidas no ordenamento jurídico, o juiz pode sempre extrair uma ‘regula decidendi’ para resolver qualquer caso que lhe seja submetido: o positivismo jurídico exclui assim decididamente a existência a existência de lacunas no direito.”

A conclusão seria de que pode ser classificada como formalista a

teoria cuja premissa seja a independência e o fechamento operacional do sistema jurídico em relação a outros sistemas cognoscitivos, por ser completo.

Um reflexo desse tipo de formalismo apareceria na discussão da

“moral tributária do contribuinte”, com a questão de existir ou não um dever moral de contribuir para os cofres públicos, a qual estaria no centro de debates tais como os travados na OCDE a propósito do projeto BEPS.

E, em conclusão, a teoria formalista negaria a existência de um

“dever tributário de fonte moral”. Este ponto, contudo, é de importância tão significativa no atual

cenário doutrinário, embora remonte a passado já relativamente distante, que merece ser tratado à parte da possível inter-relação do direito com outras fontes de conhecimento.

Por isso, é recomendável tratar primeiramente do isolamento do

direito, que é apresentado juntamente com a completude do sistema jurídico, inclusive pela negativa da existência de lacunas.

A este respeito, há uma infindável série de ponderações que

tomariam o espaço de um texto muito maior do que o cabível nesta oportunidade.

Porém, não se pode começar sem lembrar que o direito positivo

brasileiro contém regras exatamente para as situações em que seja verificada a

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existência de alguma lacuna, isto é, regras legais que não são prescrições sobre interpretação, as quais, a rigor, são absolutamente descabidas, pois não há como dirigir a mente humana 30. Na verdade, e como está nelas explicitado, essas regras destinam-se à integração do direito, isto é, ao preenchimento de lacunas.

Provavelmente, o classificador do formalismo dirá que a afirmação

anterior é de cunho positivista, mas ela decorre de que o intérprete e o aplicador da lei não têm como ignorar os comandos legislativos, mesmo quando esteja em função judicante, pois o “império da lei” está subjacente à tripartição dos Poderes e ao próprio Estado de Direito, ainda que se o qualifique como democrático, ou social ou tenha qualquer outra distinção ou denominação específica.

Neste sentido, novamente chegamos à conclusão de que, por mais

este modo de ver o formalismo, então formalista é o próprio sistema jurídico, e não o intérprete ou qualquer teoria que abrace.

E é tempo de afirmar que a identificação do formalismo perante o

direito brasileiro não pode ser feita pelos mesmos critérios que foram empregados para o anglo-saxônico.

Realmente, no direito privado nacional do Brasil sempre vigorou a

norma de preenchimento de lacunas, contida no art. 4º da “Lei de Introdução do Código Civil”, a qual, entretanto, é norma que extravasa o âmbito privatista, como hoje “formalmente” é mais fácil de perceber pela mudança legislativa na denominação desse diploma legal para “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”. Essa prescrição legal, inclusive, inicia dedicando-se expressamente à hipótese de a lei ser omissa. 31

Veja-se aí o reconhecimento, pelo legislador, de que podem existir

lacunas, e a sua prescrição sobre como preenchê-las.

30 Neste sentido, CANTO, Gilberto de Ulhôa, “Elisão e Evasão Fiscal - Caderno de Pesquisas Tributárias - Vol. 13”, coedição da Editora Resenha Tributária e do Centro de Estudos de Extensão Universitária, São Paulo, 1988, p. 10. 31 “Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

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Paralelamente, no direito tributário dominado pelo princípio da legalidade, é reconhecida a existência de lacunas preenchíveis por analogia ou por outros critérios de integração, mas sob limites que são adstritos ao próprio conteúdo essencial da legalidade (art. 108 do CTN, que também começa pela expressa menção à ausência de disposição legal 32).

Enfim, ante tais mandamentos legais, nem chega a ser consistente a

alegação de que na atitude formalista há crença de que o sistema seja completo, pois, ao menos no Brasil, a completude do sistema não vem da convicção pessoal ou da afirmação teórica de que não haja lacunas, mas, sim, das normas que determinam os métodos ou critérios para completar o direito escrito quando este se omitir em alguma regulação.

Neste sentido, sim, e somente nele, é correto afirmar que não

existem lacunas, pois as que existem são cobertas por prescrições destinadas a não deixar qualquer situação sem solução jurídica. Por conseguinte, o direito positivo do Brasil é completo em si.

