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1737 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(6):1737-1746, nov-dez, 2005 ARTIGO ARTICLE Prevalência e fatores determinantes do consumo de medicamentos no Município de Fortaleza, Ceará, Brasil Prevalence and determinants of medicines consumption in Fortaleza, Ceará, Brazil 1 Departamento de Farmácia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil. 2 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Correspondência P. S. D. Arrais Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos, Departamento de Farmácia, Universidade Federal do Ceará. Rua Nunes Valente 1427, apto. 802, Fortaleza, CE 60125-070, Brasil. [email protected] Paulo Sérgio Dourado Arrais 1,2 Luciara Leite Brito 2 Maurício Lima Barreto 2 Helena Lutéscia L. Coelho 1,2 Abstract The objective of this work was to investigate the prevalence and determinants of medicines con- sumption in Fortaleza, Ceará, Brazil. A popula- tion-based cross-sectional study was carried out in a representative sample of 331 households. A total of 1,370 persons living in Fortaleza were interviewed from October 2002 to January 2003, and 1,366 were selected for this study. Con- sumers were defined as all persons having used one or more drugs during the preceding 15 days. The prevalence of medicine consumption was 49.7%. The following were the predictive factors for medicines consumption according to the multivariate logistic regression analysis: family income > 3 minimum wages, older age (50), fe- male gender, 3 persons living in household, chronic disease, having a health insurance plan, and one or more visits to the doctor in the last three months. Prevalence of medication use was high in Fortaleza but was similar to that found elsewhere in Brazil and in other countries. In- equality in the access of medications was iden- tified. Drug Use Habits; Drug Utilization; Pharma- coepidemiology Introdução O medicamento é um bem essencial à saúde e uma importante ferramenta terapêutica nas mãos dos médicos, sendo responsável por par- te significativa da melhoria da qualidade e ex- pectativa de vida da população. Entretanto, seu uso irracional e suas conseqüências elevam os gastos na área da saúde, o que torna o tema de grande relevância para os que trabalham com saúde pública. A tendência de crescimento do consumo de medicamentos nos países desenvolvidos e sub- desenvolvidos, influenciada, em parte, pelo au- mento da expectativa de vida das populações e o conseqüente aumento dos gastos na área da saú- de, aliada às restrições orçamentárias do setor público, tem levado os governantes a promove- rem, em seus países, reformas no setor. No Brasil, este problema vem prejudicando a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da níti- da melhora do sistema, desde sua implementa- ção, ainda existem dificuldades de acesso às uni- dades de atenção básica e aos medicamentos, e são inúmeras as reclamações sobre a qualidade dos serviços 1,2 . Conseqüentemente, as pessoas têm sido obrigadas a pagar planos de saúde e a comprar seus medicamentos 1,3,4 . Em alguns ca- sos, o paciente fica sem o tratamento por não ter condições financeiras para comprá-lo 4,5 . Para a Organização Mundial da Saúde 6 (p. 4), o uso racional de medicamentos ocorre quan-

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1737

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(6):1737-1746, nov-dez, 2005

ARTIGO ARTICLE

Prevalência e fatores determinantes do consumo de medicamentos no Município de Fortaleza, Ceará, Brasil

Prevalence and determinants of medicinesconsumption in Fortaleza, Ceará, Brazil

1 Departamento deFarmácia, UniversidadeFederal do Ceará,Fortaleza, Brasil.2 Instituto de Saúde Coletiva,Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.

CorrespondênciaP. S. D. ArraisGrupo de Prevenção ao UsoIndevido de Medicamentos,Departamento de Farmácia,Universidade Federal doCeará. Rua Nunes Valente1427, apto. 802, Fortaleza, CE60125-070, [email protected]

Paulo Sérgio Dourado Arrais 1,2

Luciara Leite Brito 2

Maurício Lima Barreto 2

Helena Lutéscia L. Coelho 1,2

Abstract

The objective of this work was to investigate theprevalence and determinants of medicines con-sumption in Fortaleza, Ceará, Brazil. A popula-tion-based cross-sectional study was carried outin a representative sample of 331 households. Atotal of 1,370 persons living in Fortaleza wereinterviewed from October 2002 to January 2003,and 1,366 were selected for this study. Con-sumers were defined as all persons having usedone or more drugs during the preceding 15 days.The prevalence of medicine consumption was49.7%. The following were the predictive factorsfor medicines consumption according to themultivariate logistic regression analysis: familyincome > 3 minimum wages, older age (≥ 50), fe-male gender, ≥ 3 persons living in household,chronic disease, having a health insurance plan,and one or more visits to the doctor in the lastthree months. Prevalence of medication use washigh in Fortaleza but was similar to that foundelsewhere in Brazil and in other countries. In-equality in the access of medications was iden-tified.

Drug Use Habits; Drug Utilization; Pharma-coepidemiology

Introdução

O medicamento é um bem essencial à saúde euma importante ferramenta terapêutica nasmãos dos médicos, sendo responsável por par-te significativa da melhoria da qualidade e ex-pectativa de vida da população. Entretanto, seuuso irracional e suas conseqüências elevam osgastos na área da saúde, o que torna o tema degrande relevância para os que trabalham comsaúde pública.

