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UNIVERSIDADE GAMA FILHO
CENTRAL DE CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
TEORIAS REALISTAS DE NICOLAU MAQUIAVEL E THOMAS
HOBBES NUMA EUROPA EM TRANSIÇÃO
ELISANDRA VIANA DA SILVA
RIO DE JANEIRO2012
ELISANDRA VIANA DA SILVA
TEORIAS REALISTAS DE NICOLAU MAQUIAVEL E THOMAS
HOBBES NUMA EUROPA EM TRANSIÇÃO
Artigo apresentado à Central de Cursos de Extensão e Pós-Graduação Lato Sensu como requisito parcial para conclusão do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Sociologia.
Orientador: Professor Ms. Emerson Ferreira Rocha
RIO DE JANEIRO
2012
2
Aluno: Elisandra Viana da Silva
Título: Teorias Realistas de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes em uma Europa em
Transição
Artigo apresentado à Central de Cursos de Extensão e Pós-Graduação Lato Sensu da
Universidade Gama Filho como requisito parcial para a conclusão do Curso de Pós Graduação
em Sociologia.
AVALIAÇÃO
1. CONTEÚDO
Grau: ______
2. FORMA
Grau: ______
3. NOTA FINAL: ______
AVALIADO POR
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Rio de Janeiro , _____ de ______________ de 2012
______________________________________________________________________
Professor Ms. Emerson Ferreira Rocha
3
Teorias Realistas de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes em uma Europa em Transição
Elisandra Viana da Silva
Universidade Gama Filho
Resumo
O texto aborda as teorias realistas de dois importantes autores dentro do contexto
histórico de formação dos Estados Nacionais europeus e a legitimação do Absolutismo:
Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes. Após uma rápida explanação acerca da formação dos
Estados Modernos, serão abordadas, primeiramente, as ideias de Maquiavel (1469-1527) e a
seguir serão apresentadas as concepções de Thomas Hobbes (1588-1679) e sua visão
contratualista da formação do Estado e sua defesa do Absolutismo. Em termos metodológicos,
o presente estudo será qualitativo e descritivo, tendo a pesquisa bibliográfica como o seu
único método de coleta de dados.
Palavras-Chaves
Teorias Realistas – Nicolau Maquiavel – Thomas Hobbes – Teorias Políticas - Estados
Modernos
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The Political Realism of Nicolau Maquiavel and Thomas Hobbes in a Changing Europe
Elisandra Viana da Silva
Gama Filho University
Abstract
This paper addresses the political realism theory of two important authors within the
formation of the European Modern States and the legitimacy of the Absolutism: Nicolau
Maquiavel and Thomas Hobbes. After a brief explanation regarding the formation of the
modern states, it will be firstly approached the ideas of Maquiavel (1469-1527) and then it
will be discussed the concepts of Thomas Hobbes (1588-1679) and his contractualist view of
the State Formation and his defense of the Absolutism. In methodological terms, the present
paper will be qualitative and descriptive, and the bibliographic research will be its only data
collector.
Key Words
Political Realism – Nicolau Maquiavel – Thomas Hobbes – Political Theories – Modern
States
5
Introdução
"As ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época" (Marx & Engels)
O estudo da Ciência Política é muito amplo e envolve diversas disciplinas, tais como a
História, a Psicologia e a Antropologia. Além disso, a importância do seu tema faz com que
ela seja utilizada por diversas áreas do conhecimento, a fim de fundamentar ou ampliar as
suas áreas de atuação.
Para um maior aprofundamento do estudo das ações humanas em seu convívio social,
a Sociologia utiliza-se das teorias da Ciência Política para um melhor entendimento sobre o
homem, suas instituições e ideias sobre Estado, Governo e Legitimidade, ou seja, questões de
profundo impacto em uma sociedade. Ela é assaz importante para uma maior compreensão do
agir humano.
A política sempre interessou o homem. Entre as diversas escolas de pensamento
político, as teorias realistas são uma das grandes linhas doutrinárias que acompanharam toda a
história de pensamento político. Os autores realistas foram assim chamados pelo interesse em
tratar o mundo não como ele deveria ser - como pretendiam os chamados idealistas - mas
como ele seria, ou seja, o mundo real.
Apesar da diversidade de teóricos realistas e de não haver uma unidade no pensamento
desses autores, algumas premissas podem ser identificadas entre eles:
Mais do que uma filosofia, o realismo pode ser visto como um método, um “olhar”, uma
maneira de ver o homem e a sociedade: o olhar céptico e pessimista sobre a natureza humana e suas
possibilidades de transformação radical; um olhar “amoral” sobre a política, que estabelece uma
diferença profunda entre a moral individual e as razões da política que são irredutíveis umas as outras;
uma olhar objetivo, neutro, científico que se limita a observar o existente, a descrever, mais do que
prescrever, ou prescrever a partir de uma descrição do homem e da sociedade assim como ele é e não
como deveria ser. (TOSI, 2007, pag. 2)
O presente trabalho tem como objetivo fornecer uma visão geral das teorias políticas
realistas de dois grandes filósofos, Maquiavel e Hobbes. Esses dois autores viveram numa
época de formação dos Estados Nacionais, ou seja, um momento bastante agitado no
continente europeu. Levando em conta o cenário político em que se encontravam, deram
importância aos fatos que presenciaram e articularam suas teorias a partir do seu encontro
com o mundo real. “Maquiavel, como Thomas Hobbes depois dele, partirá de uma visão
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bastante clara da vida humana, enfatizando seu aspecto competitivo e conflituoso, ambicioso
e predatório” (Pecequilo, 2004, pag. 116). O Absolutismo da época foi certamente encorajado
por questões sociais, econômicas e políticas, mas muitos encontravam sua legitimação em
filósofos e teóricos políticos da época.
Durante os séculos XIV e XV, o regime feudal foi sendo substituído por governos
centralizados e despóticos, necessários para o desenvolvimento de novos modos de produção.
