Artigo Crítica ao PROUNI

Embed Size (px)

Citation preview

Cristina Helena Almeida de Carvalho

O PROUNI NO GOVERNO LULA E O JOGO POLTICO EM TORNO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIORCRISTINA HELENA ALMEIDA DE CARVALHO*RESUMO: O objetivo deste texto compreender a relao complexa e dinmica da poltica pblica para o ensino superior no governo Lula, no que tange ao Projeto Universidade para Todos (PROUNI) e sua articulao com a poltica fiscal e o financiamento por meio da renncia tributria. Pretende-se ainda analisar as condies de acesso aos estudantes pobres e questionar o programa como poltica pblica de democratizao. Neste contexto, o respaldo da sociedade civil em busca do diploma de graduao tem sido acompanhado da presso de associaes representativas do segmento privado. A tentativa de regular o sistema e obter retorno da renncia fiscal concedida s filantrpicas foi restringida medida que a evoluo do texto legal foi na direo do afrouxamento do aparato estatal. Conclui-se que o empecilho democratizao est na escassez de vagas pblicas e gratuitas. Nesse momento, as medidas voltadas expanso do segmento federal ainda so insuficientes para reverter este quadro perverso. Palavras-chave: Ensino superior. Renncia fiscal. Financiamento. PROUNI. Democratizao do acesso. THE PROUNI IN LULAS ADMINISTRATION AND THE POLITICAL GAMEAROUND ACCESS TO HIGHER EDUCATION

ABSTRACT: This paper aims at understanding the complex and dynamic relationships between the public policy for higher education in Lulas administration, in what regards the Project University for All (PROUNI), and its connection with fiscal policy and financing by way of tributary renouncement. It also intends to analyze the conditions of access of poor students and discuss the program as a

*

Doutoranda em Economia Social e do Trabalho e mestre em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas ( UNICAMP ); bolsista do CNPq. E-mail: [email protected] Agradeo s sugestes, comentrios e crticas do professor Luiz Antonio Cunha.

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

979

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

democratizing public policy. In this context, the civil society approval in search of graduation certificate allied to the pressure of private representatives associations. The attempt to regulate the system and obtain return on the fiscal renouncement allowed to philanthropic institutions was restricted by the legal text, which evolved toward the slackening of the state framework. The author concludes that the obstacle to democratization is the lack of public and free places. To date, the measures aimed at increasing the federal sector are still insufficient to revert this perverse situation. Key words: Higher education. Fiscal renouncement. Financing. PROUNI. Democratizing access.

Introduotexto pretende entender o Programa Universidade para Todos (PROUNI)1 como ao estatal prioritria do governo Lula articulado operao da poltica fiscal, bem como ao mecanismo indireto de renncia fiscal s Instituies de Ensino Superior privadas (IES). Objetiva-se ainda analisar as condies de acesso das camadas mais pobres ao ensino superior e questionar o programa como poltica pblica de democratizao. A concesso de bolsas de estudos integrais e parciais para estudantes de ensino superior em troca de renncia fiscal surge acompanhada pela retrica de justia social e de incluso das camadas sociais menos favorecidas, cujo principal indicador o baixo contingente de alunos de 18 a 24 anos que freqenta o ensino superior. O evidente respaldo da sociedade civil em busca do diploma de graduao acompanhado pela presso das associaes representativas do segmento privado. No entanto, importante contextualizar o programa no bojo do ambiente econmico mais amplo e nas mudanas ocorridas na forma de operao da poltica fiscal, que alteraram os espaos de financiamento das polticas pblicas. A renncia fiscal torna-se novamente relevante como mecanismo de financiamento da poltica pblica para a educao superior privada. O artigo est estruturado em trs sees, alm da introduo e da concluso. Na primeira parte, pretende-se entender o PROUNI inserido na nova lgica das finanas pblicas e do financiamento indireto direcionado aos estabelecimentos privados de educao superior. Na se980Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

gunda parte, a inteno esquadrinhar o jogo poltico em torno do programa ao longo de sua formulao, seus principais atores e interesses envolvidos. Nesta seo, investiga-se o perfil institucional das IES participantes do programa no municpio de So Paulo. Observa-se, de forma parcial, at que ponto a implementao difere do esperado por seus formuladores. Por fim, o texto procura analisar o programa como poltica pblica de acesso s camadas mais pobres e discutir sua efetividade social.

A nova lgica das finanas pblicas e a renncia fiscalPara compreender os moldes de construo do PROUNI, torna-se relevante, em primeiro lugar, conhecer o contexto econmico no qual este programa se insere, tanto no que diz respeito nova lgica das finanas pblicas, quanto s mudanas na legislao da renncia fiscal direcionadas s instituies de ensino superior privadas. No primeiro ponto, a discusso exige retroceder no tempo para entender as alteraes ocorridas na gesto da poltica fiscal, a partir dos anos de 1990, e as dificuldades em ampliar os gastos pblicos. Na viso convencional, o indicador basilar da situao fiscal era o dficit pblico. O controle deste dficit ocupava lugar central na poltica macroeconmica. No por outra razo que os organismos multilaterais sempre defendiam seu corte como medida inicial da poltica de ajustamento. Esta questo alterou-se com a abertura dos mercados financeiros, o crescente fluxo de investimentos e a volatilidade dos capitais presente na dcada. A ampla mobilidade do capital levou a corrente econmica dominante a dar outro rumo avaliao da poltica fiscal e a exigir esforo adicional por parte dos pases em desenvolvimento para se credenciarem como candidatos a receptores dos novos fluxos de capitais. A questo fiscal ganhou lugar central no arranjo da poltica macroeconmica, sobretudo, a dvida pblica tornou-se um dos ativos usados na valorizao do capital financeiro. O resultado fiscal convencional baseado no controle do dficit pblico deixou de ser a referncia principal e a sustentabilidade da dvida passou a ser o novo indicador. Este permitiu incorporar na anlise o problema da avaliao do comportamento esperado das finanas pblicas em cenrios provveis. A partir do momento em que esta idiaEduc. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