A tendência de crescimento do consumo demedicamentos nos países desenvolvidos e sub-desenvolvidos, influenciada, em parte, pelo au-mento da expectativa de vida das populações e oconseqüente aumento dos gastos na área da saú-de, aliada às restrições orçamentárias do setorpúblico, tem levado os governantes a promove-rem, em seus países, reformas no setor. No Brasil,este problema vem prejudicando a consolidaçãodo Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da níti-da melhora do sistema, desde sua implementa-ção, ainda existem dificuldades de acesso às uni-dades de atenção básica e aos medicamentos, esão inúmeras as reclamações sobre a qualidadedos serviços 1,2. Conseqüentemente, as pessoastêm sido obrigadas a pagar planos de saúde e acomprar seus medicamentos 1,3,4. Em alguns ca-sos, o paciente fica sem o tratamento por não tercondições financeiras para comprá-lo 4,5.

Para a Organização Mundial da Saúde 6 (p. 4),o uso racional de medicamentos ocorre quan-

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do “os pacientes recebem o medicamento apro-priado às suas necessidades clínicas, nas doses eposologias corretas, por um período de tempoadequado e ao menor custo para eles e para acomunidade”. Entretanto, o seu uso pode serinfluenciado por diversos fatores 7,8, alguns di-zem respeito à oferta de produtos no mercado,seu número, variedade e qualidade, bem comoa força da regulação vigente e o preço. O aces-so aos serviços de saúde, a cultura médica e afacilidade em adquirir medicamentos tambémsão fatores considerados de grande peso 7,8. To-dos esses aspectos são influenciados pelo mar-keting direto e indireto da indústria farmacêu-tica, que induz comportamentos, necessidadese os mais variados interesses 9.

Estudos de base populacional, realizadosem vários países, também mostram que a utili-zação de medicamentos está influenciada, en-tre outros, pelo sexo 1,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,idade 1,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,21, grau de esco-laridade 13,17,21, renda familiar mensal 1,4, clas-se social 4,17, ocupação 13,17,21, número de resi-dentes no domicílio 11,13, número de consultasmédicas 4,11,16, autopercepção do estado de saú-de 10,12, cuidados com a saúde e padecer de do-ença crônica 16, e consulta à farmácia nos últi-mos 12 meses 11.

No Brasil, a maior parte desses estudos foidesenvolvida no Sul e Sudeste do país 10,11,14,18,

19,20. As diferenças de indicadores sócio-econô-micos, epidemiológicos e de acesso e utiliza-ção de serviços de saúde existentes entre essasregiões e o Nordeste do Brasil 2, onde está loca-lizado o Município de Fortaleza, justifica espe-rar-se encontrar peculiaridades no consumode medicamentos.

Conhecer o perfil epidemiológico e os fato-res que influenciam o consumo dos medica-mentos na comunidade tem sido um instru-mento importante para o delineamento de me-didas de contenção de gastos farmacêuticos emelhoria das políticas de assistência à saúdedo cidadão.

O presente trabalho tem por finalidade de-terminar a prevalência e os determinantes doconsumo de medicamentos pela população deFortaleza, focalizando variáveis demográficas,sócio-econômicas, biológicas e de indicadoresda condição de saúde e de utilização de servi-ços de saúde.

Métodos

Trata-se de um estudo de delineamento trans-versal de base populacional, realizado no Mu-nicípio de Fortaleza, Ceará, no período de ou-

tubro de 2002 a janeiro de 2003. A unidade deobservação foi o indivíduo no domicílio.

Fortaleza sofre com o aumento aceleradoda industrialização urbana e conseqüente aden-samento populacional. O município contou noCenso Demográfico 2000 com 2.141.402 habi-tantes 22, correspondendo a um terço da popu-lação do estado. O desemprego entre a popula-ção gira em torno dos 12,0%. Existe grande de-sigualdade social, onde 20,0% da populaçãoconcentra 80,0% das riquezas e 37,0% possuemrenda igual ou menor que meio salário mínimo23. A municipalização dos serviços de saúdevem ocorrendo desde 1991. Entretanto, essasmudanças e transformações acontecem emum momento de crise do setor saúde, ondeocorre o aumento da demanda e gastos finan-ceiros, aliadas às restrições orçamentárias dosetor público. As dificuldades enfrentadas difi-cultam a consolidação do SUS no município.

A amostra para o estudo foi calculada emfunção do número de domicílios de Fortaleza(n = 526.079) 22, de forma a garantir a represen-tatividade da área territorial em que a pesquisafoi realizada. O plano de amostragem foi ela-borado com base em técnicas de processos pro-babilísticos com estratificação dos bairros e se-tores censitários de Fortaleza.

Para o dimensionamento da amostra foiadotado um modelo de amostragem estratifi-cada proporcional com desvio amostral de 5,39%,um nível de segurança de 95,0% e uma proba-bilidade de ocorrência do evento (consumo demedicamentos) fixada em 0,5, perfazendo o to-tal de 331 domicílios a serem visitados.

A probabilidade de ocorrência do evento foifeita com base em estudos realizados no Brasil,que mostram uma prevalência de uso variandoentre 24,0% e 70,0% 11,14,18,19,20. A partir daí oconsumo foi estimado em 50,0%.

