Upload
gustavo-ramos-de-souza
View
217
Download
1
Embed Size (px)
DESCRIPTION
sobre materialidade das mídias
Citation preview
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 82
OPARQUEDOSOBJETOSMORTOS
Porumaarqueologiadamaterialidadedasmdias
porFabrcioSilveira1
Resumo:
PartindodeLviStrauss,recorrendotambmaBauman,Bourdieu,deCerteaueBenjamin,otextodiscuteaobsolescnciamaterialdosobjetosmiditicos.Sumaarqueologiadas tecnologiasdeinscrio aindaaser formulada poderiadarcontadeumamplo imaginriosocial (repletodesentidos culturaiseafetivos) impressonamaterialidadeobsoletadosmeiosde comunicao.Adiscusso complementase com a observao etnogrfica (construda no recurso aos registrosfotogrficos, aos dirios de campo e s entrevistas abertas) realizada, durante o ano de 2000,numa comunidade da periferia de Porto Alegre RS organizada em funo do trabalho deprocessamentoereciclagemdelixo.Nestecontexto,oGalpodeReciclagempareceunosolocalapropriadoparaancorarmosadiscussosobreodescarteeaobsolescnciamaterialdossuportesmiditicos.Assim,atravsdeimagensefalasregistradaspontualmente,tematizaseofimdalinhaeaaceleraodoconsumodosobjetostcnicocomunicacionaisnasociedadecontempornea.
Abstract:
Starting from LviStrauss, and then Bauman, Bourdieu, de Certeau and Benjamin, the textconsidersthematerialobsolescenceofthemidiaticobjects.Onlyanarcheologyoftheinscriptiontecnologies stilltobe formulated couldkeeptrackofahugesocial imaginary (fullofculturalandaffectionatemeanings)printed in theobsoletematerialityof themeansofcommunication.
1FabrcioSilveirabacharelemComunicaoSocial (habilitaoem Jornalismo)pelaUFSM;defendeuomestrado em Comunicao e Informao naUFRGS, com a dissertao "OUniverso como Espelho.Umensaio sobre etnografia e reflexividade nos estudos de recepo". Atualmente cursa o doutorado emComunicao na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. professor das disciplinas de Sociologia daComunicao, Teoria da Comunicao eMdia e Cultura namesma universidade.Nos ltimos anos tmparticipado de congressos e fruns acadmicos do campo da Comunicao, atuado como pesquisadorassistente no projeto "Multiculturalismo e Esfera Miditica: a (re)descoberta dos 500 anos na mdiabrasileira",desenvolvidonamesma instituio,epublicadoartigosemrevistasnacionaisespecializadasnarea.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 83
The discussion is complemented with the etnographic observation ( built up around photoregisters,fielddiariesandopeninterviews)performedduringtheyearof2000,inacommunityintheoutskirtsofPortoAlegre,RS,organizedaroundtheworkofprocessingandrecyclingwaste.Inthis context, the "Recycling Shed"was seen as the idealplace to shelter thediscussionon thediscardingandmaterialobsolescenceof themidiaticholders.Therefore, through theaccuratelyrecorded imagesandspeeches ithasbeenbroughtoutthethemeoftheendofthe lineandtheaccelerationoftheconsumingoftecnocommunicativeobjectsinthesocietytoday.
"Valeapenaemcertashorasdodiaoudanoiteobservarobjetosteisemrepouso:rodas
queatravessaramempoeiradaselongasdistncias,comsuaenormecargadeplantaes
ou minrio; sacos de carvo; barris; cestas; os cabos e as alas das ferramentas de
carpinteiro...Assuperfciesgastas,ogastoinflingidopormoshumanas,asemanaess
vezestrgicas,semprepatticas,dessesobjetosdorealidadeummagnetismoqueno
deveriaserridicularizado.Podemospercebernelesnossanebulosa impureza,aafinidade
porgrupos,ousoeaobsolescnciadosmateriais,amarcadeumamooudeump,a
constnciadapresenahumanaquepermeia todaasuperfcie.Estaapoesiaquens
buscamos".PaixeseImpressesPabloNeruda"(PaixeseImpressesPabloNeruda)
1.(Oimaginriododesmanche2)
2 Nestestermos,TeixeiraCoelhoevocacertostraose/ouvciosdecarterdaproduoedacenaculturaisbrasileirasdasltimasdcadas."Maisamplamente,esseimaginriododesmancheestenraizadonodesejode destruio, a sobreporse ao de construo", afirma ele. Apesar do contexto restrito em que empregada originalmente, a expresso pode referir exatamente s questes e aos temas tratados aqui.Assim, justificase a apropriao. Cf.: COELHO, Teixeira. Moderno PsModerno. Modos & verses. SoPaulo:Iluminuras,1995,3ed.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 84
Profundamente desencantado diante da lgica artificiosa, do racionalismo jurdico e
formalista com os quais intencionamos imobilizar e apreender (reduzindo portanto) a
complexidade dos fatos sociais, Claude LviStrauss encerra Tristes Trpicos fazendo
menonecessidadedeforjarmos,paraalmdameraencenaolivresca,paraalmde
qualquer intelectualismo blas, um olhar refinado (terica emetdicamente) sobre os
sentidosculturaisdadissipao,sobreorumoinevitveleoritmovertiginosodotempo,
sobreoandar inclementedahistria,responsvelpelodesgastede instituieseformas
de sociabilidade,pela reconfiguraopermanentedevalores,hbitoseprticas sociais,
pelaeterna transitoriedadedeesquemasexplicativosematerialidadesdomundo.Uma
'antropologia do valor entrpico' vinha ali sugerida3. Segundo ele (1999: 391), "(...) a
civilizao, tomada em seu conjunto, pode ser descrita como um mecanismo
fantasticamente complexo no qual ficaramos tentados a enxergar a oportunidade que
nossouniversotemdesobreviver,sesua funono fosse fabricaraquiloqueos fsicos
chamamdeentropia (...)".Econtinua:"maisdoqueantropologia, teriaqueseescrever
'entropologia', nome de uma disciplina dedicada a estudar em suas mais elevadas
manifestaes esse processo de desintegrao" (LviStrauss, 1999: 391). Vencendo o
3 Otrechoexato,emtodasuaextenso,oseguinte:"Omundocomeousemohomemeseconcluirsemele.Asinstituies,osusoseoscostumes,quetereipassadominhavidaainventariareacompreender,soumaeflorescnciapassageira(...).Oesforodohomemmesmocondenadoodeseoporinutilmenteaumadecadnciauniversal;estemesmohomemaparececomoumamquina,talvezmaisaperfeioadadoque as outras, trabalhando para a desagregao de uma ordem original e precipitando uma matriaorganizada de forma poderosa numa inrcia cada vez maior e que um dia ser definitiva. Desde quecomeoua respirarea sealimentar,ata invenodosengenhosatmicose termonucleares,passandopela descoberta do fogo e salvo quando ele prprio se reproduz , a nica coisa que fez foi dissociartranqilamente bilhes de estruturas para reduzilas a um estado em que no so mais capazes deintegrao.Porcerto,construiucidadesecultivoucampos;mas,quandosepensabem,essesobjetossoelesprpriosmquinasdestinadasaproduzir inrcianumritmoenumaproporo infinitamentemaioresqueadosedeorganizaoqueimplicam.Quantoscriaesdoespritohumano,seusentidosexisteemrelaoaele,eseconfundirocomadesordemtologoeletenhadesaparecido"(LviStrauss,1999:390391).Precisamente,aspalavrasdeLviStrausssoapresentadasaquicomoobjetivodetrazerlembranaoestilodoautor,justificaroprofundodesencantoqueatribumosinicialmenteaotextoeindicarnososrumosdaargumentaomasesclarecertambmaquiloquechamamosdesentidosculturaisdadissipao.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 85
horrorsviagens("odeioasviagenseosexploradores",diziaeleaoprincipiarosrelatos),
procurando encontrar o homem arquetpico, imerso num estado original, conservado
numa natural autenticidade, o etngrafo francs acaba prostrado diante da histria,
impotentediantedasorigensirrecuperveis.
