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1 CAPÍTULO 1 1808: a guerra contra os botocudos e a recomposição do império português nos trópicos 1 A vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, é um episódio importante no processo de formação do Brasil independente. O evento ocorreu em um quadro de incertezas e de profundas mudanças, marcado pelas guerras napoleônicas, pela crise do sistema colonial tradicional e das formas absolutistas de governo e pela ascensão de idéias e práticas liberais e nacionalistas na Europa e na América. No Brasil, o príncipe regente d. João adotou uma política liberal: a abertura dos portos ao comércio direto com o estrangeiro, o livre estabelecimento de fábricas e manufaturas e, em 1815, elevou a colônia à categoria de reino, abrindo novas perspectivas para o Brasil, que, na prática, se livrava do estatuto colonial. Mas 1808 é também uma data importante para a história dos índios. Por intermédio da carta régia de 13 de maio de 1808, foi deflagrada “guerra ofensivacontra os índios botocudos do rio Doce das capitanias de Minas Gerais e do Espírito Santo. Além disso, foi permitido o cativeiro indígena por dez anos ou enquanto durasse a “fereza” e a “antropofagia” entre eles. 2 Na carta régia datada de 2 de dezembro do mesmo ano, os territórios conquistados foram qualificados de devolutos, afirmando-se a intenção de colonizar o vale graças à guerra e à distribuição de sesmarias aos novos colonos. 3 Interpretada via de regra como um arcaísmo4 , já que reabilitava o velho princípio da guerra justa e do cativeiro indígena, a carta régia de 13 de maio de 1808 e a guerra contra os índios devem ser entendidas também como um testemunho de seu próprio tempo. Desse modo, a presente reflexão visa analisar como o olhar 1 Este texto foi originalmente publicado no livro organizado por CARDOSO, José Luís; MONTEIRO, Nuno Gonçalo; SERRÃO, José Vicente (Orgs). Portugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2010, p. 391-414. 2 13/05/1808: Carta Régia ao Governador e Capitão General da capitania de Minas Gerais sobre a guerra aos Índios Botecudos. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Legislação Indigenista no Século XIX: Uma Compilação (1808-1889). São Paulo: Edusp, 1992. p. 57-60. 3 02/12/1808: Carta Régia sobre a civilisação dos Índios, a sua educação religiosa, navegação dos rios e cultura dos terrenos. In: Ibidem, p. 66-68. 4 CUNHA, Manuela Carneiro da. Prólogo. In: op. cit., p. 16.

Artigo 1808 Vânia

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descrição dos costumes indigenas

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    CAPTULO 1

    1808: a guerra contra os botocudos

    e a recomposio do imprio portugus nos trpicos1

    A vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, um episdio importante

    no processo de formao do Brasil independente. O evento ocorreu em um quadro de

    incertezas e de profundas mudanas, marcado pelas guerras napolenicas, pela crise do

    sistema colonial tradicional e das formas absolutistas de governo e pela ascenso de

    idias e prticas liberais e nacionalistas na Europa e na Amrica. No Brasil, o prncipe

    regente d. Joo adotou uma poltica liberal: a abertura dos portos ao comrcio direto

    com o estrangeiro, o livre estabelecimento de fbricas e manufaturas e, em 1815, elevou

    a colnia categoria de reino, abrindo novas perspectivas para o Brasil, que, na prtica,

    se livrava do estatuto colonial. Mas 1808 tambm uma data importante para a histria

    dos ndios.

    Por intermdio da carta rgia de 13 de maio de 1808, foi deflagrada guerra

    ofensiva contra os ndios botocudos do rio Doce das capitanias de Minas Gerais e do

    Esprito Santo. Alm disso, foi permitido o cativeiro indgena por dez anos ou enquanto

    durasse a fereza e a antropofagia entre eles.2 Na carta rgia datada de 2 de

    dezembro do mesmo ano, os territrios conquistados foram qualificados de devolutos,

    afirmando-se a inteno de colonizar o vale graas guerra e distribuio de sesmarias

    aos novos colonos.3

    Interpretada via de regra como um arcasmo4, j que reabilitava o velho

    princpio da guerra justa e do cativeiro indgena, a carta rgia de 13 de maio de 1808 e a

    guerra contra os ndios devem ser entendidas tambm como um testemunho de seu

    prprio tempo. Desse modo, a presente reflexo visa analisar como o olhar

    1 Este texto foi originalmente publicado no livro organizado por CARDOSO, Jos Lus; MONTEIRO, Nuno

    Gonalo; SERRO, Jos Vicente (Orgs). Portugal, Brasil e a Europa napolenica. Lisboa: Imprensa de Cincias

    Sociais, 2010, p. 391-414. 2 13/05/1808: Carta Rgia ao Governador e Capito General da capitania de Minas Gerais sobre a guerra aos ndios

    Botecudos. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Legislao Indigenista no Sculo XIX: Uma Compilao

    (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992. p. 57-60. 3 02/12/1808: Carta Rgia sobre a civilisao dos ndios, a sua educao religiosa, navegao dos rios e cultura dos

    terrenos. In: Ibidem, p. 66-68. 4 CUNHA, Manuela Carneiro da. Prlogo. In: op. cit., p. 16.

  • 2

    contemporneo tem interpretado a guerra e o impacto da ao beligerante sobre ndios e

    moradores da capitania do Esprito Santo, alm de contextualizar o episdio como um

    acontecimento poltico vinculado ao processo de reconstruo do imprio portugus no

    Novo Mundo.

    A perplexidade do olhar contemporneo

    Nos estudos sobre histria indgena e poltica indigenista no Brasil, tem-se

    frequentemente destacado o carter extemporneo da perspectiva indigenista do

    prncipe regente d. Joo e de sua corte instalada no Brasil. Por ocasio da criao do

    Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais, em 1910, por

    exemplo, Manoel Tavares da Costa Miranda e Alpio Bandeira escreveram um

    importante memorial sobre a situao dos ndios nas legislaes colonial, imperial e

    republicana. Nesse documento, no qual se traava a orientao poltica e programtica

    da Repblica em relao aos ndios, eles afirmaram: [] tanto maior averso inspira o

    governo de d. Joo VI, pelo intentado restabelecimento oficial da opresso. Era um

    retrocesso inesperado e sem justificativa, e foi com esse passo atrs que entramos no

    sculo XIX e na legislao propriamente ptria [].5

    Tomando como referncia a evoluo histrica da poltica indigenista colonial, a

    guerra parece, de fato, um retrocesso inesperado, pois, desde as leis pombalinas,

    especialmente a de 6 de junho de 1755, o cativeiro indgena tinha sido abolido do

    cenrio da Amrica portuguesa, graas decretao da liberdade absoluta dos ndios.6 O

    corpo legislativo pombalino transformou profundamente a condio poltica e jurdica

    5 MIRANDA, Manoel Tavares da Costa; BANDEIRA, Alpio. Memorial acerca da situao do ndio perante a

    legislao antiga e moderna com um projeto de lei, definindo a verdadeira e necessria situao jurdica do indgena

    brazileiro, apresentado ao senhor tenente-coronel Cndido Mariano da Silva Rondon, diretor do Servio de Proteo

    aos ndios e Localizao dos Trabalhadores Nacionais. In: BRASIL. Ministrio da Agricultura, Relatrio do Servio

    de Proteo ao ndio e Localizao de Trabalhadores Nacionais, 1912, p. 140. 6 Caio Prado Jnior resume a legislao pombalina nos seguintes termos: Alvar de 14 de abril de 1755, que fomenta os casamentos mistos, equipara os ndios e seus descendentes aos demais colonos quanto a emprego e

    honrarias, e probe que sejam tratados pejorativamente. Lei de 6 de junho do mesmo ano decreta a liberdade absoluta

    e sem exceo dos ndios, d vrias providncias sobre as relaes deles com os colonos e dispe sobre a organizao

    de povoaes (vilas e lugares), em que deveriam se reunir. Alvar de 7 de junho, ainda do mesmo ano, suprime o

    poder temporal dos eclesisticos sobre os ndios, cujas aldeias seriam administradas por seus principais. Esta lei, bem

    como a anterior, aplicava-se s ao Par e ao Maranho; o Alvar de 8 de maio de 1758 estendeu a sua aplicao para

    todo o Brasil. Alm dessas leis, h o diretrio dos ndios do Gro-Par e Maranho, de 3 de maio de 1757,

    regulamento organizado pelo governador daquelas capitanias, Francisco Xavier de Mendona Furtado, irmo de