Foram selecionados aleatoriamente trêsbairros entre cada uma das nove regiões admi-nistrativas de Fortaleza, e de cada bairro doissetores censitários, ou seja, os 331 domicíliosforam selecionados entre esses 54 setores cen-sitários. Em cada setor censitário estabeleceu-se que o ponto de partida seria a esquina doquarteirão que se encontrasse mais à esquerdado mapa do setor. O primeiro domicílio a servisitado foi selecionado a partir do último alga-rismo correspondente ao número do setor cen-sitário selecionado. Após esta identificação e,seguindo o sentido horário, foram visitados umem cada dez domicílios até completar o núme-ro determinado para cada setor. Os domicíliosforam substituídos no caso de estarem perma-nentemente desocupados, ou habitados, po-rém fechados na ocasião de três visitas segui-

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das, e no caso de recusa formal do chefe da fa-mília ou responsável.

As informações foram coletadas por meiode um questionário padronizado, contendoquestões de fácil compreensão, e previamentetestado. Foram coletados dados demográficos;sócio-econômicos; hábitos sociais; consumode medicamentos; indicadores de saúde e uti-lização de serviços de saúde; experiências comreações adversas a medicamentos no períododo estudo ou em alguma vez na vida, e suas ca-racterísticas; informações sobre a conduta domédico, do dispensador e do paciente no pro-cesso da prescrição e dispensação dos medica-mentos. As duas últimas não apresentadas nopresente trabalho.

Para a aplicação do questionário foram se-lecionados e treinados dez entrevistadores,acadêmicos do curso de Farmácia, Universida-de Federal do Ceará (UFCE), que aplicaram osquestionários nos domicílios selecionados.

Para a entrevista individual foi obtido con-sentimento prévio de todas as pessoas (escritoou verbal). As informações relativas às pessoascom idade menor que 15 anos e idosos ou adul-tos com problemas de cognição ou doença fo-ram dadas por seus responsáveis legais. No es-tudo, 30,0% foram considerados informantes.

Para o levantamento da renda, decidiu-semontar uma tabela com sete faixas salariais euma variável sem rendimento, na tentativa deobter o maior número possível de informaçõesa este respeito. Os entrevistadores foram orien-tados para solicitar que as pessoas apresentas-sem o(s) medicamento(s) utilizado(s) ou, sefosse o caso, mostrassem a receita médica.

Variáveis do estudo

No presente estudo, consumo de medicamen-tos foi considerado a variável dependente. Fo-ram considerados consumidores de medica-mentos todas as pessoas que nos 15 dias ante-riores à entrevista tinham consumido pelo me-nos um medicamento. As variáveis indepen-dentes coletadas foram: (a) demográficas: nú-mero de pessoas residentes no domicílio (≤ 3; 4a 5; ≥ 6), sexo (masculino ou feminino), idadeem anos completos (0-15, 16-49, 50-98), estadoconjugal (casado, não-casado); (b) sócio-eco-nômicas: escolaridade (≤ 8 anos e > 8 anos),renda familiar mensal (até 3 salários mínimose 4 a 20 salários mínimos), ocupação (sim ounão). O salário mínimo na época da realizaçãoda pesquisa correspondia a R$200,00 (duzen-tos Reais); (c) indicadores da condição de saú-de: história de doenças crônicas referidas peloindivíduo (sim ou não), autopercepção do es-

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tado de saúde; (d) indicadores de utilização deserviços de saúde: internação hospitalar nosúltimos 12 meses (sim ou não), consulta médi-ca nos últimos três meses (sim ou não), possede plano privado de saúde (sim ou não).

Para garantir a qualidade dos dados, reen-trevistas parciais, pessoais ou telefônicas fo-ram realizadas com 20,0% dos participantes.

Os dados foram armazenados no programaEpi Info 6.0, com dupla entrada da informação,e analisados com o auxílio do programa Stata,versão 7.0. O plano de análise dos dados in-cluiu: a obtenção de freqüências simples dasvariáveis de interesse; investigações das carac-terísticas das variáveis em estudo associadasao consumo de medicamentos, utilizando-se oteste qui-quadrado para verificar diferenças deproporções, com nível de significância p < 0,05;análise bivariada, empregando como medidade efeito a razão de prevalência e seus respec-tivos intervalos de confiança; a análise multi-variada foi realizada por meio de regressão lo-gística não condicional, obedecendo ao mode-lo hierárquico proposto na Figura 1.

Os fatores sócio-econômicos, consideradoscomo o principal fator desencadeador da su-cessão de eventos que culminaram com o apa-recimento de quadros mórbidos e consumo demedicamentos, compõem a primeira etapa daanálise. Os fatores demográficos e os relativosà situação de saúde e utilização de serviços com-põem, respectivamente, a segunda e terceiraetapas. A quarta etapa da análise é o bloco daavaliação subjetiva (autopercepção do estadode saúde).

A inclusão de cada variável dependeu dasignificância estatística aferida pela razão deprevalência e seus respectivos intervalos deconfiança. No modelo final restaram as variá-veis que, acrescidas ao modelo, apresentavamum valor p < 0,10 quando ajustadas pelas va-riáveis dos níveis superiores e do mesmo nível.A razão de prevalência foi obtida aplicando-seo método elaborado por Zhang & Yu 24, com oauxílio do comando relrisk do programa esta-tístico Stata. Para todas as análises considerou-se o efeito do desenho amostral.

O protocolo da pesquisa foi submetido eaprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa docomplexo hospitalar da UFCE.

Resultados

O estudo incluiu 1.378 indivíduos, sendo queoito (0,6%) foram perdas e recusas, resultandoem 1.370 pessoas entrevistadas. Dessas, quatroforam excluídas da análise, pois os questioná-

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rios estavam incompletos. Da população estu-dada, 679 pessoas (49,7%) referiram ter consu-mido pelo menos um medicamento nos últi-mos 15 dias.