981

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

tornou-se dominante, deixou de ser suficiente o pas demonstrar que goza de boa situao fiscal. preciso que o mercado acredite que, no cenrio esperado, no haver risco de calote na dvida. Em outras palavras, os investidores precisam ter confiana que a dvida seja sustentvel. 2 Esta interpretao da poltica fiscal foi definitivamente implantada no Brasil, aps o acordo com o FMI, em 1998. O rgo passou a exigir do governo de Fernando Henrique Cardoso um supervit primrio capaz de assegurar a sustentabilidade da dvida, quaisquer que fossem a taxa de cmbio e a taxa de juros incidentes sobre o estoque da dvida pblica. A existncia de taxa de juros reais elevada e a instabilidade cambial, ao lado da medocre evoluo do PIB, no deixaram alternativa seno promover constantes aumentos do supervit primrio. No governo Lula, a elevao do supervit primrio se deu por meio de duas medidas. Em primeiro lugar, houve o aumento da carga tributria (30% do PIB, em 1998, para 35% em 2003). Em segundo lugar, ocorreram importantes cortes nos gastos pblicos. A adoo da ncora fiscal implica a definio, priori, do supervit primrio. Assim, o valor dos gastos passa a se ajustar ao comportamento da receita oramentria, o que acarreta cortes de despesas, sobretudo em custeio e capital. Explicam-se assim o arrocho salarial, o corte das verbas de custeio com sade, educao e outros, bem como a reduo dos gastos com investimentos. No de se surpreender que os investimentos pblicos sejam os mais baixos da histria recente do pas e, aps as sucessivas privatizaes, perderam o papel que tinham como articuladores das condies de crescimento. No que tange ao segundo aspecto, a poltica de incentivos e isenes fiscais para apoiar a atuao privada remonta ao final dos anos de 1960, quando o governo militar valeu-se desses instrumentos para impulsionar o projeto de desenvolvimento nacional, beneficiando ampla gama de setores em diferentes reas. Em relao ao ensino superior, o mecanismo de renncia fiscal tornou-se fator central no financiamento do segmento privado.3 A Lei n. 5.172/66, que instituiu o Cdigo Tributrio Nacional, em concordncia com a CF/67, determinava a noincidncia de impostos sobre a renda, o patrimnio e os servios dos estabelecimentos de ensino de qualquer natureza.4 Em outras palavras, as organizaes privadas de ensino superior gozaram do privilgio, desde a sua criao, de imunidade fiscal, no recolhendo aos cofres pblicos a receita tributria devida.982Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

Esse instrumento de financiamento indireto foi fundamental para o crescimento intensivo dos estabelecimentos na prosperidade econmica e, principalmente, garantiu a continuidade da atividade no perodo de crise, por amortecer o impacto sobre custos e despesas inerentes prestao de servios. Apesar de existirem requisitos restritivos para as entidades educacionais terem acesso imunidade fiscal, na prtica, grande parte usufruiu deste benefcio. A instituio de ensino ou mantenedora, na forma de associao civil ou fundao, considerada como entidade sem fins lucrativos, poderia receber por seus produtos e servios. Porm, deveria reinvestir o supervit na manuteno e expanso das atividades educacionais. Em linhas gerais, a imunidade refere-se ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), o Imposto sobre Servios de Qualquer Natureza (ISSQN), ambos de competncia do poder municipal, alm do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IRPJ) e do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (para imveis localizados em zonas rurais), ambos de competncia da Unio.5 As filantrpicas, alm da imunidade, gozam da iseno da cota patronal da Previdncia Social. Em contrapartida, exige-se a destinao de 20% da receita bruta em gratuidade. Para o Programa de Integrao Social (PIS) h uma forma diferenciada de cobrana entre as instituies com fins lucrativos, sem fins lucrativos e as filantrpicas. As primeiras recolhem sobre o faturamento ou receita bruta. Para as duas ltimas, a cobrana do tributo incide sobre a folha de pagamento. A Contribuio Social sobre o Lucro Lquido ( CSLL) destina-se ao financiamento da seguridade social e a Contribuio Social para Financiamento da Seguridade Social (COFINS) s despesas com atividadesfim das reas de sade, previdncia e assistncia social, institudas a partir da CF/88, que atingiram as IES particulares. A CSLL baseia-se no valor do resultado do exerccio, antes da proviso para o imposto de renda, sendo que as instituies sem fins lucrativos e filantrpicas so isentas da cobrana. J a COFINS incide sobre o faturamento mensal e apenas essas ltimas esto sujeitas iseno. Os impactos microeconmicos da renncia fiscal repercutiram no processo de expanso a partir dos anos de 1970. A imunidade do IPTUEduc. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

983

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

permitiu instituio adquirir um maior nmero de imveis, para alojar mais cursos e alunos, sem nus tributrio sobre as despesas operacionais, servindo inclusive como estmulo ampliao do ativo imobilizado. A imunidade do ISSQN e a iseno da COFINS estimularam o aumento de matrculas, j que no h nus tributrio sobre a ampliao da prestao de servios. A imunidade do Imposto de Renda e a iseno da CSLL possibilitaram a continuidade da atividade educacional e evidenciaram a sade financeira da instituio. O resultado positivo viabilizava o financiamento bancrio, o auxlio externo e a obteno de recursos de agncias de fomento. Para a entidade filantrpica, a iseno do INSS permitiu ampliar a contratao de pessoal docente e administrativo. O crescimento da folha de pagamento no teve impacto tributrio significativo nos custos operacionais, enquanto o recolhimento do PIS apresentou peso muito pequeno sobre a folha salarial. Nos anos de 1990, houve significativa alterao legislativa, estabelecida pelo artigo 20 da LDB/96. A medida sofreu severas crticas das associaes de classe que defendem os interesses privados. At ento, todos os estabelecimentos usufruram imunidade tributria sobre a renda, os servios e o patrimnio. A partir deste momento, as instituies passaram a ser classificadas em privadas lucrativas e sem fins lucrativos (confessionais, comunitrias e filantrpicas). A mudana legislativa permitiu ampliar a arrecadao da Unio e dos municpios, mas reduziu, de forma significativa, a rentabilidade de grande parte dos estabelecimentos privados de ensino superior, que deixaram de se beneficiar diretamente de recursos pblicos e indiretamente da renncia fiscal, como previa o artigo 213 da Constituio Federal de 1988.

