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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros
VELLOZO, DS. Arquitetura militar ou fortificao moderna [online]. Salvador: EDUFBA, 2005. 370 p. ISBN 85-232-0373-7. Available from SciELO Books .
All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.
Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.
Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.
Arquitetura militar ou fortificao moderna
Diogo Sylveyra Vellozo
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:091
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ReitorNaomar Monteiro de Almeida Filho
Vice-reitorFrancisco Jos Gomes Mesquita
Editora da Universidade Federal da BahiaDiretora
Flvia Goulart Mota Garcia Rosa
Conselho EditorialAngelo Szaniecki Perret Serpa
Carmen Fontes TeixeiraDante Eustachio Lucchesi Ramacciotti
Fernando da Rocha PeresMaria Vidal de Negreiros Camargo
Srgio Coelho Borges Farias
SuplentesBouzid Izerrougene
Cleise Furtado MendesJos Fernandes Silva Andrade
Nancy Elizabeth OdonneOlival Freire JuniorSilvia Lcia Ferreira
Faculdade de Arquitetura da UFBAPrograma de Ps-graduao em Arquitetura e Urbanismo - FAUFBA
Universidade de voraMestrado em Conservao do Patrimnio - UE
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:092
PPG-AU / EDUFBA / UESalvador-BA
2005
ARQUITETURAMILITAROU
FORTIFICAOMODERNA
Mrio Mendona de OliveiraTranscrio e comentrios
escrito por Diogo da Sylveyra Vellozo
(um manuscrito da Real Biblioteca da Ajuda, Lisboa)
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Biblioteca Central Reitor Macdo Costa - UFBA
V441 Vellozo, Diogo da Sylveyra. Arquitetura militar ou fortificao moderna / escrito por Diogo Sylveyra Vellozo ; transcrio e comentrios : Mrio Mendona de Oliveira ; projeto grfico : Angela Dantas Garcia Rosa. - Salvador : EDUFBA, 2005. 370 p. : il. ISBN 85-232-0373-7 Um manuscrito da Real Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Co-edio com o Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia e a Universidade de vora, Portugal.
1. Arquitetura militar. 2. Fortificaes. 3. Engenharia militar. I. Oliveira, Mrio Mendona. II. Universidade Federal da Bahia. III. Universidade de vora. IV. Ttulo. CDU - 725.182 CDD - 725.18
2005, by Real Biblioteca da Ajuda, Lisboa.
Direitos para esta edio cedidos Editora da UniversidadeFederal da Bahia e ao Programa de Ps-graduao em Arquitetura
e Urbanismo da UFBA. Feito o depsito legal.
RevisoMrio Mendona de Oliveira
Karina Matos Cerqueira
Projeto grfico: capa e mioloAngela Dantas Garcia Rosa
EDUFBARua Baro de Geremoabo, s/n
Campus de Ondina40170-290 Salvador Bahia
telefax (71) 32636160www.edufba.ufba.br
FACULDADE DE ARQUITETURARua Caetano Moura, 121, Federao40210-350, Salvador - Bahia - Brasiltelefax: (71) [email protected]
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:094
com grande satisfao que o Programa de Ps-Graduao
em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBA publica, em parceira com
a EDUFBA e o programa de ps-graduao em conservao do
patrimnio da Universidade de vora, Portugal, esta importante
obra sobre a arte de construir fortificaes militares.
Ao sermos indagados, pelo Prof. Mrio Mendona de Olivei-
ra, sobre o interesse em publicar a obra Architectura Militar, de
Diogo da Silveira Vellozo, nossa resposta positiva foi imediata.
A importncia do texto original, a qualidade da transcrio e a
pertinncia dos comentrios que compem este livro nos levaram
a apoiar esta publicao que traz a luz os conhecimentos sobre a
construo de fortificaes no sculo XVIII. Agora, ao vermos o
livro pronto, nos sentimos honrados em ter participado desta em-
preitada e em fazer a apresentao do texto para os leitores.
No h dvida quanto a grande contribuio que esta publi-
cao, composta por escritos que ficaram guardados por tanto tem-
po, traz para o preenchimento de uma importante lacuna para
aqueles que se dedicam ao estudo da histria da arquitetura e da
construo, enriquecendo os conhecimentos da arte de construir
e da arquitetura de fortificaes e somando informaes sobre
a cincia da construo.
Atravs desta publicao, recupera-se a terminologia da arte
de construir, a explicitao da nomenclatura das fortificaes,
APRESENTAO
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:095
6o conhecimento da tipologia e a leitura das obras fortificadas, res-
gatando e divulgando informaes histricas importantes.
Certamente, o texto a seguir, transcrito mantendo sua grafia
original, proporcionar uma viagem no tempo onde poderemos
compreender o ofcio dos engenheiros militares do sculo XVIII
que tanto influenciaram nas construes, na arquitetura e no ur-
banismo brasileiro.
Agradecemos, assim, ao Prof. Mrio Mendona por sua de-
dicao a este trabalho, na divulgao de obra indita atravs do
grande esforo para sua transcrio e seus bem construdos co-
mentrios, suprindo esta lacuna e, quem sabe, realizando o sonho
deste engenheiro que no pode ver sua obra publicada.
Faculdade de Arquitetura PPGAU
Eloisa Petti PinheiroCoordenadora
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:096
A oportunidade de publicao de textos antigos sobre a arte
ou sciencia que ensina a bem fortificar , entre ns, muito escas-
sa. Por isso, saudamos vivamente a edio deste manual indito do
Tenente General Diogo da Silveira Velloso, escrito no Brasil em
1743 e intitulado Architectura Militar ou Fortificao Moderna.
A sua difuso pela comunidade acadmica luso-brasileira, qual
se apresenta, permitir que a fora e a vitalidade da ancestral cons-
truo militar portuguesa, nas suas diversas latitudes e circuns-
tncias culturais, sejam mais apropriadamente conhecidas e
estudadas. Da, o justo cabimento desta edio conjunta sob a chan-
cela de duas universidades que tm solidariamente colaborado e,
de modo pioneiro nos respectivos pases, promovido o ensino e a
investigao da salvaguarda do patrimnio histrico edificado.
O compndio ilustrado de Velloso, cujo interesse prtico e signifi-
cado didctico lhe advm do seu destino castrense, permanecia esqueci-
do ou desprezado no panorama cultural dos nossos pases. Esta publicao
redivive um autor oitocentista, at agora pouco conhecido e que enobre-
ceu o legado da engenharia militar portuguesa, e pretende contribuir
para posicionar a sua figura e a sua obra no espao histrico e cultural
que lhe pertencem. Tal desiderato foi possvel graas aos esforos incan-
sveis e entusisticos do nosso colega e amigo Professor Mrio Mendon-
a de Oliveira, o qual, com a sua comprovada autoridade neste domnio
de especializao, transcreveu e anotou o texto vellosiano.
APRESENTAO
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:097
8Resta-nos exprimir o nosso agradecimento Dra. Cristina
Pinto Basto, Directora da Biblioteca da Ajuda, pela amvel autori-
zao para reproduzirmos esta obra manuscrita ali guardada, e
Professora Elosa Petti, da Universidade Federal da Baa, pela ge-
nerosa possibilidade de nos associarmos a esta bem-vinda publica-
o, no ano em que comemormos o 16 aniversrio da criao,
em vora, dos estudos ps-graduados em recuperao do patrim-
nio arquitectnico e paisagstico.
Universidade de vora, Outubro de 2005
Virgolino Ferreira Jorge
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:098
Independente desta enorme carga de valor cultural e histrico
que est por detrs da transcrio de um manuscrito do Sculo XVIII,
redigido no Brasil, que nunca foi editado, seria plena justificativa tra-
zer ao conhecimento de todos um trabalho de um aplicado engenhei-
ro portugus, que dedicou a sua vida nossa terra. Com isto estamos
retribuindo uma parte do tributo do muito que devemos engenharia
militar, uma das referncias dos primeiros passos da cincia da cons-
truo na nossa terra e da cincia de maneira geral. E, por que no
dizer tambm, que por detrs de tudo existe uma motivao senti-
mental, e alm do mais tica, de fazer divulgar um escrito, cujo autor
certamente morreu frustrado por no ter visto a sua obra impressa.
Que seja do nosso conhecimento, a Architectura Militar de Vellozo
o nico da espcie que tivemos acesso at hoje. Muito populares e
que foram efetivamente escritos no Brasil, embora editados em Portu-
gal, foram os trabalhos do Engenheiro Militar Alpoim1 . Este, porm,
escreveu especificamente sobre artilharia e arte das bombas e no
sobre arquitetura da fortificao.
Mesmo que tenhamos destacado, de maneira bastante enf-
tica, a importncia da Engenharia Militar na construo e defesa
do Brasil no nosso texto Fortificaes portuguesas de Salvador2 cabe,
PROMIO
1 O exame do artilheiro e O exame do bombeiro.
2 OLIVEIRA, Mrio M. As fortificaes portuguesas de Salvador quando Cabea do Brasil.Salvador: Fundao Gregrio de Mattos, 2004. p. 88-91.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:099
10
mais uma vez, sublinhar a importncia destes profissionais que
representavam um osis de conhecimento e erudio no meio da
soldadesca ignara do exrcito colonial, no qual muitos oficiais eram
analfabetos. por isto que o nosso Vellozo atreveu-se a afirmar
que val mais a industria de hum bom Engenheyro, que o valor
de muytos soldados.