Hoje,aresignaopoticadeTristesTrpicosaevidnciaclaratantodeumaestratgia
epistemolgica (o programtico ahistoricismo estruturalista) quanto de um estilo
discursivo(porvezesindissociveldeummtodo).SegundoCliffordGeertz,porexemplo,
aetnografiadeLviStraussentreos ndiosbrasileirosconstrisenumaengenhosasrie
de textualidades sobrepostas e articuladas4. Ainda que possa ser tomada como mero
argumento retrico5, numa plida e difusa aluso quilo que Malinowski chama de o
impondervel(aimpoderabilia)dotrabalhoetnogrfico,aindaquepossaprotegersenum
esmerado e sempre ambguo cruzamento de matrizes textuais, gneros e estilos
discursivos, ou mesmo que venha a esquivarse continuamente na forma de uma
metafsicaformalistadoser(comodisseGeertz),aestupefaodeLviStraussdiantedo
4 ParaGeertz (1989), Tristes Trpicos apresentase como: 1) um livro de viagens, quase como um guiaturstico;2)umamonografiaetnogrficaempenhadana construodeuma scienzanuova;3)umensaiofilosficoemdilogontimocomRousseauotemado'contratosocial'eainsistncianum'discursosobreasorigens',obstinadonaprocurado 'homemdohomem',antesdo 'homemartificialdasociedade';4)umpanfletoreformista,atacandopermanentementeoexpansionismoeuropeu;e,ainda,5)umaobraliterria,serviodeumacausaliterriaassumida."Loquedesemboca,sisepuededecirquedesembocaenalgo,enunametafsica formalista del ser, nunca enunciada pero siempre insinuada, nunca escrita pero siempreexhibida",dizGeertz(1989:55).
5Ao contrrioda antropologia funcionalistabritnica, representadaporMalinowski eRadcliffeBrown, aantropologia francesa, ilustradaaquiporLviStrauss,declaradamentemais textualista (maissimbolista,diriaGeertz).Comumente, tais relatosetnogrficos comoTristesTrpicos somenos translcidos,nosentidodequenoremetemtranqilaediretamentessituaeseaoscontextosreferidos(ou,nostermosde Jakobson,poucoenfatizandoa funo referencialda linguagem),chamandoateno sobre siprpriosenquanto textos e efeitos de discurso; enquanto estratgias retricas de seduo e convencimento,portanto.Cf.:GEERTZ,1989.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 86
carter inexorvel do desgaste, da perda e da obsolescncia dos sentidos sociais, da
impermannciade suasmaterialidadese instituies, constantemente retomada de
modoerrticoedisperso,digasenosanosrecentesdasCinciasSociais.
A impresso incmoda desta dissipao demnio no exorcizado , comparece
intermitentemente em recantos distintos do largo espao acadmico, fundando
diagnsticosno s tericoepistemolgicosabstratos (o insistentedebate sobreaps
modernidadeeostemasquesearrastamesedesdobramapartirdaofimdasgrandes
narrativas, o fim da histria, a runa dos imperativos categricos, etc), mas tambm
sociolgicos,maisimplicadosesentidosnaefetividadedavidasocial(afalnciadoespao
pblico e de boa parte da "mitologia" da sociedade moderna: a fbrica fordista, a
burocraciaweberiana[etambmkafkiana],opanpticodeBentham/Foucault,o"Grande
Irmo" deOrwell) ou ainda em tons "culturalistas" (o fim da arte e das vanguardas, o
desaparecimentodasmoldurasedossuportes,amortedoautoretantasoutrasmortes
anunciadas...).
AlmdeLviStrauss,aindaoutrosnomes(tovariadosquantoseusrecorteseintenes
detrabalho)poderiamser listadosaquinaalusogenricaaoqueviemoschamandode
sentidos culturais da dissipao. Recentemente, por exemplo, o socilogo polons
ZygmuntBauman(2001)afirmouque,desdeocomeo,nossamodernidadeconfigurouse
como um "processo de liquefao". "No foi o 'derretimento dos slidos' seu maior
passatempoesuamaiorrealizao?",perguntaele (2001:09).A"solidez"eo"peso",o
carter "sistmico" e "condensado" de nossa modernidade so reconvertidos numa
contemporaneidade "lqida" e "fluda". Individualizada, em alguma medida orientada
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 87
contra o Social6 as partes antes do todo , nossa atualidade "leve" e "reticulada",
distribuiseem"redes",emfrancaoposiosorganizaes"sistmicas",controladorase
projetivas,devastadaspelavelocidadedotempo.