Não obstante, embora o sistema jurídico positivado seja bastante e

suficiente para solver os problemas criados pela inexistência de disposições específicas para determinada hipótese, além de também ser verdadeiramente necessário porque ao juiz e aos demais aplicadores da lei é defeso construir a lei 33, tarefa esta reservada ao Poder Legislativo, o jurista não é um ser alheio ao meio social em que vive e no qual o direito atua, em cujo meio viceja o conhecimento humano desenvolvido por outras ciências.

A própria hipótese de incidência de uma determinada norma

jurídica pode configurar situação sobre a qual outras ciências já tenham deitado descobertas ou explicações, as quais não são negadas pela norma, e até mesmo podem ser absorvidas por esta.

32 “Art. 108 - Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia; II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade. Parágrafo 1º - O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. Parágrafo 2º - O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.” 33 Não confundir esta problemática com a chamada “carga construtiva da intepretação”.

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Já antes do tempo em que SCHAUER escreveu as suas linhas

caracterizadoras do formalismo, já se falava das ciências pré-jurídicas como dados que o direito toma na regulação da vida social, com possível remodelação da realidade detectada por tais ciências, pois estas dizem respeito à realidade fenomênica, enquanto o direito visa regular as relações humanas em sociedade, detendo, para este fim, força cogente inatingível por aqueles outros ramos do saber.

De mais a mais, o direito não se divorcia, ou não deve se divorciar,

da realidade social tão afetada pelos estudos e conclusões dos cientistas em geral, exatamente porque não é um conjunto de prescrições fechado em si mesmo, embora seja completo no sentido acima exposto.

Para LOUIS JOSSERRAND, o não isolamento do direito é uma

necessidade para a sua própria sobrevivência, pois, segundo ele, “os juristas devem viver com sua época, se não querem que esta viva sem eles”. 34

Mais enfático foi RUBENS GOMES DE SOUSA, ao alertar para que “o

Direito não tem vida própria. Sua matéria, seu sangue é a realidade de cada dia; moldado a ela o Direito vive; divorciado dela, morre”. 35

CARLOS MAXIMILIANO foi pela mesma senda, porém com palavras

que se contrapõem nitidamente ao formalismo lastreado no isolamento do direito: “O direito não se inventa; é produto lento da evolução, adaptado ao meio ... Só as pessoas estranhas à ciência jurídica acreditam na possibilidade de se fazerem leis inteiramente novas, creem ser um código obra pessoal de A ou de B. O autor aparente da norma positiva apenas assimila, aproveita e consolida o que encontra no país e, em pequena parte, entre povos do mesmo grau de civilização”.36

34 Citação contida em trabalho inédito do Desembargador MOESCH, Francisco José, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 35 SOUSA, Rubens Gomes de, prefácio da 1ª ed. da obra de CANTO, Gilberto de Ulhôa, “Temas de Direito Tributário”, Editora Alba, Rio de Janeiro, 1963, 2ª ed., vol. 1º, p. 7. 36 Ob. cit., p. 171.

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Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, encontramos a seguinte assertiva do Ministro MILTON LUIZ PEREIRA: “O direito não fica alheio às realidades sociais, nem se divorcia do bom senso, devendo a sua compreensão ser ajustada à justiça das normas. Não pode ser desajustado, nem injusto.” 37

Em suma, não há como definir o formalismo por este prisma, porque

ele não condiz com a realidade do direito, seja o direito ideal visualizado pelos doutrinadores, seja o direito positivo legislado pelo parlamento.

E nosso dia-a-dia confirma a interação das normas jurídicas com as

ciências pré-jurídicas, principalmente com as dedicadas às finanças e à economia, à sociologia, à política, à filosofia e à contabilidade, sendo esta última indispensável em determinadas áreas do direito, como a empresarial, a societária e a tributária.

Com a moral não é diferente: ela está tão fora do direito tanto

quanto a sociologia ou outro ramo do saber, mas convive com o direito, até na intimidade deste. No dizer de ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, a moral e o direito, embora autônomos, são fronteiriços e são inevitáveis as suas interpenetrações. 38

Vimos acima a afirmação de MILTON LUIZ PEREIRA, de que o direito

deve estar ajustado à justiça, não podendo ser injusto. Nas Arcadas do Largo São Francisco, o inolvidável Professor

GOFREDO DA SILVA TELES JUNIOR bradou incessantemente o caráter de “jus” inerente ao direito.