O jogo poltico em torno do PROUNIO caminho privado de expanso de matrculas, cursos e instituies, que foi to intenso nos anos de 1970 e teve um novo surto expansivo nos anos de 1990, principalmente entre 1998 e 2002, resultou na criao de um nmero excessivo de vagas que, segundo informaes recentes do INEP, superior ao nmero de formandos no ensino mdio.6 Embora a demanda potencial por ensino superior no984Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

se restrinja ao nmero de concluintes do ensino mdio, muito difcil estimar o nmero de pleiteantes. Neste clculo, inclui-se no apenas parte dos recm-formados, como tambm aqueles que retornam tardiamente aos bancos escolares.7 Este fenmeno d indcios de que o segmento privado disponibiliza um contingente de vagas no procuradas pelos estudantes. Esta situao gerou um quadro de incerteza no setor, ainda mais quando se leva em conta o grau de inadimplncia/desistncia.8 A queda nos rendimentos reais e o nvel elevado de desemprego dificultam a sustentao dos gastos com as mensalidades pelos assalariados. Diante do cenrio de deteriorao social, o Programa de Financiamento Estudantil (FIES), antigo Programa de Crdito Educativo, que transferia recursos a fundo perdido s IES privadas, no tem sido suficiente para reverter a tendncia de esgotamento do segmento particular. Neste contexto, o Programa Universidade para Todos ( PROUNI) surge com o discurso de justia social, tendo como pblico-alvo os estudantes carentes, cujos critrios de elegibilidade so a renda per capita familiar e o estudo em escolas pblicas ou privadas na condio de bolsistas. Alm disso, o programa estabelece, obrigatoriamente, que parte das bolsas dever ser direcionada a aes afirmativas aos portadores de deficincia e aos negros e indgenas. A formao de professores de ensino bsico da rede pblica tambm consta como prioridade. A inteno a melhoria na qualificao do magistrio, com possveis impactos positivos na qualidade da aprendizagem dos alunos da educao bsica. Tais medidas corroboram com os interesses de parte da sociedade civil, dos movimentos sociais em prol das aes afirmativas, bem como dos egressos do ensino mdio pblico, por no se considerarem uma demanda potencial s instituies pblicas frente s barreiras impostas pelos exames vestibulares. A demanda reprimida, que busca no programa o acesso ao ensino superior, pode ser observada no impressionante nmero de visitas pgina do Ministrio da Educao poca da seleo para o programa, cuja soluo foi desmembr-la em duas. No segundo semestre de 2006, houve 200.792 inscries e apenas 23% de bolsas de estudos concedidas, ou seja, 47.059, e, no estado de So Paulo, a proporo foi ainda menor, 17%, 51.313 inscritos para apenas 8.884 bolsas. Outro indcio importante foi o crescimento do nmero de inscritos no ENEM, que985

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

o requisito indispensvel para participao do programa. De acordo com o INEP, em 2004 foram 1.547.222 e em 2005 foram 3.004.491, um acrscimo de 94%. Algumas figuras pblicas, tais como cantores e sindicalistas, cuja imagem est associada ao homem do povo, realizaram propagandas em jornais, revistas e em canais televisivos em prol da importncia e do papel de democratizao do PROUNI. Vale ressaltar que a Central nica dos Trabalhadores (CUT), um dos principais aliados do atual governo, por meio de seu presidente, mostrou-se simpatizante ao programa em manifestao nos meios de comunicao, alegando ter, afinal, chegado a hora do trabalhador ter acesso ao ensino superior (Marinho, 2005).9 A legitimidade social do programa encontra ressonncia na presso das associaes representativas dos interesses do segmento particular, justificada pelo alto grau de vagas ociosas.10 O PROUNI surge como excelente oportunidade de fuga para frente para as instituies ameaadas pelo peso das vagas excessivas. Durante a tramitao no Congresso Nacional, houve atuao efetiva dos atores representantes das IES particulares.11 Estes se manifestaram publicamente, aps as modificaes introduzidas pela Medida Provisria na forma de adeso antecipada. Matrias pagas, em apoio ao programa, foram veiculadas nos principais jornais de circulao do pas.12 Quando se observa a formulao da poltica pblica, de forma mais detalhada, por meio da evoluo do Projeto de Lei, da Medida Provisria at a Lei do PROUNI13 e o decreto que a regulamentou, possvel afirmar que as alteraes no texto legal conduziram flexibilizao de requisitos e sanes e reduo da contrapartida das instituies particulares.14 A redao final do documento refletiu o jogo poltico, no qual o MEC teve de ceder e acomodar os interesses privados, e estes atores no foram plenamente atendidos. No entanto, os atores privados foram atingidos pela ao estatal, tanto pelas regras de composio de bolsas como pela mesma iseno dos tributos federais. Esta situao gerou interesse diverso em participar do programa, uma vez que uma parte das IES j est isenta ou imune a alguns deles. Quanto primeira questo, no caso das instituies lucrativas e sem fins lucrativos e no-beneficentes, as regras so bem mais flexveis e a adeso voluntria. A barganha d-se na concesso de bolsas integrais ou na986

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

reduo, de forma significativa, das bolsas integrais tendo como parmetro para a concesso de bolsas parciais (50% e 25%) a receita bruta. Em 2005, essas instituies deveriam destinar uma bolsa integral para nove alunos pagantes ou bolsas parciais at 10% da receita bruta. A partir de 2006, o documento bastante generoso para ambas. A relao de estudantes pagantes por bolsas concedidas ampliada e o comprometimento da receita bruta reduzido: uma bolsa integral para 10,7 alunos pagantes ou, de forma alternativa, conceder uma bolsa integral para 22 estudantes, com quantidades adicionais de bolsas parciais (50% e 25%) at atingir 8,5% da receita bruta. Acrescenta-se, a isso, duas sutilezas constantes da Lei n. 11.096 de 13.01.05 e do Decreto n. 5.493 de 18.07.05, que a regulamenta, para o clculo do nmero de bolsas integrais. No decreto de 2004, constava que o total de estudantes pagantes no levaria em considerao os bolsistas parciais do programa. J no decreto de 2005, os bolsistas so considerados como alunos pagantes. Na lei, passou a existir ainda a possibilidade dos trabalhadores (e dependentes) da prpria instituio participarem do programa, limitados a 10% das bolsas concedidas.15 No caso das filantrpicas, as regras so bem mais rigorosas. A adeso ao programa e a concesso de bolsas integrais so obrigatrias. As demais modalidades de gratuidade (bolsas parciais e programas de assistncia social) podem ser usadas para compor o total de 20% da receita bruta. Este percentual o requisito mnimo que caracteriza a natureza jurdica deste tipo de instituio. A partir da publicao da Medida Provisria, essas instituies tm declarado que estariam dispostas a deixar o status de entidades de assistncia social para se tornarem instituies com fins lucrativos. Vale ressaltar, no entanto, que aquelas que perderam tal status por no cumprirem o percentual mnimo de gratuidade exigido podero, com a adeso ao PROUNI, solicitar a reviso dos processos e possvel restabelecimento do certificado junto ao Conselho Nacional de Assistncia Social (CNAS) e, posteriormente, requerer ao Ministrio da Previdncia Social o retorno da iseno das contribuies. Em outras palavras, a participao no programa permitiria retomar as condies anteriores cassao, com cancelamento das dvidas existentes. Um segundo ponto importante a homogeneizao proposta pelo programa na iseno de tributos. Para melhor compreender essaEduc. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