A nobreza e a igreja perdem parte de seu poder, e a burguesia, que crescia com a expansão do
comércio, precisava de uma sociedade mais estável. Para tanto, passa a apoiar o
fortalecimento dos reis e a criação de estados monárquicos centralizados que pudessem
diminuir as guerras, fator de instabilidade, melhorar as estradas e os meios de transporte, bem
como investir no comércio.
O poder, a centralidade do Estado e a lógica política não direcionada pelos princípios
do bem e do mal são alguns dos temas tratados por esses autores, assim como outros de
importância para a Ciência Política e outras áreas afins. O presente trabalho não terá a
pretensão de exaurir qualquer um dos temas dos autores em questão, mas apenas trazer, de
modo geral, parte de suas reflexões.
Estados Nacionais e o Absolutismo
"O Estado sou eu" (Luiz XIV, monarca francês )
O pensamento medieval foi marcado, inicialmente, pelos pensamentos platônicos e
aristotélicos, sendo, muitas vezes, reinterpretados e adaptados segundo a fé cristã. Com o
renascimento urbano e comercial a partir do século XI, as cidades surgem e a laicização da
sociedade se inicia, expressa, principalmente, na oposição ao poder religioso. Além disso, ao
final da Idade Média, o antropocentrismo ressurge, fazendo do homem o centro do universo,
numa grande retomada ao humanismo. Esse modelo clássico vai dominar o pensamento
político até o século XV, sendo gradualmente substituído por outro que melhor se ajustasse a
nova estrutura política e econômica na Europa.
O aparecimento do Estado como hoje conhecemos dá-se entre o final do século XVI e
início do século XVII, fruto da centralização do Poder Monárquico: era o chamado Estado
Absolutista. “Apenas quando surge esse monopólio permanente da autoridade central, e o
aparelho especializado para administração, e que esses domínios assumem o caráter de
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"Estados"”, (ELIAS, 1990, pag.98). Tal organização política não se deu de maneira abrupta e
ao mesmo tempo em toda a Europa, sendo fruto de processos particulares de cada Estado em
sua formação.
São várias as causas da formação do Absolutismo, mas devemos começar pela própria
estrutura interna das relações feudais e sua incapacidade de sustentar as relações e
complexidades do nascente capitalismo. O feudalismo - organização social, econômica e
política baseada no sistema de suserania e vassalagem, na autossuficiência e na
descentralização política - não era mais possível dentro de um contexto de expansão
comercial e crescimento da burguesia. O enfraquecimento dos senhores feudais, de parte da
nobreza e da igreja permitiram a união de alguns territórios, povos e culturas sob um rei forte
e um governo centralizado, situação que propiciaria um ambiente mais seguro e uma
sociedade mais estável em comparação ao cenário político anterior.
Num ambiente político mais propício para as suas atividades, a burguesia tornou-se
cada vez mais rica e poderosa, e sua aliança com os reis passou a ser vantajosa para ambos:
enquanto os reinos déspotas tomavam decisões que facilitariam e até alavancariam as
atividades burguesas, como a padronização monetária, de pesos e medidas, incentivos e
protecionismo comercial, bem como a formação de exércitos nacionais, sua aliança
enfraquecia cada vez mais os poderes locais, passando o Estado a ter controle legislativo,
econômico, político e jurídico sob o reino. Essa aliança se manteria até o aparecimento das
ideias liberais e da tomada do poder pelos burgueses.
Para fortalecer financeiramente o Estado, foram adotadas medidas mercantilistas,
baseadas na acumulação de metais e de balança comercial favorável, com políticas
protecionistas e de ampliação das exportações. O colonialismo veio como solução natural para
a criação de novos mercados e aquisição de metais preciosos. Sem um governo centralizado e
forte, todas essas ações seriam impossíveis para frágeis nações descentralizadas:
“O Estado moderno, unificado, caracterizava-se pelo fato de o soberano ter jurisdição sobre
todo o país, poder de tributação sobre todos os seus habitantes, monopólio da força (exército, marinha,
polícia)”, (HILÀRIO, 2001, pag.217)
A realeza era o equilíbrio entre a nobreza decadente e a burguesia ascendente. Os
nobres tiveram uma difícil adaptação a esses novos tempos, pois eram afetos mais às
atividades militares do que as comerciais, dependendo dos reis para poder sustentar seu alto
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padrão de vida, recebendo cargos burocráticos, províncias, postos de chefias e pensões. A
burguesia, ainda uma classe pertencente ao chamado terceiro estado, ansiava por títulos de
nobreza para usufruir de um maior status social. A nobreza nobilitada, ou de toga, era fruto da
concessão de títulos a partir de serviços prestados ou de sua compra direta pelos burgueses, e
tinham uma hierarquia ainda inferior aos dos nobres de sangue.
Os ideais do absolutismo não tiveram muita dificuldade em serem aceitos, apesar de
algumas vozes discordantes na época. Seu progresso foi uma consequência da evolução das
monarquias, sendo que o rei encarnava o próprio ideal nacional. Esse crescente poder do rei
não foi conseguido apenas por esforços da própria realeza, sendo uma necessidade do corpo
social frente ao novo cenário internacional:
“Não é sem motivo que falamos em uma era de absolutismo. O que encontra expressão nessa
mudança na forma da dominação política e uma mudança estrutural, como um todo, na sociedade
ocidental. Não apenas reis isolados expandem seu poder, mas, c1aramente, as instituições sociais da
monarquia ou do principado adquirem nova importância no curso de uma transformação gradual de
toda a sociedade, uma importância que simultaneamente confere novas oportunidades de poder aos
maiores príncipes.” (ELIAS, 1990, pag.16)
Como toda essa estrutura social e política, o absolutismo precisou ser legitimado. O
melhor meio seria através de seus filósofos e pensadores. Apoiado e conclamado por
Maquiavel, o novo modelo também tinha o respaldo de famosos filósofos e pensadores da
época, como Jacques Bossuet, Jean Bodin e Hugo Grotius, encontrando o seu ápice em
Thomas Hobbes, autores que defenderam, em momentos diferentes, o absolutismo.