Portanto, a justiça, que é informada pela moral, é inerente ao

sistema jurídico. Porém, a moral não se superpõe a ele para que alguma decisão possa ser tomada no plano jurídico contrariamente ao que a lei prescreva, até mesmo porque os valores morais modificam-se no tempo e são variáveis no 37 PEREIRA, Ministro Milton Luiz, no Recurso Especial n. 33757-8-PR, julgado em 15.3.1995 pela 1ª Turma. 38 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio, “Elisão e Evasão Fiscal”, coedição do Instituto Brasileiro de Estudos Tributário e de José Bushatsky Editor, São Paulo, 1977, 2ª ed., p. 124.

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espaço, e mesmo nas consciências das pessoas variam as noções do certo e do errado, do bem e do mal. No mundo de hoje, a volatilidade das convicções morais, se estas pudessem ditar as soluções jurídicas para as pendências da vida, produziriam apenas a insegurança jurídica total, o caos da estabilidade que a ordem jurídica deve assegurar.

Assim, cabe ao legislador, em estágio pré-legislativo, procurar que

valores dominam a sociedade ao tempo da edição da norma, porque tais valores também contribuem para o bem comum que o direito deve prover, de tal modo que até poderão ser perquiridos quando da interpretação teleológica da norma posta no ordenamento. Entretanto, nada mais pode ser retirado da moral para definir e garantir a estabilidade das relações jurídicas.

De qualquer modo, não é esperado que o direito se divorcie da

moralidade, muito menos no Brasil, pois ela está subjacente a princípios da atual ordem constitucional brasileira, cujo preâmbulo já proclama o desejo da Assembleia Nacional Constituinte “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus”: são todos valores ínsitos à moral!

A moralidade também está expressa no art. 37 como mandamento

para os atos da administração pública 39, está inscrita no art. 2º da Lei n. 9784, de 29.1.1999, como um dos princípios norteadores do processo administrativo federal, e vem discriminada em minúcias no Anexo ao Decreto n. 1171, de 22.6.1994, que aprova o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, figurando entre as “regras deontológicas” 40.

39 “Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: ....” 40 A moralidade está explicitada com tanto primor nesse código de ética, que ele merece ser transcrito e lido “I - A dignidade, o decoro, o zelo, a eficácia e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público, seja no exercício do cargo ou função, ou fora dele, já que refletirá o exercício da vocação do

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próprio poder estatal. Seus atos, comportamentos e atitudes serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos. II - O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e § 4°, da Constituição Federal. III - A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da ideia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo. IV- A remuneração do servidor público é custeada pelos tributos pagos direta ou indiretamente por todos, até por ele próprio, e por isso se exige, como contrapartida, que a moralidade administrativa se integre no Direito, como elemento indissociável de sua aplicação e de sua finalidade, erigindo-se, como consequência, em fator de legalidade. V - O trabalho desenvolvido pelo servidor público perante a comunidade deve ser entendido como acréscimo ao seu próprio bem-estar, já que, como cidadão, integrante da sociedade, o êxito desse trabalho pode ser considerado como seu maior patrimônio. VI - A função pública deve ser tida como exercício profissional e, portanto, se integra na vida particular de cada servidor público. Assim, os fatos e atos verificados na conduta do dia-a-dia em sua vida privada poderão acrescer ou diminuir o seu bom conceito na vida funcional. VII - Salvo os casos de segurança nacional, investigações policiais ou interesse superior do Estado e da Administração Pública, a serem preservados em processo previamente declarado sigiloso, nos termos da lei, a publicidade de qualquer ato administrativo constitui requisito de eficácia e moralidade, ensejando sua omissão comprometimento ético contra o bem comum, imputável a quem a negar. VIII - Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma Nação. IX - A cortesia, a boa vontade, o cuidado e o tempo dedicados ao serviço público caracterizam o esforço pela disciplina. Tratar mal uma pessoa que paga seus tributos direta ou indiretamente significa causar-lhe dano moral. Da mesma forma, causar dano a qualquer bem pertencente ao patrimônio público, deteriorando-o, por descuido ou má vontade, não constitui apenas uma ofensa ao equipamento e às instalações ou ao Estado, mas a todos os homens de boa vontade que dedicaram sua inteligência, seu tempo, suas esperanças e seus esforços para construí-los. X - Deixar o servidor público qualquer pessoa à espera de solução que compete ao setor em que exerça suas funções, permitindo a formação de longas filas, ou qualquer outra espécie de atraso na prestação do serviço, não caracteriza apenas atitude contra a ética ou ato de desumanidade, mas principalmente grave dano moral aos usuários dos serviços públicos. XI - O servidor deve prestar toda a sua atenção às ordens legais de seus superiores, velando atentamente por seu cumprimento, e, assim, evitando a conduta

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Vale dizer, a moralidade não se opõe – ou não deve ser opor – à

legalidade, mas se equilibra com ela na busca do bem comum, o qual, contudo, é objeto definido e prescrito pelo direito, e não obtido a partir da convicção subjetiva do servidor público.