987

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

questo, a Tabela 1 compara as instituies com fins lucrativos, as sem fins lucrativos (confessionais e comunitrias) e as entidades filantrpicas, antes e depois da adeso ao programa. Discriminam-se as bases de clculos e as alquotas dos principais tributos federais para cada categoria de estabelecimento particular. Tabela 1Alquotas e Base de Clculo dos Tributos Federais por Categoria de IESTributosIRPJ CSLL COFINS PIS INSS (patronal)

Com fins lucrativosAtual 25% x lucro 9% x lucro 7,6% x receita 1,65% x receita 20% x folha PROUNI 20% x folha

Sem fins lucrativosConfessional / Comunitria Atual PROUNI 3% x receita 1% x folha 20% x folha 20% x folha Filantrpica Atual PROUNI 1% x folha -

Fonte: Carvalho e Lopreato (2005).

possvel perceber que as instituies mais beneficiadas so aquelas com fins lucrativos, j que ficam isentas, a partir da adeso, de praticamente todos os tributos federais que recolhiam. As instituies sem fins lucrativos deixam de recolher a COFINS e o PIS. O impacto sobre a rentabilidade deve ser importante, uma vez que a iseno da COFINS estimula o aumento de matrculas e, conseqentemente, o crescimento da receita operacional bruta, j que no h nus tributrio sobre o incremento na prestao de servios. A iseno do PIS tem impacto muito reduzido sobre a folha salarial. As entidades filantrpicas apenas se beneficiam da iseno do PIS, cujo nus fiscal pouco representativo. Novamente, possvel compreender suas alegaes em se tornarem filantrpicas. A troca de imunidade por iseno, por dez anos renovveis por iguais perodos, no traz prejuzos significativos e os tributos municipais podem ser barganhados com os poderes locais. O INSS patronal, de acordo com o explicitado na legislao do PROUNI, pode ser suavemente parcelado nos cinco primeiros anos. Nesse ponto, a concepo do programa fere o artigo 213 da Constituio Federal de 1988, como bem lembra Pinto (2004), uma vez que a Carta Magna no permite a destinao de recursos pblicos para988Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

instituies com fins lucrativos e apenas admite bolsas de estudo para o ensino fundamental e mdio e, neste caso, para as instituies sem fins lucrativos. Outra questo polmica foi estabelecer na MP a competncia exclusiva da fiscalizao ao Ministrio da Educao. Como este rgo no dispe de quadro tcnico especializado, haveria dificuldades no controle contbil/fiscal, ao passo que tal medida desautorizava e impedia o trabalho desenvolvido, nos ltimos anos, de combate sonegao do Ministrio de Estado da Previdncia Social e da Receita Federal. Os dois rgos federais alertaram para o perigo de tal iniciativa.16 Com a promulgao da Lei, a redao foi alterada, a partir da manifestao destes atores burocrticos, para constar que o MEC ser responsvel, apenas, por verificar o cumprimento das exigncias e informar aos rgos competentes a situao de cada entidade. O valor da renncia fiscal depende do nvel de adeso e do tipo de instituio participante do programa. Em 2005, 1.142 estabelecimentos particulares aderiram ao programa; em 2006, so 1.232. Isto representa um aumento de 8%. As particulares, em sentido estrito, que representam em 2004, segundo o INEP , cerca de 78% dos estabelecimentos e 54% das matrculas privadas, tendem a aderir em maior nmero. Contudo, se uma parcela das filantrpicas deixar o status de entidade de assistncia social, apesar dos obstculos legais para tal, poder haver um aumento da arrecadao previdenciria. De acordo com um levantamento divulgado pela Receita Federal, em 2005 a renncia fiscal foi bem menor (R$ 105 milhes) que a projeo da Unio (R$ 197 milhes). Neste ano, foram oferecidas 112 mil bolsas, que representam um custo anual por estudante de R$ 937,50.17 importante reforar o alerta dos pesquisadores Catani, Hey e Gilioli (2006), quanto falta de informaes desagregadas e de sries histricas do PROUNI, que inviabilizam pesquisas mais aprofundadas. No se encontram disponveis: total de bolsas por IES, a relao total das IES que aderiram ao programa, o detalhamento dos cursos disponveis e/ou escolhidos, o perfil dos estudantes (dados econmicos e sociais), taxas de evaso e desempenho acadmico dos beneficirios. No momento, possvel quantificar apenas o nmero de bolsas integrais/parciais por regio, estado e municpio, constante das Estatsticas do PROUNI no site do MEC. A Tabela 2 mostra a evoluo entre 2005Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

989

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

e 2006 da implementao, para o Brasil, estado de So Paulo e a cidade de So Paulo. As bolsas no estado de So Paulo representavam 32% do total em 2005 e, em 2006, houve uma queda relativa para 27%. Isto ocorreu porque o aumento de 24% do total de bolsas no Brasil foi bem superior aos 3% no estado. J a participao da cidade no estado foi ampliada de 37% para 40%, cujo acrscimo de bolsas foi de 13%. O ponto comum ao pas, ao estado e ao municpio foi o crescimento das bolsas integrais, que representam entre 60% a 70% do total, contrariando a suposta maior disponibilidade de bolsas parciais. Tal fato pode ter ocorrido, em parte, devido baixa renda familiar dos demandantes do programa. Tabela 2Evoluo na oferta de Bolsas de Estudo PROUNIBolsas 2005 Integrais Parciais 71.905 40.370 21.713 13.939 30% 35% 8.658 4.437 40% 32% Bolsas 2006 Total Integrais Parciais 112.275 98.698 39.970 35.652 25.768 11.007 32% 26% 28% 13.095 9.810 4.990 37% 38% 45% Taxas de Crescimento Total Integrais Parciais Total 138.668 37% -1% 24% 36.775 19% -21% 3% 27% 14.800 13% 12% 13% 40%