Do ponto de vista prtico a leitura dos tratados3 de enge-
nharia militar imprescindvel para quem estuda a memria da
cincia das construes, de maneira geral, eles nos lembram termi-
nologias da arte do construir j esquecidas, explicam a nomencla-
tura das fortificaes, facilitam o conhecimento da tipologia e a
leitura das obras fortificadas que nos ficaram como legado do pas-
sado, resgatam informaes histricas importantes, orientam a in-
vestigao arqueolgica dos stios fortificados e do um retrato
muito interessante da formao dos profissionais da engenharia e
da arquitetura da poca em que foram escritos. bem verdade que
conhecemos, e foram em muito boa hora republicados, sob os
auspcios da Direco do Servio de Fortificaes e Obras do Exr-
cito Portugus, os clssicos da engenharia militar portuguesa, que
so citados dezenas de vezes no texto de Vellozo e obrigatrios nos
documentos dos engenheiros militares de Portugal: O Methodo
lusitnico, do Engenheiro-mor Serro Pimentel, editado em 1680,
e o Engenheiro portugus, de 1728, escrito pelo Brigadeiro Manoel
de Azevedo Fortes, tambm Engenheiro-mor do Reino. Acontece
que so volumes alentados que s podem ser digeridos pelos estu-
diosos apaixonados pelo assunto. O texto de Vellozo mais leve
3 Utilizamos a designao de tratado no sentido lato da palavra, como muito dos antigosengenheiros militares utilizavam, e no no sentido acadmico, que s pode ser atribudoaos textos instauradores, como deseja Choay.
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e mais simplificado. Saiu, provavelmente de apostilas feitas para
alunos da aula militar do Recife e procura ser extremamente did-
tico, montando as suas argumentaes de maneira metdica e in-
cluindo esclios destacados, quando se fazia necessrio e,
obviamente, muitos desenhos anexos. Para cada argumento da for-
tificao, geralmente, relaciona os prs, destacando os autores que
apiam aquela posio e em seguida os argumentos contra, refe-
rindo os seus seguidores. No final d a sua posio pessoal. um
texto agradvel, onde o nosso autor esbanja erudio e demonstra
a boa preparao dos engenheiros militares. So surpreendentes
as suas citaes de textos clssicos de histria e arquitetura, de
tratados de fortificaes e outros, se atentarmos para o fato de que
ele estava distanciado das boas bibliotecas do Reino.
Existem alguns colegas, dos quais respeito muito a opinio,
que so favorveis transcrio feita em linguagem moderna dos
textos antigos. No estamos, entretanto, muito de acordo com eles
no particular. Preferimos nos ater grafia com suas hesitaes, s
abreviaturas com as suas mesmas obscuridades aos menores particula-
res do original4 . O texto modernizado perde o sabor de antiguidade,
esconde os vcios de linguagem do autor e pequenos enganos que
comete na redao que do mais autenticidade, mascaram formas
antigas da redao, afasta-nos da intimidade da paleografia, que
necessria para consultar outras fontes primrias e, finalmente, ser-
vem somente para os estudiosos da arquitetura militar e no para os
lingistas que de posse de um texto transcrito ipsi literis et verbis
podem ter um material precioso para estudo. muito interessante
4 Comunidade de S. Bento de Salvador. Livro Velho do Tombo do Mosteiro de So Bento.Salvador: Tipografia Beneditina, 1945. Prefcio de Wanderley de Pinho, p. XIV.
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observar a grafia de certas palavras que no mais existem nos dicio-
nrios modernos, mas que sobrevivem ainda utilizadas pela gente
simples do serto. Alguma adaptao foi admitida, porm, na trans-
crio para facilitar um pouco a leitura dos estudiosos: Como na
escrita cursiva algumas palavras ficam agrupadas, procuramos
desagrup-las para melhor entendimento; como a letra u, muitas
vezes, era usada em lugar do v, procuramos dar uniformidade da
maneira que hoje empregamos. Alm do mais, usamos e abusamos
de esclarecimentos nossos, que esto sempre entre colchetes, para
distinguir dos parnteses que Velloso emprega de quando em vez.
Todos os negritos do texto so nossos e servem para destacar voc-
bulos importantes, ou afirmativas de relevo.
Em determinadas partes do escrito muitas medidas so refe-
ridas, no somente atravs dos tradicionais palmos e ps portugue-
ses (craveiros), mas tambm em medidas pertencentes a outros
sistemas mtricos, que eram variadssimos naquele tempo e eram
inevitveis de serem citados, porque o nosso autor faz referncias
a tratados escritos e editados em outros pases. Em alguns casos, o
valor da medida seguido pela equivalncia em medidas portugue-
sas, em outros no. O maior problema est em alguns trechos onde
no se sabe a que sistema de medidas est se referido Vellozo, mas,
nestes casos, procuramos chamar a ateno em notas.
Espero que os leitores se deleitem intelectualmente, divir-
tam-se e aprendam, com a leitura deste texto, como ns o fizemos!
A respeito de Diogo da Silveira Vellozo
Diogo Vellozo, semelhana de tantos outros engenheiros
militares, deve ter vindo para o Brasil para conseguir mais facil-
mente acesso aos postos superiores. Uma Carta Patente Real,
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13
datada de 1702, d conta de que ele foi designado para o Ultramar,
para servir na Provncia Cisplatina, na nova Colnia de Montevi-
du, recebendo para isto a merc do posto de capito engenheiro.
Tinha ele naquela quadra a patente de ajudante. Documentao
subseqente, porm, d a entender que ele no tenha chegado ao
seu destino, nem desenhado a nova fortificao da referida cidade,
porque outra Carta Patente que lhe concede o posto de Sargento-
mor, lavrada em 1920, resumindo o seu currculo, faz referncias
a duas viagens a Santos e uma a So Paulo e a Ilha Grande, sempre
no exerccio do seu mister de engenheiro. Fala at do seu naufr-
gio na foz do Rio Vaza-barris, quando ia para a praa de Recife,
mas nada sobre Montevidu. Vejamos o documento na ntegra:
Dom Joo etc etc. fao saber aos que esta minha carta patente virem
que tendo respeito a Diogo da Silveira Vellozo me representar haverme
servido dezouto annos a saber quatro de ajudante nesta corte e os mais no
Brazil com o posto de capito engenheiro fazendo muitas e repetidas [via-
gens] por mar e terra como foro ao Rio de Janeiro, donde servira trs annos
e meyo duas vezes a capitania de Santos e hua a villa de Sam Paulo noutra
a Ilha Grande em ocazio que se achava infestada de piratas e passando a
Pernambuco naufragara na enseada de vazabarris donde se salvou despi-
do [de] tudo quanto tinha e recolhendo [se a] sua praa por terra em dis-
tncia de oitenta legoas fizera nella outras muitas jornadas do meu leal
servio com grande zello e prontido e por esperar delle que em tudo o de que
for encarregado do meu servio se haver com satisfao conforme a confi-
ana que fao da sua pessoa Hey por bem fazerlhe merc de o nomear (como
por esta nomeyo) no posto de sargento mor engenheiro ad honorem com
declarao que ficar com a mesma incumbncia de capito engenheiro e
no ter mayor soldo que com elle lograva athe agora, com o qual
posto haver etc. Dada na cidade de Lisboa occidental aos 11 dias do ms
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14
de setembro. Miguel de Macedo Ribeiro a fes anno do N. de N.S.J.C. de 1720.
O secretario Andr Lopes de Lavre a fez escrever.
El Rey5
Este documento, datado de 1720, deve referir-se a uma peti-
o de alguns anos passados, porque nesta data j devia ter muito
mais tempo de servio do que declarado no papel. Se ele alegava na
petio inicial ter servido no Reino quatro anos, na condio de
ajudante, deve ter sido antes de 1702, quando passou ao Brasil
com a patente de capito.
A maior parte da vida militar e profissional de Vellozo trans-
correu em Pernambuco, na Cidade do Recife, onde o nosso enge-
nheiro constituiu famlia, onde galgou os postos sucessivos sua
patente inicial de capito, escreveu seus livros, entre os quais se
encontra aquele do qual nos ocupamos. Foi, igualmente, arruador
da Cidade6 , trabalhou na construo da Cidadela do Recife, das for-
talezas do Brum, de Santo Antnio dos Coqueiros, de Nazar e nos
quartis de Olinda. Fez algumas misses fora de Pernambuco, como
a explorao de minas de ouro no serto de Ic, no Cear7 , traba-
lhou na fortificao de Fernando de Noronha e assim por diante.
Vellozo, embora aparentemente no fosse abastado, era atento
e zelava pela situao de sua famlia, tanto dos filhos que teve no
Brasil8 , quanto das irms que deixou em Portugal. Para as irms do
5 AHU Arquivo do Conselho Ultramarino, l. 14, de Officios.
6 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3501. Recife, 20 de julhode 1729.
7 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3541 e AHU_ACL_CU_015,Cx. 39, D.3564.