Seja como for, passemos à realidade brasileira. A moralidade da administração pública vem sendo malferida pelos

desmandos, pela falta de responsabilidade, pela corrupção e por tantas mazelas cometidas no âmbito dos poderes constituídos, podendo-se dizer que, nesse ambiente, vigem preceitos de conduta peculiares, os quais, de tão assumidos, passaram a formar uma verdadeira “moral” particular a esse segmento social. Do mesmo modo que entre criminosos há um código de conduta distinto dos valores que constituem a moralidade segundo o censo comum dos homens de boa vontade e que se comportam em conformidade com os valores reconhecidos por esse censo comum e com as leis vigentes.

Ao contrário das calamidades ocorrentes em altas esferas do poder,

um bom exemplo de moralidade administrativa vem sendo dado pela atual administração da Coordenação do Sistema de Tributação do Ministério da Fazenda, a qual repetidas vezes tem mencionado não poder a administração pública deixar de aplicar o preceito que veda “venire contra factum proprium”, preceito este igualmente proclamado em jurisprudência (por exemplo, Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 961049-SP, em 3.12.2010).

Ou seja, indo até além da garantia contida no parágrafo do art. 100

do CTN, tais manifestações são hauridas do censo comum da moral e do senso de

negligente. Os repetidos erros, o descaso e o acúmulo de desvios tornam-se, às vezes, difíceis de corrigir e caracterizam até mesmo imprudência no desempenho da função pública. XII - Toda ausência injustificada do servidor de seu local de trabalho é fator de desmoralização do serviço público, o que quase sempre conduz à desordem nas relações humanas. XIII - O servidor que trabalha em harmonia com a estrutura organizacional, respeitando seus colegas e cada concidadão, colabora e de todos pode receber colaboração, pois sua atividade pública é a grande oportunidade para o crescimento e o engrandecimento da Nação.”

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justiça próprio do sistema jurídico, completando o comportamento das autoridades sem violar qualquer norma jurídica, pelo contrário, assegurando aos administrados a confiança na administração pública e dando a todos a segurança jurídica que é o magno objetivo do sistema jurídico.

Na lei civil também encontramos vestígios da moral, por exemplo,

na definição de abuso no exercício de direitos, definido pelo art. 187 quando, entre outros limites, há excesso manifesto à boa-fé e aos bons costumes, que não deixam de ser manifestações da moral segundo o censo comum. 41

A moralidade não deixa de inspirar o parágrafo único do art. 100 do

CTN, e já vimos o seu art. 108, parágrafo 2º, referir-se à equidade, que certamente está impregnada de valores próprios da moral.

Não obstante, essa regra jurídica permite a adoção da equidade, mas

não tolera que ela acarrete a dispensa de pagamento de tributo devido segundo a lei.

Em suma, é fundamental perceber que o parágrafo 2º do art. 108, ao

assim prescrever, coloca as coisas no seu devido lugar. Procedem, portanto, argutas afirmações doutrinárias, como a de

HUGO DE BRITO MACHADO, para quem, referindo-se à economia fiscal lícita, “não se pode sequer considerar moralmente reprovável a conduta evasiva”, transcrevendo a seguir as seguintes afirmações de ALFREDO AUGUSTO BECKER: “É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os atos e fatos necessários à obtenção daquele resultado econômico, são parcelas que integrarão a despesa). Ora, todo o indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a indiscutível liberdade de ordenar seus negócios de modo menos oneroso, inclusive tributariamente. Aliás, seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse o pagamento de tributo mais elevado. 41 “Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

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(ALFREDO AUGUSTO BECKER, Teoria Geral do Direito Tributário, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 122).” 42