O Príncipe foi escrito em 1513, mas só foi publicado postumamente em 1532. Possui
26 capítulos, além da dedicatória a Lourenço de Médici. Ele tem provocado inúmeras
interpretações e controvérsias, principalmente quando suas ideias são contrastadas com de
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, onde encontramos um Maquiavel mais
democrático, que vê na República a melhor forma de governo. Para dar conta dessa
contradição, muitos estudiosos acreditam que Maquiavel falava de dois momentos diferentes:
“a justificação do absolutismo num primeiro estágio de conquista e consolidação do poder e,
posteriormente, a possibilidade da forma republicana de governo”. (Aranha; Martins,
pag.235).
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Quanto a Thomas Hobbes, seu mais famoso livro, O Leviatã, foi primeiramente
publicado em 1651. Suas ideias não foram bem aceitas na época, ainda mais pelo caráter
contestador do poder da igreja e seu papel no Estado nos seus escritos. Seus livros foram
queimados em Oxford e suas concepções mal vistas pela Royal Society. Defendia a
administração da igreja pelo Estado e mesmo acreditando na livre interpretação da Bíblia, não
concordava com os preceitos da reforma protestante. Morreu em 1679, com 91 anos.
O príncipe de Maquiavel
Nicolau Maquiavel (1469-1527) viveu numa época de grande instabilidade política,
em uma “Itália” descentralizada e dividida em principados e condados, sendo os mais
relevantes o Ducado de Milão, a República de Veneza, a República de Florença – sua terra
natal -, o Reino de Nápoles e os Estados Pontifícios. Desunidos e tomados pelas intrigas
políticas, a região era uma presa fácil para povos estrangeiros, principalmente por parte de
espanhóis e franceses, interessados em suas riquezas naturais. Esse pensador era um dos
muitos que ansiavam por uma Itália unificada, forte e centralizada, livre de intervenções
estrangeiras, como se evidencia no último capítulo: “Exortação a Libertar a Itália dos
Bárbaros”:
“É preciso, portanto, preparar essas armas, para poder defender-se dos estrangeiros
com a própria bravura italiana. (...) Não se deve, pois, deixar escapar-se essa oportunidade, a
fim de fazer com que a Itália, após tanto tempo, encontre um redentor. (Maquiavel, O
Príncipe, cap. XXVI).
Não só em O Príncipe, mas em toda a sua obra, Maquiavel mostra preocupação em
relação à situação da península - marcada pela corrupção, violência, assassinatos e escândalos
sexuais, alguns envolvendo inclusive o clero – em uma região com povos e culturas
diferentes, cujo elo era a herança romana comum. O autor exortava a necessidade da criação
de um Estado italiano, e para tal, seria necessária a união de todos os territórios sob a égide de
um príncipe soberano, que fortaleceria a região militar e politicamente:
“Não tenho palavras para manifestar o amor e o entusiasmo com que ele seria recebido em
todas as províncias que sofreram ataques e invasões estrangeiras, nem com que sede de vingança, com
que obstinada fé com que piedade, com que lágrimas. Que portas se lhe fechariam? Que povos lhe
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negariam a obediência? Que inveja lhe faria face? Qual italiano seria capaz de recusar lhe seu favor?”
(idem)
Segundo Noberto Bobbio,
“O que motiva Maquiavel é o lançamento de premissas que lhe permitirão invocar finalmente,
na célebre exortação final, o “novo príncipe” que redimirá a Itália do “domínio bárbaro”, o novo
“Teseu”, o “redentor””, (BOBBIO, 1981, pag.86).
A península itálica, uma vez descentralizada, carecia de um exército nacional e forte,
sendo os territórios muitas vezes protegidos pelos condottiere, senhores feudais com milícias
próprias e contratados mercenariamente. Tanto em O Príncipe quanto em outra obra sua, A
Arte da Guerra, o autor defende a criação de um exército de cidadãos e a eliminação total
dessas tropas:
“Direi, portanto, que as forças com as quais um príncipe conserva o seu Estado são próprias ou
mercenárias, auxiliares ou mistas. As mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas. Tendo alguém o
seu Estado firmado em tal espécie de forças jamais estará seguro; elas não são ligadas ao príncipe, são
ambiciosas, faltas de disciplina, infiéis, insolentes (...)” (Maquiavel, O Príncipe, capítulo XII)
Nicolau Maquiavel conhecia bem o ambiente político italiano e dos principais reinos e
repúblicas europeias. Ele entrou para o serviço público aos 25 anos e aos 29 começou a
trabalhar na Segunda Chancelaria da República de Florença, ali ficando até a restauração dos
Médici no poder. O tempo em que passou na Chancelaria trabalhando como diplomata o fez
refletir sobre a fragilidade da península itálica:
“Essa atitude de observador possibilitou a Maquiavel, filósofo diplomata, escrever
uma das obras mais controvertidas da história da filosofia, O príncipe, retratando o poder de
maneira realista. Esse tratado, colhido de anos de experiência em principados, como no reino
de França, com Luís XII, ou com os Bórgias, Maximiliano, Júlio II e outros. (CHALITA,
2005, pág. 64)
Para Maquiavel, a política não devia ser exercida pela Igreja nem pelas Comunas, mas
pelo Príncipe, que deveria eliminar tudo aquilo que pudesse ameaçá-lo, sem hesitar em
recorrer à crueldade se necessário, e preferindo ser temido a amado:
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“Daí nasce uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de
que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das
duas é muito mais seguro ser temido do que amado” (Maquiavel, O Príncipe, capítulo XII ).
O autor de O Príncipe rejeitava as teorias idealistas e utópicas dos gregos, que
associavam ética à política, e formulou as suas proposições a partir da observação tanto do
seu momento histórico quanto o da Roma Antiga, fazendo-o concluir que a violência e a
corrupção sempre fizeram parte do agir humano.