    Pombal, que longa e minuciosamente regimenta a legislao vigente sobre os ndios. Este diretrio foi aprovado pelo

    Alvar de 17 de agosto de 1758, que estendeu sua aplicao para todo o Brasil. Resta dizer que o Diretrio dos ndios vigorou at 1798, quando foi abolido pela carta rgia de 12 de maio. Cf. PRADO JNIOR, Caio. Formao

    do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1971 (11 ed.), p. 94-95.

  • 3

    dos ndios, pois no se tratava apenas de consider-los livres, como se tem amide

    insistido, mas principalmente vassalos do rei, como observou ngela Domingues.7

    No campo social e econmico, por exemplo, a liberdade dos ndios traduzia-se

    na oportunidade de desfrutarem de suas pessoas, bens e comrcio. Tambm estava

    assegurado o direito de ocuparem cargos pblicos e eclesisticos, que se estendia, alis,

    aos seus descendentes. Mais ainda, como sditos livres do Estado, deveriam ser

    remunerados pelos servios prestados. No campo jurdico e poltico, reconhecia-se a sua

    capacidade governativa, dando-se preferncia a eles na ocupao dos cargos de suas

    respectivas povoaes, alm de poderem peticionar diretamente ao rei e s demais

    autoridades.8

    Paralelamente aos direitos, existia um conjunto de obrigaes e deveres que

    reiterava a condio de vassalos dos indgenas. Deveriam ser integrados nos corpos de

    ordenana e estavam sujeitos ao recrutamento para prestarem servios nas milcias.9

    Estavam obrigados ao pagamento de dzimos e de outros impostos e, como todos os

    demais sditos do Estado, deveriam ser teis ao rei e ao reino.10

    Vadiagem e cio

    estavam descartados, portanto, do iderio pombalino sobre a liberdade dos ndios.

    Todas essas indicaes levam concluso de que os ndios foram equiparados,

    do ponto de vista legal, aos demais vassalos luso-brasileiros. No entanto, ningum

    perdia completamente de vista de que se tratava de vassalos especiais11,

    principalmente aqueles que viviam nas matas, sem lei e sem f, no que se pensava

    ser o estado de natureza. A idia da perfectibilidade permitia que se projetasse, contudo,

    a intensificao da civilizao dos ndios por meio de um leque variado de aes e

    instituies como o comrcio, o trabalho, a religio, o convvio com os civilizados, a

    educao e os casamentos mistos com portugueses. Tudo isso pressupunha mais que a

    tolerncia dos luso-brasileiros em relao aos vcios e s atrocidades dos ndios.

    Esperava-se deles o engajamento ativo no processo de reduo dos ndios ao estado

    civil, pois, alm de civilizados, possuam as luzes da catolicidade.12

    A despeito das elevadas expectativas, ningum minimamente informado sobre

    os assuntos do Brasil ignorava a considervel distncia entre as disposies

    7 DOMINGUES, ngela. Quando os ndios Eram Vassalos: Colonizao e Relaes de Poder no Norte do Brasil, na

    Segunda Metade do Sculo XVIII. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos

    Portugueses, 2000, p. 39. 8 Ibidem, p. 42-43. 9 SAMPAIO, Patrcia Melo. Administrao colonial e legislao indigenista na Amaznia portuguesa. In: PRIORI,

    Mary Del; GOMES, Flvio (Orgs.). Os Senhores dos Rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 28. 10 DOMINGUES, op. cit., p. 303. 11 Ibidem, p. 302. 12 Ibidem, p. 313.

  • 4

    institucionais e a realidade efetivamente vivida pelos ndios. Menos ainda Pombal, que

    tinha bons colaboradores, como o seu irmo Francisco Xavier de Mendona Furtado,

    governador e capito geral das provncias do Gro-Par e Maranho, nas quais era

    numerosa a populao indgena. Esbulho de terras, escravizaes, bandeiras, mortes e

    descimentos ilegais persistiam, apesar da vontade do rei de ver os ndios transformados

    em vassalos teis ao reino.

    Em Minas Gerais, por exemplo, a ocupao do serto do leste comeou na

    segunda metade do sculo XVIII, diante da necessidade de incrementar as atividades

    agrcolas e pastoris para compensar a queda na produo aurfera. O territrio era

    densamente povoado por ndios e, apesar de o discurso das autoridades locais se manter

    nos marcos do indigenismo oficial, a observncia das orientaes legais provou ser

    bastante falsa. Maria Lenia Resende e Hal Langfur identificaram quase cem

    expedies militares e paramilitares que marcharam para dentro da floresta da Minas

    Gerais colonial, movida por vrios objetivos relacionados conquista e incorporao

    territoriais sendo pelo menos 79 expedies ou bandeiras entre 1755 e 1804.13

    As evidncias so, portanto, claras: a legislao pombalina no criou e nem

    poderia criar, por fora da pena, um mundo radicalmente novo. Mas habilitava o

    exerccio de um absolutismo lgico14, mais apropriado poca da ilustrao:

    considerando a riqueza das naes diretamente relacionada ao tamanho e qualidade de

    sua populao, apostou na assimilao cultural e biolgica dos ndios para elevar a

    prosperidade do reino. A nova poltica indigenista foi implantada, alm disso, s duras

    penas, enfrentando jesutas e moradores e estabelecendo-se como uma terceira via de

    civilizao dos ndios a ser construda entre as pretenses dos padres e dos moradores.

    A despeito da incapacidade de fazer valer os direitos dos vassalos indgenas, a Coroa

    tambm mostrou uma firme tolerncia em relao s violncias perpetradas por ndios,

    via de regra justificadas segundo o argumento de que eles no eram ferozes por

    natureza. Se assim agiam, era porque sofriam muitos abusos dos luso-brasileiros.15

    A decretao da guerra ofensiva contra os ndios do rio Doce e, pouco depois,

    contra os ndios bugres de So Paulo, isto , os caingangues, rompeu com a tolerncia

    e com o indigenismo ilustrado que vigorou no reinado de d. Jos I, em nome da maior

    13 RESENDE, Maria Lenia Chaves de; LANGFUR, Hal. Minas Gerais indgena: a resistncia dos ndios nos sertes

    e nas vilas de El-Rei. Revista Tempo, Rio de Janeiro, jul. 2007, v. 12, n. 23, p. 20. 14 MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 19. 15 DOMINGUES, ngela. Quando os ndios Eram Vassalos: Colonizao e Relaes de Poder no Norte do Brasil,

    na Segunda Metade do Sculo XVIII. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos

    Portugueses, 2000, p. 311.