8 Foram quatro filhos dos quais pelos menos trs era mulheres.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0914
15
outro lado do Atlntico, procurava mandar algum apoio financei-
ro9 ou mercadorias que pudessem ser vendidas para o seu susten-
to. nossa crena de que esta mercadoria deveria ter sido para
negociar, porque as dezoito caixas de acar branco que mandou
em 1725 no deveriam ser para consumo familiar10 . Existem indi-
caes documentais de que, pelo menos no incio da sua vida, o
nosso engenheiro no era homem de fortuna, porque quando foi
nomeado Sargento-mor, o Rei, sempre avaro da sua Fazenda Real,
conservou-lhe o mesmo salrio de capito engenheiro, como se v
no documento transcrito anteriormente. Em 1726 Vellozo ainda
pedia que lhe fosse concedido o salrio do posto de sargento-mor,
para o qual tinha sido nomeado desde 1720. Isto tambm est tex-
tualmente referido na carta que a Cmara do Recife faz a D. Joo
V sugerindo que nosso tratadista passasse a receber uma ajuda de
custos do dito Senado da Cmara para exercer a atividade de
cordeador e arruador, em vista da falta de patrimnio do mesmo11 .
Que ele no era protegido da Corte estava tambm claro, porque
as mercs viriam muito mais facilmente se assim o fosse. Em todo o
caso, tinha a prerrogativa de ter nascido em Portugal e, conseqen-
temente, contar com maior confiana do Rei para receber promo-
es, situao bastante diferente dos engenheiros militares que
nasceram no Brasil.
9 Este apoio financeiro deveria ser feito em funo de uma mesada que era descontada doseu salrio e paga a um Procurador na Corte. AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015,Cx. 58, D. 5016. Anterior a 1743. Tanto isto verdade que, em 1746, pede que seja pagoo seu soldo integralmente por ter cessado a aplicao que fazia para a sua irm Isabel Mariada Silveira. AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 64, D. 5471.
10 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2973. Recife, 27 de agosto de1725.
11 AHU Doc. cit. D. 3501.
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16
Em 1729, Diogo Vellozo retorna a Portugal, por ordem do
Governador Duarte Sodr Pereira Tibo, para relatar as dificulda-
des de execuo do projeto de fortificao da Cidade do Recife12
especialmente da sua Cidadela. Teve a oportunidade de expor e dis-
cutir as propostas para este sistema de fortificaes com os mais
importantes engenheiros militares da Corte, o Brigadeiro Manoel de
Azevedo Fortes, Engenheiro-Mor do Reino, o Brigadeiro Joo Mass
e o Coronel Jos da Silva Paes, que juntos elaboraram um parecer
sobre o assunto encaminhando instncia real13 . Aproveitando a
oportunidade de estar na Corte peticiona ao soberano para ser pro-
movido ao posto de Tenente General, o que s veio acontecer de-
pois, provavelmente, em torno do ano de 1730. Regressando ao Brasil
e tendo recebido a promoo solicitada, tem-se notcia de uma con-
tenda com um certo sargento-mor comandante de um dos teros de
Pernambuco, sobre a precedncia dos seus postos. Estas contendas
sobre as patentes dos engenheiros militares eram muito freqentes,
quando alguns comandantes de unidades no queriam reconhec-
las ou respeit-las, divergncias que eram decididas sempre na Corte
em favor dos engenheiros, pelo menos enquanto Azevedo Fortes
foi o Engenheiro-mor do Reino14 .
Em 1735 a carreira de Diogo da Silveira Vellozo sofre uma
inflexo, muito mais aparente do que real. Com a morte do Tenen-
te-general de Artilharia Joo de Macedo Corte Real, ele pede
e consegue ocupar a vaga aberta pelo falecimento do antigo
12 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3540. Lisboa, 16 de novem-bro de 1729.
13 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3541. Lisboa, 17 de novem-bro de 1729.
14 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D. 3812. Recife, 19 de maro de1732.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0916
17
comandante inserindo-se assim nos quadros da artilharia15 . Isto
no quer dizer, todavia, que ele se afastasse do exerccio da enge-
nharia. Naqueles tempos, os engenheiros, em geral, por estarem
afeitos ao manejo das geometrias, da trigonometria, dos levanta-
mentos de campo e dos clculos estavam, na maioria dos casos,
habilitados para operar na artilharia. Observe-se, porm, que os
documentos continuam falando das atividades de Vellozo na enge-
nharia, como na viagem que fez a Fernando de Noronha em 1739,
para melhorar as suas fortificaes, Paraba para onde foi proje-
tar uma nova fortaleza16 . Nesta poca que fez um projeto e or-
ou uma ponte, em Itapissuma, na Ilha de Itamarac. Esta pequena
mudana de rumo na atividade de Vellozo parece que lhe trouxe
maior prestgio na carreira militar, porque na qualidade Tenente de
Mestre de Campo General, engenheiro e Comandante da Artilharia
era o cabo maior ou comandante supremo da artilharia na Provn-
cia de Pernambuco e por isto poderia pretender do Rei a autoriza-
o17 para adjudicar sua autoridade a funo de nomear os
condestveis e outros subordinados da artilharia nos presdios
de Pernambuco18 .
As fontes primrias tambm afirmam que o nosso tratadista
foi lente da aula militar de Pernambuco19 . Em carta enviada
15 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, D. 4289. De 7 de maro de 1735.
16 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 53, D. 4635. Anterior a 1739.
17 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 56, D. 4867. Anterior a 1740.
18 Convm chamar a ateno sobre dois termos. O primeiro deles condestvel que muitosentendem como um ttulo nobilirquico, mas que, na verdade, uma patente da artilhariaque era formada de bombardeiros, gentilhomens e condestveis. A outra presdios quesignificam nos documentos antigos praas fortificadas e no significam prises, como jescutamos por a.
19 AHU Catlogo Resgate. AHU_ACL_CU_015, Cx. 55, D. 4761. Datado de 24 denovembro de 1739.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0917
18
a D. Joo V, o Governador da Capitania de Pernambuco, Henrique
Lus Pereira Freire de Andrade alega ser necessrio haver conti-
nuidade de aula militar e partidistas20 , como [...] houve no tempo do
tenente Joo de Macedo21 , sucedido por Diogo da Silveira Velloso e a
este Luiz Xavier Bernardo22 [...]. Pode-se observar que as inmeras
misses e deslocamentos de Vellozo eram incompatveis com a sua
atividade docente. Da sua atividade como engenheiro restaram tam-
bm alguns desenhos que so referidos por Viterbo no seu Dicio-
nrio, segundo ele sob a guarda do Arquivo Militar do Exrcito no
Rio de Janeiro, referentes a fortificaes da Cidade do Recife. Co-
nhecemos, entretanto um desenho dele relativo ao Forte da Laje,
na entrada da Baa de Guanabara, no Rio de Janeiro, que se en-
contra no Arquivo Histrico Ultramarino23 . Pela data deve ter sido
uma das primeiras atividades logo que chegou ao Brasil.
O Tenente de Mestre de Campo General, engenheiro e Co-
mandante da Artilharia Diogo da Silveira Vellozo deve ter falecido
em 1750, ou pouco antes, porque para o seu posto, vago por morte, foi
indicado pelo Governador Lus Jos Correia de S, o Capito de Arti-
lharia Jernimo Mendes da Paz. Teve uma vida profissional muito
ativa e, pelo que podemos deduzir dos documentos que
20 Uma espcie de bolsistas que recebiam proventos para freqentarem a aula militar. Nemtodos os alunos eram partidistas, pois alguns seguiam o curso sem receberem apoiofinanceiro.
21 Deve tratar-se do engenheiro militar Joo de Macedo Corte Real, que serviu em Pernambuco.
22 Luiz Xavier Bernardo foi engenheiro militar famoso na Provncia de Pernambuco quechegou ao Brasil em 1716, segundo Viterbo. Serviu, inicialmente, em Portugal naprovncia de Trs-os-Montes, na qualidade de Ajudante Engenheiro. Para conseguirpromoo foi nomeado Capito Engenheiro da Paraba, mas acabou conseguindo fixarsua sede em Recife. Foi um dos colaboradores do Brigadeiro Mass quando este veio emmisso ao Brasil opinar sobre as fortificaes do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco(e vizinhanas).
23 AHU Iconografia manuscrita, Rio de Janeiro: RJ- 1058A/9 e 1059.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0918
19
24 Biblioteca da Ajuda, cota: 49-02-85. A data de 1699 nos parece um engano de refern-cia, porque nesta poca Vellozo deveria ser Ajudante e no ter partido ainda paraPernambuco.
25 Biblioteca da Ajuda 49-02-84.
falam da sua carreira militar, adquiriu prestgio e respeito como pes-
soa e como profissional da engenharia militar. Alm do texto
Arquitectura Militar ou Fortificao Moderna, do qual nos ocupamos
transcrevendo e comentando, conhecemos dele dois outros traba-
lhos igualmente sob a guarda da Biblioteca Real da Ajuda: Geometria
prtica Tomo I, dividido em tres tratados escritos por Diogo da Sylveyra
Vellozo Ten. de Mestre de Campo G.al com exerccio de engenheyro na
praa de Pernambuco - 1669 [?]24 e Opusculos geomtricos recopilados
no presente volume por Diogo da Silveyra Vellozo Tem Gal de Infantaria
com exerccio de Engenheyro na Praa de Perco, 173225 .