“Este é o caminho defendido por Maquiavel: um Estado somente mantém sua
autoridade por meio de um retorno contínuo ao momento da origem. Significa dizer: àquele
momento da violência de Rômulo, e essa volta repõe a lei na indeterminação originária que,
por sua vez, a recoloca em movimento.” (AMES, 2001, pag. 22)
A essa visão antiutopista e utilitarista, acrescenta-se uma defesa da secularização da
política, sem uma hierarquia de valores guiando suas ações. Para Maquiavel, a política passa a
ser desvinculada de ideias morais ou religiosas, tendo um agir mais autônomo e objetivando
um bem de alcance maior. Por isso, um bom soberano deveria tomar decisões e liderar ações
livres de conceitos morais, sociais e religiosos. Esse pensar lhe valeu a fama de imoral por
bastante tempo, tendo tal livro feito parte logo do primeiro índice de livros proibidos da igreja
católica no ano de 1559.
Na verdade, a ciência política como conhecemos tem início com o próprio Maquiavel.
Foi ele que introduziu a concepção de Estado como concebemos modernamente, o que pode
ser observado já no início de O Príncipe: “Todos os Estados que existem e já existiram são e
foram sempre repúblicas ou monarquias” (Maquiavel, O Príncipe, Cap. I), diferenciando-se
do modelo clássico, que tripartia as formas de governo em reino, aristocracia e democracia.
Para Maquiavel, a divisão biparte baseia-se na quantidade de pessoas que deteriam o poder:
na mão de muitos (república) ou de apenas um (monarquia). Estados que fossem
intermediários eram considerados instáveis e deveriam formar uma ou outra forma se quisesse
se estabilizar.
Maquiavel se preocupou com o estudo dos principados (monarquias), podendo ser,
segundo o autor, de dois tipos: os governados por um rei absoluto, que governaria sem dividir
com ninguém o poder, exemplificada, na obra, pela Turquia, e os que teriam a nobreza como
intermediária, como no caso francês, acreditando que “nos Estados governados por um
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príncipe e seus servidores, o senhor possui maior autoridade” (Maquiavel, O Príncipe, Cap.
IV). Ele acreditava que novas monarquias poderiam surgir de quatro maneiras diferentes, a
saber:
1. Pela virtude – aqui entendida como eficácia política, coragem, valor – para ele,
principados assim conquistados seriam mais duradores;
2. Pela fortuna – ou o acaso – menos estáveis, tendentes a desaparecer;
3. Pela violência;
4. Pelo consentimento dos cidadãos.
Maquiavel utilizou-se de muitos termos que podem tornar-se confusos se lidos
baseados no senso comum moderno de seus significados. Entre eles estão os conceitos de
fortuna e virtude (virtù), temas centrais em sua obra. A fortuna seria o acaso, a sorte, o que
não é previsível. O autor assim a explica:
“Comparo a fortuna a um daqueles rios, que quando se enfurecem, inundam as
planícies, derrubam casas e árvores, arrastam terra de um ponto para pô-la em outro: diante
deles não há quem não fuja, quem não ceda ao seu ímpeto, sem meio algum para se obstar”
(Maquiavel, O Príncipe, cap. XXV).
Um bom governante seria aquele que, utilizando de fatos dos quais não tenha ele
qualquer controle, imponha a eles a sua força e vontade, para saber agir conforme as
circunstâncias:
“Mas, apesar de ser isso imprevisível, nada impediria que os homens, nas épocas
tranquilas, construíssem diques e canais, de modo que as águas ao transbordarem do seu leito,
corressem por estes canais, ou ao menos, viessem com fúria atenuada, produzindo menores
estragos. Fato análogo sucede com a fortuna, a qual demonstra todo o seu poderio quando não
encontra ânimo (virtù) preparado para resistir-lhe e, portanto, volve os seus ímpetos para os
pontos onde não foram feitos diques para contê-la”. (idem)
Eis o conceito de virtù para Maquiavel. Ela não seria simplesmente um livre-arbítrio,
mas é o saber agir da maneira certa e no momento apropriado. É ela que dará ao soberano o
controle sobre as situações das quais ele não pode impedir o seu aparecimento. O Príncipe que
souber atuar com virtù será capaz de neutralizar qualquer eventualidade.
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“Era, portanto, indispensável a Moisés encontrar no Egito o povo de Israel escravo e oprimido
pelos egípcios, a fim de que estes, para saírem da escravidão, se resolvesse a segui-lo.
Cumpria que Rômulo não ficasse em Alba, e fosse exposto ao nascer, para poder tornar-se Rei
de Roma e fundador desta pátria. Era preciso que Ciro encontrasse os persas descontentes com
o Império dos Medas, e os medas fracos e efeminados pela longa paz. Teseu não poderia
demonstrar a sua virtù, se não fosse achar os atenienses dispersos. Tais oportunidades
constituíram a fortuna desses grandes homens, e sua virtù fez com que as oportunidades
fossem aproveitadas” (Maquiavel, O Príncipe, cap. V).
Como dito anteriormente, Maquiavel não se preocupou em dar qualquer conotação
moral à virtude (virtù), pois o bem agir de um príncipe deveria estar desvinculado das noções
morais do bem e do mal, não existindo uma fórmula para o bom governar, variando conforme
a situação, livre de freios:
“Por isso, é mister que O Príncipe tenha um espírito preparado para se adaptar às variações das
circunstâncias e da fortuna e, a manter-se tanto quanto possível no caminho do bem, mas
pronto igualmente a enveredar pelo mal, quando for necessário” (idem, cap. XVIII)
O autor de O Príncipe não atrelou qualquer valor moral às práticas de constituição de
novas Monarquias, sendo todas elas legítimas. O poder, outro tema central da obra, deve ser
mantido a qualquer preço, mesmo que para isso o soberano precisasse não cumprir com o que
fora acordado. O julgamento para uma boa ou má política se basearia nos resultados que ela
alcançasse:
"...na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, da qual não há recurso, os fins
justificam os meios. Portanto, se um príncipe pretende conquistar e manter um Estado, os
meios que empregar serão sempre tidos como honrosos, e elogiados por todos, pois o vulgo se
deixa sempre levar pelas aparências e os resultados." (Maquiavel, O Príncipe, cap. XVIII).