Brasil Estado de So Paulo Estado/Brasil Cidade de So Paulo Cidade/Estado

Fonte: PROUNI/MEC

A fim de observar o perfil institucional de adeso ao programa, compatibilizou-se o banco do endereo das IES participantes do PROUNI ao Cadastro da Educao Superior do INEP, para identificar quais as instituies participantes do programa, no segundo semestre de 2006, na cidade de So Paulo. A escolha baseou-se nos seguintes critrios: o estado de So Paulo ter participao privada (85%) bem superior mdia nacional (70%); a cidade mais rica da Federao abrigar o segmento privado mais antigo do pas; e o municpio corresponder cerca de 30% das IES particulares do estado. No segundo semestre de 2006, h registro de 52 instituies participantes, o que representa 34% dos estabelecimentos localizados no municpio (153). Apesar da cidade ter uma rede antiga e tradicional, verificou-se que mais de 60% foram criadas a partir de 1994 e a grande maioria entre 1999 e 2002 em faculdades de tecnologia. Por esse motivo, apenas 50% foram submetidas avaliao de cursos, cujas990Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

notas foram, em geral, baixas nos centros universitrios e com grande variao nas universidades. Tabela 3IES

privadas na cidade de So Paulo segundo organizao acadmicap Total 83 22 11 12 13 12 153 g g Participao PROUNI Participao 54% 19 37% 14% 12 23% 7% 0 0% 8% 2 4% 8% 7 13% 8% 12 23% 100% 52 100% PROUNI/total 23% 55% 0% 17% 54% 100% 34%

Faculdades Faculdades de tecnologia Faculdades Integradas Instituto Superior Centros Universitrios Universidades Total

Fonte: PROUNI/MEC

Quanto organizao acadmica, a Tabela 3 mostra que 75% das so classificadas como faculdades (faculdades, faculdades de tecnologia e faculdades integradas) e 8% como institutos superiores, centros universitrios e universidades. Das faculdades, o maior percentual de adeso localiza-se nas tecnolgicas. No caso dos centros universitrios, 54% so participantes do programa. J nas universidades, a adeso plena.IES

Tabela 4IES

privadas na cidade de So Paulo segundo categoria administrativaTotal 121 0 3 5 24 153 Participao 79% 0% 2% 3% 16% 100% g g PROUNI Participao 42 81% 0 0% 0 0% 3 6% 7 13% 52 100% PROUNI/total 35% 0% 60% 29% 34%

Particular Sentido Estrito Comunitria Confessional Confessional - Filantrpica Filantrpica Total Fonte: PROUNI/MEC

No que tange categoria administrativa, os dados da Tabela 4 revelam que a grande maioria (79%) de particulares em sentido estrito, cuja adeso voluntria foi de apenas 35%. No h comunitrias, apenas oito so confessionais, sendo cinco tambm filantrpicas. As instituies filantrpicas (19%), que, em tese, so obrigadas a participar do programa, apresentaram participao aqum do esperado.Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

991

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

A concluso, pelo menos para cidade de So Paulo, que pode ser tomada como um caso exemplar da implementao do PROUNI, de que a participao de todas as universidades (seis filantrpicas e seis lucrativas) independente de sua categoria administrativa e pode estar relacionada ao elevado ndice de inadimplncia e vagas ociosas, face estrutura dos estabelecimentos. No entanto, o grau de adeso bem inferior ao esperado, tanto das lucrativas, que se beneficiam da renncia fiscal recuperada, como das filantrpicas, que no teriam escolha e seriam os alvos preferenciais da poltica pblica para justificar a imunidade e a iseno mantidas ao longo dos ltimos quarenta anos.

O PROUNI e o acesso ao ensino superiorOs dados sobre o perfil dos estudantes no ensino superior revelam que a democratizao do ensino bastante complexa no Brasil, diante da brutal desigualdade de renda entre as famlias e a reduzida parcela do ensino gratuito e de qualidade. Apesar da expanso excepcional de vagas, em 2004, a escolaridade lquida da populao de 18 a 24 anos de 10,4%, sistema classificado internacionalmente como de elites. Deve-se levar em conta ainda que cerca de 60% dos matriculados estavam nessa faixa etria. Este quadro explicado, por um lado, pelo retorno aos bancos escolares de profissionais em busca do diploma de nvel superior como credencial de qualificao e promoo funcional e, por outro, pelo atraso e pelo abandono (temporrio ou definitivo) escolar que fazem parte da realidade nacional. Quando se desagregam os dados, por renda (familiar per capita em salrios mnimos) da populao na faixa etria de 18 a 24 anos, observa-se que a proporo de alunos aumenta conforme as faixas de renda mais elevadas. Nas faixas acima de trs salrios mnimos, a proporo de estudantes superior a 35%, ao passo que, com a renda de at um s.m., apenas 1,5% freqenta a graduao. Torna-se relevante salientar que 86% da populao nessa faixa etria enquadra-se nos nveis de renda de menos de trs s.m, pblico-alvo do PROUNI. A situao mais grave, pois a maior parte dessa populao encontra-se em atraso escolar e, dessa forma, no pode ser atingida por qualquer poltica de estmulo entrada no sistema. De acordo com os dados da PNAD (1999): 46% abandonaram os estudos antes de com992Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