O pioneiro na matéria, ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, depois

de ter anotado que, embora autônomos, a moral e o direito são fronteiriços e são inevitáveis as suas interpenetrações, diz: “Não estimamos realístico falar-se em Moral Tributária num setor em que o comportamento dos indivíduos é rigorosamente condicionado pela cogência da norma”, acrescentando que “o erário público ... não se nutre precipuamente de donativos e espórtulas, mas de contribuições forçadas”. Vai adiante com a afirmação de que “todos esses rudimentos da teoria tributária estão a evidenciar como seria falacioso e até falsamente virtuoso concitar o contribuinte a se abster da elisão fiscal”. 43

Não contente, DÓRIA taxa de “moralismo oblíquo” a pretensão de

que a pessoa escolha o processo mais oneroso, contrariamente ao princípio da liberdade de conduta ou opção. Mesmo sinalizando para as diferenças culturais e de regimes entre o nosso e o norte-americano e inglês, reporta-se à doutrina e jurisprudência desses países, com destaque para o seguinte pronunciamento: “No man in this country is under the smallest obligation, moral or other, so to arrange his legal relations to his business or to his property as to enable the Inland Revenue to put the largest possible shovel into his stores”. 44

De mais a mais, entre nós, repugna à consciência dos homens de

bem, que, ademais, sofrem direta e indiretamente a imposição da enorme carga tributária vigorante no Brasil, ouvir falar em moralidade da tributação, quando assistem às imoralidades da corrupção no poder público, à malversação do dinheiro arrecadado, aos constantes aumentos dos tributos para que não haja cortes de gastos dos governos e para que não cessem a benesses aos seus apadrinhados ou associados políticos, além da própria injustiça das regras tributárias, que oneram demasiadamente trabalhadores e atividades econômicas essenciais para o desenvolvimento nacional.

42 MACHADO, Hugo de Brito, “Elisão e Evasão Fiscal - Caderno de Pesquisas Tributárias - Vol. 13”, coedição da Editora Resenha Tributária e do Centro de Estudos de Extensão Universitária, São Paulo, 1988, p. 449. 43 Ob. cit., p. 124 e 125. 44 Ob. cit., p. 126, pronunciamento atribuído a Ayrshire Pullmann M.S. and D.M. Ritchie v. C.I.R., 14 T.C. 754 (1924).

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Há repulsa à hipócrita alusão ao dever moral de pagar tributos, pois

se constata que a enorme arrecadação, sempre propagandeada como novos recordes, não reverte em serviços públicos minimamente decentes e eficientes, pois os que estão aí, quando encontrados, representam um desrespeito à dignidade humana dos cidadãos do Brasil, principalmente dos mais necessitados que o Estado Social deveria defender.

Onde estava o dever moral, onde estava o princípio da capacidade

contributiva e onde estava o Estado Social e solidário, quando a FIFA, paradigma mundial da corrupção, teve enorme lucro com a Copa do Mundo de 2014 e foi aquinhoada pelo governo brasileiro com isenção total de tributos, estendida aos seus patrocinadores e fornecedores, todos igualmente enriquecidos às custas do evento esportivo e dos contribuintes do País? A própria Suprema Corte do Brasil 45 declarou que a legislação com que o governo federal nos “enfiou goela abaixo” a imoral renúncia fiscal não feriu o princípio da capacidade contributiva!

Que ética e que moral houve no episódio das burlas à Lei de

Responsabilidade Fiscal, praticadas e reiteradas pelo governo federal inclusive com o posterior beneplácito do Congresso Nacional?

As linhas acima refletem argumentação política e não jurídica? A

resposta é sim, e não ignora que a imoralidade de uns padronize o comportamento de todos e justifique a imoralidade de outros. A referida argumentação também se explica, porque foi desenvolvida no terreno pré-jurídico, onde a moral deve ser considerada como diretriz das decisões dos poderes constituídos. Entretanto, também no plano jurídico foram cometidas infrações ao direito vigente, e neste plano os fundamentos (não meros argumentos) que o informam não permitem que a moral se imponha sobre a legalidade da obrigação tributária. Neste plano, os infratores da ordem jurídica, sejam eles sonegadores de tributos ou políticos ou quem quer que for, devem ser punidos com todo o rigor das prescrições da lei, mas não sob os critérios de moralidade dos que aplicarem a lei.

45 Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4976-DF.