Segundo Bauman, o signo da precariedade e amarca indelvel do descarte, a eroso
profundaegeneralizadadaquiloquenosfezModernos,definemoquadrodasvivnciase
oimaginriosocialcontemporneos.
Ostericosfrancesesfalamdeprcarit,osalemes,deUnsicherheiteRisikogesellschaft,
ositalianos,deincertezzaeosinglesesdeinsecuritymastodostmemmenteomesmo
aspectodacondiohumana,experimentadadevriasformasesobnomesdiferentespor
todooglobo (...).O fenmenoque todosestes conceitos tentam captarearticulara
experincia combinada da falta de garantias (de posio, ttulos e sobrevivncia), da
incerteza(emrelaosuacontinuaoeestabilidadefutura)edeinsegurana(docorpo,
doeuedesuasextenses:posses,vizinhana,comunidade)(Bauman,2001:184).
Anos antes de Bauman, Michel de Certeau, discutindo as invenes e os rudos das
prticascotidianas,opodereacapacidadecriativadohomemordinrio,discutindoenfim
as pequenas estratgias de resistncia s lgicas do automatismo e da razo tcnica
processadasnodiaadia(oatodecomereogestodeescrever,asformasdeconsumire
passear pela cidade apropriandose do espao urbano etc), se refere ao perecvel e s
formasdemorrero"inominvel",diziaele.Amortedoshomens(mastambmamorte
dascoisas,daspocasedosgruposhumanos)pensadanassuasrelaescomaescrita,
6Aqui,representativaafrasedeMargarethThatcher,pronunciadaemalgummomentopoucoprecisonosanos80:"Asociedadenoexiste.Oqueexistesocidadosesuasfamlias".
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 88
os registros, a memria, o trabalho e a sexualidade7. Para de Certeau (2000: 302),
"somente o fim de uma poca permite enunciar o que a fez viver, como se lhe fosse
precisomorrerparatornarseumlivro".
Noutrocontextoenoutrasintencionalidades,menossujeitoaoencantomicrosociolgico
ealgopopulistadeMicheldeCerteauouentoparadoxalmetafsicaestruturalistade
LviStrauss, Pierre Bourdieu tambm evoca essa desestruturao da existncia. Em
dezembrode1997,intervindonumencontrodetrabalhadoresrealizadoemGrenobleFR
e assumindo um posicionamento polticopropositivo, mais do que propriamente
analtico ou explicativo (como emBauman),Bourdieu referiuse, empoucas pginas,
"degradaodetodarelaocomomundoe,comoconseqncia,comotempoecomo
espao" (1998: 120). Fortemente orientado contra ummodelo econmico, este texto
intervenodeBourdieucujottulosintomtico:"Aprecariedadeesthojeportodaa
parte" empregado por Bauman em vrios momentos da discusso sobre a
"modernidadelqida".
Entretanto, apesar das infindveis aparies, bem postas todas as parcialidades e
enquadramentos que recebe no campo vasto das Cincias Sociais (a alguns dos quais
recorremos aqui na inteno clara e nica de evidenciar um contexto genrico de
discusso e dar forma e partida a um problema, os quais acolhem plenamente
pontualidadesmaioresemaispertinentesaocampodaComunicao),esteimaginriodo
desmanchevisibilizase(sintetizase,poderamostambmdizer)numaimagemdefinitiva,
tobelaquantodesconfortvel,perturbadaecndida,tobempercebidaedescritapor
7LuceGirard,noprefciodeAInvenodoCotidiano.1.Artesdefazer(DeCerteau,2000,5ed.),afirmaqueFreud,maisdoqueFoucault,BourdieuouLviStrauss,foioautorqueinfluencioumaisprofundamenteotrabalhodedeCerteau.InflunciatalvezscomparveladofilsofoinglsdeorigemaustracaLudwigWittgenstein.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 89
WalterBenjamin:ele temo rostovoltadoparaopassado.Ondediantedensaparece
umasriedeeventos,elevumacatstrofenica,quesemcessaracumulaescombros
sobreescombros,arremessandoosdiantedosseusps.Elebemquegostariadepoder
parar,deacordarosmortosedereconstruirodestrudo.Masumatempestadesoprado
Paraso,aninhandoseemsuasasas,eelatofortequeelenoconseguemaiscerrlas.
Essa tempestade impeleo incessantemente para o futuro, ao qual ele d as costas,
enquanto omonte de escombros cresce ante ele at o cu.Aquilo que chamamos de
Progressoessatempestade(BenjamininKothe,1991:158159)8.
TratasedoAnjodaHistria,oAngelusNovusdePaulKlee....
No contexto portanto do que nos parece uma marca profunda, um saudvel
reconhecimentode limitesouumamelanclicadeclaraode inaptidodopensamento
sociolgico contemporneo, interessanos, mais aplicadamente, inserir o tema da
materialidadedasmdias.Dequeformaoimaginriododesmanche(jevocado)talvez
nosso principal "malestar" corporalizase nos objetos comunicacionais, deixando
entrever a a cena das culturas (os hbitos de consumo, as afinidades dos grupos, o
sistema dos valores, etc)? Afetada pela natural e irrevogvel degenerescncia das
tecnologiasmiditicas,pelasoscilaes,demandas enovidadesdemercado, a reflexo
sobre as mdias no deveria apresentarse, forte e permanentemente, como uma
arqueologiadosmeiosderegistro?Omovimentodestacontnua"'precarizao'material"
(naexpressodeBourdieu)noinsuficientementeconsideradonocampoacadmicoda
Comunicao?possvelumacrticacultural(ouumasociologiadacultura)construdaem
8Otemadoprogresso,referidoaquiporBenjamin,largamentediscutidoporBauman,nocontextoda"modernidadelqida":sejaoprogressomaterialviatrabalho,sejaentendidocomo"emancipao"(nanoocaraTeoriaCrticafrankfurtiana).ParaBauman,"ofundamentodafnoprogressohojevisvelprincipalmenteporsuasrachadurasefissuras"(2001:153).