pletar o ensino mdio; 10% estudam, mas com distoro de idade-srie; 19% terminaram o ensino mdio e pararam de estudar; e apenas 25% freqentam o ensino mdio ou superior (Castro, 2005). O financiamento estudantil dado pelo FIES deixa de ser uma alternativa vivel aos alunos de baixa renda, face defasagem entre a taxa de juros do emprstimo e a taxa de crescimento da renda do recm-formado, combinada ao aumento do desemprego na populao com diploma de nvel superior. Ademais, como os requisitos so mais rigorosos, a fim de evitar a inadimplncia (a exigncia de fiador e a possibilidade de financiamento de apenas 50% do valor da mensalidade), grande parte da populao de baixa renda no atingida por tal poltica pblica. A expanso do ensino superior dos anos de 1990, que acelerou o processo de privatizao em curso desde a Reforma Universitria de 1968, est diante de um impasse: Como ampliar o acesso da populao de baixa renda, que concluiu a educao bsica, e da classe mdia, que foi rebaixada socialmente e, em grande parte, perdeu empregos ou sobrevive no mercado informal? Os dados revelam a tendncia ao esgotamento do crescimento pela via privada manifestada pela assimetria entre a oferta de vagas, que cresceu 16,8% entre 2003 e 2004, e o nmero de ingressantes de apenas 2% no perodo. O percentual de vagas no preenchidas nas instituies privadas est, segundo o INEP, em 49,5% em 2004 e a relao candidato/vaga, em 1,3, ao passo que na rede pblica este indicador superior a 10. Resta questionar se o PROUNI ser capaz de reverter este cenrio. Para isso, necessrio aguardar os resultados do Censo do Ensino Superior de 2005. De acordo com Corbucci (2004, p. 698), o programa constitui iniciativa, ainda que tmida, de redistribuio indireta da renda, ao transferir recursos de iseno fiscal a estratos populacionais mais pobres, j que tais recursos, caso fossem arrecadados, no beneficiariam necessariamente esses grupos sociais. Mancebo (2004b, p. 86) alerta que,(...) longe de resolver ou de corrigir a distribuio desigual dos bens educacionais, a privatizao promovida pelo programa tende a aprofundar as condies histricas de discriminao e de negao do direito educao superior a que so submetidos os setores populares. A alocao dos estudantes pobres nas instituies particulares cristalizar mais ainda a dinmica de segmentao e diferenciao no sistema escolar, destinando escolas

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

993

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

academicamente superiores para os que passarem nos vestibulares das instituies pblicas e escolas academicamente mais fracas, salvo excees, para os pobres.

No entanto, importante ponderar que no permitir o acrscimo da iseno fiscal s IES privadas possibilitaria um maior bolo de recursos constitucionalmente garantidos ao ensino pblico; em outras palavras, reduzindo o financiamento indireto via renncia fiscal em troca do acrscimo no financiamento ao segmento federal. Ainda importante levar em conta que, ao contrrio do senso comum, diversos estudos vm demonstrando que, apesar da brutal desigualdade de acesso ao ensino superior entre os ricos e os pobres, h maior participao das camadas mais pobres nas instituies pblicas que nas suas congneres particulares, materializada na menor participao dos 10% mais ricos, na maior parcela dos 50% mais pobres, na maior proporo de estudantes negros ou pardos e na menor renda mdia mensal familiar.18 Diante do quadro social e educacional deletrios, cabe questionar a efetividade de tal programa, uma vez que as camadas de baixa renda no necessitam apenas de gratuidade integral ou parcial para estudar, mas de condies que apenas as instituies pblicas, ainda, podem oferecer, como: transporte, moradia estudantil, alimentao subsidiada, assistncia mdica disponvel nos hospitais universitrios e bolsas de trabalho e pesquisa. Nesse sentido, o MEC concede, a partir de 2006, bolsa de permanncia de R$ 300,00 para as despesas de transporte, alimentao e material didtico aos beneficirios que estudam em tempo integral. A iniciativa importante, mas insuficiente, no apenas em termos monetrios, mas por seu grau de abrangncia, uma vez que pretenderia atingir 4.500 alunos, cerca de 2% do total de bolsistas de 203.516, nos anos de 2005 e 2006. Parece apropriada a afirmao de Catani e Gilioli (2005), segundo a qual o PROUNI deve promover uma poltica pblica de acesso, mas no de permanncia e concluso do curso, orientando-se por uma concepo assistencialista, nos moldes das recomendaes do Banco Mundial, que oferece benefcios e no direitos aos egressos do ensino mdio pblico. Na concesso de bolsas de estudos parciais de 50%, caso os beneficirios no possam pagar a parte que lhes cabe, no permitida994Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

a matrcula no semestre ou no ano seguinte, o que tende a aumentar a possibilidade de evaso.19 Segundo informaes obtidas no site do MEC, das 112 mil matrculas efetuadas em 2005, cerca de 95 mil estudantes permanecem, cuja taxa de evaso de 15%, que pode estar associada tanto s dificuldades financeiras do aluno como insatisfao com a instituio e/ou curso freqentado. Torna-se importante comparar este indicador com a taxa de evaso dos estudantes das IES privadas que no fazem parte do PROUNI no perodo.

Consideraes finaisCoerente com a nova lgica das finanas pblicas, o diagnstico do aumento de vagas ociosas no segmento privado , combinado procura por ensino superior das camadas de baixa renda, fundamentou a proposta do MEC de estatizao de vagas nas instituies particulares em troca da renncia fiscal. Este trabalho sugere que o Programa Universidade para Todos deve operar, semelhana do PROER para o sistema bancrio,20 em benefcio da recuperao financeira das instituies particulares endividadas e com alto grau de desistncia e de inadimplncia. As instituies mais beneficiadas parecem ser as lucrativas, que no apenas esto submetidas s regras mais flexveis, como tambm obtm maior ganho relativo em renncia fiscal, em troca de um nmero reduzido de bolsas de estudos. A tentativa de regular o segmento privado e obter retorno da renncia fiscal concedida s filantrpicas foi restringida, medida que a evoluo do texto legal foi na direo do afrouxamento do aparato estatal. A inexistncia de sanes mais severas pelo descumprimento das regras estabelecidas, combinada ao lapso temporal para avaliao dos cursos, estimula comportamentos oportunistas por parte de instituies de qualidade duvidosa.21 No entanto, importante lembrar que a questo do acesso educao superior permanece em aberto. Considerando-se sua legitimidade social, o programa pode trazer o benefcio simblico do diploma queles que conseguirem permanecer no sistema e, talvez, uma chance real de ascenso social para poucos que estudaram no seleto grupo de instituies privadas de qualidade. Mas, para a maioria, cuja porta deEduc. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

995

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

entrada encontra-se em estabelecimentos lucrativos e com pouca tradio no setor educacional, o programa pode ser apenas uma iluso e/ou uma promessa no cumprida. Ademais, a gratuidade integral ou parcial para estudar no suficiente para seus beneficirios, os quais necessitam de assistncia estudantil que apenas as instituies pblicas ainda podem oferecer. O empecilho massificao do ensino superior brasileiro no est na ausncia de vagas para o ingresso no sistema, mas na escassez de vagas pblicas e gratuitas. Estas so insuficientes e inadequadas diante do perfil dos estudantes que concluem o ensino mdio. Deste contingente, 63% estudam em escolas pblicas no perodo noturno. O dado revela uma grave desarticulao do fluxo escolar entre os dois nveis educacionais, uma vez que a educao superior pblica concentra menos de 30% das matrculas, em sua maior parte, nos cursos diurnos. Este fato constitui-se um dos principais gargalos para ampliar o acesso dos estratos sociais mais pobres. A perspectiva de mudana da poltica pblica, em contradio nova lgica das finanas pblicas, reside na expanso em curso do segmento federal de ensino superior (universidades, campis e quadro docente e funcional), combinada s aes afirmativas direcionadas populao estudantil oriunda da escola pblica e aos grupos tnicos historicamente desfavorecidos. No momento, estas medidas ainda so bastante incipientes e insuficientes para reverter esse quadro perverso. Recebido em agosto de 2006 e aprovado em setembro de 2006.