  • 5

    eficincia da escola severa.16 O balano historiogrfico sobre as guerras joaninas no

    esconde, por isso, a perplexidade diante dos acontecimentos e a dificuldade de explicar,

    satisfatoriamente, o passo atrs representado pelo cativeiro indgena e pela conquista

    de territrios por meio da guerra justa, em um momento de expanso das idias liberais

    e democrticas e de convulses revolucionrias nos dois lados do Atlntico. Manuela

    Carneiro da Cunha taxativa: No sculo XIX, [a conquista pela guerra justa] um

    arcasmo.17 E para Carlos de Arajo Moreira Neto:

    Quaisquer que sejam as opinies sobre o Diretrio pombalino, h que se admitir que sua

    abolio, em 1798, foi seguida de uma srie de medidas de contedo explicitamente

    anti-indgena. A tnica da poltica indgena de D. Joo VI a represso, aplicada como

    regra a todos os setores da vida indgena.18

    Ao explicar a poltica anti-indigenista joanina, Carlos de Arajo Moreira Neto

    apresentou dois cenrios fundamentais. O primeiro o novo panorama econmico do

    sculo XIX, quando a ampliao das fronteiras agrcolas implicou a desocupao, via de

    regra violenta, dos territrios sob o domnio de diferentes grupos e povos indgenas. A

    historiografia confirma, de resto, a tese do autor, pois a vinda da corte portuguesa para o

    Brasil incrementou ainda mais a interiorizao da metrpole na colnia, tal como

    argumentou Maria Odila Dias, incorporando e integrando novos territrios dinmica

    da economia colonial.19

    Desse ponto de vista, a guerra e a conquista dos territrios

    indgenas do Esprito Santo e de Minas Gerais fazem parte do movimento de

    reorganizao do abastecimento comercial da corte implantada no Rio de Janeiro e de

    integrao econmica do Centro-Sul.

    O segundo cenrio apresentado pelo autor o poltico-militar. Na conjuntura

    conturbada daquele momento, a poltica anti-indigenista joanina se apresentava como

    uma espcie de reao s idias liberais, revolucionrias e democrticas. Carlos Moreira

    Neto balizou essa hiptese com a citao da Memria sobre a civilizao dos ndios e a

    distribuio das matas, redigida, em 1816, pelo desembargador Jos da Silva Loureiro.

    16 05/11/1808: Carta Rgia sobre os ndios Botocudos, cultura e povoao dos campos gerais de Coritiba e

    Guarapuava. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Legislao Indigenista no Sculo XIX: Uma Compilao

    (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992, p. 62. 17 Ibidem, p. 16. 18 MOREIRA NETO, Carlos de Arajo. A poltica indigenista brasileira durante o sculo XIX. Tese (Doutorado).

    Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Rio Claro, Rio Claro, 1971, p. 342. 19 DIAS, Maria Odila da Silva. A interiorizao da metrpole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.).

    1822: Dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972, p. 160-184.

  • 6

    Nesse documento, ponderava-se abertamente a [...] possibilidade de uma rebelio em

    cadeia que, comeada entre grupos indgenas autnomos, se estendesse depois aos

    escravos, mestios e brancos pobres, podendo chegar, eventualmente, como estava

    acontecendo em toda a Amrica Espanhola, a uma revoluo incontrolvel que

    terminasse pela independncia e a Repblica.20 Carlos Moreira Neto observou ainda

    que, em outras fontes histricas do perodo, a mesma [...] suposio alimentada e

    talvez por ela se possa, em parte, explicar a injustificvel brutalidade da represso

    dirigida contra pequenos grupos indgenas.21

    O temor do descontrole poltico e social, especialmente a quebra das hierarquias

    sociais e das relaes escravistas, era, de fato, um problema da agenda poltica da

    poca, mitigado de forma diversa pelas elites dos dois lados do Atlntico, que, a partir

    de 1808, se encontraram no Rio de Janeiro. Era justamente esse temor que paralisava,

    por exemplo, as tentativas de certas elites regionais de levarem a cabo a revoluo e a

    independncia. Como argumentaram Istvn Jancs e Joo Paulo Pimenta:

    No era simples para as elites luso-americanas despirem-se de algo to profundamente

    arraigado como a identidade portuguesa, expresso sinttica de sua diferena e

    superioridade diante dos muitos para quem essa posio estava fora de alcance.

    Saberem-se portugueses constitua o cerne da memria que esclarecia a natureza das

    relaes que mantinham com o restante do corpo social nas suas ptrias particulares,

    aquela massa de gente de outras origens com a qual, sobre a qual, ou contra a qual

    caberia organizar o novo corpo poltico.22

    A despeito dos temores, nada sugeria que os diferentes grupos de ndios do

    Esprito Santo e de Minas Gerais pudessem desencadear uma crise poltica e social de

    magnitude suficiente para pr em risco as hierarquias sociais que vigoravam no Brasil,

    afetando a posio das elites luso-brasileiras ou a soberania da Coroa portuguesa. Os

    conflitos entre ndios e moradores dos sertes de Minas Gerais e do Esprito Santo eram

    bem conhecidos na regio, e nada indicava que aquilo se transformasse no estopim de

    uma crise poltica maior. Apesar disso, deliberou-se a guerra ofensiva, incentivou-se a

    conquista dos territrios indgenas, e reabilitou-se o cativeiro.

    20 MOREIRA NETO, Carlos de Arajo. A poltica indigenista brasileira durante o sculo XIX. Tese (Doutorado).

    Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Rio Claro, Rio Claro, 1971, p. 348. 21 Ibidem. 22 JANCS, Istvn; PIMENTA, Joo Paulo G. Peas de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergncia

    da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherm (Org.). Viagem Incompleta: A Experincia Brasileira

    (1500-2000). So Paulo: Editora Senac, 2000, p. 173.

  • 7

    O palco e o alvo do justo terror

    A cronologia da conquista e da colonizao dos territrios indgenas e dos

    sertes da capitania do Esprito Santo bem diversa da ocorrida em Minas Gerais:

    inicia-se de forma mais sistemtica na administrao de Antnio Pires da Silva Pontes,

    pois, nomeado em 1797 para governar a capitania e assumindo o governo em 1800, o

    fez com ordens expressas da Coroa de abrir o rio Doce navegao e ao povoamento.23

    Para orientar Silva Pontes nessa tarefa, foi-lhe enviada uma cpia da carta rgia de 12

    de maio de 1798 para ser aplicada na capitania em tudo que ele julgasse cabvel. A carta

    rgia, especialmente expedida ao governador e capito geral do estado do Par,

    aconselhava, entre outras recomendaes, esforos para civilizar os ndios, proibindo

    expressamente a realizao de guerra ofensiva ou outras formas de hostilidades contra

    os ndios que estavam nas matas.24

    Para dar suporte s ordens recebidas, Silva Pontes criou alguns postos militares

    ao longo do rio Doce, cujos principais objetivos eram garantir a segurana do comrcio

    e apoiar as exigncias do fisco. O prprio Silva Pontes explorou a regio e, como era

    tambm gegrafo, produziu o primeiro mapa do rio Doce. Ao voltar a Vitria, prestou

    contas de sua expedio ao governador da Bahia, afirmando que ficou [...]

    destacamento forte e aprazvel no Porto de Souza e na boca mais boreal do Giparan,

    que chamam Barra Seca [...]; e assim ficam defesos os extravios do ouro ou diamantes,

    que tanto recomendam as instrues [...].25

    Em outro documento, Silva Pontes definiu a situao da capitania como precria,

    pois [...] rodeado de gentio inimigo todo o permetro da colnia, desde a barra do Rio

    Doce, at o da barra do Parayba do Sul, no se estranham os colonos para o centro do

    serto [...]. Preferia a populao viver, ao contrrio, [...] em contnuo litgio, mas

    nunca deliberando-se a ir formar estabelecimento, onde as matas esto sem dono, e a

    abundncia abandonada ao copo do gentio.26 Alguns anos depois, a mesma avaliao

    de que a capitania estava cercada por ndios inimigos foi produzida pelo naturalista 23 OLIVEIRA, Jos Teixeira de. Histria do Esprito Santo. Vitria: Fundao Cultural do Esprito Santo, 1975 (2

    ed.), p. 244. 24 Cpia da Carta Rgia de 12 de maio de 1798 sobre a civilisao dos ndios, enviada a Antnio Peres da Silva

    Pontes, em 29 de agosto de 1798. In: OLIVEIRA, Jos Joaquim Machado de. Notas e apontamentos e notcias para a

    histria da provncia do Esprito Santo. Revista do IHGB, 1856, tomo XIX, n. 22, p. 313-325. 25 Ofcio de Silva Pontes de 16 de novembro de 1800, ao governador da Bahia. In: OLIVEIRA, Jos Teixeira de.