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 90
funodanaturezaobjetualdossuportestcnicomiditicosemdesuso,confinandolhes,
quase forosamente,num"camponohermenutico" (avessoaoprimadodocontedo
sobre as formas materiais da comunicao, alheio determinao da escrita sobre a
escritura[criture]comoemDerrida)?possvelentenderosmeios(etodosossentidos
sociais a eles vinculados) fora de suas situaes habituais de uso, flagrandoos
materialmente, expostos, por exemplo, nas vitrines das lojas de eletrodomsticos, nos
museus de comunicao, nas lojas de objetos usados, nos catlogos das grandes
magazinesencartadosnos jornaisdominicaisouentonosdepsitosde lixonaperiferia
dosgrandescentrosurbanos...)?Dequemodooconsumo,asformasdeinteraosociale
oshbitosculturaissoevocadoseseexpemfisicamentenestesespaos?...
Aindaquepareaarbitrrioeparcial,opercursoargumentativoadotadoataqui(quevai
de LviStrauss a Bourdieu, passando por Bauman e de Certeau, para culminar em
Benjamin)indicaumaatitudeeumasriedecompromissosepistemolgicos;maisdoque
isso,demarcaumazonadeproblematizaoedeprocedimentostericointerpretativos,
nointeriordaqualtalvezpossamosreferiraociclodevidatil,circulaoeaostrnsitos
sciohistricos dos objetos tcnicos e dos suportes materiais da comunicao. As
contribuies tericas relativas materialidade dasmdias ou semntica geral dos
objetos sero acolhidas portanto no seio de uma perspectiva scioantropolgica
nominalmentejdemarcada.
Ensaiandoentoumaantropologiadastecnologiasdeinscrio,capazdeevidenciarquea
conscinciaeamemriadepositamsenas coisas eno snasmentes equeo real
residesobretudonaimpurezapermeadadomaterialenoapenasnapurezaimaculada
das idias , interessanos tomar de LviStrauss a disposio etnogrfica (e foto
etnogrfica), bem como, justamente, o risco e a inventividade de um olhar complexo:
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 91
entre o desencantometafsico e a vocao emprica, a liberdade potica e a inteno
sistemtica;deBourdieuededeCerteaudesteltimoprincipalmente,interessanosa
possibilidade de uma teorizao sobre as prticas (mais restritamente, sobre os usos
locais e cotidianos dos objetos na cultura); de Bauman, importa a essnciamesma da
argumentao sobre a "modernidade lqida": hoje, os tempos e os homens, seus
humores e seus produtos, encontramse carregados de fluidez e transitoriedade os
objetos comunicacionais, por certo, acomodam e refletem tais presses; de Benjamin,
maisdoqueastesessobreahistria, interessamsobretudoas"iluminaesprofanas"9.
Assim,talvezsejapossvel,notrajetoantropolgico10daofertaaodescarte,norastrodo
reaproveitamentoedareversibilidadedosmateriaisdaculturamiditica,flagrarnosa
histria dosmeios e dos grupos humanos que os engendram e que com eles, ou em
funo deles, convivem "a constncia da presena humana que permeia todas as
superfcies",mastambmoconsumo,osprpriosmodosdeempregodessesmeios,os
avanos da tcnica atrelados a formas de sociabilidade, possibilidades interacionais e
culturais(umamplosensoriumeumimaginriosocialassociadosaosmeios),quesefixam
e se acumulam, apesar da transitoriedade e da impermanncia dosmateriais que lhes
corporalizam.ParafraseandoNeruda, "estaaantropologiaquensbuscamos".Numa
poca em que as tecnologias do virtual seduzem tanto, talvez seja estimulante e
9 SegundoBenjamin,apassividadeeaabstratividade presentesdemodosdiversostantonaembriaguezquanto na "iluminao religiosa" s podem ser superadas autntica e criadoramente na "iluminaoprofana", de inspirao materialista e antropolgica. Esse carter, materialista e antropolgico, queBenjamin atribui s "iluminaes profanas", nos interessa aqui particularmente. Cf.: KONDER, Leandro.WalterBenjamin.Omarxismodamelancolia.RiodeJaneiro:CivilizaoBrasileira,1999.
10 Cf.verbeteTrajetoantropolgico,noDicionrioCrticodePolticaCultural,deTeixeiraCoelho(SoPaulo:Iluminuras,1999,2ed):"Osentidodeumimaginrioformaseaolongodeumpercursoentre,deumlado,asformasuniversaise invariantesdogenushomoesuasformas localizadas,bemcomo,deoutro,entreaesferadesuainserofsicanomundoeaesferadosdiscursossobreessainsero.Aessepercursosedonomedetrajetoantropolgico"(p.356).
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 92
provocativoumchamamentosmaterialidadesmenosprezadasdomundoefetivamente
vivido.Restaentocomporeproblematizarumarpidacartografiadosespaosedas
inseres dos objetos nos enquadramentos da cultura. 2. (O mundo dos objetos. A
materialidadedasmdias)
Maisdoqueumrepertriocomumdesignosesignificados,ritos,prticasesituaes
tpicas,aculturapodeserentendidatambmcomoummundodeobjetos11.Acirculao
debenseprodutosmateriaisemfunodosquaisseorganizamasdiferenasdegrupo,
sedispemhierarquias,seafirmamasidentidadesetranscorreatradioeamemriade
um povo uma instituio social largamente trabalhada pelo conhecimento scio
antropolgico.DesdeMalinowski(comainvestigaosobreokula12trobriands)eMarcel
Mauss(noensaiosobreaddivaeopotlach13),asdimensesdeumaculturamaterialou
de nossa existnciamaterial, num termo que remetemais facilmente aomaterialismo
histricomarxista(casosejanecessrioaludirmosaquiaocontraponto infraestruturale
maisduramentesociolgicodadiscusso)sempre interessouAntropologia(ouauma
sociologiada cultura). Segundo JeanBaudrillard,o estudoda retrica eda sintaxedos
11SegundoAbrahamMoles(1972),teramosquatroclasses(intercambiveis)deobjetos:objetosdearte,objetosutilitrios,objetostcnicoseobjetossemutilidade.
12 ConformeMalinowski,okulaumaextensaformadecomrcio intertribalpraticadanum largoaneldeilhas localizadas ao norte e a leste do extremo oriental daNova Guin. Em parte comercial, em partecerimonial,umatrocaempreendidacomoumfimemsimesmaparasatisfaodeumprofundodesejodeposse.Cf.:"Aspectosessenciaisda instituiokula"e"Osignificadodokula",reunidosporEuniceRibeiroDurhamemMalinowski(SoPaulo:Editoratica,1986,ColeoGrandesCientistasSociais).