Tudo seria válida para que a unidade de um Estado fosse mantida. Os fracos deveriam
ser subjulgados, os fortes vencidos e a crueldade, como dito anteriormente, poderia ser usada
como forma de manter a integridade estatal e o bem geral de um povo, sem hesitação:
“Um príncipe não deve, portanto, importar-se por ser considerado cruel se isso for
necessário para manter os seus súditos unidos e com fé. Com raras exceções, um príncipe tido
como cruel é mais piedoso do que os que por muita clemência deixam acontecer desordens
que podem resultar em assassinatos e rapinagem, porque essas consequências prejudicam todo
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um povo, ao passo que as execuções que provêm desse príncipe ofendem apenas alguns
indivíduos” (idem, capítulo XVII)
O poder que permeia o Estado foi outro tópico explorado em O Príncipe. Maquiavel
acreditava em um eterno conflito entre o povo, que não deseja ser oprimido, e o Estado, em
essência, opressor: “e sempre houve quem serve e quem ordena, e quem serve de má vontade
e quem serve de boa vontade, e quem se rebela e se rende” (ibid, Cap. XIX). Uma vez sendo
elas forças antagônicas, haveria uma tendência natural ao conflito entre as duas classes. Como
a natureza humana não seria boa em essência para Maquiavel, o príncipe deveria ter um pulso
forte e “desejando conservar o Estado (...) é frequentes vezes obrigado a não ser bom” (idem)
Além de proteger o Estado de perturbações vindas do exterior, o príncipe deveria ser
também um instrumento de estabilização interna. Como dito, o autor florentino não acreditava
na natureza boa do ser humano. Para ele, todos os indivíduos seriam maus, traidores e
corruptores em essência e que para se defenderem do que encontrariam primordialmente em
todos, os homens precisariam de Estados, que controlariam aquilo que poderia abalar
internamente uma sociedade. Caso o príncipe não materializasse esse poder, o controle seria
impossível, pois "quando os homens não são forçados a lutar por necessidade, lutam por
ambição." (Maquiavel, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro 1, Capitulo
37)
Mas para que isso fosse possível, o poder deveria ser legitimado: um poder
considerado ilegítimo seria uma fonte de instabilidade e crises constantes. A multipolarização
do poder e a ausência de um Estado centralizado criariam vazios que seriam disputados por
muitos, tornando-o fragilizado internamente e sendo pouco capaz de se proteger da ação de
outros Estados sobre ele: “Os Estados que são governados por um príncipe e servos, têm
aquele com maior autoridade, porque em toda a sua província não existe alguém reconhecido
como chefe senão ele” (Maquiavel, O Príncipe, capítulo IV).
O Estado, para Maquiavel, teria também uma função reguladora. Um exército fiel e
obediente deveria estar a serviço do príncipe para ser possível manter não só a soberania do
Estado frente a outros, bem como a sua ordem interna:
"Desde a primeira frase do príncipe, o termo Estado, sem ser definido de modo
rigoroso, designa uma configuração política que implica a organização da relação de forças
15
entre o comando e a obediência: ele caracteriza, na sua "verdade efetiva", o "novo principado"
que Maquiavel sonda.” (Goyard-Fabre, 1999, pag. 19)
Assim, prova-se indubitável a contribuição desse pensador italiano nascido no final do
século XV para a filosofia, a ciência política e a sociologia de maneira geral. Seus estudos
ainda geram controvertidas discussões, mas os seus pressupostos podem ser utilizados de
várias maneiras, chegando Rousseau e Spinoza entenderem que ao ensinar o príncipe a
governar, Maquiavel também ensina ao povo dele se defender. Odiado ou amado, Maquiavel
agiu como deve agir o seu príncipe: sem medo de ser tomado como imoral.
Thomas Hobbes
O clima político em que viveu Thomas Hobbes (1588-1679) não era de todo
semelhante ao experimentado por Maquiavel. O absolutismo na Inglaterra já havia encontrado
o seu apogeu e ideias liberais tomavam força a partir do momento em que a burguesia,
anteriormente beneficiada pelas políticas mercantilistas, não mais precisava vitalmente do
apoio dos soberanos, ansiando ela, agora, ao poder. Surgem críticas ao poder divino dos reis e
movimentos revolucionários agitam a vida política inglesa. Hobbes, porém, mantém-se firme
no apoio aos soberanos absolutistas, apesar de não lhes empregar uma natureza divina.
Segundo Monteiro, na introdução da versão em português do Leviatã (in HOBBES, 2003):
Mas a leitura atenta do Leviatã não deixará de revelar que no seu interior não se trata
de apologética, e sim de um esforço teórico para encontrar respostas à altura da magnitude dos
problemas enfrentadas pela humanidade europeia do seu tempo. (MONTEIRO, pag.2)
Thomas Hobbes nasceu em 1558, na Inglaterra dos Tudors, uma época politicamente
delicada, entre outras questões, pela ameaça de invasão da esquadra espanhola em terras
inglesas. Filho de um vigário anglicano, foi criado por tios. Estudou em Oxford, na época
influenciada pelos pensamentos aristotélicos e tomistas, mas Hobbes sentiu-se mais inclinado
pelo mecanicismo e o cartesianismo. Conheceu Galileu Galilei e presenciou o crescimento do
império inglês e do fortalecimento da marinha inglesa.
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma série de guerras travadas entre nações
europeias por motivos variados, entre eles políticos, religiosos e territoriais, também teve um
profundo impacto nas produções filosóficas de Hobbes, principalmente aquelas ligadas à
natureza do homem. Intelectual monarquista, defensor do poder soberano dos reis, Hobbes
16
precisou se exilar na Holanda durante a Revolução Puritana (1642-1658), liderada por Oliver
Cromwell, que destronou e executou o rei Carlos I e destituiu a monarquia na Inglaterra por
alguns anos. Volta ao seu país natal aos 63 anos.