    Histria do Esprito Santo. Vitria: Fundao Cultural do Esprito Santo, 1975 (2 ed.), p. 263-264. 26 PONTES, Antonio Pires da Silva. Pr-memria sobre a capitania do Esprito Santo e objetos do rio Doce do

    governador Antonio Pires da Silva Pontes. Vitria: Fundao Jones dos Santos Neves, 1979 [1802], p. 101.

  • 8

    Auguste de Saint-Hilaire. Quando esteve no Esprito Santo, em 1818, ele observou o

    quanto a guerra e a presena macia de ndios nos sertes condicionaram a distribuio

    espacial da populao, transformando a pequena capitania em um espao densamente

    povoado, apesar de sua diminuta populao. Desse modo, enquanto na extensa Minas

    Gerais ele calculou a presena de dez pessoas, em mdia, por lgua quadrada, no

    Esprito Santo ele estimou a existncia de 150 pessoas por lgua quadrada.27

    Isso

    ocorria porque toda a populao se concentrava em

    [...] uma faixa estreita que, em termo mdio, no tem, provavelmente, mais de quatro

    lguas de largura. Para alm, se acham imensas florestas, que se confundem com as de

    Minas Gerais e servem de abrigo s tribos errantes de Botocudos, sempre em guerra

    com os portugueses.28

    Inexistem estatsticas seguras sobre o nmero de ndios independentes que

    viviam, naquele momento, nos sertes do Esprito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e

    Bahia. A estimativa mais global sobre a populao indgena que poderia afetar

    rapidamente a capitania refere-se exclusivamente regio do rio Doce e adjacncias e

    foi fornecida por Guido T. Marlire, em 1827. Ele ponderou que os ndios que

    frequentavam os quartis do Esprito Santo e de Minas Gerais perfaziam

    aproximadamente 20 000 indivduos, acrescentado, contudo, que contar ndios nas

    matas e calcular formigas em um formigueiro eram tarefas bem semelhantes.29

    Na mesma poca, isto , em 1828, a populao da capitania foi estimada em 35

    353 habitantes. A populao livre somava 22 165 pessoas, das quais apenas 8.094 eram

    consideradas brancas. O restante da populao livre era composto por ndios civilizados

    (5.788), mulatos (5.601) e negros (2.682). Os escravos representavam 37,3% da

    populao total (13.188 pessoas) e davam suporte a uma economia de carter

    autrquico, cujos principais produtos de exportao eram a farinha de mandioca e o

    acar.30

    Desse modo, diante de uma populao indgena independente bastante

    expressiva, as pessoas preferiam viver, de fato, concentradas na faixa do litoral, onde se

    destacavam algumas vilas e povoaes, a maioria situada ao sul do rio Doce.

    27 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Esprito Santo e Rio Doce. So Paulo: Edusp, 1974 [1833], p. 14. 28 Ibidem. 29 MATTOS, Izabel Missagia de. Civilizao e Revolta: Os Botocudos e a Catequese na Provncia de Minas. Bauru:

    Edusc, 2004, p. 116. 30 SALETO, Nara. Transio para o Trabalho Livre e Pequena Propriedade no Esprito Santo. Vitria: Edufes,1996,

    p. 27.

  • 9

    A presena de uma populao indgena refratria soberania luso-brasileira foi

    um incmodo bastante srio para a capitania e continuou sendo, no decorrer de todo o

    sculo XIX, a maior ameaa que punha em risco a sobrevivncia dos enclaves luso-

    brasileiros de conquista e colonizao do vale do rio Doce. Contudo, to logo

    comearam a guerra joanina e a intensa represso contra os ndios que viviam nos

    sertes de Minas Gerais, os ataques indgenas se espraiaram e se multiplicaram por todo

    o Esprito Santo, pondo em risco no apenas os enclaves recm-criados no vale, mas

    principalmente ameaando a sobrevivncia das reas de antigo povoamento.

    Sabe-se, por exemplo, que os ndios civilizados que viviam da pesca e da

    pequena agricultura na embocadura do rio Pima eram mais numerosos naquela

    localidade antes da decretao da guerra, do que quando Saint-Hilaire visitou o local,

    em 1818. A explicao para tal reduo populacional naquela paragem no era outra,

    seno o receio de que tais ndios sentiam dos botocudos, levando-os a abandonarem

    suas moradias em Pima em busca de paragens mais seguras.31

    Mais ainda, por causa

    dos ataques dos botocudos, outros pequenos arraiais tambm foram deixados pelos

    moradores. Entre outros assuntos, isso que fica testemunhado na carta rgia de 4 de

    dezembro de 1816, enviada ao governador da capitania do Esprito Santo, Francisco

    Alberto Rubim32

    .

    O documento versava sobre a construo da estrada de ligao entre o Esprito

    Santo e Minas Gerais. Atesta a preocupao do Estado em fomentar a agricultura e a

    explorao aurfera na capitania do Esprito Santo, bem como o comrcio com Minas

    Gerais por meio de alguns incentivos fiscais, como a iseno de dzimos sobre a

    produo e de impostos sobre a circulao de mercadorias. Mas a carta rgia tambm

    um registro sobre os estragos que a guerra causava na capitania. Reconhecia-se, por

    exemplo, que a explorao aurfera nas cabeceiras do rio Itapemirim e nas minas do

    Castelo, bem como as quatro povoaes que ali existiam, foi arruinada pelos ataques

    dos ndios, forando a populao a migrar para a costa atlntica, em busca de maior

    segurana.33

    De fato, entre 1800 e 1840, foram inmeros os casos de ataques indgenas na

    capitania e, depois, provncia do Esprito Santo. Em 1808, por exemplo, o porto de

    Souza sofreu ataques dos botocudos, levando o governo da capitania a ampliar e

    31 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Esprito Santo e Rio Doce. So Paulo: Edusp, 1974 [1833], p.27. 32 Carta Rgia de 4 de dezembro de 1816. In: OLIVEIRA, Jos Joaquim Machado de. Notas e apontamentos e

    notcias para a histria da provncia do Esprito Santo. Revista do IHGB, 1856, tomo XIX, n. 22, p. 189. 33 Carta Rgia de 4 de dezembro de 1816. In: Ibidem.

  • 10

    reforar o quartel do Souza.34

    Uma cpia da carta rgia de 13 de maio de 1808 foi

    enviada a Tovar de Albuquerque, ento governador do Esprito Santo, com instrues

    precisas sobre as manobras militares na regio. De acordo com as recomendaes

    oficiais, o rio Doce foi dividido em seis distritos, cada qual com um comandante

    nomeado. No territrio sob a jurisdio do governador do Esprito Santo, foi criada a

    Diretoria Militar do Rio Doce (DMRD) em Linhares e foi reorganizado o sistema de

    defesa, graas ao estabelecimento de novos destacamentos de soldados e quartis.