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Portanto, no Brasil, não se ouse confundir obrigação tributária com dever moral do cidadão, da empresa ou do contribuinte. Aquela é cogente, este é espontâneo, aquela nasce da lei, este da consciência humana, quando iluminada pelas noções de caridade e de amor ao próximo. Aquela é “coisa de Cesar”, este é “coisa de Deus”, cujas autoridades não se confundem num estado laico, ainda que seus constituintes tenham invocado a proteção de Deus.

VII – QUALIFICAÇÃO DOS FATOS – OPÇÃO POR PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – CERTA LEITURA DOS PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS Esgotadas as cinco “fórmulas” de identificação de teorias e juristas

formalistas propostas por SCHAUER, SERGIO ANDRÉ ROCHA apresenta três modelos adicionais que, nesta oportunidade, por seus fatores comuns ou próximos, podem ser tratados em conjunto.

O formalismo detectado pela qualificação dos fatos sobre os quais

incidem as regras jurídicas decorreria da pretensão de qualificá-los exclusivamente à luz das formas do direito privado. Por evidente, a distinção está no centro das discussões sobre planejamento tributário, carregando consigo inclusive a velhíssima questão da interpretação pela substância econômica dos fatos.

Novamente é o direito tributário positivo em vigor no País que se

apresenta com tais traços de formalismo, pois, se isto é ser formalista, o próprio Sistema Tributário Nacional inserto na Constituição Federal de 1988 é formalista, dado que consagra acima de todas as garantias do cidadão, contribuinte ou não, e de todos os limites do poder de tributar, o princípio da legalidade, que se espraia em sua lei complementar nas disposições do art. 97, na vedação da analogia para exigência de tributo, nas duas categorias nitidamente distintas de fatos geradores que estão referidas nos dois incisos do art. 116 e, mais especificamente, nas prescrições dos art. 109 e 110, aquela mandatória, esta meramente explicitadora das competências impositivas.

Outrossim, a interpretação dos fatos por seus efeitos econômicos, e

não por suas “formas jurídicas”, em razão de todas as bases informadoras do nosso sistema foi escoimada do próprio CTN durante a tramitação do seu projeto

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de lei, além de que foi expelida novamente quando da negativa do Congresso Nacional em converter em lei os art. 13 e 14 da Medida Provisória n. 66, de 29.8.2002.

Tiveram fundamento, portanto, as inúmeras decisões judiciais e a

maciça doutrina brasileira no sentido de inexistir, entre nós, qualquer possibilidade de adoção da interpretação dita econômica, que negue eficácia aos atos e negócios jurídicos com as respectivas identidades a eles conferidas pelo direito vigente.

As duas últimas visões do formalismo seriam a da opção por

princípios da Constituição e a de certa leitura dos princípios tributários, as quais, por sua proximidade ainda maior, podem perfeitamente ser praticamente agrupadas.

A primeira delas alude à contraposição entre princípios que são

qualificados como “formais” (por exemplo, legalidade, segurança jurídica, Estado de Direito, irretroatividade, anterioridade) e os tidos como “materiais” (por exemplo, solidariedade, função social da propriedade, dignidade humana). Os apelidos “formais” e “materiais” são evidentes produtos de preferências pessoais, dado que não têm qualquer fundamento científico.

Por óbvio, conforme a inclinação ideológica da pessoa, os princípios

considerados “materiais” ditariam os comportamentos permitidos e os proibidos, numa total inversão de valores jurídicos, inclusive com desprezo pela conclusão doutrinária unânime no sentido de que os princípios não se contradizem nem se anulam, mas convivem harmonicamente na ordem jurídica, requerendo a ponderação entre eles para determinação dos mais influentes em determinada situação.

Nesta ordem, fica muito difícil sustentar que a solidariedade obrigue

o indivíduo ou a empresa a se tornar contribuinte mediante a prática inelutável de algum fato gerador, ou que sua propriedade deva ser empregada socialmente mediante o maior pagamento de tributos, etc. Ou que deva submeter-se a alguma incidência tributária em nome de uma capacidade contributiva ainda não manifestada através da prática de alguma situação definida legalmente como

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fato gerador de obrigação tributária. Ou que, ao se organizar tributariamente, a pessoa ou a empresa viole a dignidade humana. 46

Curioso que tanto se diga a este respeito no âmbito dos tributos,

mas não se diga o mesmo em outros territórios, como, por exemplo, para defender que a solidariedade social e a função social da propriedade requeiram que pessoas “sem-teto” possam se abrigar em algum cômodo de uma residência, o qual não esteja sendo usado pelo respectivo proprietário.