Na Tabela 1 observa-se a distribuição dos in-divíduos segundo as variáveis estudadas. O con-sumo foi maior entre as pessoas que pertenciamàs famílias cuja renda mensal era superior atrês salários mínimos (55,2%), com oito ou maisanos de escolaridade (52,7%), do sexo feminino(55,6%), com idade maior ou igual a 50 anos(67,2%), casados (51,0%), de famílias com trêsou menos pessoas no domicílio (56,0%), que re-feriram doença crônica (88,0%), que possuíamcobertura por plano de saúde (66,0%), que reali-zaram uma ou mais consultas médicas nos últi-mos três meses (64,5%) ou que tenham se hos-pitalizado uma ou mais vezes nos últimos 12meses (62,0%) e entre os indivíduos cuja auto-percepção do estado de saúde é ruim ou muitoruim (69,9%). Com relação à ocupação, o consu-mo foi maior entre os não-ocupados (47,2%).

Observou-se diferença estatisticamente sig-nificante (p < 0,05) no uso de medicamentos de

acordo com a renda familiar, escolaridade, sexo,idade igual ou maior que 50 anos, estado conju-gal, número de residentes por domicílio (comtrês ou menos e quatro ou cinco indivíduos),ter ou não doença crônica, plano de saúde, umaou mais consultas ou hospitalizações, respecti-vamente, nos últimos 3 e 12 meses (Tabela 1).

Na análise bivariada (Tabela 2), observou-se uma associação positiva e estatisticamentesignificante entre consumo de medicamentose as seguintes variáveis: renda familiar mensalmaior que três salários mínimos (razão de pre-valência – RP = 1,3; intervalo de confiança de95% – IC95%: 1,2-1,5), escolaridade maior queoito anos (RP = 1,2; IC95%: 1,1-1,4), sexo femi-nino (RP = 1,4; IC95%: 1,3-1,5), idade entre 50 e98 anos (RP = 1,7; IC95%: 1,4-1,9), domicílioscom três ou menos pessoas (RP = 1,3; IC95%:1,1-1,5), doente crônico (RP = 2,2; IC95%: 2,0-2,2), com cobertura por plano de saúde (RP = 1,6;IC95%: 1,5-1,7), com uma ou mais consultasnos últimos três meses (RP = 1,9; IC95%: 1,8-2,1), uma ou mais hospitalizações nos últimos12 meses (RP = 1,3; IC95%: 1,1-1,4), autoper-cepção pior da saúde (RP = 1,6; IC95%: 1,3-1,9).

Na primeira etapa do modelo hierarquiza-do (bloco de características sócio-econômicas)foram introduzidas as variáveis renda familiar,escolaridade e ocupação (Tabela 2). Verificou-se que a renda familiar mensal maior que trêssalários mínimos esteve significativamente as-sociada ao consumo de medicamentos, mes-mo após ajuste pela escolaridade e ocupação(RP = 1,3; IC95%: 1,1-1,5), confirmando os acha-dos da análise bivariada. O mesmo não ocor-reu com a escolaridade. As variáveis renda, es-colaridade e ocupação foram mantidas para aanálise dos blocos seguintes.

Na segunda etapa da análise de regressãologística (Tabela 2) foram introduzidas, alémda renda familiar, escolaridade e ocupação, asvariáveis pertencentes ao bloco de característi-cas demográficas: idade, sexo, estado conjugale número de moradores/domicílio. O sexo fe-minino manteve associação positiva e estatisti-camente significante com o consumo de medi-camentos nos últimos 15 dias (RP = 1,4; IC95%:1,3-1,5). Com relação à idade, após ajuste pelasvariáveis citadas acima, percebe-se que a faixaetária entre 50 e 98 anos apresentou uma que-da na associação, mas permaneceu associadapositivamente ao consumo de medicamentose apresentou significância estatística (RP = 1,4;IC95%: 1,2-1,6). Estes resultados confirmam osachados da análise bivariada. No estado conju-gal a associação existente entre casados e con-sumo desaparece após os ajustes pelas demaisvariáveis.

Figura 1

Modelo hierárquico do processo de determinação do consumo de medicamentos.

Bloco sócio-econômico

Renda familiar mensal

Escolaridade

Ocupação

Bloco demográfico

Sexo

Idade

Estado conjugal

Número de moradores no domicílio

Bloco saúde

Doença crônica

Consulta médica nos últimos três meses

Hospitalização nos últimos 12 meses

Posse de plano de saúde

Bloco avaliação subjetiva

Autopercepção do estado de saúde

Consumo de medicamento

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PREVALÊNCIA E FATORES DETERMINANTES DO CONSUMO DE MEDICAMENTOS 1741

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Tabela 1

Prevalência do consumo de medicamentos nos últimos 15 dias conforme as variáveis estudadas.

Fortaleza, Ceará, Brasil, 2002/2003.