    O principal alvo da guerra era os botocudos. Afinal, a carta rgia garantia um

    aumento anual nos soldos dos comandantes distritais proporcional ao bom servio

    prestado, isto , maior soldo para os comandantes que evitassem mortes de

    portugueses e destruio de suas plantaes em seus respectivos distritos e que

    conseguissem aprisionar e matar maior nmero de ndios35

    . Os prisioneiros de guerra

    tornavam-se, automaticamente, cativos e deveriam ser entregues

    [...] para o servio de respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais tempo que

    durar sua ferocidade, podendo elle empregallos em seu servio particular durante esse

    tempo, e conservallos com a devida segurana mesmo em ferros, enquanto no derem

    provas do abandono de sua atrocidade e Antropophagia.36

    Em 1816, ano da estada do prncipe Maximiliano Wied-Neuwied em Linhares,

    no Esprito Santo, a situao na regio ainda era absolutamente beligerante. Tal fato,

    alis, foi muito bem registrado na crnica do naturalista, que se caracteriza pelo

    reconhecimento da centralidade da guerra na incipiente organizao poltica e social do

    rio Doce esprito-santense. Sua narrativa gira em torno da guerra e de uma pequena

    sociedade organizada em funo dela, a ponto de ele prprio lastimar que a [...]

    desgraada guerra sustentada contra os Botocudos no rio Doce torna impossvel

    conhecer de perto e estudar, nessa regio, esse notvel povo; quem quiser v-los a,

    deve preparar-se para uma flechada.37 Boa parte das plantaes era feita nas ilhas

    prximas a Linhares, [] porque somente nessas ilhas ficam a salvo dos selvagens,

    34 MARQUES, Csar Augusto. Dicionrio Histrico, Geogrfico e Estatstico da Provncia do Esprito Santo. Rio de

    Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 119. 35 Cpia da Carta Rgia de 13 de maio de 1808, enviada a Manoel Vieira da Silva e Tovar de Albuquerque, em 21 de

    maio de 1808. In: OLIVEIRA, Jos Joaquim Machado de. Notas e apontamentos e notcias para a histria da

    provncia do Esprito Santo. Revista do IHGB, 1856, tomo XIX, n. 22, p. 325-331. 36 Cpia da Carta Rgia de 13 de maio de 1808, enviada a Manoel Vieira da Silva e Tovar de Albuquerque, em 21 de

    maio de 1808. In: Ibidem, p. 328. 37 WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. 2 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958 [1823],

    p. 163.

  • 11

    que no possuem canoas e no podem em consequncia, atravessar o rio, exceto quando

    sua largura e a profundidade so insignificantes. O guarda-mor reside na Ilha do Boi, e

    o padre de Linhares na Ilha de Bom Jesus.38

    O estado de beligerncia no local era tal que impunha um trabalho agrcola

    monitorado por armas. Todos que podiam partiam para a lavoura portando espingardas,

    e os demais levavam pelo menos o bodoque. A expanso das plantaes e as tentativas

    de incrementar as estradas ficavam condicionadas instalao de novos quartis e

    destacamentos. A picada de ligao entre a fazenda Bom Jardim e o quartel do Riacho,

    por exemplo, exigiu a criao do quartel do Aguiar, prximo Lagoa dos ndios, onde

    [...] residem algumas famlias indgenas e os soldados ndios exercem a vigilncia.39

    Alm disso, Linhares no passava de um povoado insignificante, com casas pequenas,

    baixas, feitas de barro, no rebocadas e cobertas de folhas de palmeiras ou de uricana. O

    povoado era defendido em oito direes diferentes por destacamentos insulados nas

    florestas, compondo-se sua populao, ademais, principalmente de soldados.40

    Sobre

    esses soldados, escreveu Wied-Neuwied:

    A experincia faz dos soldados de Linhares bons conhecedores da maneira de perseguir

    um selvagem na floresta, mas todos confessam que os Botocudos so caadores muito

    mais hbeis, e muito melhor conhecedores da mata do que eles; da a grande precauo

    exigida por essa atividade e essas expedies selva. Em geral, os mineiros (ou

    habitantes de Minas Gerais) so considerados os melhores caadores de selvagens,

    porque esto familiarizados com esse modo de vida e com as guerrilhas nas florestas

    [...].41

    Tanto em Linhares como nos minsculos povoados, quartis e destacamentos

    que se propagavam na bacia do rio Doce, parte considervel dos soldados era composta

    de ndios civilizados. A carta rgia de 13 de maio de 1808 recomendava

    explicitamente, alis, o aproveitamento dessa categoria de ndio para servir no rio Doce

    e, mais ainda, que seus soldos fossem reduzidos justamente por serem ndios

    domsticos.42 Na capitania do Esprito Santo, o conceito de ndio civilizado ou

    38 WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. 2 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958 [1823],

    p. 159. 39 Ibidem, p. 158. 40 Ibidem, p. 160. 41 Ibidem, p. 164. 42 13/05/1808: Carta Rgia ao Governador e Capito General da capitania de Minas Gerais sobre a guerra aos ndios

    Botecudos. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Legislao Indigenista no Sculo XIX: Uma Compilao

    (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992, p. 58.

  • 12

    domstico se aplicava principalmente aos agrupamentos indgenas que foram

    assentados nas antigas misses jesuticas da regio e que, a partir das leis pombalinas,

    passaram a compor a populao das vilas e lugares que surgiram nos antigos

    aldeamentos.

    Eram ndios com certa tradio de convvio com a sociedade colonial e, por isso,

    considerados mansos, domsticos ou civilizados. Na dcada de 1820, eles

    representavam, alm disso, uma parcela expressiva da populao do Esprito Santo,

    perfazendo 26% da populao livre ou 16,5% da populao total, que, alm das pessoas

    livres, tambm contabilizava os escravos.43

    A historiografia mais recente reconhece que

    os ndios integrados ao sistema colonial, muito embora no vivessem mais segundo as

    regras e valores de seus grupos tnicos de origem, tambm no se confundiam com os

    escravos de origem africana nem com a populao de origem europeia.44

    E a despeito

    do interesse pombalino de dissolv-los na categoria de vassalos do rei, as fronteiras

    tnicas entre eles e a populao luso-brasileira continuaram sendo elaboradas e

    atualizadas. Prova disso, alis, terem sido constantemente categorizados de ndios

    mansos, domstico ou civilizados pelas prprias autoridades coloniais.

    Maximiliano Wied-Neuwied se repugnou com a falta de liberdade dos

    linharenses, governados de maneira cruel e errnea, controlados quanto ao consumo

    de aguardente e impossibilitados de viajarem sem prvia permisso.45

    O controle sobre

    a populao devia-se ao fato muitssimo corriqueiro representado pelas fugas e

    deseres que caracterizavam a insipiente sociedade organizada nos quartis e

    destacamentos militares da regio. As razes que motivavam as deseres no eram

    apenas os perigos representados pela guerra movida contra os botocudos ou a saudade

    que sentiam de suas famlias e comunidades de origem. Alm disso, existiam a fome, as

    doenas e os castigos. Na documentao primria produzida nos quartis,

    destacamentos e aldeamentos do rio Doce esprito-santense, alis, os castigos, a vida

    isolada e os pesados trabalhos so apontados como as principais causas das frequentes

    deseres.46

    43 MOREIRA, Vnia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populaes indgenas do

    Esprito Santo (1822-1875). Dilogos Latinoamericanos, n. 11, 2005, p. 109. 44 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses Indgenas: Identidade e Cultura nas Aldeias Coloniais do Rio

    de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 45 WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. 2 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958 [1823],

    p.162. 46 MARINATO, Francieli Aparecida. ndios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonizao do rio Doce

    (Esprito Santo, 1824-1845). Dissertao (Mestrado). Departamento de Histria da Universidade Federal do Esprito

    Santo, Esprito Santo, 2007, p. 56.