AGRADECIMENTOS
Devemos agradecer, inicialmente, Biblioteca da Ajuda, que
nos concedeu acesso ao texto de Vellozo e autorizou a sua publica-
o. Ao caro amigo Prof. Virgolino Ferreira Jorge que promoveu,
atravs da Ps-graduao em Conservao do Patrimnio da sua
Universidade a associao com o nosso PPG-AU (Programa de Ps-
graduao em Arquitetura e Urbanismo) conseguiu as licenas
necessrias para uma publicao conjunta com a Universidade de
vora. Ao PPG-AU que abraou incondicionalmente o projeto de
um dos seus docentes para a publicao deste texto, uma emprei-
tada extremamente simblica das ligaes culturais entre Portugal
e Brasil, j que o nosso engenheiro de origem portuguesa dedicou
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a sua vida profissional nossa terra. De fundamental importncia
foi tambm a participao de duas importantes colaboradoras. Uma
delas Raimrcia Pereira que fez cpias em AUTOCAD das estam-
pas do texto, trabalhando sobre os desenhos originais microfilmados
e, especialmente, Karina Matos Cerqueira que deu uma enorme
colaborao, no somente nos desenhos, como na transcrio do
texto, conseguindo grande familiaridade com a caligrafia de Vellozo
e participando do clima de grande entusiasmo que cercou este tra-
balho agradabilssimo e gratificante.
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[SUMRIO]
Parte 1: Iconografia
Cap. 1. Que couza seja fortificao. Seus princpios,e aagmentos [sic]. .................................................... 27
Cap. 2. Da necessidade da fortificao. ............................. 30
Cap. 3. Se he melhor fortificar as fronteyras ouo meyo do estado..................................................... 36
Cap. 4. Da qualidade dos sitios e quais so melhorespara se haverem de fortificar ..................................41
Cap. 5. Das maximas geraes da fortificao ....................... 49
Cap. 6. Dos nomes das linhas, e angulos da fortificaono que toca a explicao da planta ignografica .....51
Cap. 7. Do modo de tirar a planta do terreno paraassento da fortificao. ........................................... 54
Cap. 8. Do desenho das fortificaes das praas assimregulares, como irregulares do poligono exteriorp.a dentro. ................................................................. 58
Cap. 9. Do desenho do lado do poligono interiorpara fora nas praas regulares. .............................. 65
Cap. 10. Do mesmo desenho do poligono interiorp.a fra nas praas irregulares. ............................... 69
Cap. 11. De outro modo de desenhar as figurasirregulares do poligono interior p.a fora. .............. 73
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Cap. 12. Da linha fechante e alcance do tirode mosquete. ............................................................ 76
Cap. 13. Das demigolas. ......................................................... 79
Cap. 14. Das cortinas. ............................................................ 80
Cap. 15. Dos flancos ou travezes ......................................... 83
Cap. 16. Das faces. ................................................................. 89
Cap. 17. Do angulo flanqueado qual he melhorse agudo, recto ou obtuzo. ..................................... 93
Cap. 18. Da grandeza do lado do poligono exterior,e tambem interior para se fortificarem combaluartes inteyros. .................................................102
Cap. 19. Do valor dos angulos e grandeza das linhasque rezulto das propores explicadas noscapitulo 8. e 9. ....................................................109
Cap. 20. Do methodo particular de alguns AA [autores]modernos para fortificar assim do lado exteriorpara dentro, como do interior para fora. .............113
Cap. 21. Dos fossos. ............................................................. 120
Cap. 22. Se a contra-escarpa ser melhor parallelaou obliqua as faces dos baluartes. ....................... 122
Cap. 23. Propoem-se outras questes pertencentesaos fossos. .............................................................. 125
Questo 1.a - Se he melhor o fosso mais largoe menos fundo, ou mais fundo menos largo. ..... 125
Questo 2.a - Qual he melhor se o fosso secoou aquatico. ........................................................... 129
Questo 3.a - Se a contraescarpa deve serrevestida de muro de pedra e cal, ou no. .......... 136
Cap. 24. Da forma de desenhar os fossos. ......................... 138
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Cap. 25. Dos refossetes........................................................ 143
Cap. 26. Da estrada encuberta, seu parapeyto,e explanada. ........................................................... 145
Parte 2: Orthografia
Cap. 1. Dos termos e nomes pertencentes a orthografia,ou explicao do perfil das fortificaes. ............ 153
Cap. 2. Da altura dos reparos. .......................................... 155
Cap. 2. Da grossura dos reparos. .......................................161
Cap. 3. Dos parapeytos. ..................................................... 164
Cap. 4. Da gossura dos parapeytos ....................................171
Cap. 5. Das muralhas......................................................... 174
Cap. 6. Dos cavaleyros ...................................................... 182
Cap. 7. Dos flancos cubertos com orilhes,ou espaldas. ............................................................ 186
Cap. 8. Dos flancos altos e bayxos. .................................. 192
Cap. 9. Do baluarte, se por ser grande requeremayor numero de gente para guardallo,e defendello do que requere sendo pequeno. .... 204
Cap. 10. Se os baluartes devem ser cheyos ou vazios. ..... 206
Cap. 11. Se so melhores os baluartes atacadoss cortinas, ou separados do corpoda praa. ................................................................. 208
Cap. 12. Das obras que se costumo fazer dentronos fossos ................................................................ 210
Cap. 13. Das capoeyras e cofres. .........................................216
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Cap. 14. Das diversas estacadas que se fazem dentroe fora do fosso. .......................................................221
Cap. 15. Das portas, tranzitos, e pontes. ........................... 225
Cap. 16. Dos rastrilhos, e orgos. ....................................... 238
Cap. 17. Dos corpos de guarda que se fazem encostadoss paredes do tranzito ........................................... 240
Cap. 18. Das canhoneyras. ................................................. 243
Cap. 19. Dos leytos para laborar a artelheria .................... 248
Cap. 20. Das cidadlas. .........................................................251
Cap. 21. Das obras exteriores em geral .............................. 255
Cap. 22. Das traveas. ......................................................... 279
Cap. 23. Da fortificao das praas situadas juntoda agua, e daquellas por dentro das quaispassa alguma ribeyra. .............................................281
Cap. 24. Dos fundamentos, e alicercesdas muralhas. ......................................................... 288
Cap. 25. Da escolha dos materiays para a fabrica damuralhas. ................................................................291
Cap. 26. Do instromento chamado arpa necessario parase darem as escarpas aos reparos, parapeytos,e muralhas. ............................................................. 302
Cap. 27. Do modo com que se devem obraros terraplenos. ....................................................... 305
Estampas
[Bibliografia de Referncia] ........................................................ 369
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Parte 1
Iconografia
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Architectura melitar
ou
Arte pratica da
Fortificao moderna
Parte 1 Ignografica1
Cap 1
QUE COUZA SEJA FORTIFICAOSEUS PRINCPIOS, E AAGMENTOS [sic].
Fortificao, ou Architectura melitar, no he outra couza
mais que hua arte ou sciencia que ensina a bem fortificar, e defen-
der toda a sorte de praas contra a invazo dos inimigos.
Os seus principays fins so dous: o primeyro de poder com
pequeno numero de gente rezistir a muyta do inimigo: o segundo
conservar seguros os habitantes do lugar fortificado contra os
accidentes da guerra.
No principio do mundo as mais bellas campanhas ero as mais
agradaveys habitaes; a segurana dos habitadores consistia na ino-
cncia de todos: mas tanto que a cobia, e ambio comearo a
conromper [sic] os coraes dos homens, logo foy necessario arma-
rem-se huns contra a violencia dos outros, donde nasceo a arte de
1 Embora encontremos alguns escritos sobre fortificao que apresentem uma grafia similar,com uso da letra g, parece-nos que no se trata de uma forma antiga de escrever apalavra, mas uma forma errada. Serro Pimentel, no Sculo XVII escreve no seu tratadouma forma derivada diretamente do latim, lngua na qual era versado e que deve ser aforma antiga correta: Ichnographia, oriunda diretamente do latim ichnographia, , comoVitrvio escreveu no seu tratado de Arquitetura: Ichnographia est circini regulaque modicecontinens usus, e qua capiuntur formarum in solis arearum descriptiones. Azevedo Fortes, queera tambm um erudito, escreve, no Engenheiro Portugus (Sculo XVIII), a palavraichnographia da mesma maneira que Serro Pimentel.
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fortificar, que foy em seu principio simplex, rude, e imperfeyta, como
todas as mais artes, e inventos; hoje porem tem chegado ao auge da
mayor perfeyo, hindose cada ves mais aperfeysoando o modo das
defenas, assim como pela violncia de huns, e obstinao de outros
se hio achando novos generos de armas e machinas offencivas.