Variáveis Freqüência Prevalência de consumo p valor(n = 1.366) de medicamentos (%)

Renda familiar mensal (em salários mínimos*)

Até 3 745 40,8 < 0,01

> 3 621 55,2

Escolaridade (em anos)

≤ 8 904 44,3 < 0,05

> 8 462 52,7

Ocupação**

Sim 514 46,4 = 0,78

Não 852 47,2

Sexo

Masculino 640 37,1 < 0,01

Feminino 726 55,6

Idade (em anos)

0-15 402 38,8

16-49 704 44,4 = 0,13

50-98 260 67,2 < 0,01

Estado conjugal

Casado 502 51,0 < 0,05

Não-casado 864 44,6

Número de moradores no domicílio

≤ 3 297 56,0 < 0,05

4-5 621 48,5 < 0,05

≥ 6 448 38,4

Doenças crônicas

Sim 227 88,0 < 0,01

Não 1139 39,0

Plano de saúde

Sim 370 66,0 < 0,01

Não 996 40,5

Consulta nos últimos três meses

Sim 751 64,5 < 0,01

Não 615 34,1

Hospitalização nos últimos 12 meses

Sim 155 62,0 < 0,01

Não 1211 45,0

Autopercepção da saúde

Excelente/muito boa 446 40,7

Boa 834 47,5 < 0,05

Ruim/muito ruim 86 69,9 < 0,01

* Salário mínimo = R$200,00 (outubro/2002).** Ocupados: autônomo; funcionário público; militar; profissional liberal; proprietário de comércio, indústria ou serviços; trabalhador em comércio, indústria ou serviços. Não ocupados: aposentado, pensionista, desempregado, dona-de-casa, estudante, outros que não exerçam atividades.

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No caso do número de moradores por do-micílio (Tabela 2), observou-se que, após osajustes, as variáveis que estavam associadaspositivamente (menor ou igual a três e quatroa cinco moradores por domicílio) mantiverama associação, mas não apresentaram signifi-cância estatística. As variáveis sexo, idade e nú-mero de moradores por domicílio permanece-ram no modelo.

De acordo com o modelo teórico, as variá-veis do bloco saúde (doença crônica, plano desaúde, consultas nos últimos três meses e hos-pitalização nos últimos 12 meses) foram ajus-tadas para as variáveis sócio-econômicas e de-mográficas que permaneceram no modelo (Ta-bela 2). A presença de doença crônica aparececomo forte preditora do consumo de medica-mentos, pois verificou-se que os resultados per-maneceram inalterados (RP = 2,1; IC95%: 1,9-2,2), confirmando a associação positiva e signi-ficante com o consumo de medicamentos en-contrado na análise bivariada. A variável planode saúde ajustada pelas demais perdeu forçana associação, mas manteve-se associada e sig-nificante (RP = 1,2; IC95%: 1,1-1,4), o mesmoocorrendo com a variável realização de consul-tas nos últimos três meses (RP: 1,8; IC95%: 1,6-1,9); já a realização de internação nos últimos12 meses continuou associada positivamente,mas sem significância. Permaneceram para opróximo bloco: doença crônica, plano de saú-de e consulta nos últimos três meses.

Na última etapa (bloco variável subjetiva)foram introduzidas todas as variáveis selecio-nadas nas etapas anteriores do modelo de re-gressão logística (Tabela 2). Observou-se que aautopercepção pior do estado de saúde apósajuste pelos possíveis confundidores perdeu asignificância estatística.

Discussão

A população amostrada é representativa da po-pulação de Fortaleza, pois encontrou-se seme-lhanças ao comparar os dados relativos à ida-de, sexo, escolaridade e número de habitantes/domicílio com os resultados do Censo Demo-gráfico 2000 22.

A prevalência do consumo de medicamen-tos encontrada em Fortaleza (49,7%) foi similaràquela determinada para o Nordeste do Brasil(50,2%) no estudo realizado pelo Conselho Na-cional de Secretários de Saúde (CONASS) 1. Di-fere, no entanto, dos valores encontrados emoutros estudos realizados em diferentes cida-des brasileiras 10,14,18,19,20, onde o consumo va-riou de 24,7% a 70,0%. Comparando-se ao con-

Tabela 2

Distribuição das variáveis de estudo de acordo com as razões de prevalência (RP)

bruta e ajustada conforme regressão logística por níveis hierárquicos e seus

respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%). Fortaleza, Ceará, Brasil, 2002/2003.

Variáveis RP bruta RP ajustada* (IC95%) (IC95%)

1. Bloco sócio-econômico

Renda familiar mensal (em salários mínimos)

Até 3 1,0 1,0

> 3 1,3 (1,2-1,5) 1,3 (1,1-1,5)

Escolaridade (em anos)

≤ 8 1,0 1,0

> 8 1,2 (1,1-1,4) 1,1 (1,0-1,3)

Ocupação

Sim 1,0 1,0

Não 1,1 (0,9-1,2) 1,1 (1,0-1,2)

2. Bloco demográfico

Sexo

Masculino 1,0 1,0

Feminino 1,4 (1,3-1,5) 1,4 (1,3-1,5)

Idade (em anos)

0-15 1,0 1,0

16-49 1,1 (0,9-1,2) 0,9 (0,7-1,1)

50-98 1,7 (1,4-1,9) 1,4 (1,2-1,6)

Estado conjugal

Não-casado 1,0 1,0

Casado/união consensual 1,1 (1,0-1,2) 1,0 (0,9-1,2)

Número de moradores no domicílio

≤ 3 1,3 (1,1-1,5) 1,2 (1,0-1,3)

4-5 1,2 (1,0-1,3) 1,2 (1,0-1,4)