Por fim, a “certa leitura dos princípios” seria a adoção dos

princípios, especialmente o da legalidade, como instrumento exclusivo de contenção do poder.

Fiquemos, pois, somente com a legalidade, começando por lembrar

que ela tem fonte histórica, sim, na limitação do poder dos soberanos e da nobreza (Magna Carta de 1215: “no taxation without representation”), e se estende para garantir a segurança dos indivíduos também nas suas relações intersubjetivas.

Em nossa Constituição, a legalidade vem primeiramente como

direito e garantia individual (art. 5º, inciso II), e não como garantia do Estado, e com espectro o mais amplo possível.

46 A este respeito, são pungentes as seguintes advertências de XAVIER, Alberto, feitas nos idos de 1973, mas ainda atuais no ordenamento constitucional de 1988: “Permitir-se que os princípios da capacidade contributiva e da igualdade tributária exorbitem das suas atuais funções de limites ao legislador ordinário, para conferir amplos poderes aos órgãos administrativos e jurisdicionais com vista a reprimir na fase da interpretação e aplicação do Direito o negócio indireto fiscalmente menos oneroso, é porventura legítima preocupação da justiça material ou de engrossamento das receitas do Tesouro, mas é do mesmo passo, enfraquecer o significado político e econômico do princípio da legalidade tributária, retrocedendo no caminho da construção de uma sociedade em que o reconhecimento das liberdades civis e políticas, as vinculações das intervenções públicas e um melhor funcionamento da economia de mercado permitam uma mais plena expressão dos valores da personalidade” (“Evasão Fiscal Legítima”, in Revista de Direito Público, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1973, n. 23, p. 251).

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Em segundo lugar, a legalidade vem no art. 37 para conformar a atividade da administração pública, que somente pode fazer o que a lei lhe autorize.

E, por fim, a legalidade é, sim, limite ao poder de tributar, contido no

chamado “Estatuto do Contribuinte” traçado no art. 150, surgindo acima de todos os direitos deste, pois os inaugura no inciso I.

Neste andar, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já disse e repetiu

mais de uma vez que os direitos e garantias individuais estão na Constituição para a proteção do cidadão, e não do poder público (por exemplo, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 712-2-DF (ML), em 9.7.1992; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 603323-SC, em 13.3.2012).

Destarte, se respeitar o princípio da legalidade é formalismo, a

própria existência sobranceira dele na Constituição do Brasil a torna formalista, isto é, não estamos perante uma teoria formalista, mas sob um sistema constitucional formalista.

Talvez este dado, como outros, possa identificar uma postura

formalista no direito anglo-saxônico e no de outras paragens, mas não no brasileiro.

Certamente, inclusive porque vem na esteira das anteriores, a alusão

a esta maneira de identificação do formalismo refere-se à pretensão de uma redução da extensão do princípio da legalidade, ou à proposição para que ele seja mitigado ou relativizado em seu alcance e significado.

Porém, sem precisar qualificar a legalidade – cerrada, estrita, etc. –

ela é o que é, sem necessitar se explicar ou ser explicada, e não pode ser rodeada mesmo com a invocação de outros princípios cuja concretude é mínima perante a concretude máxima do princípio da legalidade.

Não se trata de ver o princípio da legalidade pela lente estreita da

literalidade ou sob o impulso inaceitável do “in claris cessat interpretatio”, mas, sim, de, mediante escorreita exegese, dar ao princípio o valor que lhe é inerente,

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sem contorná-lo por via de argumentação que reduza o seu conteúdo semântico mínimo e a inteireza dos efeitos que ele produz na ordem jurídica.

Nós vivemos sob o primado da legalidade, a tal ponto que é ela que

deve reger a própria concreção dos demais princípios através de normas apropriadas, inclusive determinando onde existe capacidade contributiva a ser tributada, como e quando a propriedade privada deve ser limitada para servir a alguma finalidade social, em que dimensão a liberdade de iniciativa pode ser praticada, etc.

Isto é assim tanto quanto, fora do direito tributário, e sem qualquer

relação com ele, a legalidade rege outras relações humanas, como a liberdade de expressão, inclusive para crítica dos poderes constituídos e de outros indivíduos, a liberdade para fazer ou a proibição de fazer, que pode levar ao extremo da perda da liberdade pessoal em virtude da prática de delitos, etc.