Pouco depoys deste tempo costumavo cercar as cidades e villas
em torno com muros de tal altura que se lhe no pudessem facilmen-
te arrimar escadas: a largura ordinariamente era tanta que por elles
pudecem marchar tres ou quatro homens de frente: mas esta fabrica
tinha dous defeytos ambos grandes, e capitays: o primeyro, q os de-
fensores postos sobre os muros ficavo descubertos, e expostos aos
tiros dos inimigos, por no terem parapeytos com que se cobrirem: o
segundo, que chegando o inimigo ao p da muralha ficava cuberto
com a mesma muralha sem poder ser offendido do alto della.
A estes inconvenientes se tratou logo de acodir remediandose
pela maneyra seguinte;[:] cercavo o muro em roda com hum
parapeyto continuado, e o alto delle se dividia em ameyas, no conti-
nuadas, mas separadas hua da outra detraz das quais ficavo os de-
fensores seguros, e pellos espassos abertos arremecavo as lanas e
pedras para deter ao inimigo que no chegasse ao muro. Desta sorte
ficava emmendado de algum modo o primeyro erro.
Para obviar ao segundo desde o cho athe a altura de hum
homem abrio no muro frestas a que chamavo seteyras, porem nem
ainda assim se evitavo os ditos inconvenientes, porquanto o inimigo
no podia ser offendido em se metendo nos espaos entre huma
e outra seteyra,2 como se pode ver na figura 1a.2 Na realidade este inconveniente, em perodos mais antigos, era muito mais evitado com umdesenho da muralha que colocava em balano o parapeito, ou parte dele, conhecido pelos francesescomo machicoulis ou pelos italianos como caditoie. Para maiores esclarecimentos ver Cassi Ramelli Dalle caverne ai refigi blindati e Viollet-le-Duc Dictionnaire raisonn de larachitecturefranaise, no verbete machicoulis. Os portugueses chamavam simplesmente de balco.
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Trataro por tanto de valerse de defenas colaterays, e re-
tendo as ameyas e frestas, edificaro torres quadradas em roda dos
muros encostadas a elles; dobrando por este modo as defenas para
infestar ao inimigo pella frente, e pelos lados: nesta forma ero
edificados os muros de Babilnia, contados por huma das sete
maravilhas do mundo, cujo mbito era de 368 estadios3 , dos quais
cada hum contem 125 passos, como refere Quinto Curtio liv 4;
a largura era de 32 ps, a altura de 75, ficando as torres 10 ps mais
altas4 que o resto da muralha, obrado tudo de tijollo e betume:
porem ainda esta defena colateral era imperfeyta, podendose
o inimigo occultar em certo espao na frente das ditas torres.
Pello que reprovadas as torres quadradas, se principiaro
a fabricar outras redondas, por esta maneyra o espao dentro do qual o
inimigo se occultava ficou assas diminuido, no podendo
o inimigo dentro nelle dispor os arietes; e a forma das torres redondas
era sem duvida mais firme para resistir ao impulso, e violencia dos ata-
ques. Nesta inveno se aquietou a arte, e o esforo dos antigos, athe
que achada a polvora aprendero os homens a fabricar rayos, e a imitar
troves, para que assim a roina de huns fosse o aumento dos outros.
Foy inventor desta mais que diabolica compozio Bertoldo
Schuart5 alchimista natural de Alemanha pelos annos de 1354.
3 Uma vez que Vellozo refere-se a um autor latino, esta medida deve estar expressa emestdios (Stadium, ii) romanos. O estdio romano corresponde a ~185m cada, o que dum total de 68.080m. Este valor do estdio corresponde a 625 ps romanos de 0,2962mcada e a 600 ps gregos de 0,3086m cada.
4 Se esta referncia feita em ps portugueses estas muralhas teriam 12,21m de espessura,altura de 24m e altura de torres 28m. Se as medidas so em ps romanos, o que no estclaro no texto, seriam medidas ligeiramente inferiores j que o p romano equivalia a0,294m, em vez de 0,33m dos portugueses.
5 Berthold Schwartz considerado por alguns como o pai da inveno da plvora, em 1354,mas, a maioria dos estudiosos da matria considera este invento anterior ao Sculo XIV.Sobre o assunto tivemos a oportunidade de fazer uma anlise no nosso texto As fortifica-es portuguesas de Salvador quando Cabea do Brasil, p. 22-23.
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Seguiose a este invento o da artelheria posta em praxe a primeyra vez
pelos Venezianos na guerra que tivero com os genovezes junto a
Chioza no anno de 1380. Pelo que supposto aquelle modo de fortifi-
car fosse melhor que os primeyros com tudo, como ainda havia espa-
o capaz para nelle se occultarem os mineyros, e as defenas colaterays
somente tocavo em dous pontos as torres redondas, porque os cor-
pos redondos so podem ser tocados em hum ponto por hua linha
recta como se provou na prop. 13 do liv. 3 dos Elementos de Euclides:
por tanto vencendose a arte a sy mesma inventou o modo de fortifi-
cao de que hoje se uza, mudando as torres redondas em baluartes
compostos de faces, e flancos, e os muros acrescentandolhes groos
reparos de terra, terminandose toda a fortificao com linhas rectas,
de que rezultou que em qualquer parte que o inimigo se ponha fica
descuberto aos tiros dos defensores, e todas as partes da fortificao
se flanqueo humas s outras, que he a primeyra e principal maxima
da fortificao moderna6 , da qual intentamos tratar, segundo o uzo
dos melhores mestres como no discurso se ver.
Cap. 2.DA NECESSIDADE
DA FORTIFICAO.
Alguns politicos modernos se atrevero a reprovar as fortifi-
caes, opinio que seguiro antigamente os Spartanos (ero os
povos que habitavo antigamente a provincia da Morea) e seguem
6 Como afirmamos no nosso trabalho sobre as fortificaes portuguesas de Salvador, oflanqueamento das defesas era uma verdadeira obsesso. Podemos considerar que eraa mxima de maior importncia no desenho das defesas, a partir da fase dita Moderna dossistemas fortificados.
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hoje os Polacos fundados em algumas razes aparentes, que facil-
mente se podem desfazer.
Dizem primeyramente que todas as fortalezas uniformemente
se perdem por hua de tres cauzas, a saber, por engano a que do o
nome de entrepreza, por fora a que chamo sitio formal, ou por
fome a que dizem assedio [negritos do comentarista], e que perdido
hum estado fortificado, perde juntamente o Principe a esperana de
o recuperar, salvo for com muyto tempo e grandissima despeza; quan-
do pelo contrario o estado sem fortalezas se facilmente se perde,
tambem facilmente e com pouca despeza se recupera.
Acrescento em segundo lugar, que as fortificaes no im-
pedem a conquista dos estados, porque quem he senhor da campa-
nha se faz em breve senhor das praas fortificadas, de que rezulta
no servirem estas mais que de fazerem que os povos se rebelem, e
perco o amor e reverencia a seus Principes naturays.
Alem disto acrescento que as fabricas e prezidios das pra-
as fortificadas esgotam os tezouros dos Reys, que fora melhor
conservalos para na occazio por hum exercito em campanha, ou
mantelo continuamente para impedir os progressos do inimigo.
Confirmo estas razes com o exemplo de alguns Principes,
e povos que desmantelaro muytas fortalezas, como fizero os Ro-
manos a muytas cidades de espanha, segundo refere Tito Livio liv.
24, e mais modernamente como fes o Duque de Urbino quando
recuperou o seu ducado, de que o tinha despojado Cezar Borja
filho do Papa Alexandre 6, como refere Guichardino istoria de
Italia liv. 13, e como fes ultimamente Luiz 13 Rey de Frana ha-
vendo sugeytado a cidade da Arrochela, e outros muytos7 .7 Vamos observar, no decorrer do texto, a grande erudio do autor, no que toca histriaantiga e recente, especialmente sob o tema das artes blicas citando, com refernciasespecificadas, autores antigos e modernos como cronistas e historiadores.
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Para se mostrar a vaidade destas razes se deve primeyro
saber que os Principes que tem praas fortificadas podem ser de
tres sortes Pequenos, Medianos, e Grandes. Os pequenos com pra-
as fortificadas, e sem ellas so de pouca conciderao; com tudo
tambem estes quando so animozos se tem defendido com fortale-
zas contra foras muyto mayores athe serem socorridos dos
vezinhos, que por ciumes de que outros se no fao mais
poderozos, ou por outra razo de estado se movero promptamente
a darlhes sufficiente socorro: assim succedeu aos Principes de
Monaco na Ribeyra de Genova, e aos de Mirandola na Lombardia.
Os Principes de Mediana potencia tem necessidade sem du-
vida alguma de praas fortes, porque no sendo bastantes a man-
ter exercitos numerozos em campanha, estario em continuo pavor,
ciumes, e sospeytas de guerra por cauza dos vezinhos mais
poderozos: estario tambem expostos continuamente ao arbitrio
dos povos inquietos, e vulgo ignorante que por ligeyras occazies
se amotino, e amo as novidades, dezejando experimentar se com
a mudana de dominante podem melhorar de fortuna: por estas,
e semelhantes cauzas so necessarias aos Principes medianos as
fortalezas para que se posso defender athe serem ajudados de seus
confederados, com os quais devem estar em amigavel concordia,
e com liga firme; porque se forem Principes grandes, daro gran-
des socorros; se pequenos no faro pouco com as foras unidas.