≥ 6 1,0 1,0

3. Bloco saúde

Doenças crônicas

Não 1,0 1,0

Sim 2,2 (2,0-2,2) 2,1 (1,9-2,2)

Plano de saúde

Não 1,0 1,0

Sim 1,6 (1,5-1,7) 1,2 (1,1-1,4)

Consulta nos últimos três meses

Não 1,0 1,0

Sim 1,9 (1,8-2,1) 1,8 (1,6-1,9)

Hospitalização nos últimos 12 meses

Não 1,0 1,0

Sim 1,3 (1,1-1,4) 1,1 (0,9-1,3)

4. Bloco avaliação subjetiva

Autopercepção da saúde

Excelente/muito boa 1,0 1,0

Boa 1,2 (1,1-1,4) 1,1 (0,9-1,2)

Ruim/muito ruim 1,6 (1,3-1,9) 1,3 (0,8-1,6)

* Ajustada para os fatores de confusão pertencentes a um nível hierárquico igual ou superior ao seu.

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sumo geral no Brasil 1, 57,0%, o valor encontra-do é inferior, mas ainda maior do que o obser-vado em países como Espanha 13, 44,8%, e No-ruega 15, 36,1%.

No estudo verifica-se que renda familiarmensal, sexo, idade, presença de doença crôni-ca, cobertura por plano de saúde e realizaçãode consultas ao médico nos últimos três mesessão prováveis fatores determinantes do consu-mo de medicamentos nos últimos 15 dias, emFortaleza.

A renda familiar mensal aparece como de-terminante importante do consumo de medi-camentos, pois observou-se que as pessoascom renda familiar superior a três salários mí-nimos consomem 1,3 vez mais medicamentosdo que aquelas com renda igual ou inferior atrês salários mínimos. Tal resultado evidencia opoder aquisitivo das pessoas como fator predi-tivo para o uso de medicamentos, o que tam-bém foi verificado em recentes pesquisas reali-zada por Bertoldi et al. 10, pelo CONASS 1 e porFernandes 4. Os dados demonstram que existeuma iniqüidade no acesso.

A situação é preocupante, considerando queboa parte da população brasileira depende doSUS para ter acesso aos medicamentos, que exis-tem evidências de uma maior prevalência dedoenças crônico-degenerativas nos estratos so-ciais mais baixos 25 e que o Estado vem falhandona distribuição gratuita de medicamentos essen-ciais à população 1,3,4,26. No caso específico dospacientes carentes com doenças crônicas, o não-acesso força o comprometimento da renda fami-liar ou favorece o abandono do tratamento, oque pode ocasionar agravamento do estado desaúde e conseqüente expansão dos gastos cominternações e atendimentos ambulatoriais.

Teixeira 5, em sua pesquisa sobre a adesãoao tratamento anti-hipertensivo em ambulató-rio de um hospital público de Fortaleza, ilustrabem a situação descrita acima. No estudo, aautora observou que dos 266 medicamentosprescritos para os 177 pacientes que realizaramconsulta nesse ambulatório, só 91 (34,2%) fo-ram encontrados no setor público, 136 foramadquiridos no setor privado e 39 não foram ad-quiridos. O comprometimento da renda fami-liar nas classes baixas pode ser visto no estudorealizado por Fernandes 4, em Fortaleza, ondea despesa média mensal familiar com assistên-cia à saúde nos domicílios selecionados foi de38,5% do salário mínimo, onde, por tipo de des-pesa, os medicamentos tiveram a maior pro-porção percentual (55,5%). A autora conside-rou as despesas, entre as classes D e E, propor-cionalmente elevadas em relação aos demaisgastos domésticos.

A escolaridade apresentou-se associada aoconsumo de medicamentos, mas sem signifi-cância estatística para as pessoas com mais deoito anos de estudo. Bertoldi et al. 10 tambémnão encontraram associação significante entreescolaridade e consumo de medicamentos emPelotas, Rio Grande do Sul. Nos trabalhos in-ternacionais, o grau de escolaridade aparece,principalmente, relacionado ao aspecto do con-sumo por automedicação, com tendência cres-cente de consumo entre os mais escolarizados13,17. No Brasil, Franco et al. 21 evidenciaram amesma coisa. De modo geral, um maior nívelde escolaridade está associado a um maior co-nhecimento e discernimento sobre o processosaúde-doença, porém é a maior renda que pro-picia uma maior cobertura a planos de saúde eacesso aos serviços de saúde 2.

Com relação ao gênero, o consumo de me-dicamentos foi 1,4 vez maior no sexo femininodo que no masculino. Eggen 16 encontrou resul-tado semelhante em Tromso, Noruega. A maiorprevalência é, também, evidente em outros es-tudos nacionais 10,14,18,19,20 e internacionais12,13,15,16, e independe do tipo de consumo, comou sem prescrição.

As mulheres em relação aos homens costu-mam cuidar mais de si e, historicamente, sãoresponsáveis pelo cuidado com a saúde de suasfamílias 27. Portanto, estão mais atentas à sin-tomatologia das doenças e costumam procurarprecocemente ajuda. Ainda em relação aos ho-mens, são as que mais utilizam os serviços desaúde 4,11,17,26. É provável que este fato estejaassociado também a maiores oportunidades deatendimento nas unidades de saúde, tendo emvista os programas específicos existentes. Poroutro lado, as mulheres também são submeti-das a uma maior pressão da classe médica e damídia em relação a problemas específicos decada fase da vida, como é o caso dos incômo-dos do período menstrual 16, da menopausa ea sua sintomatologia associada 28. Todos essesaspectos contribuem para que as mulheres te-nham maiores chances de exposição a medica-mentos.