A obra de Hobbes, assim como de Maquiavel, também marcou um momento crucial
na história do pensamento político. Ambos partiram de um método dedutivo de pensamento e
contribuíram para o estudo do Estado Moderno. Além disso, houve inovação nas obras dos
dois autores: enquanto Maquiavel desvinculou a política da moral, algo estranho ao
pensamento político de sua época, Hobbes trará uma nova abordagem em relação à
legitimação do poder, que se daria a partir de um pacto social. Na verdade, podemos dizer que
Hobbes reúne o realismo maquiavélico com as teorias de direito natural apresentada
anteriormente por autores como Grotius.
A defesa hobbesiana de um Estado Absolutista e poderoso tem raízes na própria
Inglaterra de seu tempo, convulsionada por agitações de ordem religiosa, política e por ideais
burgueses. Novas éticas e percepções estavam sendo criadas, entre elas as que se referiam à
terra. Até então considerada um bem não apenas pessoal, mas de uma comunidade, ela passa a
ser tomada como um item de acumulação de riquezas, portanto um bem cobiçado pelos
burgueses. Camponeses passam a ser expulsos das terras, criando excedente de mão de obra.
O Estado, que como veremos para Hobbes deveria ser protetor daqueles que vivem sob sua
égide devido a um contrato firmado entre os homens, estava sendo usado para beneficiar a
burguesia e respaldar seus planos para aquisição de maior poder político.
Somente um poder absoluto, segundo Hobbes, seria capaz de manter a ordem social
em uma Inglaterra dividida entre o monarca e o parlamento, e a pressões dessa nova classe
que surgira da expansão comercial e crescia abundantemente. Em nome da equidade e do bem
comum, um soberano absoluto poderia proteger o país da cobiça de alguns poucos. Daí a
figura do Leviatã, personagem bíblico e segundo alguns, de origem fenícia, usado por Hobbes
para figurar o Estado: “Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda
reverência – daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e
defesa” (HOBBES, 2003, pag. 147).
E ainda:
“É nele que consiste a essência do Estado, que pode ser assim definida: ‘Uma grande multidão
institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns aos outros, para em nome de cada um como
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autora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurar a paz e a defesa comum’. O soberano é aquele que representa essa pessoa”. (HOBBES,
2003, p.130-1 31).
Devido a essa característica de sua abordagem filosófica, Hobbes é considerado um
teórico contratualista. Segundo essa doutrina, o Estado seria formado a partir de um acordo
entre partes, onde parcelas de direitos individuais seriam cedidas a uma força centralizadora
de poder. Como dentro dessa corrente temos teóricos defensores de diferentes tipos de Estado,
como por exemplo, Locke e o Estado Liberal ou Rousseau e o Estado Democrático, não há
uniformidade entre esses autores sobre quem deteria esse poder, podendo ele estar
centralizado nas mãos de diferentes forças, como um soberano (Hobbes), um poder legislativo
(Locke) ou ainda o próprio povo (Rousseau). Outros contratualistas importantes foram, entre
outros, Grotius e Samuel Pufendor.
O contratualismo de Hobbes difere do de outros filósofos, portanto, por basear-se em
uma concepção absolutista de governo, ou seja, as liberdades individuais deveriam ser
sacrificadas a fim de que uma unidade fosse construída sob as égides de um soberano com
poderes absolutos. Ele teria poder sobre todas as coisas, inclusive a propriedade privada - “quanto às
terras do país, sua distribuição compete ao soberano” (HOBBES, 2003, pag. 214) -, pois todos
os direitos emanariam do Estado e a ele tudo pertenceria. Na verdade, nas mãos do Estado/soberano estariam
todos os tipos de direitos, dos políticos aos econômicos, a tal ponto que Hobbes acreditava que a burguesia só
poderia crescer até onde permitisse o soberano:
“Compete, portanto à república, isto é, ao soberano, determinar de que maneira se
devem fazer entre os súditos todas as espécies de contrato (de compra, venda, troca,
empréstimo, arrendamento), e mediante que palavras e sinais esses contratos devem ser
considerados válidos”. (HOBBES, pag. 214)
A concepção de Estado hobbesiano estava intimamente ligada às suas ideias de
natureza humana. Para Hobbes, o homem teria uma natureza egoísta, não sendo ele mal em
sentido absoluto, mas faria o que pudesse para preservar a sua vida e satisfazer os seus
desejos, ideia essa em consonância com os princípios antropocêntricos de seu tempo. Seria o
seu direito natural: “a que muitos autores comumente chamam jus naturale , é a liberdade que
cada homem tem de utilizar seu poder como bem lhe aprouver, para preservar sua própria
natureza, isto é , sua vida” (HOBBES, pag. 97).
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Para o autor inglês, haveria uma clara dissociação entre lei natural (divina) e lei civil.
Ele acreditava que antes da entrada do homem para um estado de vida social, ele encontrava-
se no que chamou de “estado de natureza”, quando não havia nenhum poder que pudesse
impor limites à liberdade e à vontade de cada individuo. Enquanto durasse esse estágio
anárquico, não haveria segurança nem paz, sendo a guerra uma de suas consequências.
Assim, o homem teria direitos que lhe seriam naturais. Por direito natural, Hobbes
entendia “a liberdade que cada homem tem de usar livremente o próprio poder para a
conservação da vida e, portanto, para fazer tudo aquilo que o juízo e a razão considerem como
os meios idôneos para a consecução desse fim” (Hobbes, pag. 112). Seria a ausência de
limites para a preservação da vida e se oporia às leis e às obrigações. A passagem do estado
da natureza para a sociedade civil se daria pela renúncia de parte dessa liberdade que cada
homem naturalmente possuiria a fim de que uma força convergente pudesse, então, prover
segurança a todos.