13 PraticadoporcertastribosdonoroestedosEstadosUnidosedoCanad,opotlachumacerimniaritualnaqualoshomensdacomunidadetrocampresentescomoformade indicarseusstatussocialemrelaoaos demais. Tratase de uma forma de bravata, com a inteno de demonstrar o quanto se rico egeneroso.Oscontemplados,porsuavez,sentemsenocompromissoderetribuiropresenterecebidooualgoaindamelhoremaisvalioso emalgummomentonofuturo,comoformaderecuperaroprestgioealcanarumaprojeosocialmaior.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 93
objetosumasociologiadosobjetos,portantoindicaobjetivoselgicassociais."Aquilo
dequeeles [osobjetos]nos falamnodetal formadousurioedeprticastcnicas,
massimdepretenso(...)ederesignao,demobilidade(...)edeinrcia,deaculturao
edeenculturao,deestratificaoedeclassificaosocial" (Baudrillard,1972:54).Da
mesma forma, AbrahamMoles (1972) tambm assegura que o inventrio dos objetos
possudosna esferapessoal esclarece tantoodesenvolvimentoda sociedadequantoo
lugardo indivduonestasociedade.Bensmateriaiseobjetospossudosnosdoacessoa
campos14,prticase lgicasculturais.Seosfatossociaispassaramaserestudadoscomo
coisas(nasociologiafundadoradeDurkheim),tambmascoisas(objetosmanufaturados,
instrumentos de caa, peas do vesturio, objetos rituais e demais utenslios) sempre
figuraram,complementarmente,comofatossociais.
Entretanto, embora vital compreenso no s das sociedades "primitivas" e pr
capitalistas(comoemMalinowskieMauss),mastambmaoentendimentodasculturase
das formas sociais contemporneas conforme Moles, o fervilhar15 de objetos
caracterstico de nossa atualidade social , ainda assim, freqentemente, omundo dos
14 O termo campoempregadoaqui livremente, sem fazer refernciadiretaao sentidoqueadquirenasociologia de Pierre Bourdieu. Entretanto, resta a especulao: para Bourdieu, o conceito de campo entendido como um espao em que se processam certas lutas simblicas, em que so disputadosdeterminados capitais (no s econmicos mas tambm culturais e sociais), um espao em quedeterminadosatoresseconfrontamembuscade legitimidadeereconhecimentosocial,umespaoquepossui instituies, tenses, prticas, procedimentos e processos caractersticos, acordados e aceitostacitamente.Umcampo,agoraentonosentidobourdieano,noseriacaracterizadotambmpelotrnsito,pela circulao e pela presena intensa (sempre tendencialmente aferida) de determinados conjuntos,gruposetiposdeobjetos?
15 Para Moles (1972), esta proliferao excessiva de objetos em nossa contemporaneidade se deveprincipalmente:1)aodesenvolvimentoda tendnciaaquisio oprprioBenjamin,noclssicoensaiosobre a reprodutibilidade tcnica, j havia comentado que, "a cada dia que passa, mais se impe anecessidade de apoderarse dos objetos" ; 2) serializao da produo (tributria tambm daindustrializaoedas tecnologiasde reproduodosprodutosculturais)e3)aoconsumoconspcuo,queligaprogressivamenteostatussocialpossedebens.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 94
objetos(osistemaouamoraldosobjetoscomoquerBaudrillard)duramenteapartado
dasvivnciassubjetivaseviciosamentedissociadodasexperincias individuais.Segundo
PeterStallybrass,porexemplo,osujeitomodernoainda,em largamedida,constitudo
atravs da denegao do objeto. "A oposio radicalmente desmaterializada entre o
'indivduo'e suas 'posses' (...)umadasoposies ideolgicas centraisdas sociedades
capitalistas"(Stallybrass,1999:5859).
Atualmente,noseiodasCinciasSociaisaindarestariaespao(haveriaaindademandade
investigao)paraabordagensque,comoostrabalhospioneirosdeMausseMalinowski,
reexaminassemosinvestimentoseasafetaesrecprocasentregruposeindivduos,de
um lado, e, de outro, posses materiais e objetos industriais, tcnicos, utilitrios ou
culturais.NacitadaanlisedeMauss,ascoisaspresenteadas(nopotlach)noso"coisas
indiferentes",mastmum"nome,umapersonalidadeeumpassado".Assim,aindaseria
produtivodramatizarasrelaesentresujeitoseobjetos,comofazoprprioStallybrass
emtornodocasacodeMarx.Segundoele(1999),apartirdassucessivas idasevindas
daquele casaco s lojas de penhor conhecida a penria em que viveu por longos
perodosafamliaMarx!queformuladaadiscussosobreofetichismodamercadoriae
sopropostasasnoesdevalordetrocaevalordeuso.DizStallybrass(1999:6566):
O casaco de inverno de Marx estava destinado a entrar e a sair da loja de penhores
durante todo os anos 1850 e o incio dos anos 1860. E seu casaco determinava
diretamente que trabalho ele podia fazer ou no. Se seu casaco estivesse na loja de
penhoresduranteoinverno,elenopodiairaoMuseuBritnico.Seelenopudesseirao
MuseuBritnico,elenopodia realizarapesquisaparaOCapital.As roupasqueMarx
vestia determinavam assim o que ele escrevia. Existe, aqui, um nvel vulgar de
determinaomaterialquedifcilatdeconsiderar,emboraasconsideraesmateriais
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 95
vulgares fossem precisamente aquilo que Marx estava discutindo: todo o primeiro
captulodeOCapitaltraaasmigraesdeumcasaco,vistocomomercadoria,nointerior
domercadocapitalista.
alguma distncia dos Estudos Culturais, onde se coloca com serenidade a inusitada
histriadevidadocasacodeMarx,otericoalemoFriedrichKittler,no livroDiscourse
Networks1800/1900 (citado tambmporGumbrecht [1998b]eFelinto [2001]) fazuma
especulao interessante: segundo ele, certas idias de Friedrich Nietzche foram
suscitadas pela forma arredondada da mquina de escrever com a qual o filsofo
trabalhava.Nietzche fora influenciadopelomovimento corporal impostopelamquina.