Os Principes grandes posto que primeyra vista parea no
terem muyta necessidade de fortificaes por serem as suas foras
formidaveys aos vezinhos, de modo, que ou nunca, ou raras vezes
so offendidos e provocados, sendo bastantes assim p.a a propria
defena, como para a offena: com tudo a qm bem o conciderar,
he manifesto, que tambem aos Principes grandes so necessarias
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as praas fortes; porque sendo o seu dominio grande, he fora que
confine com outros muytos povos; e posto que seja superior em
foras a cada hum de persy, com tudo o no ser a todos juntos, e
sendo asaltado por m.tas partes no mesmo tempo, por poderozo
que seja, no poder pr tantos exercitos em campo juntamente
que possa no so offendelos, mas rezistirlhes.
Mas he tempo de responder as objees contrarias, e em
quanto a dizerem que todas as praas se perdem finalmente por
engano, fora, ou por fome, se responde consedendo ser possivel
renderem-se as praas por algum dos ditos modos, mas negando
que necessariamente se hajo de render; porque muytas, e muytas
vezes se tem defendido, e conservado: basta o exemplo moderno
de Viena de Austria que no anno de 1683 se defendeu contra o
exercito formidavel de Mahometo 4 Emperador dos Turcos, que
constava de 300 mil homens, e se no fora a rezistencia que en-
controu naquella cidade houvera penetrado athe o corao de
Alemanha, e destruido, e asolado toda a provincia: destes e seme-
lhantes exemplos esto cheyos os livros e historias.
E nem todos os enganos, e estratagemas que se ordeno para
conquistar hua praa conseguem o fim pertendido, porque nem
sempre os governadores so remissos, e descuydados; antes ordi-
nariamente se escolhem para aquelles cargos homens de prudencia,
e vigilancia e o querer ganhar hua praa por fome he couza de
muyta dilao, e entre tanto succede, que ou por doenas, ou por
inundaes, frios, ou calores excessivos perece grande parte dos
citiadores, e os mais so constrangidos a levantar o sitio.
He tambem falso afirmar que os estados perdidos facilmente
se recupero quando nelles no ha praas fortes, mas que havendoas,
hua vez perdidas no podem ser restauradas sem grande trabalho,
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despeza e dilao de tempo. Confessamos que as fortalezas fazem
mais dificultoza a recuperao do estado perdido, mas quem no ve
que se he dificultoza esta recuperao do estado, muyto mayor ha-
via de ser primeyro a conquista; alem de que quando o estado no
tem fortalezas o inimigo q o ganhar tratar logo de as fabricar
custa dos vencidos fazendo-os trabalhar nellas por fora.
Dizem mais os da opinio contraria que as fortalezas no
impedem a conquista a quem he senhor da campanha. He esta
razo to manifestamente falsa que no necessitava de resposta.
Ganharo os Holandezes no anno de 1600 a celebre batalha de
Neuport contra o Archiduque Alberto, e ficaro senhores da cam-
panha, mas em razo das praas fortificadas no so no ganharo
Flandres, mas nem mais hum so palmo de terra. Cazal conservou o
Monferrato ao Duque de Mantua. Inglostadio impedio os progres-
sos de Gustavo Adolfo em Baviera. Elvas deteve perto de quatro
mezes hum poderoso exercito de Castella, e quem ler as historias
encontrar outros muytos exemplos assim antigos como moder-
nos em confirmao da utilidade grande que rezulta da Architectura
militar a todos os senhorios.
Que as fortalezas fao perder aos subditos o amor devido
aos Principes naturays he manifestamente falso; porque ou os
subditos so hereditarios, e costumados a viver debayxo do dominio
e governo de huma familia, ou so conquistados por fora: aquelles
se contentaro muyto de agradar ao Principe seu natural, estes
por medo das fortalezas, e suas guarnies no se atrevero a per-
der a obediencia e sacodir o jugo.
Nem he bom remedio contra as invazes dos contrarios ter
continuamente pago hum exercito em campanha, ou levantallo de
novo quando o inimigo entra no paiz a subjugalo; porque o man-
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ter hum exercito continuamente em campo he couza de muyto
mayor dispendio que as fortalezas, alem dos muytos accidentes a
que o dito exercito em campanha esta sugeyto; e o levantallo de
novo para rezistir ao inimigo ao tempo da invazo he de grande
perigo, porque pde o Principe ser asaltado de improvizo, e perder
o estado antes que possa formar exercito para rezistir, ou pde
perder a batalha e com ella o estado por no ter onde se retirar,
e defenderse athe fazer novas levas, e novo exercito.
Ao exemplo dos Romanos, e outros Principes que desmante-
laro muytas praas se responde, que o fizero por serem muytas
em numero, e no havendo bastante gente para guarnecer a todas,
ou no sendo conveniente prezidialas, foy sabio conselho o man-
dalas demolir, no sendo boa politica deyxalas fortalecidas em po-
der de naes estranhas, e conquistadas por fora.
Se El Rey de Frana desmantelou Arrochela foy so pela ban-
da de terra, mas pela do mar donde ficava mais exposta ao inimigo
externo a deyxou fortificada.
Se os Polacos reprovo as fortificaes no he porque deyxem
de conhecer a sua utilidade, mas fundados em que o seu Reyno he
de eleyo, e cada hum daquelles nobres aspira a ser rey, por tanto
receandose que por meyo das praas fortificadas algum dos Reys
eleytos se faa hereditario, e perpetue o reinado na sua descen-
dencia pondo por governadores e cabos dos prezidios pessoas de
sua confiana, e obrigao no querem fortalezas. Porem que roim
conselho seja este o mostra bem a experiencia, porque daqui rezulta
estar o paiz aberto, e exposto s continuas correrias, e invazes
dos Turcos, e Tartaros, que todos os annos levo hua grande quan-
tidade de cativos, penetrando livremente o paiz, como fizero o
anno de 1682 chegando athe Leopoli cidade principal da Russia,
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fazendo mais de 8 mil escravos, donde nasce estar hoje dezerta por
este respeyto toda a Podolia, e toda a Ukrania provincias grandes,
e de summa fertilidade.
Mas para que he necessario canar em provar hua couza
to clara, e tam aprovada de todas as mais politicas naes de
Europa.
O Emperador de Alemanha, os Reys de Frana, Espanha, e
Portugal, as Respublicas de Veneza e Holanda, e outros Principes
Menores todos tem fortalezas para segurana de seus estados, e he
certo que se no movero todos estes Principes a fabricar fortale-
zas fazendo nellas tam grande dispendio por inconciderao, ou
ms conselho, porque todos so assistidos de conselheyros
prudentissimos, mas pella manifesta utilidade que das praas
fortificadas rezulta a seus estados.
Cap. 3.SE HE MELHOR FORTIFICAR AS FRONTEYRAS
OUO MEYO DO ESTADO
Havendo discorrido no Cap. antecedente se vem as fortale-
zas uteys a todos os Prncipes; antes de passar adiante parece con-
veniente rezolver se se devem fortificar antes as praas fronteyras,
ou as do corao do estado, porque nisto ha diversos pareceres.
Dizem os que querem fortificar as fronteyras, que
fortificandose estas no podem os inimigos entrar no paiz de seu
adversario, sem primeyro as expugnar, no sendo boa razo de
estado, e de guerra deyxar atras praas fortes, e prezidiadas, e q
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em quanto o inimigo se occupa, e detem em as sitiar, tem o Principe
tempo, e commodidade de unir suas foras, receber socorros dos
amigos, e aliados, e opporse ao inimigo, ou divertir a guerra intrando
no paiz contrario, como fizero os Romanos que para arrancar a
Anibal de Italia onde havia 16 annos que a custa das provincias
Romanas fazia a guerra, mandaro a Cipio fazer o mesmo em
Africa. Acrescento que estando as fortalezas no meyo do estado
entra o inimigo livremente nelle, nem d tempo, ou comodidade ao
Principe de poder juntar suas foras, de que rezulta, que ficando o
inimigo senhor da campanha brevemente se far tambem senhor
das fortalezas, e de todo o estado.
Os que aprovo fortificar o meyo do paiz dizem que
deficultozamente se pde prohibir em hum estado grande, e aber-
to com pouco numero de fortalezas, que hum poderozo inimigo
no entre no meyo delle por entre hua e outra fortaleza, e que
o fabricar e sustentar muytas nos confins he couza de grandissima
despeza, assim em as edificar, como em as guarnecer, porque isto
pede de continuo hum exercito que as guarde, o que no pde
fazer se no hum Principe mto poderozo; pello que melhor seria
manter continuamente hum exercito em campanha, que tello
fechado, e desunido em muytas fortalezas; porque entrando hum
poderozo inimigo em hum estado, posto que as fronteyras delle
estejo fortificadas, vive com tudo da substancia do mesmo esta-
do; andando forrageando8 pellas villas, e lugares abertos com groa
escolta, por no serem bastantes as guarnies das praas desuni-
das, a impedilo: mas no cazo que as guarnies se uno para este
8 O sentido deve ser o mais amplo da palavra, isto devastando, recolhendo vveres e nosomente ceifar a forragem.
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effeyto encorrem em dous perigos grandes, que ou no caminho
podem ser rotos, e desfeytos; ou deyxando as praas mal providas,
e mal guardadas do occazio ao inimigo de as tomar facilmente.