  • 13

    A partir de 1810 houve, contudo, uma visvel intensificao de ataques de ndios

    contra a populao luso-brasileira e contra plantaes, casas e gado em diferentes partes

    da capitania. Perto da capital, os combates entre ndios e milicianos resultaram na morte

    de 20 ndios e no ferimento de muitos, entres ndios, milicianos e pedestres, alm do

    apresamento de trs gentios inimigos.47 Em 1813, nova onda de correrias varreu a

    capitania, havendo relatos de confrontos nos quartis do porto do Souza, do Aguiar, de

    Linhares, de Piraqu-au e ainda nas povoaes de Linhares, de Benevente, ao sul da

    capitania, alm dos incidentes ocorridos tambm no serto de Iconha.48

    Novamente, em

    1815, outra sucesso de ataques assolou a capitania. Segundo Daemon, ndios caets e

    coroados infestam as margens do rio Doce, destruindo plantaes e cometendo roubos,

    mortes e barbaridades [].49Ainda no mesmo ano, dois outros incidentes ocorreram

    em Itapemirim e em Linhares. Em Itapemirim, ndios botocudos infestaram os

    estabelecimentos s margens do rio e, expulsos dali, apareceram no quartel de Boa

    Vista. Em outubro, foi a vez de Linhares ser vtima de mais um ataque dos ndios,

    descrito nos seguintes termos por Daemon:

    atacado no 1o de outubro o Segundo Quartel de Linhares por um nmero

    extraordinrio de ndios, falando parte deles perfeitamente a lngua portuguesa, na qual

    insultavam os moradores; mas to acertada foram as providncias dadas pelo

    comandante Joo Felipe de Almeida Calmon [] que puderam cont-los at a chegada

    de uma bandeira de trinta e cinco pessoas que veio coadjuvar o destacamento, tendo

    havido grande mortandade e ficando ferido muitos dos nossos [].50

    A capitania do Esprito Santo possua, ento, uma economia reconhecidamente

    inexpressiva e ainda incapaz de impulsionar uma expanso populacional e territorial

    minimamente significativa. A dinmica de seu desenvolvimento interno no condio

    suficiente para explicar, portanto, o grande nmero de confrontos entre luso-brasileiros

    da capitania e os diferentes agrupamentos indgenas da regio, que se sucederam

    durante os primeiros 30 anos do sculo XIX. Muito mais dinmica do que a observada

    na capitania esprito-santense era a expanso da fronteira agrcola em Minas Gerais, que

    rapidamente avanava sobre os territrios dos ndios e os lanava contra a bem mais

    frgil ocupao luso-brasileira do Esprito Santo. Assim, embora a capitania tivesse

    47 DAEMON, Bazlio Carvalho. Histria e Estatstica da Provncia do Esprito Santo. Vitria: Tipographia Esprito

    Santense, 1879, p. 211-212. 48 Ibidem, p. 218-219. 49 Ibidem, p. 231. 50 Ibidem.

  • 14

    entrado na guerra contra os ndios para dar suporte ao comrcio e colonizao do vale

    do rio Doce, rapidamente se viu na eminncia de reforar sua estrutura militar para

    defender, na realidade, a capital e outras regies de antigo povoamento.

    Ao comparar os processos de conquista e ocupao dos sertes de Minas Gerais

    e do Esprito Santo, pode-se chegar surpreendente concluso de que os mineiros no

    precisavam da guerra para ocupar aquele territrio e que os esprito-santenses, apesar de

    viverem constrangidos pelos ndios, longe de se beneficiarem com a guerra, quase

    foram destrudos por ela. Resumindo, as bandeiras contra os ndios do serto do leste de

    Minas Gerais, a partir da segunda metade do sculo XVIII, demonstram que a guerra de

    1808 estava longe de ser uma condio necessria ocupao luso-brasileira daquele

    territrio. O processo de colonizao dos sertes da capitania do Esprito Santo tambm

    termina por demonstrar a mesma pouca utilidade da guerra, por razes, contudo, muito

    diversas. Pois num interregno de sete anos, entre 1808 e 1815, o que esteve

    efetivamente em jogo, no palco da guerra do Esprito Santo, no era a possibilidade de

    expanso da capitania sobre os territrios indgenas, mas a segurana de antigas reas de

    povoamento, incluindo a capital.

    Que os ndios eram o principal alvo fsico da guerra no resta dvida. Talvez

    menos bvio seja perceb-los igualmente como atores no palco da guerra. Vtimas de

    um poderio poltico, militar e tecnolgico muito mais letal e organizado, eles tambm

    foram agentes bastante conscientes dos limites e das possibilidades existentes para eles

    no cenrio da guerra ofensiva. Os ataques perpetrados por eles so particularmente

    interessantes para se perscrutar a etnopoltica indgena durante a beligerncia. Suas

    investidas contra a capitania do Esprito Santo demonstram, por exemplo, que

    conheciam as fragilidades daquela ocupao luso-brasileira. Afinal, em 1810, eles

    cercaram todo o permetro povoado com o claro fito de atingir Vitria, a capital,

    provocando medo, terror e pnico.

    Os episdios de 1815 tambm evidenciam outros aspectos importantes da

    etnopoltica indgena, como o intenso trnsito de ndios puris, coroados e botocudos nos

    sertes da capitania e, em razo disso, o acirramento da guerra entre eles naquele

    momento. Afinal, a chegada dos coroados s margens do rio Doce, territrio

    tradicionalmente ocupados pelos botocudos, e o ataque dos botocudos na regio de

    Itapemirim, mais freqentemente citada como o ambiente dos puris-coroados, indicam

    uma disputa por territrio e um estado de beligerncia no apenas desses ndios contra a

    sociedade luso-brasileira, mas tambm entre eles, como sugerem, alis, outras fontes.

  • 15

    O depoimento dos ndios puris Manoel Jos Pereira e Antnio Francisco Pereira,

    colhidos pelo engenheiro Alberto Noronha Cortezo, no fim do sculo XIX, um

    testemunho contundente sobre as disputas entre ndios, unindo os puris, coroados e

    corops contra os botocudos nos sertes de Minas Gerais, Esprito Santo e Rio de

    Janeiro. De acordo com um dos ndios, que poca do depoimento estava bastante

    idoso, ele prprio havia acompanhado as guerras entre os corops e os botocudos, tendo

    perdido nessas batalhas um irmo. Alm disso, afirmou

    [...] ele que o terreno aqum do Rio-Doce ficou limpo de Botocudos, mas que os

    mineiros acabaram com os Puris, os Botocudos passaram outra vez para c e dizimados

    como se achavam no puderam os Puris e os Corops resistir-lhes seno mais para

    cima, onde estavam os Corops com os Coroados, para os lados do Muriah.51

    A segunda situao importante relacionada aos episdios de 1815 refere-se ao

    ataque a Linhares, que possui a particularidade de evidenciar o aparecimento de um

    grande nmero de ndios e, entre eles, alguns falando perfeitamente a lngua

    portuguesa. Isso sugere algumas possibilidades de interpretao, desde a participao

    de ndios fugidos de estabelecimentos e vilas, onde teriam aprendido o portugus, at a

    incluso de alguns no ndios ou de mestios nas aes e ataques realizados pelos

    guerreiros das tribos locais. Em ambos os casos, contudo, a ao beligerante

    desenvolvida pelos ndios pressupe uma etnopoltica em transformao, seja porque o

    arco de alianas estava sendo ampliado pela presena de no ndios nas tticas de

    guerrilha, seja pela participao de ndios egressos do mundo luso-brasileiro, com

    conhecimentos sobre a sociedade dominante em expanso bem maior do que aqueles

    que se mantinham nos matos.