Devido talvez progressiva cegueira que o dominava, o filsofo tornouse um dos
primeiros a adotar a nova ferramenta. Em uma de suas correspondncias, Nietzche
afirmava: "nossos materiais de escrita contribuem com sua parte para nosso
pensamento".Tal sensibilidadematerialidadedosobjetos (evidentenocasodeMarx)
ou,maisprecisamente,corporalidadedasmdias(comonocasodeNietzche)discutida
mais longamente por Pierpaolo Antonello no livro Interseces: a materialidade da
comunicao(organizadoporJooCzardeCastroRocha).Pesquisandoaadesodeum
grupodeescritoresitalianosaosnovossuportesinformticosdaescrita,Antonello(1998)
afirma que no s os hbitos de textualizao, mas tambm os estilos literrios so
afetadosecondicionadospelamaterialidadedos suportes tcnicomiditicos.Oescritor
colombianoGabrielGarciaMrquez,porexemplo,ementrevistapara IreneBignardi,no
jornal italianoPanorama,em25/10/92,declarou:"Seeu tivesseumMacintoshdesdeo
inciodeminhacarreirateriaescritounscem livrosamaisdoque fizetodosmaisbem
elaborados.Emrelaotcnicadaescrita,ocomputadorumaverdadeirabeno".De
suagerao,GarciaMrquez foiumdosescritoresquemais cedoemaisprontamente
acolheuanovamdia.ParaAntonello,ocomputadorpermiteum ritmoqueaproximao
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 96
atodeescreverdoprpriofluxodaconscincia;comoprocessadordigital,encontramos
maiortransparnciaentreotextoeaquiloquedesejamosdizer.Segundoele,estaramos
diantede"umtipodeexperinciaquepoderamosdenominarintrasomtica"(Antonello,
1998:201).
Na rea acadmica da Comunicao, alm dos trabalhos que gravitam em torno do
terico alemo Hans Ulrich Gumbrecht (exdiscpulo de Hans Robert Jauss e um dos
principais fomentadoresdaestticada recepo)equehoje convergemno sentidoda
elaborao de uma teoria das materialidades da comunicao, o interesse pela
corporalidadeepelafisicalidadedossuportesmiditicospareciajhaverseinsinuado,por
exemplo,emBenjamin(nodebatesobreareprodutibilidadetcnica),oumesmo,etalvez
mais fortemente,emMcLuhan (na idiados"meioscomoextensesdohomem"ouno
deflagradobordo"themediumisthemessage").
Semrecuperaremprofundidadecadaumadestasperspectivasdetrabalhomantendoas
numhorizontederecursostericoseheursticos,mencionandoastambmcomondices
da pertinncia da discusso , interessanos amarrar a materialidade das mdias ao
fantasmadodesmanche,cogitandoentoapossibilidadedeuma"sociologiadacultura
cujo foco seja anaturezaobjetualdos suportes tcnicomiditicosemdesuso"ouuma
"antropologiadastecnologiasdeinscrio";ouainda,efinalmentevoltandoatermosj
empregados,uma"arqueologiadosmeiosderegistro".
Imaginadadestaforma,umasociologiadaculturaquesecoloqueprocuradestesnexos
afetivos,destaslgicas(ouilgicas)dedependnciaeassociaoentresujeitoseobjetos
nos faria inevitavelmente misturar as almas nas coisas e as coisas nas almas. 3. (O
contextoemprico)
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 97
Este chamamento materialidade das mdias (que coloca, compulsoriamente, como
grandepanode fundo ou como grandepontode fuga o fantasmadodesmanchee
aindaoutrossubtemas,apenascircunstancialmenteacessriosesecundrios,taiscomo
oscircuitoseosritmosdoconsumodosobjetosedosprodutosmiditicos,oavanoea
proliferaodatcnicadosmeios,etc16)sednosentidodereferendarumconjuntode
observaeseregistrosetnogrficos(acimadetudofotoetnogrficos)desenvolvidosno
mbitodoprojeto"Multiculturalismoeesferamiditica:a(re)descobertados500anosna
mdia brasileira"17. Aqui, nos apropriamos daqueles dados conferindolhes
encaminhamentos analticos e problematizandoos de forma diversa daquela para os
quaisforaminicialmenteproduzidos.Assim,osmesmosdadosdecampososubmetidos,
leaqui,a leiturasdistintas (aindaquemovidaspelomesmoviscomunicacional,pela
mesma inteno antropolgica e pela mesma preocupao com a cultura: l, as
possibilidades de apario de uma suposta cultura brasileira; aqui, a possibilidade de
pensarmos prticas e imaginrios sociais genricos, contextos sciohistricos mais
amplos,apartirdeumaculturadosobjetos,maisprecisamenteapartirdeumconjunto
de formas materiais: os instrumentos tcnicos de registro, representao e interao
socialmediada).
Desdejulhode2000,noandamentodoprojetocitado,vemsendorealizadaumasriede
observaesde campo (entradasetnogrficas,entrevistaspontuaiseemprofundidade,
16 Da mesma forma, as discusses sobre a possibilidade de uma esttica do lixo ou de uma estticafotogrficadolixocertamentepoderiamaquiaparecer;ou,ainda,adiscussosociolgicasobrereciclagem(comoalternativadetrabalho,economiainformal,estratgiadeinclusosocial,prticaecolgica,etc)."
17 Oprojeto"Multiculturalismoeesferamiditica:a(re)descobertados500anosnamdiabrasileira"vemsendodesenvolvidodesdeagostode1999 junto linhadepesquisaMdiaseProcessosScioCulturaisdoProgramadePsGraduaoemCinciasdaComunicao Unisinos.ContaaindacomaparticipaodosprofessoresDr.PedroGilbertoGomes,Dra.DeniseCogo,Dr.AntnioFaustoNetoebolsistasde iniciaocientfica.OprojetorecebefinanciamentosdoCNPq,FapergseUnisinos."
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 98
histriasdevidaeregistrosfotoevideogrficos)numacomunidadedaperiferiadePorto
Alegre,umaviladereassentamentodaantigaVilaCaiCai,localizadaat1995naAv.Beira
RioprximoaoEstaleiroSeatualmenterealocadanobairroCavalhada,nazonasulda
cidade.Residemnolocalcercade250famlias.
Nestacomunidade,oLoteamentoCavalhada,encontraseumadasdezesseisunidadesde
reciclagem de lixo da cidade de Porto Alegre. Em torno deste espao
'institucional'/instituinte se constrem disputas simblicas, erigemse hierarquias e
ordenaes,fundamsesistemasdelegitimao.Dealgummodo,oGalpodeReciclagem
de Lixo funciona, naquele contexto, para aqueles atores, como "espao de distino",
regulando e filtrando apropriaes da cultura, dispondo hierarquias, valores e capitais
(econmicos, simblicos e culturais). Trabalham na triagem do lixo 44 recicladores, 13
homense31mulheres,todosresidentesnoLoteamento.