Notas1. 2. Apesar do ttulo do programa referir-se ao termo Universidade, o quer tipo de instituio de ensino superior privada.PROUNI

destina-se a qual-

O conceito de dvida lquida engloba o total da dvida interna e externa federal, estadual e municipal, reduzida dos haveres dos trs nveis de governo. Sobre finanas pblicas, consultar Lopreato (2005). Esta tese encontra-se em Carvalho (2002). Sobre os propsitos da renncia fiscal no regime militar e no PROUNI, ver Carvalho (2005). A Constituio Federal de 1946 j previa a renncia fiscal direcionada ao sistema educacional, mas esse mecanismo tornou-se mais visvel no perodo militar a partir do boom das instituies privadas.

3. 4.

996

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

5. 6.

Um maior detalhamento sobre os impostos e contribuies sociais que sero mencionados a seguir pode ser encontrado em Carvalho (2002) e Carvalho e Lopreato (2005). Conforme o Censo da Educao Superior divulgado pelo INEP, foram em torno de 2 milhes de vagas nos processos seletivos em 2003 e 1,88 milhes de estudantes que concluram o ensino mdio. No entanto, o nmero de inscritos chegou a cerca de 4,9 milhes. Constam desta lista aqueles que prestam vestibular para um segundo curso de graduao e as diversas inscries de uma mesma pessoa para cursos ou instituies distintas. Aqueles que demandam ensino superior percebem que a qualidade das instituies privadas bastante diversificada e que os servios educacionais oferecidos no so homogneos. Instituies tradicionais e aquelas cujas estratgias de marketing so mais agressivas, provavelmente tero menor incerteza quanto ao preenchimento das vagas oferecidas do que as demais. Chama a ateno o nmero de vagas disponveis nas cidades de Santo Andr (1.462 em 2005 e apenas 714 em 2006) e So Bernardo do Campo (1.289 em 2005 e 1.958 em 2006). Este fato demonstra a elevada demanda, inclusive, de grande parte dos trabalhadores sindicalizados filiados CUT e a ausncia de instituies pblicas. Alm da compra de vagas nas IES privadas, o MEC criou a Universidade Federal do ABC, em Santo Andr, que ter a primeira turma com 500 vagas, 250 no diurno e 250 no noturno. A UNIFESP tambm chegou na regio, em Diadema e Guarulhos.

7. 8.

9.

10. Em geral, as IES privadas disponibilizam um nmero excessivo de vagas no primeiro ano, a fim de compensar financeiramente a desistncia acentuada nos anos seguintes. Contudo, as taxas de evaso e de inadimplncia tendem a crescer face excessiva concorrncia na oferta e ao baixo poder aquisitivo da demanda. 11. O texto da MP foi alterado na Cmara Federal por proposta dos deputados do PFL e apoio do PSDB e por presso dos atores polticos representantes das instituies privadas no Congresso Nacional. As instituies com ou sem fins lucrativos teriam que destinar apenas 7% de vagas para o programa. O ministro da Educao, Tarso Genro, afirmou que foi decisiva neste processo a participao do reitor da Universidade Paulista (UNIP). Ver, a este respeito, GOVERNO tenta derrubar alterao no PROUNI (2004). Esta afirmao parece ter fundamento, uma vez que esta instituio uma das maiores do pas e seu proprietrio vem influenciando, h anos, a poltica de ensino superior, tanto no Congresso Nacional como no Conselho Nacional de Educao. 12. Consultar O PROGRAMA Universidade para Todos PROUNI e a incluso social (2004). Ainda assim, no site da ABMES consta uma carta da instituio assinada pelas principais representantes das particulares, que foi endereada ao ento ministro da Educao, Tarso Genro, onde o critrio de clculo para concesso de bolsas deveria ser o nmero de alunos pagantes matriculados no 2 ano, face brutal desistncia, em torno de 30%, ocorrida no primeiro ano dos cursos de graduao privados ( ABMES, 2006). 13. A evoluo do corpo legislativo do Programa entre o Projeto de Lei, da Medida Provisria n. 213 de 10/09/2004 at a Lei n. 11.096 de 13/01/2005 encontra-se mais detalhada em Carvalho e Lopreato (2005) e Catani e Gilioli (2005). 14. O Projeto de Lei estabelecia uma multa de, no mximo, 1% do faturamento anual do exerccio anterior data da infrao para a instituio de ensino superior particular que descumprir as regras do PROUNI. A partir da MP e na Lei, deixa de constar sano pecuniria para o desrespeito s regras do programa. 15. Em investida mais recente das IES privadas, na revista mensal Educao Superior, publicada pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