Acrescentase que as fortalezas das fronteyras sam mais faceys de
se tomar, que as do corao do estado.
Para rezoluo desta duvida se deve primeyro conciderar a
qualidade e estado do Principe que quer fortificar; porque sendo
poderozo, e tendo outro vezinho mayor, ou igual, a este no s
est bem fortificar as fronteyras, mas tambem huma cidade no meyo
do dominio, que ser de razo seja aquella onde fizer rezidencia, e
tiver a sua corte. Verdade he que o Principe tendo fortificada a
fronteyra escuza de manter prezidio na corte em tempo de paz,
mas nella deve de conservar toda a sorte de monies de guerra, e
de vivres para poder accodir na occazio a todas as outras fortale-
zas do seu estado, servindo a corte como de cabea, e corao a
todas as outras: e a razo he, porque se o Principe no tivesse
fortaleza no meyo do estado, sendo o inimigo senhor da campa-
nha, poderia entrar nelle, e lanalo fora da corte, de que rezultaria
hua grandissima confuzo, e talvez a roina de todo o estado; e se
bem o Principe acometido tivesse exercito em campanha, nem por
tanto estaria de todo seguro, porque hum exercito esta sugeyto a
mil accidentes diversos, e estranhos, e qualquer couza levissima
faz perder hua batalha.
Nem he boa razo dizer que o exercito se no expor a risco
de dar batalha, porque esta muytas vezes se no pde escuzar sem
manifesta roina: assim sucedeo aos Venezianos no anno de 1509
quando Bartholameo [sic] Alviano seu general sem ordem da
Republica attacou a batalha com os Francezes em Ghiara de Adda
na qual foy roto e prezo, porque perdero ento os Venezianos
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todo o dominio da terra firme, e se a cidade de Veneza no estivera
posta em to forte sitio, corria perigo de perder ento a sua antiga
liberdade.
Nem alguem se deve fundar sobre aquella antiga sentena,
que ninguem hindo a conquistar hum paiz deve deyxar atras algua
praa forte, porque muytas vezes os Cap.es prudentes no observo
esta maxima, como fes Francco 1 Rey de Frana que hindo a con-
quistar o ducado de Milo deyxou atraz as cidades de Novara, Pavia,
e Dertona, e se foy direyto a cidade de Milo cabea do estado.
O mesmo fes o gran Vizir quando veyo sitiar Viena, o anno de
1683, deyxando atraz Savarino, e Comora, praas fortes e
prezidiadas. Tambem o Duque de Lorena no anno de 1684 foy
sitiar Buda deyxando atraz Neuheuzel, na qual se acharo muytos
officiays Engenheyros Portuguezes mandados pello serenissimo
Senhor Rey Dom Pedro de saudoza memoria no anno de 1685 a
19 de Agosto dia em q foy gloriozamente vencida por assalto, sen-
do mortos quantos ero dentro, que serio perto de 4 mil almas,
em que entravo 1500 soldados Turcos. Pello contrario Anibal em
querer conquistar algumas foras dos Romanos nos confins de
Espanha, deu tempo ao Senado a se preparar para a defena; e se
houvesse hido em direytura a Italia sem deterse os sugeytaria sem
duvida. Assim que pelas razes sobreditas se conclue ser con-
veniente a hum Principe, por grande que seja, fortificar no
s os confins, mas ter tambem hua praa forte no meyo do
seu estado.
Mas se falarmos de hum Principe de mediana potencia,
ou estado, digo que a este importa mais fortificar algum lu-
gar no meyo do estado, excepto se a entrada no seu paiz for
dificultoza, a saber, estreyta entre montes, ou defendida de
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algum grande lago, ou mar, de sorte que com duas ou tres fortale-
zas ao mais possa prohibir aos inimigos a entrada; porque em tal
cazo deve tambem fortificar estes passos; mas em paiz plano, e
aberto he melhor fazer hua so fortaleza, ou duas ao mais grandes
e fortes no meyo do estado; porque hum inimigo rezolvendose a
accommeter outro, mais facilmente o far vendo as foras de seu
contrario repartidas em muytas praas, do que unidas em hua s,
e grande; porquanto para sitiar hua fortaleza mediocre, mediocres
foras basto; mas para pr sitio a hua praa grande so necessarias
foras grandissimas: e porque as fortalezas e cidades grandes so
sugeytas ordinariamente falta de viveres, deve aquella praa es-
tar sempre muyto bem monicionada, e em occazio de guerra se
devem a ella recolher todos os mantimentos do paiz, queymando
os que se no puderem conduzir para privar delles ao inimigo9 .
Porem discorrendo sobre hum Principe pequeno, digo que
pouco importa a este fortificarse mais na fronteyra que no meyo
do estado, e que somente deve escolher algum sitio por natureza
forte para o ajudar com a arte, e tratar de fazer nelle hum castello, ou
praa de confiana, para em cazo de aperto, e necessidade poder re-
colher nelle as couzas mais preciozas, ficando elle fora para procurar
o socorro; no convindo de nenhua sorte a os pontentados [sic]
deyxarse enserrar em hum lugar, por no correr perigo de perder
com a fortaleza o estado, e a vida, como sucedeu a Lodovico Sfora
quando se deyxou sitiar em Novara, porque com a praa perdeu o
estado, e a liberdade, sendo entregue, e vendido pelos Suizeros quan-
do sahia entre elles com hua pica s costas em trage de Tudesco.
9 Esta tcnica de terra arrasada foi um expediente muito utilizado desde o passado at bemrecentemente, porque dificultava o fornecimento logstico dos exrcitos invasores, especial-mente quando os sistemas de transportes eram mais lentos e as distncias grandes. Os russosusaram o procedimento com muito sucesso na invaso do seu pas pelas tropas napolenicas.
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Cap. 4.
DA QUALIDADE DOS SITIOSE QUAIS SO MELHORES PARA SE
HAVEREM DE FORTIFICAR
Sendo o sitio hua das principays circunstancias a que deve
atender quem houver de fortificar huma praa, discorreremos neste
Cap sobre esta materia da qual trato largamente Antonio de
Ville10 liv. 1 Cap 4., Mathias Dogen11 liv. 2 Cap 13, Simo
Estevino12 questo 6 e outros, ponderando os commodos,
e incommodos que dos sitios rezulto; os quais em geral se podem
reduzir a seis sortes, a saber sobre montanha, ou rochedo, campa-
nha raza enxuta ou alagadia, dentro de alguma ilha, ou peninsula.
10 O Cavaleiro Antoine De Ville (1596-1657) foi um profissional que dedicou a sua vidas artes da guerra, tanto na construo quanto na expugnao de praas. De distinta etradicional famlia de militares, era considerado como engenheiro e arquiteto militar,tendo iniciado o seu estudo da matria atravs do tratado de Errard de Bar-le-Duc. Era umexperto em minas, um procedimento muito corriqueiro para auxiliar na tomada de praase, como tal, participou em muitos assdios importantes. Do seu currculo consta o servioprestado Repblica de Veneza entre os anos 1630 e 1635, quando fortificou a cidade dePola. Quando voltou de Veneza, esteve a servio de Richelieu. Em 1636, estava lutandoem Flandres com o Conde de Soissons; em 1637, nos assdios de Corbie e Landrecy e, em1639, no assdio de Hesdin. Era um militar extremamente ativo e muito da sua experin-cia adquiriu nos campos de batalha. Foi escritor muito prolfero, mas vamos destacarsomente o seu trabalho mais alentado sobre as fortificaes: Les Fortifications, conhecidoem outras edies como Les fortifications ou lingnieur parfait. O seu mtodo de fortificar conhecido como o mais caracterstico da Escola Francesa de fortificao do seu tempo.
11 Matthias Dgen (1605-1672), estudou em Leiden e trabalhou no quartel general doalmirantado em Amsterd. Embora no se conhea a sua atividade como fortificador, oseu tratado adquiriu enorme prestgio seguindo o mesmo sistema de Marolois e Freytag.Houve edies quase simultneas do texto em latim (1647) e em francs e alemo (1648).O nosso Serro Pimentel faz muitas referncias a este texto.
12 Simon Stevin era de Bruges e foi um dos primeiros tratadistas dos Pases-Baixos deimportncia. A sua obra tcnica situa-se no final do Sculo XVI e incio do XVII. Foimatemtico, engenheiro do Prncipe de Orange e fortificador dos Estados da Holanda.Seu trabalho mais antigo, segundo Marini, foi Starckten Bauwing datado de 1594. Maistarde escreveu Nieuwe maniere van Sterck bouwen door spilsluysen editado em Roterdam, em1617 e Leiden, em 1618.
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Sobre qual destes seja melhor para se fortificar ha diversos
pareceres, alegando cada hum pella sua parte as razes seguintes.[:]
Aquelles que poem em primeyro lugar as praas fortes sobre
montanhas e rochedos alego.[:]
1 Que estas praas no podem ser minadas.
2 Que gozo de hum ar puro e saudavel.
3 Que o inimigo se lhe no pde acostar com facilidade, por
ser descuberto de longe, e poderselhe impedir a chegada com
artelheria.