As discusses iniciadas aqui sobre os vnculos entre uma certa "memria social" e o
descarte,amortenaturalizadadosobjetostcnicosderegistroe informaosedevem
sobservaesesanotaesdecamporelativasaotrabalhocomo lixoprocessadono
LoteamentoCavalhada.Almdas fotografiasdeMirelaKruelBilhar18,quenosafetame
nos interessam mais diretamente, seguese um rpido trecho dos dirios de campo,
apresentado unicamente na medida em que compe uma cena, conferindo alguns
sentidosemaiorconvicodocumentalaoconjuntodosdadosapresentados:23dejunho
de2000LoteamentoCavalhada/MorrodoOssoPortoAlegre
18 Mirela Kruel Bilhar acadmica do curso de Comunicao Social (UNISINOS), vinculada ao projeto"MulticulturalismoeEsferaMiditica:a(re)descobertados500Anosnamdiabrasileira",desenvolvidonamesmauniversidade."
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 99
OGalpo inacreditvel.Boapartedo lixodaclassemdiadePortoAlegre termina l,
sendo meticulosamente separado pelas mos sem luvas de uma dezena de mulheres
jovens.Algumasdelas falamao telefonecelularenquantocolocamgarrafasplsticasde
umlado,papisdeoutro,latasdecervejadeoutro,atencontraremoscacosdevidro.A
paisagem doGalpo um incrvel jogo de cores, cheiros e rtulos: o fim da linha do
consumo19.
Esclarecidosentoocontextogenricodadiscusso,indicadoumgrupoderefernciase
orientaestericas(configuradorasdeumolharsobreosobjetosmiditicos)eapontada
tambmaprocednciadomaterialempricoquetomamoscomopretextoeprovocao,
restaencaminharumaleiturapossveldeumimaginriosocialimpressonamaterialidade
recusadadasmdias.4.(Oparquedosobjetosmortos)
Apassagemcruaeinvencveldotempo,aefemeridade"moderna"dosobjetos,"ofimda
linhado consumo" a imagemmesmadoperecimento ,aludidasgenricaeum tanto
metaforicamentenameno inicialao imaginriododesmanche,aparecemnodepsito
dereciclagemdoLoteamentoCavalhadaemtodasuadramatizaoeopulnciamaterial.
Diariamente,cercadeumatoneladadolixodePortoAlegredescarregadoeprocessado
nolocal.Juntoaosmontesdegarrafasplsticas,alimentosemdecomposioetodasorte
de dejetos, inevitvel, constante e chamativa a presena de velhos aparelhos de
televiso,fitasdevdeocassete,mquinasdeescreverevinisantigos.Passearnoparque
dosobjetosmortosdefrontarsecomumamemriasocialimpregnadanamaterialidade
19 Osdiriosdecampo,produzidosjuntamentecomoutrosdadosetnogrficos,relatamoutrassequnciaseoutraspassagens,apresentamtranscriesdeentrevistasrealizadascommoradoresdo local,referindoseportantodeoutrastantasformassatividadesdoGalpodeReciclagemdeLixo.Otrechoaquiapresentadoilustraadequadamenteaproblematizaopontualquevemsendoconstruda,semdisperslaporoutrosencaminhamentos(talvezmaissociolgicosouatmesmopolticos)."
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 100
decompostadascoisas;domesmomodo,fechasediantedensavidamdiadosobjetos
(sempre progressivamente encurtada) e um ciclo ou processo produtivoindustrial
espiralado(produoconsumodescartecoletareciclagem[re]produo).
SegundooantroplogogachoRubenOliven(inAchutti,1997:07),"o lixonosdizmuito
sobre uma sociedade, (...) nos conta o que diferentes grupos sociais consomem, mas
acimade tudoaquiloqueeles jogam fora".ParadeCerteau,o trabalhocom sucataou
com produtos anlogos constitui uma interessante estratgia cotidiana, plena de
criatividade e resistncia. Sem dvida, seria preciso estudar estas tticas de combate,
"igualmentesuspeitas,reprimidasoucobertascomosilncio"(deCerteau,2000:8.Estes
materiais indicariam no s uma historicidade social (onde os procedimentos de
fabricao e os interesses de mercado aparecem como quadros normativos), mas
figurariam tambmcomo instrumentosmanipulveisporusurios (evocando formasde
convvioesociabilidade,aludindoainvestimentossubjetivoscriativos,afetivos,culturais
projetadosnosobjetos).Seriapossvelrecuperarahistriadevidadessesmateriais(num
procedimentosimilarqueleadotadonocurtaIlhadasFlores,dogachoJorgeFurtado)?
Seriapossvel recuperar as vivnciase as situaes sociais associadas aessesobjetos
mapearomomentotenroeeufricodaaquisiodoaparelho,ossucessivoserotineiros
anosdeuso,a indiferenadodescarteeasubstituiopelanovidadeaprimorada?Seria
esta uma das verses (talvez operacionalizveis) daquela 'entropologia' solicitada por
Claude LviStrauss?Quememriasemarcoshistricos (individuaise/ou sociais) foram
impressosporessesobjetosmiditicosatualmenteemdesuso?
Adimensodadurabilidadedosprodutos tcnicosdo consumo e associada a ela a
flagrante e excessivamobilidade dos signos de status social so salientes no contexto
emprico visitado. interessante observar, no s no conjunto dos moradores do
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 101
Loteamento, mas tambm, e principalmente, entre os prprios recicladores de lixo, a
profuso de aparelhos de telefonia celular e omodo efusivo e pouco discreto com os
quais soempregados (inclusiveduranteomanuseiodo lixo).O temadadurabilidade,
aqui colocado, reincidente na discusso de Bauman sobre a modernidade lqida.