997

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

Estado de So Paulo, de abril deste ano, h uma matria sobre o PROUNI, na qual se critica a pouca abrangncia do programa e se afirma que a proposta das entidades a renegociao dos dbitos previdencirios e fiscais em at 240 meses em troca de bolsas do PROUNI. Segundo estimativas do autor do artigo, atendida essa condio, poderia haver um PROUNI 2, que geraria mais de um milho de bolsas. Ver, a este respeito, Goitia (2006). 16. Ver, a este respeito, Souza (2004). 17. Este valor parece muito pequeno face s despesas das IES privadas, mesmo para aquelas cujos cursos concentram-se nas reas de humanas e sociais (PROUNI sai mais barato que o previsto, 2006). 18. Dentre os estudos que corroboram com esta concluso, encontram-se os trabalhos de Sampaio, Limongi e Torres (2000), Schwatzmann apud Corbucci (2004), Pinto (2004) e Mancebo (2004a), baseados nos bancos de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio (PNAD) realizada pelo IBGE e do questionrio socioeconmico respondido em conjunto com o Exame Nacional de Cursos (Provo). No primeiro trabalho, a pesquisa foi bem mais ampla e analisou o perfil dos jovens de 18 a 24 anos e as caractersticas dos formandos de 1999. Conclui-se que as chances de ingresso na educao superior esto relacionadas com a renda familiar e com o nvel de escolaridade dos pais. No entanto, para os poucos com o perfil diferenciado que conseguem ter acesso, os estabelecimentos pblicos constituem uma alternativa para a obteno do diploma de graduao. Outra concluso interessante que ainda que seja reduzida a participao de formandos negros e pardos, independentemente do curso, a maior participao encontra-se nos estabelecimentos pblicos. 19. Em que pese a existncia de poucos estudos sobre o desempenho dos estudantes bolsistas e a ausncia de informaes do MEC, vale registrar a pesquisa realizada pela PUC de Minas Gerais, na qual se mostra que as taxas de reprovao, tanto por desempenho como por freqncia, foram, em mdia, bem mais baixas que seus colegas, ao passo que a taxa de evaso apresentou pequena reduo (BOLSISTAS do PROUNI tm bom desempenho na PUC Minas, 2006). 20. O Programa de Estmulo Reestruturao do Sistema Financeiro Nacional (PROER), institudo pela Medida Provisria n. 1.179/95, teve como objetivo prestar socorro financeiro aos bancos privados para evitar que ocorresse uma crise de confiana no sistema bancrio, com conseqncias sobre o conjunto da sociedade. O problema no segmento privado de ensino superior no teria a mesma dimenso. Portanto, duvidosa a pertinncia de uma ao semelhante do Banco Central. 21. Conforme tem sido veiculado na imprensa, parece que alguns cursos que no passaram nas avaliaes do Provo e do SINAES fazem parte da lista de instituies selecionadas para participar do PROUNI . Diante da presso dos meios de comunicao, o MEC instituiu, em maro deste ano, a Comisso Nacional de Acompanhamento e Controle Social do programa (CONAP).

Referncias bibliogrficasASSOCIAO BRASILEIRA DE MANTENEDORAS DO ENSINO SUPERIOR (ABMES). Carta ao Ministro da Educao. Disponvel em: . Acesso em: 9 ago. 2006.998Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

Cristina Helena Almeida de Carvalho

BOLSISTAS do PROUNI tm bom desempenho na PUC Minas. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 9 maio 2006. BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. In: OLIVEIRA, J. (Org.). Cdigo Tributrio Nacional. 18. ed. So Paulo: Saraiva, 1989. BRASIL. Ministrio da Educao. Disponvel em: . Acesso em: nov. 2004/ fev. 2005. BRASIL. Ministrio da Educao. PROUNI sai mais barato que o previsto. Disponvel em: . Acesso em: 10 jun. 2006. BRASIL. Ministrio da Educao. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) Estatsticas do ensino superior. Disponvel em: . Acesso em: dez. 2004/mar. 2005; jun. 2006. BRASIL. Senado Federal. Leis, Decretos e Portarias. Disponvel em: . Acesso em: nov. 2004 a fev. 2005. CARVALHO, C.H.A. Reforma universitria e os mecanismos de incentivo expanso do ensino superior privado no Brasil. (1964-1984). 2002. 171f. Dissertao (Mestrado) Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. CARVALHO, C.H.A. Poltica de ensino superior e renncia fiscal: da reforma universitria de 1968 ao PROUNI. In: REUNIO ANUAL DA ASSOCIAO NACIONAL DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM EDUCAO, 28., 2005, Caxamb. Anais... Caxamb: ANPED, 2005. CARVALHO, C.H.A.; LOPREATO, F.L.C. Finanas pblicas, renncia fiscal e o PROUNI no governo Lula. Impulso, Piracicaba, v. 16, n. 40, p. 93-104, maio/ago. 2005. CASTRO, M.H.G. et al. Ensino superior: perfil da graduao e da psgraduao. In: LANDI, F.R. (Coord.). Indicadores de cincia, tecnologia e inovao em So Paulo: 2004. So Paulo: FAPESP, 2005. v. 1, p.3-5; v. 2 p. 3-32. CATANI, A.M.; GILIOLI, R.S.P. O PROUNI na encruzilhada: entre a cidadania e a privatizao. Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 11, n. 20, p. 55-68, jan./jun. 2005.Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em

999

O PROUNI no governo Lula e o jogo poltico em torno do acesso ao ensino superior

CATANI, A.M.; HEY, A.P.; GILIOLI, R.S.P. PROUNI: democratizao do acesso s instituies de ensino superior? 2006. (mimeo.). CORBUCCI, P.R. Financiamento e democratizao do acesso educao superior no Brasil: da desero do Estado ao projeto de reforma. Educao & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 88, p. 677-702, out. 2004. GOITIA, V. Caminhos para incluso social. Ensino superior, So Paulo, v. 8, n. 91, abr. 2006. GOVERNO tenta derrubar alterao no PROUNI. Folha de S. Paulo, So Paulo, 03 dez. 2004. Cotidiano, caderno C, p. 4. LOPREATO, F.L.C. Finanas pblicas: a marcha continua. Poltica Econmica em Foco, Campinas, n. 5, p. 103-117, 2004/2005. Disponvel em: . Acesso em: 5 maio 2005. MANCEBO, D. Reforma universitria: reflexes sobre a privatizao e a mercantilizao do conhecimento. Educao & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 88, p. 845-866, out. 2004a. MANCEBO, D. Universidade para todos: a privatizao em questo. Pro-Posies, Campinas, v. 15, n. 3, p. 75-90, set./dez. 2004b. MARINHO, L. PROUNI passo para democratizar o ensino. Folha de S. Paulo, So Paulo, 28 fev. 2005. Opinio, p. 3. PINTO, J.M.R. O acesso educao superior no Brasil. Educao & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 88, p. 727-756, out. 2004. O PROGRAMA Universidade para Todos: PROUNI e a incluso social. Folha de S. Paulo, So Paulo, 01 out. 2004. Opinio, p. 3. SAMPAIO. H.; LIMONGI, F.; TORRES, H. Eqidade e heterogeneidade no ensino superior brasileiro. Braslia, DF: INEP, 2000. SOUZA, J. Medida provisria do PROUNI cria a promamata. Folha de S. Paulo, So Paulo, Brasil, p. 13, 26 set. 2004.

1000

Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 979-1000, out. 2006Disponvel em