    Durante a guerra, os ndios tambm procuraram negociar com os luso-brasileiros

    e conseguiram, alm disso, construir alianas, via de regra bastante desiguais e

    transitrias. Os puris, por exemplo, medida que perdiam a guerra contra os mineiros e

    os botocudos, passaram a procurar os moradores e as autoridades da capitania do

    Esprito Santo com propostas de paz e de colaborao. Isso ficou particularmente

    evidente em alguns episdios relacionados construo da estrada entre Esprito Santo

    e Minas Gerais, pois, em 1820, os encarregados de construir a estrada foram contatados

    por trs famlias de puris interessadas em serem aldeadas na capitania. Outros grupos de

    51 CORTEZO, Alberto Noronha. Vocabulrio Puri. Revista do IHGB, 1889, tomo LII, p. 513.

  • 16

    puris tambm queriam a paz, pois andavam procurando os quartis e manifestando o

    mesmo desejo de serem aldeados.52

    Para as autoridades, um aldeamento de ndios puris prximo estrada que ligava

    o Esprito Santo a Minas Gerais foi interpretado, muito rapidamente, como algo

    bastante oportuno, tendo em vista que poderiam aproveit-los tanto como mo-de-obra

    para a construo e manuteno da estrada, como mobiliz-los militarmente para

    garantir maior segurana naquelas paragens, constantemente ameaada pela presena

    dos botocudos. O aldeamento s foi efetivamente criado bem mais tarde, na dcada de

    1840, com o nome de Imperial Alffonsino. Importante frisar, contudo, que entre as

    primeiras negociaes para se criar um aldeamento para os puris, conforme o prprio

    desejo deles, e a efetiva criao do Imperial Alffonsino (1845), decorreram-se 25 anos,

    isto , uma gerao. Nesse nterim, os puris desfrutaram a condio de tribo aliada, com

    direito a formarem ranchos no Esprito Santo (no oficializados) e com a obrigao de

    atenderem s autoridades sempre que fossem recrutados, tal como aconteceu em 1830,

    quando foram acionados para fazer a represso aos quilombos que proliferavam nas

    zonas escravistas do Esprito Santo.53

    Os ataques dos ndios botocudos ainda puseram seriamente em risco o Esprito

    Santo at meados da dcada de 1820.54

    Mas isso no impediu que certos grupos e

    famlias acenassem com a paz desde os primeiros momentos da guerra e aceitassem seu

    confinamento em aldeamentos. Com o passar dos anos, a sujeio dos ndios aos termos

    de paz impostos pelos luso-brasileiros era cada vez maior e mais visvel e, apesar disso,

    a guerra s foi oficialmente suspensa em 27 de outubro de 1831, quando o Brasil j era

    uma nao independente. Mas do mesmo modo que a guerra nunca excluiu a

    negociao e o agenciamento de ndios e luso-brasileiros no sentido de construir a paz e

    um caminho, mesmo que acidentado e desigual, de convvio intertnico, a paz tambm

    nunca excluiu a violncia, especialmente as guerras e as bandeiras particulares. Assim,

    menos de um ano depois da revogao oficial da guerra, notcias vindas de So

    52 Officio do Governador Balthazar de Souza Botelho de Vasconcelos sobre a mencionada estrada. In: OLIVEIRA,

    Jos Joaquim Machado de. Notas e apontamentos e notcias para a histria da provncia do Esprito Santo. Revista do

    IHGB, 1856, tomo XIX, n. 22, p. 213-214. 53 APEES (Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo). Fundo Governadoria, Srie Accioly. L. 54, fl. 03,

    14/04/1830. 54 MOREL, Marco. Independncia, vida e morte: os contatos com os Botocudos durante o Primeiro Reinado.

    Dimenses Revista de Histria da Ufes, Vitria, n. 14, 2002, p. 102.

  • 17

    Matheus, ao norte da provncia, informavam que, em uma rpida ao local, foram

    mortos 140 ndios.55

    A reordenao do imprio nos trpicos: a guerra e seu pblico

    Em maro de 1808, d. Joo chegou ao Rio de Janeiro e, dois meses depois, j

    estava tomando medidas de fora contra os ndios. Primeiramente contra os botocudos

    de Minas Gerais e do Esprito Santo, depois contra os bugres de So Paulo e Santa

    Catarina. inquietante constatar que o justo terror contra os ndios foi considerado,

    juntamente com um conjunto seleto de questes, uma deliberao urgente e necessria

    instalao da corte no Brasil. A inquietao torna-se ainda maior quando se percebe,

    alm disso, a preocupao em informar o andamento da guerra com certa regularidade

    incipiente opinio pblica do Rio de Janeiro. O assunto foi pautado na Gazeta do Rio de

    Janeiro em diversas ocasies56

    , demonstrando que o pblico da guerra no era ou,

    pelo menos, no deveria ser apenas os atores sociais mais diretamente envolvidos com

    ela.

    Observando as tenses polticas que o monarca enfrentava poca do traslado

    para o Brasil, a decretao da guerra contra os botocudos parece fazer parte daquilo que

    Kirsten Schultz descreveu como sendo a reencenao da colonizao que o prncipe

    regente e os exilados fizeram no decorrer da viagem e da aclimatao da corte no

    Brasil.57

    Desse ngulo, a guerra ganha uma dimenso simblica a ser considerada, pois

    alm do fator econmico (conquista de terras) e filantrpico (civilizar pelo mtodo da

    fora), pode-se acrescentar a preocupao da Coroa atingir e conquistar o pblico que

    acompanhava a guerra do Rio de Janeiro, especialmente o portugus recm-chegado,

    que era uma parte importante do que se pode considerar a opinio pblica em

    formao do Rio de Janeiro.

    A dimenso eminentemente simblica da guerra joanina fica particularmente

    visvel no decorrer do processo de reenceno da colonizao. O primeiro ato

    comeou durante a viagem de traslado, quando muitos, a exemplo do marqus de

    Bellas, no cessavam de comparar d. Joo e d. Manuel e a viagem que faziam com as

    55 MOREIRA, Vnia Maria Losada. A produo histrica dos vazios demogrficos: guerras e chacinas no vale do rio

    Doce (1800-1830). Dimenses Revista de Histria da Ufes, Vitria, n. 9, 2001, p. 120. 56 SILVA, Maria Beatriz Nizza. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822): Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro:

    EdUerj, 2007, p. 238-242. 57 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008, p. 125.

  • 18

    navegaes e descobertas de Vasco da Gama.58

    Mas se esse era o primeiro ato, seu

    clmax s poderia ser a guerra justa. Afinal, a guerra pintava com cores realistas o

    cenrio imaginado pelos membros de um imprio ocenico, cujo primeiro problema

    foi justamente legitimar, por meio da guerra justa, suas conquistas.59

    Nesse contexto, o

    traslado da corte e a guerra justa contra os botocudos encenavam, mais uma vez, as

    grandezas e conquistas de Portugal. Mas tambm relembravam o papel civilizador

    desempenhado por Portugal, instando os portugueses a continuarem no exerccio desse

    papel no Brasil, um lugar a partir do qual deveria ser reconstituda a glria do poder real

    e do imprio portugus, naqueles tempos de revoluo e de insegurana social.