Segundo ele, "a produo demercadorias como um todo substitui hoje 'omundo dos
objetosdurveis'pelos 'produtosperecveisprojetadospara aobsolescncia imediata'"
(Bauman, 2001: 100). Particularmente, os objetos comunicacionais encontrados no
DepsitodeLixodoLoteamentoCavalhadaparecemsentir,aomenosemalgumamedida,
o impacto desta obsolescncia "cultural" ou "simblica", para alm da prpria
obsolescnciamaterialou funcional.ParaBauman (2001:146),atualmente, "manteras
coisasporlongotempo,almdeseuprazode'descarte'ealmdomomentoemqueseus
'substitutosnovoseaperfeioados'estiverememoferta(...)sintomadeprivao.Uma
vez que a infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder
sedutor, a durabilidade perde sua atrao e passa de um recurso a um risco". A
capacidadededescartarenomaisdepossuirobjetosparecereconfigurarossistemas
de atribuio e aquisio de status social, legitimidade e capitais simblicos. E que a
substituioseja toamplae irreversvelquantoconstanteeveloz!Bauman (2000:21),
maisumavez,fazilustraesesclarecedoras:
Rockefeller pode ter desejado construir suas fbricas, estradas de ferro e torres de
petrleo altas e volumosas e serdonodelas porum longo tempo (pela eternidade, se
medirmos o tempo pela durao da prpria vida ou pela da famlia). Bill Gates, no
entanto,nosente remorsosquandoabandonapossesdequeseorgulhavaontem;a
velocidadeatordoantedacirculao,dareciclagem,doenvelhecimento,doentulhoeda
substituioquetraz lucrohoje noadurabilidadeeconfiabilidadedoproduto.Numa
notvelreversodatradiomilenar,soosgrandesepoderososqueevitamodurvele
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 102
desejamotransitrio,enquantoosdabasedapirmidecontratodasaschanceslutam
desesperadamente para fazer suas frgeis, mesquinhas e transitrias posses durarem
mais tempo.Os dois se encontram hoje em dia principalmente nos lados opostos dos
balcesdasmegaliquidaesoudevendasdecarrosusados.
Assim,asmaterialidadescontemporneas e juntocomelasosprodutoseos suportes
miditicosdenossotempoparecemhiperfragilizadas(os)diantedoritmoimperturbvel
dodescarte.Numuniversodepoucasalternativas,restanosotrabalhopaciente,irnicoe
meticuloso do luto. .
ACHUTTI,LuizEduardoRobinson.Fotoetnografia.Umestudodeantropologiavisualsobre
cotidiano,lixoetrabalho.PortoAlegre:TomoEditorial,Palmarinca,1997.
ANTONELLO,Pierpaolo.Ordinauteur:atelaeapgina. in:ROCHA,JooCzardeCastro
(org.). Interseces: amaterialidade da comunicao. Rio de Janeiro: Imago, Ed.UERJ,
1998,p.197211.
BARTHES,Roland. Semnticadoobjecto. in:BARTHES,Roland.AAventura Semiolgica.
Lisboa:Edies70,1987,ColecoSignos,p.171180.
BAUDRILLARD, Jean. A moral dos objetos. Funosigno e lgica de classe. in:MOLES,
Abraham et al. Semiologia dos Objetos. Petrpolis: Vozes, 1972, p.4287 (do original
francs:LesObjects.Communications13/1969,EditionsduSeuil).
BAUDRILLARD,Jean.OSistemadosObjetos.SoPaulo:Perspectiva,1997,3ed.
BAUMAN,Zygmunt.ModernidadeLquida.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,2001.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 103
BENJAMIN,Walter.Aobradeartenapocade sua reprodutibilidade tcnica. in: LIMA,
LuzCosta(org.).TeoriadaCulturadeMassa.RiodeJaneiro:Ed.Saga,1969,p.203238.
BENJAMIN, Walter. Teses sobre filosofia da histria. in: KOTHE, Flvio (org.). Walter
Benjamin.SoPaulo:tica,1991.ColeoGrandesCientistasSociais,p.153164.
BOURDIEU, Pierre. A precariedade est hoje por toda a parte. in: BOURDIEU, Pierre.
Contrafogos. Tticas para enfrentar a invaso neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora,1998,p.119127.
DERRIDA,Jacques.Gramatologia.SoPaulo:Perspectiva,1999,2ed.
DeCERTEAU,Michel.AInvenodoCotidiano.1.Artesdefazer.Vozes:Petrpolis,2000,
5ed.
FELINTO, Erick. "Materialidades da Comunicao": Por um novo lugar da matria na
TeoriadaComunicao.TextoapresentadonoGTTeoriadaComunicao,noXEncontro
NacionaldaComps,2001,UnB,BrasliaDF,11p.
GEERTZ,Clifford.Elmundoenuntexto.Comoleer"TristesTrpicos".in:GEERTZ,Clifford.El
AntroplogocomoAutor.Barcelona,BuenosAires,Mxico:PaidsStudio,1989,p.3558.
GUMBRECHT,HansUlrich.ModernizaodosSentidos.SoPaulo:Ed.34,1998a.
GUMBRECHT,HansUlrich.CorpoeForma.Ensaiosparaumacrticanohermenutica.Rio
deJaneiro:Ed.UERJ,1998b.
KOTHE,Flvio(org.).WalterBenjamin.SoPaulo:tica,1991.ColeoGrandesCientistas
Sociais.
SoPaulo,maro/2003n.02
CISCCentroInterdisciplinardeSemiticadaCulturaedaMdia Ghrebh
RevistadeComunicao,CulturaeTeoriadaMdiaissn16799100
Ghrebhn.02 104
LVISTRAUSS,Claude.TristesTrpicos.SoPaulo:Cia.dasLetras,1999,2reimpresso.
MAUSS,Marcel.EnsaiosdeSociologia.SoPaulo:Perspectiva,1999,2ed.
McLUHAN,Marshall.OsMeiosdeComunicao comoExtensesdoHomem.SoPaulo:
Cultrix,1995,10ed.
MOLES, Abraham. Objeto e comunicao. in: MOLES, Abraham et al. Semiologia dos
Objetos. Petrpolis: Vozes, 1972, p.0941 (do original francs: Les Objects.
Communications13/1969,EditionsduSeuil).
ROCHA, Joo Czar de Castro.Homens emquinas:metforas de transporte. Por uma
histrianosperodosdetransio.in:ROCHA,JooCzardeCastro(org.).Interseces:a
materialidadedacomunicao.RiodeJaneiro:Imago,Ed.UERJ,1998,p.177187.
STALLYBRASS,Peter.OCasacodeMarx.Roupas,memria,dor.BeloHorizonte:Autntica,
1999.