No estudo, observa-se que o consumo au-menta com a idade e que o mesmo é 1,4 vezmaior entre as pessoas de 50 ou mais anos emcomparação com as demais faixas etárias. Es-tudos realizados por Betoldi et al. 10, Al-Windiet al. 12, Figueiras et al. 13 e Eggen 15,16 eviden-ciaram um maior consumo com o aumento daidade. No estudo realizado pelo CONASS 1, aprevalência do consumo na faixa etária de 56anos ou mais foi de 73,3%, e em estudo realiza-do na Espanha 13 o consumo foi maior na faixade 60 ou mais anos (71,1%). Esses dados acom-

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panham as evidências encontradas para essaassociação.

A princípio, na análise bivariada, o númerode moradores por domicílio apresentou asso-ciação significante com consumo de medica-mentos, principalmente nas famílias com trêsou menos pessoas, mas após os ajustes pelasvariáveis de confusão perdeu a significânciaestatística. Estudo realizado por Loyola Filho etal. 11 constata o contrário, onde os autores ve-rificam que existe uma tendência crescente deconsumo de medicamentos sem prescriçãoquanto maior o número de moradores por do-micílio. Apenas no trabalho realizado por Fi-gueira et al. 13 encontra-se o maior consumopor automedicação associado entre pessoasque vivem sozinhas. Na descrição geral do con-sumo de medicamentos em Fortaleza existeum indicativo de maior prevalência entre os in-divíduos que moram sozinhos (62,2%).

Padecer de doença crônica foi o maior pre-ditor do consumo de medicamentos. As pes-soas com patologias crônicas consumiram 2,1vezes mais medicamentos que os que não pos-suíam tais patologias. Esse é o tipo de preditoresperado, já que as pessoas nessas condiçõesdependem de medicamentos para melhorarsua qualidade de vida. Eggen 16, em Tromso,Noruega, também encontrou associação posi-tiva entre doentes crônicos e uso de medica-mentos, onde os homens apresentavam maiorconsumo que as mulheres (p < 0,05).

A cobertura por plano de saúde também foiconsiderada como possível fator determinantedo consumo. Lima et al. 2, com base nos dadosda Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-lios (PNAD) de 1998, constataram que o au-mento da cobertura por planos de saúde estádiretamente relacionado com a renda familiarmensal, e que existe uma associação positivadesta última com as taxas de consultas médi-cas, o que, sem dúvida, favorece o maior aces-so aos serviços de saúde, além da indicação eaquisição de medicamentos por parte dos maisfavorecidos financeiramente.

Ter se consultado nos últimos três mesesapresentou associação positiva e significantecom o consumo de medicamentos. As pessoasque haviam realizado alguma consulta nos úl-timos três meses consumiram 1,8 vez mais me-dicamentos que os que não realizaram nenhu-ma consulta. Este fato pode estar relacionado àcrescente medicalização da sociedade, ondetoda consulta médica tem de terminar comuma prescrição. É o que aponta Correia 26, Fer-nandes 4 e Eggen 16.

No estudo realizado por Correia 26 em duasmicrorregiões do Estado do Ceará, o autor veri-

ficou que 90,0% dos usuários que se consulta-ram nas duas microrregiões, motivados poruma doença, receberam um tratamento. Fer-nandes 4 reportou em seu estudo realizado emFortaleza, que entre as pessoas que buscaramatendimento médico, 87,9% receberam pres-crição de medicamentos ao final da consulta.Segundo Correia 26, o elevado percentual de re-ceitas pode estar relacionado à boa qualidadeda atenção em saúde, mas também pode refle-tir o interesse do profissional de levar a consul-ta a um desfecho, saltando etapas precedentesessenciais de exame do paciente e formulaçãode um diagnóstico. Vale lembrar que nos estu-dos realizados pela Prefeitura de Fortaleza, oatendimento é considerado como de baixaqualidade, tendo em vista o pouco tempo queo profissional médico dedica a seu cliente. Portrás deste fato pode estar a alta demanda deatendimento e o baixo número de recursos hu-manos 29,30.

Entre os autores internacionais pesquisa-dos, Eggen 16, em Tromso, Noruega, foi o únicoa pesquisar essa relação, e encontrou associa-ção positiva e significante. No estudo verifica-se que os homens consultam mais que as mu-lheres (p < 0,05).

Apesar de o estudo ter apontado uma asso-ciação positiva, mas não estatisticamente sig-nificante entre consumo de medicamentos eocupação, cabe observar que esse tipo de asso-ciação foi identificada por Figueiras et al. 13, naEspanha. O autor verifica que as pessoas de-sempregadas consomem 1,3 vez mais medica-mentos que as ocupadas. O consumo entre osestudantes também é 1,2 vez maior que entreos ocupados. Mestanza & Pamo 17, em Lima,Peru, também encontraram altas prevalênciasde consumo entre donas-de-casa, estudantes edesocupados, que praticavam automedicação.