O próprio ideal constitucional de solidariedade social não tem

autonomia para se impor, ou ser imposto por algum agente do Estado, sem os contornos que a lei lhe der.

Em síntese, como preleciona a sabedoria doutrinária, os princípios

precisam das normas para se concretizarem. VIII – CONCLUSÃO O presente texto não é uma crítica a SERGIO ANDRÉ ROCHA, nem é

uma oposição a esse estimado e prestigiado jurista, mesmo porque ele não manifestou suas posições pessoais em torno do tema. Pelo contrário, aqui estão algumas considerações complementares provocadas por sua exposição declaradamente explicada como primeira incursão no tema.

Não obstante, como já ficou claro ao longo do presente texto,

perante os indicadores apresentados a conclusão a que se chega é de que o formalismo acaba sendo o rótulo atribuído à quase totalidade dos juristas brasileiros dedicados ao direito tributário, não por incapacidade que tenham tido para formular teorias mais “substantivas”, eis que estão todos impregnados

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pela índole de um regime jurídico que é, ele próprio, formalista segundo as premissas expostas naquele trabalho.

Neste sentido, é marcante a seguinte afirmação lá contida: “Um

autor pode defender a abertura conceitual, o pluralismo metodológico para fins hermenêuticos, a inter-relação sistêmica entre o sistema tributário e outros sistemas não jurídicos e, ainda assim, ser um formalista da perspectiva factual”.

Ou seja, ninguém escapa da pecha de formalista! Pode-se escapar de

uma ou de outra maneira de ser considerado formalista, mas não de todas. São tantas as variáveis que conduzem ao formalismo que, por uma ou por outra, todos acabam sendo formalistas, inclusive quem escreve estas considerações.

Entretanto, o “formalismo” da doutrina brasileira, em verdade, é

uma característica que, paradoxalmente, funda-se no respeito aos princípios e às normas do direito em vigor, e, no entrechoque das lides acadêmicas ou processuais, entende ser necessário amoldar-se a princípios e regras que exercem papeis fundamentais para justificar o exercício do direito de tributar e também a defesa dos direitos dos contribuintes, ou dos possíveis contribuintes, sem ceder aos “cantos de sereias“ que minam as bases do sistema e semeiam a insegurança jurídica. 47

Paradoxalmente, essa doutrina sabe distinguir entre “forma

jurídica” e “substância jurídica”, reconhecendo e respeitando a efetiva

47 Vale lembrar os dizeres de MACHADO, Brandão, em erudita análise do direito comparado ao prefaciar o opúsculo “Interpretação da Lei Tributária”, de Wilhelm Hartz, Editora Resenha Tributária, São Paulo, 1993, p. 21: “Do esforço desenvolvido por Hensel se deduz que o critério econômico e o abuso de formas, como cláusulas gerais que o direito tributário alemão instituiu para combater a evasão fiscal, ou melhor, para aumentar a receita dos impostos, em face das prementes necessidades financeiras por que passava a Alemanha, depois da 1ª Guerra Mundial, têm sio apresentados como institutos destinados a proteger os princípios da isonomia tributária e da capacidade contributiva, embora se reconheça que a sua aplicação abre o caminho para o arbítrio, com arranhões profundos nos princípios da legalidade e da segurança jurídica”. E também repetir a advertência de MAXIMILIANO, Carlos: “O abandono da fórmula explícita constitui um perigo para a certeza do Direito, a segurança jurídica: o de uma solução contrária ao espírito dos dispositivos, examinados em conjunto. As audácias do hermeneuta não podem ir ao ponto de substituir, de fato, a norma por outra” (ob. cit., p. 142).

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substância dos atos e negócios jurídicos contida na causa de atribuição patrimonial que o direito confere a cada um deles, a substância que aparece com este nome na definição de simulação constante do art. 167 48 do nosso Código Civil, através de cuja norma se separa o falso do correto, e que também está nominada na prescrição do art. 173 como requisito para a convalidação dos negócios jurídicos atingidos por algum vício de anulabilidade 49.

Nesta linha, a mesma doutrina sabe perfeitamente e proclama que

nem sempre o “nomen juris” adotado para denominar um contrato ou um ato jurídico é adequado à verdadeira substância jurídica do mesmo.

Portanto, o selo do “substantivismo” fica melhor aplicado à doutrina

catalogada como “formalista” através dos critérios acima comentados, que são irreconhecíveis no Brasil.

48 “Art. 167 - É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.” 49 “Art. 173 - O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo.”