    Na carta rgia de 13 de maio, os botocudos aparecem como seres medonhos,

    pois eram capazes de [...] praticar as mais horriveis, e atrozes scenas da [ilegvel]

    barbara Antropophagia, ora assassinando os Portuguezes, e os ndios mansos por meio

    de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos, e comendo os

    seus tristes restos [...].60No demais insistir que a literatura histrica e etnolgica no

    confirma a prtica da antropofagia ritual entre os botocudos, e a razo simples: os

    registros de sua suposta antropofagia foram feitos por seus inimigos luso-brasileiros ou

    indgenas, com o claro objetivo de degrad-los, constituindo-se, portanto, em fontes

    pouco adequadas para discutir o tema da antropofagia entre eles.61

    Tambm estava

    explcito na carta rgia que o objetivo da guerra era mover os ndios pelo justo terror,

    sujeitando-os [...] ao doce jugo das Leis, e promettendo viver em Sociedade, posso vir

    a ser Vassallos teis, como j o so as immensas Variedades de Indios, que nestes Meus

    vastos Estados do Brazil se acho Aldeados, e gozo da felicidade, que he consequencia

    necessaria do Estado Social [...]. 62

    Exercer o justo terror para submeter brbaros antropfagos, que, vivendo

    sem lei, ainda estavam fora do estado social, , de fato, uma nova encenao da

    conquista e do papel civilizador de Portugal. Naquele momento, atualizaram-se velhos

    temas, preocupaes e argumentos de um imprio ocenico, que, em 1808, estava

    refugiando-se e interiorizando-se na colnia. Mas tambm um ato poltico que deve

    58 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008, p. 72. 59 HESPANHA, Antnio Manuel; SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num imprio ocenico. In: HESPANHA,

    Antnio Manuel (Org.). Histria de Portugal: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, s./d., v. 4, p. 396. 60 13/05/1808: Carta Rgia ao Governador e Capito General da capitania de Minas Gerais sobre a guerra aos ndios

    Botecudos. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Legislao Indigenista no Sculo XIX: Uma Compilao

    (1808-1889). So Paulo: Edusp, 1992, p, 58. 61 MTRAUX, Alfred. The Botocudo. In: STEWARD, Julian H. (Org.). Handbook of South American Indians.

    Washington, DC: United States Government Printing Office, 1946, p. 536. 62 13/05/1808: Carta Rgia ao Governador e Capito General da capitania de Minas Gerais sobre a guerra aos ndios

    Botecudos. In: CUNHA, loc. cit.

  • 19

    ser interpretado levando-se em conta o processo de metropolizao que deveria

    passar o Brasil e a cidade do Rio de Janeiro de modo a funcionarem como sede da

    monarquia portuguesa. E como observou Maria de Ftima Gouva, metropolizar

    significava eliminar todos os indcios coloniais presentes no Rio de Janeiro63,

    favorecendo, alm disso, a revoluo administrativa por meio da criao de rgos da

    administrao central como a Imprensa Rgia, a Fbrica de Plvora e a Provedoria-Mor

    da Sade da Corte e do Estado do Brasil.64

    Mas a escravido e a presena de uma numerosa populao indgena considerada

    brbara e at mesmo antropfaga conspiravam contra o ideal de metropolizao,

    limitando-o e constrangendo-o. Buscou-se, apesar disso, minimizar os indcios

    coloniais, procurando reduzir o trnsito de escravos e afro-descendentes pelas ruas do

    Rio de Janeiro65

    e decretando-se rapidamente a guerra ofensiva contra os ndios. Com a

    guerra, demonstrava-se de forma bastante palpvel opinio pblica nascente a

    completa intolerncia do poder real em relao barbrie e selvageria que

    supostamente prevaleciam no Brasil. E isso no uma questo menor naquela

    conjuntura poltica conturbada, pois os portugueses que acompanharam d. Joo estavam

    consternados. Temiam pela degradao fsica e moral que estariam expostos na Amrica

    e, pior ainda, tenderam a rejeitar o Brasil logo depois do desembarque.66

    O que o monarca poderia fazer para aplacar os temores que tanto atormentavam

    os emigrados? Muito pouco. Africanos, escravos, ndios e luso-brasileiros eram

    capturados pelo olhar dos portugueses recm-chegados com desconfiana e temor. Mas

    o Brasil e o Rio de Janeiro no funcionavam sem eles. Contudo, quando a justia real

    no pode de fato disciplinar, basta, como bem lembrou Antnio Manuel Hespanha, [...]

    intervir o suficiente para lembrar a todos que, l no alto, meio adormecida mas sempre

    latente, estava a suprema puniva potestas do rei. Tal como o Supremo Juiz, o rei

    devolvia aos equilbrios naturais da sociedade o encargo de instaurao da ordem

    social.67

    E assim foi feito. A guerra contra ndios foi decretada, lembrando a todos

    portugueses, luso-brasileiros, escravos, libertos, ndios, pardos, mestios, pobres e ricos

    63 GOUVA, Maria de Ftima Silva. De vice-rei a rei 1808-18. In: SOIHET, Rachel; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de; AZEVEDO, Ceclia; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Mitos, projetos e prticas polticas. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 2009, p. 395. 64 Ibidem, p. 398. 65 Ibidem. 66 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008, p. 113-114.

    67 Ibidem, p. 249-250.

  • 20

    a potncia do poder real. Alm disso, o prncipe regente traou uma ntida fronteira

    entre a civilizao e a barbrie, nominando os botocudos como os verdadeiros

    brbaros e selvagens que existiam no Brasil, pois eram eles que viviam supostamente

    sem lei e fora do estado social. Ao mesmo tempo, deixou-se aos equilbrios naturais da

    sociedade a tarefa de aclimatar os emigrados ao Rio de Janeiro. Fato, alis, que acabou

    ocorrendo, pois, medida que o tempo passou, os portugueses foram se acostumando e

    aceitando o modus vivendi local.68

    Durante a metropolizao do Brasil e na nova encenao da conquista, os

    botocudos foram transformados, portanto, em um objeto simblico que serviu aos

    interesses polticos de um imprio que precisava se recompor rapidamente no Novo

    Mundo. Foram transformados no maior bode expiatrio do perodo, portador, por isso

    mesmo, de todas as mazelas, impurezas e vcios do Brasil. E, tal como na antiga

    terra de Israel, foram sacrificados pelo bem da comunidade, para que, enfim, a Coroa e

    a corte pudessem instalar-se com segurana no Brasil.

    Ainda precisa ser mais bem aquilatado o impacto da poltica joanina sobre o

    indigenismo propriamente nacional. Mas no restam dvidas de que foi considervel.

    Moreira Neto observou, por exemplo, que houve um prolongamento da legislao, dos

    mtodos indigenistas e dos quadros polticos de d. Joo durante todo o governo de d.

    Pedro I.69

    Mais do que a inrcia do anti-indigenismo joanino durante a formao e

    consolidao do Estado brasileiro houve, na verdade, a defesa de sua escola severa.

    Afinal, um dos principais intelectuais do Segundo Reinado, o historiador Francisco

    Adolpho de Varnhagen, no escondia sua viva e militante admirao aos mtodos

    joaninos e pregava insistentemente o recurso guerra como o meio civilizador mais

    eficaz a ser utilizado no Imprio do Brasil.70

    Alm disso, negava aos ndios a plena

    cidadania. Afinal, os ndios eram selvagens e no [...] lhes applicavel como

    selvagens o nome de Brazileiros [...].71

    68 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008, p.127. 69 MOREIRA NETO, Carlos de Arajo. A poltica indigenista brasileira durante o sculo XIX. Tese (Doutorado).

    Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Rio Claro, Rio Claro, 1971, p. 355. 70 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Discurso preliminar. Os ndios frente a nacionalidade brazileira [1852]. In:

    MOREIRA NETO, Carlos Arajo. Os ndios e a Ordem Imperial. Braslia: Funai, 2005, p. 328. 71 Ibidem, p. 333.

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