Não devemos, porém, confundir o que Hobbes chamou de estado de natureza com
aspectos da vida selvagem do homem primitivo. Esse estado pré-social seria um construto
teórico hobbesiano e simulador de uma sociedade que existisse sem um Estado que a
organizasse, mas sem qualquer anterioridade histórica:
Mesmo admitindo que algumas sociedades primitivas tenham vivido em estado de
natureza, as formas de estado de natureza que interessam a Hobbes são as que ainda subsistem
em seu tempo: a sociedade internacional e o estado de anarquia originado pela guerra civil.
Sobretudo o segundo. (BOBBIO, 1991, p. 36)
Esse estado anárquico promoveria um clima de medo e incertezas. “Disto nasce um
estado permanente de desconfiança recíproca, que leva cada um a se preparar mais para a
guerra – e, quando necessário, a fazê-la – do que para a busca da paz” (BOBBIO, 1991, p.
34). Essa insegurança faria com que os homens se associassem, não por serem naturalmente
sociáveis, como queria Aristóteles, mas para preservação da vida:
“A natureza não colocou no homem o instinto da sociabilidade; o homem só busca
companheiros por interesse, por necessidade; a sociedade política é o fruto artificial de um
pacto voluntário” (CHEVALLIER, 1973, p. 70).
A necessidade de preservação da vida, de sentir-se protegido, faria nascer um pacto
entre os homens: eles abririam mão de parte de sua liberdade e direitos naturais para que uma
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força de coesão e de proteção surgisse. Um soberano concentraria toda essa força para trazer a
tranquilidade e a segurança de um grupo social.
“Designar um homem ou uma assembleia de homens como portador de suas pessoas,
admitindo-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que assim é portador
sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns;
todos submetendo desse modo suas vontades à vontade dele, e às suas decisões à sua decisão”.
(HOBBES, pag. 147)
Vale ressaltar que esse pacto se daria entre os seus membros, e não desses com o
soberano, e se esse não fosse capaz de manter a segurança, a paz e a propriedade material de
seus súditos haveria falha e quebra desse contrato, pois o direito à vida e à paz seriam os
únicos intransferíveis:
“Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente a sua parte, e uns
confiam nos outros, na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra de todos
os homens contra todos os homens), a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto”.
(HOBBES, pag.118)
Se o Estado cumprisse a sua parte do contrato, segundo Hobbes, todos os homens
seriam capazes de se concentra em outros aspectos de suas vidas, como o trabalho, a religião e
o lazer. O fato de não ter de estar sempre preocupado com a preservação de sua vida, deixaria
o indivíduo livre para dedicar-se a outras áreas de interesse. E para cumprir essa função, o
soberano poderia utilizar-se da força, se preciso:
“Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com
os outros, foi instituída por todos como autora, de modo que ela pode usar a força e os
recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa
comuns”. (HOBBES, pag. 148)
Segundo o filósofo inglês, o homem seria movido por desejos, próprios da natureza
humana, sendo um deles o de poder: “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência
geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa
apenas com a morte” (Hobbes, pag. 48). Tal impulso natural poderia trazer agitações no seio
de uma sociedade ou fora dela, e o soberano viria como protetor desse grupo contra ações
desenfreadas para que tais desejos fossem realizados, tanto em relação a ameaças internas,
quanto externas.
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Mas o poder seria apenas um entre muitos desejos, como a fama, a riqueza e o
reconhecimento. Suas realizações, porém, poderiam ser sacrificadas a partir da associação
com outros indivíduos, renunciando conjuntamente à satisfação imediata deles, estando todos,
assim, protegidos uns dos outros: “O medo da opressão predispõe os homens à antecipação ou
a buscar ajuda na associação, pois não há outra maneira de assegurar a vida e a liberdade.”
(HOBBES, pag. 87).
Segundo Hobbes, os homens seriam iguais em nascimento e essência. Tal igualdade
seria geradora de conflitos, pois todos teriam os mesmos direitos naturais de terem os seus
desejos atendidos e “se dois homens desejam a mesma coisa (...) eles se tornam inimigos”.
(HOBBES, pag. 107), o que geraria ambição, descontentamentos, atritos e guerras. A paz só
seria possível com o sacrifício do estado de natureza e o acúmulo do poder criado por essa
renúncia na mão de uma só pessoa:
“Isto é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos
eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens,
de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Autorizo e transfiro o meu
direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a
condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de uma maneira semelhante todas
as suas ações. (HOBBES, pag. 147)
Todo ato humano, para Hobbes, seria passional, ou seja, ele começaria quando o
indivíduo sentisse que algo de bom viria de tal ação e cessaria quando o homem percebesse
que algum dano ou prejuízo poderia advir de tal decisão. Portanto, desejo precisaria se
transformar em atos. Para que a deliberação se transformasse em ação, a vontade deveria estar
presente, que poderia ser traduzida em desejo, aversão, etc.
“Quando surgem alternadamente no espírito humano apetites e aversões, esperanças e
medos, relativamente a uma mesma coisa; quando passam sucessivamente pelo pensamento as
diversas consequências boas ou más de uma ação, ou de evitar uma ação; de modo tal que às
vezes se sente um apetite em relação a ela, e às vezes uma aversão, às vezes a esperança de ser
capaz de praticá-la, e às vezes o desespero ou medo de empreendê-la; todo o conjunto de
desejos, aversões, esperanças e medos, que se vão desenrolando até que a ação seja praticada,
ou considerada impossível, leva o nome de deliberação.” (Hobbes, 2003, p. 54-5)
Decisões de como agir ou não agir passariam muitas vezes pelo campo da moral e das discussões
sobre o que seria o bem ou o mal. Tais conceitos em política foram relativizados por Hobbes e encontram-se,
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em sua filosofia interligados às ideias de desejo: “seja qual for o objeto do apetite ou desejo de
qualquer homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e
aversão, chama mau” (HOBBES, pag. 48). Tal relativização seria a fonte de discordância na
elaboração de princípios universais do que seria um e outro por serem concepções
essencialmente perenes e oportunistas.