No estudo, a associação entre autopercep-ção do estado de saúde e consumo de medica-mentos perdeu sua significância quando ajus-tada para os fatores de confusão. Entretanto, éuma variável importante, pois as pessoas comestado pior de saúde tenderão a buscar maisassistência médica ou outras alternativas paramelhorar o seu estado de saúde. Estudo reali-zado em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil 10

constata que a prevalência de uso e número demedicamentos utilizados estão diretamente re-lacionados com a piora da autopercepção desaúde. Al-Windi et al. 12 evidenciaram, na Sué-cia, que o estado pior de saúde estava associa-do a um maior consumo de medicamentosprescritos pelos médicos.

Com relação a aspectos metodológicos, éimportante considerar alguns fatores que po-

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dem ter limitado ou superestimado os resulta-dos deste estudo. A época escolhida para a rea-lização do estudo procurou eliminar ou mini-mizar as influências relativas a outros perío-dos, principalmente os relacionados à quadrachuvosa e suas conseqüências (viroses e den-gue) e ao período eleitoral (eleições 2003). Anão-observação desses períodos poderia supe-restimar o consumo de algumas classes farma-cológicas. No estudo não se pode descartar,também, a influência do viés de memória, as-sim como de casos onde a omissão no consu-mo pode ter ocorrido pelo fato de a pessoa es-tar fazendo uso de produtos com fins ilegais ouconsiderados de uso íntimo. Da mesma forma,é provável que as doenças crônicas estejam su-bestimadas devido a problemas de memóriae/ou ausência de diagnóstico entre algumaspessoas.

Conclusões

O consumo de medicamentos em Fortaleza éelevado, mas encontra-se dentro dos parâme-tros observados no Brasil e no exterior. Identi-ficou-se como possíveis fatores determinantesdesse consumo a renda familiar mensal maiorque três salários mínimos, o sexo feminino, aidade igual ou maior que 50 anos, a presençade doenças crônicas, a posse de planos de saú-

de e a realização de consultas médicas nos últi-mos três meses.

O fato do acesso aos medicamentos apare-cer condicionado pela renda demonstra que eledeva ser garantido pelo poder público, comodetermina a Constituição Federal. A não-obser-vação desse indicador, principalmente no casodas doenças crônicas degenerativas, além deproporcionar o agravamento das enfermidadesnão tratadas, poderá onerar os gastos com aatenção secundária e terciária.

É importante, também, compreender que ouso de medicamentos, na grande maioria dasvezes, está interligado aos problemas sociais,ambientais e ao modo de vida das pessoas; por-tanto, vale a pena que as autoridades governa-mentais e os profissionais de saúde invistamno desenvolvimento de práticas de prevençãoe promoção da saúde, o que por si só, reduziráa necessidade do uso de medicamentos pela po-pulação. Por sua vez, estas atividades deverãoser planejadas e desenvolvidas por equipe mul-tiprofissional, assim como deve contar com aajuda da própria comunidade, em todos os pro-cessos.

As mulheres, juntamente com os idosos edoentes crônicos, destacam-se no consumo demedicamentos, portanto, deverão ser os gruposde preferência para o delineamento de açõeseducativas voltadas para o uso racional de me-dicamentos.

Agradecimentos

Este trabalho é parte da Tese de Doutorado em SaúdePública, apresentada ao Instituto de Saúde Coletivada Universidade Federal da Bahia, em fevereiro de2004, com o apoio da Fundação Cearense de Amparoà Pesquisa (processo n. 231/02) e da Farmácia Escolada Universidade Federal do Ceará. Agradecimentosespeciais ao Dr. Francisco José Moreira Lopes, chefeda Unidade Estadual do Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatística no Ceará e às famílias entrevistadas.

Colaboradores

P. S. D. Arrais foi o responsável pela coordenação doestudo participando na concepção, desenho, coleta,organização do banco de dados, análise e interpreta-ção dos dados e redação do artigo. H. L. L. Coelhoparticipou na concepção e elaboração do projeto, de-senvolvimento dos instrumentos, interpretação e dis-cussão dos resultados. M. L. Barreto colaborou na aná-lise, interpretação e discussão dos resultados. L. L.Brito colaborou na análise estatística, interpretação ediscussão dos resultados. Todos os autores contribuí-ram na confecção do artigo.

Resumo

O presente trabalho tem por finalidade investigar aprevalência e os determinantes do consumo de medi-camentos pela população de Fortaleza, Ceará, Brasil.Com base em um delineamento transversal de basepopulacional, estudou-se uma amostra representativade 331 domicílios, onde foram entrevistadas 1.370 pes-soas, no período de outubro/2002 a janeiro/2003. Fo-ram consideradas consumidoras de medicamentos to-das as pessoas que nos 15 dias anteriores à entrevistatenham consumido pelo menos um medicamento. Pa-ra análise estatística foram incluídas 1.366 pessoas. Aprevalência do consumo de medicamentos foi de49,7%. Os fatores preditores do consumo na análisemultivariada, por regressão logística, foram: renda fa-miliar mensal maior que três salários mínimos, idadeigual ou maior que 50 anos, sexo feminino, três ou me-nos pessoas por domicílio, doente crônico, ter plano desaúde e ter se consultado uma ou mais vezes nos últi-mos três meses. A prevalência do consumo de medica-mentos em Fortaleza é elevada, mas encontra-se den-tro dos parâmetros encontrados no Brasil e no exterior.No entanto, sugere que existe uma iniqüidade no acessoaos medicamentos.

Hábitos de Consumo de Medicamentos; Uso de Medi-camentos; Farmacoepidemiologia

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Submetido em 13/Ago/2004Aprovado em 29/Mar/2005