Paixão e razão foram outros dois termos utilizados por Hobbes na sua construção de
Estado. Segundo ele, a razão não seria algo natural ao homem, sendo, porém, adquirida e
desenvolvida ao longo da vida. Ela poderia ser traduzida como um ato de calcular: calculamos
as consequências de nossas ações a fim de podermos decidir sobre a realização de nossos
desejos, ajudando a paixão em seus objetivos. Na passagem do estado natural para o de
sociedade civil, paixão e razão deveriam estar associados no momento do pacto fundador do
Estado, como diz Hobbes no Capítulo XV da obra O Leviatã:
“As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo
daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las
através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens
podem chegar a acordo.” (Hobbes, 2003, p. 111)
Assim como Aristóteles, Hobbes admitia três formas de governo, a saber: a monarquia, a
aristocracia - que diferentemente dos filósofos anteriores, não constituía os interesses da nobreza, e sim
uma assembleia de cidadãos- e a democracia. Apesar de sua clara predileção por estados monárquicos,
o filósofo acreditava que mais importante era que: "o poder é sempre o mesmo em todas as
formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos" (Hobbes, 2003, p.
157), sendo o soberano: “Uma pessoa instituída, pelos atos de uma grande multidão, mediante pactos
recíprocos uns com os outros, como autora, de modo a poder usar a força e os meios de todos,
da maneira que achar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum” (HOBBES, 2010, p.
126 - 127).
Apesar de Hobbes argumentar que um bom governo seria qualquer um capaz de proteger os seus
súditos, o autor claramente mostrou a sua preferência por governos monárquicos. Ele acreditava ser a
Monarquia a forma mais distanciada do estado de natureza, pois o “interesse pessoal do soberano é o mesmo
que o interesse público” (Hobbes, pag. 160). Ao rei tudo seria lícito, inclusive o despotismo, pois o seu poder
era legitimado. Ele seria o único poder legislativo, criando e abolindo leis quando fosse necessário. A esse
soberano déspota todo-poderoso ele deu o nome de Leviatã, monstro marinho bíblico, de grandes proporções,
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provavelmente de origem mitológico fenícia, bastante temido pelos navegantes da Idade Média. Era
considerado o maior e mais poderoso dos monstros aquáticos.
A comparação a esse Estado com um monstro tão temido no imaginário medieval poderia nos fazer
acreditar que tal organização política deveria suscitar medo nos indivíduos. Mas na verdade, o medo deveria
vir do estado de natureza, esse sim deveria ser temido e combatido, segundo as concepções hobbesianas. Prova
disso nos viria da capa da primeira edição do O Leviatã (1651), cuja figura é formada por um príncipe com
uma armadura de escamas – representação de seus súditos – com uma espada ameaçadora em punhos,
fazendo temer somente aqueles que ainda se encontrassem sob o jugo do estado de natureza.
“Pois, graças a esta autoridade que lhe é dada por cada individuo na república, é-lhe
conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de
conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz no seu próprio pais, e da ajuda mútua
contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência da república”. (HOBBES, pag.
148)
Conclusão
Maquiavel e Thomas Hobbes foram dois filósofos realistas que basearam suas teorias e defesas
filosóficas no ambiente social e político em que viviam. Partindo de construtos teóricos inovadores,
desvincularam a moral da política e tinham planos audaciosos para as suas respectivas terras natais. Ambos
foram criticados pela igreja e não entendidos por alguns de seus contemporâneos. Apesar disso, os dois autores
foram forças filosóficas importantes numa Europa em construção, tanto na formação de uma nação, como no
caso da Itália, quanto da manutenção de um Estado forte e acima dos ideais burgueses, como no caso da
Inglaterra.
Maquiavel preocupou-se com a falta de uma força impulsionadora que transformasse as unidades
políticas da península itálica em uma nação forte e que pudesse protegê-la da ameaça de potências europeias,
principalmente da França e da Espanha, que ambicionavam territórios que continham importantes riquezas
naturais. Para tal projeto, fazia-se indispensável, segundo o autor, a presença de um soberano, forte e poderoso,
somente possível, pelo menos a principio, nos moldes absolutistas.
Assim como Maquiavel, Hobbes ocupou-se das agitações dentro de seu país. Sua defesa clara e aberta
a um regime absolutista, poderoso e centralizador, também pode ser justificada na própria história vivida pelo
seu país, no caso a Inglaterra, marcada naquele momento por guerras religiosas e transformações de inspiração
burguesa.
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A literatura por eles produzida não se preocupava em validar o poder dos soberanos a partir de uma
orientação religiosa, o que era bem quisto pelo homem medieval, mas enfraquecido aos olhos do homem
moderno. Maquiavel não se focou na legitimidade primeva desse poder, mas sim na conquista dele. Já Hobbes
o coloca atrelado à origem da formação do Estado, tendo a razão como propulsora.
Assim, mesmo que por caminhos diversos, ambos defenderam a supremacia do poder estatal,
inclusive sobre a ordem espiritual, a necessidade de um governo forte e a estruturação de um Estado moderno
absolutista. Portanto, para Hobbes, o absolutismo seria o único instrumento possível para proteger a Inglaterra
dos acontecimentos políticos e religiosos que assolavam o seu país. Com a burguesia cada vez mais forte e
mais ávida por poder, um Leviatã deveria se levantar e retomar para si o controle da nação e da proteção de
seus súditos contras as paixões desenfreadas de uns sobre outros.
Com motivações diferentes, ambos Hobbes e Maquiavel usaram a literatura e a filosofia para
legitimar as políticas locais absolutistas e colaboraram teoricamente com a propagação de seus ideais. Seus
conceitos e construtos filosóficos ganharam espaço no imaginário europeu e foram usados por reis e príncipes
absolutistas modernos como justificativa para centralização do poder do Estado em suas mãos.
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