4 Que as montanhas so per si mesmo to fortes que custa
pouco ajudar a natureza com o artificio, fabricando os balu-
artes, e mais obras da fortificao com pouca despeza.
Porem contra estas mesmas praas se lhe oppoem o seguinte[:]
1 Que raras vezes se acho fontes sobre os rochedos, don-
de procede a falta de agua sem a qual se no pde viver.
2 Que custa muyto a conduco dos bastimentos, monies,
e tudo o mais necessario para a fortificao: assim tambem
em tempo de sitio he difficultoza a retirada quando os de
dentro fao algua sortida, poys antes que se recolho tem
que subir a altura do monte, onde sero descubertos, e po-
dem se accometidos.
3 Que a terra em semelhantes lugares no he ordinaria-
mente boa para os parapeytos, por ser area, ou saibro; nem a
forma que a natureza deu a estes lugares se pde facilmente
mudar por arte, por ser pela mayor parte irregular; e succede
que por esta mudana arteficial sahe a fortificao mayor,
ou mais pequena do que convem:
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As comodidades das praas em campanha raza so as
seguintes.[:]
1 Que a terra comummente he boa, e unida, e por tanto
muyto cmoda para a fabrica das obras da fortificao.
2 Que so ordinariamente abundantes de agoa, ou de fon-
tes, ou de possos.
3 Que ordinariamente as campanhas so ferteys e por tan-
to se podem recolher dentro da praa com facilidade os vive-
res sem ser necessario conduzilos de longe.
4 Que pde o Engenheyro dar a forma que lhe parecer
praa fazendo-a regular ou muyto proxima reguralidade
[sic].
5 Que vindo o inimigo alojar-se roda de huma tal praa, e
atacandoa vivamente, ha nella mais cmodidade de fazer cor-
taduras, e retiradas.
Os incomodos destas praas so[:]
1 Que o inimigo goza das mesmas cmodidades q os da
fortaleza, porque se a terra he boa servirseha della para as
batarias, reductos, e semelhantes obras, tambem como os da
praa, e com mais facilidade abrira nella os aproxes.
2 Que pde tambem escolher hua figura commoda para
circunvalar seu campo sem grande trabalho, e sem muyta
despeza.
3 Que pde atacala fortemente por todas as partes.
4 Que pde melhor gozar dos fruytos de hum paiz fertil,
do que os sitiados, que no podem sahir a recolhelos.
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O sitio em paul goza os previlegios seguintes.[:]
1 Que se no pde atacar com trincheyras subterraneas,
e o querelas fazer sobre hum sitio alagadio conduzindo a terra
e fachina de longe he aco muy dilatada, e de muyto custo.
2 Que o inimigo no pde conduzir sua artelheria sobre
hum tal sitio por cauza da pouca firmeza, e sem ella lhe no
pde tirar as defenas dos flancos, e menos arruinarlhe,
e desfazerlhe os reparos.
3 Que necessita de menos gente para se guardar, e defender a
respeyto das poucas chegadas que o inimigo tem para a praa.
Pello contrario tem os seguintes incomodos.[:]
1 Que ordinariamente as aguas no so sadias, e cauzo
muytas doenas: assim mesmo os ares por cauza dos vapores
das aguas encharcadas, que facilmte se corrompem, o que
tudo se verte contra os moradores, fazendo adoecer e mor-
rer muytos soldados, sem os quais se no defende a praa.
2 Que posto necessitem de menos reparos, com tudo estes
custo muyto por cauza do roim fundamento.
3 Que facilmente se lhe podem serrar, e impedir as estradas
para lhe estorvar a conduo dos vivres, e socorros.
Os sitios junto da agua, como dentro de hum lago, ou rio,
dentro do mar junto da terra firme, tem as seguintes ventagens.[:]
1 He necessario que o inimigo sitie estas praas tanto por
mar como por terra, o que lhe he muyto dificultozo, tanto
pelas grandes despezas, quanto pellas grandes incomodida-
des a que est exposto.
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2 Podem-se conduzir todas as monies por agua, com
muyta facilidade, e menor despeza.
3 No podem ser batidas em brecha com artelheria porque
do mar para a terra se no atira seguramente, por cauza do
perpetuo movimento.
4 Nem so necessarias grandes despezas para se fortificar,
porque a agua dificulta a chegada, nem to pouco necessito
de muyta guarnio.
Tem com tudo as oppozies seguintes.[:]
1 Que hua tal fortaleza he de pouco servio quando ella
no pde dar socorro ao paiz.
2 Que: posto que se lhe no possa chegar com facilidade com
tudo necessita o inimigo de pouca armada para os ter em sitio.
3 Que os de dentro necessito igualmente de armarse com
embarcaes, a fim de ter sempre a passagem livre para que a
provizo lhe no falte.
Mas nesta variedade havendo de eleger e preferir algum sitio
aos outros, digo que para huma praa real, e grande, que sirva de
segurar o paiz, e fazer oppozio a hum exercito, e detello em quan-
to se no ajunta poder que se lhe opponha, he melhor hum sitio
moderadamente elevado sobre a campanha raza, e tanto me-
lhor se tiver algum rio que lhe passe junto pelo qual se posso
com menos despeza conduzir as monies, e tudo o mais de
que necessita hua praa de armas, como Viena de Austria
na Ungria13 .
13 Na poca tratava-se do Imprio Austro-Hngaro.
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Para hua fortaleza pequena que so sirva de se guardar
a si mesma para impedir a entrada em algum paiz ser me-
lhor o sitio sobre algum rochedo, e este ser tanto melhor quan-
to for mais alto, que a elle se no possa subir, mais que por hua
estrada estreyta, e embaraada, como Evoramonte no Alem Tejo.
Tambem se pde estimar o sitio em paul, quando nelle
haja algum lugar elevado, e commodo para se fortificar, sem
embargo das oppozies que lhe so feytas, porque em quanto
corrubo [corrupo] das aguas se pde remediar fazendo esgo-
tar o fosso a miudo, e enchelo de nova agua fresca, procurando
para este effeyto fazerlhe os canays commodos, e mudar a miudo a
guarnio pelo perigo das doenas; a praa de Neuheusel em Ungria.
O sitio em ilha ser melhor quanto esta for mais peque-
na, de sorte que a fortificao a occupe toda, de modo que o inimi-
go no possa ter lugar em terra para se alojar, fazer aproxes, e
bater a praa.
O sitio em peninsula ser melhor o que tiver a entrada
da terra firme mais estreyta, e que tenha com tudo capacidade
dentro, e junto algum porto para ter embarcaes de guerra com
que possa segurar o mar, e infestar os portos dos vezinhos, e tambem
lograr o proveyto da mercancia. Estas conveniencias todas ainda
com outras ventagens particulares tem o sitio e villa de Peniche
na provincia da Estremadura cuja fortificao sendo acabada de
todo se reputa na opinio de muytos por hua das mais fortes da
Europa. Tambem o sitio de Sagres no reyno de Algarve se tivera
melhor porto, e no padecera falta de agua, (a qual porem se pde
remediar) se pde estimar por hua fortaleza inexpunavel, falando
moralmente.
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No so ociozas de tudo estas consideraoens, posto que
ordinariamente sejamos hoje obrigados a accomodarmonos com o
sitio tal qual foy a eleyo dos primeyros habitadores, poys ordina-
riamente so se trato de fortificar as cidades, e villas antigas, e ja
habitadas, e no fundar outras de novo; mas porque alguma vez
succeder nas conquistas deste reyno ser necessario fundar novas
povoaes, ou alguma nova fortaleza para segurana dos portos
das mesmas conquistas como no ha muytos annos se mandou
fundar a nova Colonia do Sacramento no Rio da Prata, e outras
em outras partes, e em semelhantes cazos por concluzo aquelle
sitio ser melhor para se fortificar que tiver as qualidades seguin-
tes, ou a mayor parte dellas.[:]
1 Que seja de bons ares, e abundante de boas aguas nati-
vas, e em falta de possos, porque os de mos ares e roins
aguas so sepultura dos habitadores, e soldados, estando
sempre o Principe em hua continua perda de gente, e de
cabedal14 .
2 Que o terreno do contorno seja fertil para poder susten-
tar o prezidio, e crescer o concurso dos habitadores.
3 Que o lugar que se houver de fortificar no seja sugeyto
a eminencia donde possa ser batido com artelheria15 .
4 Que nelle haja boa terra para a construco dos
terraplenos, e parapeytos.
5 E a mais principal que seja em tal lugar que faa conse-
guir ao Principe o intento com que a manda fortificar: que
14 Conceito vitruviano do Livro I: Da escolha dos lugares sadios.
15 o famoso padrasto referido nos textos (tratados, relatrios, pareceres etc.) sobreengenharia, definido por Azevedo Fortes como: Padrasto ordinrio se chama qualqueroiteiro visinho Praa, do qual pde ser batida com Artelharia.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0947
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se for para segurana de algum porto se deve mais que tudo
atender a eleger posto do qual se possa fazer muyto danno
a todas as embarcaes que quizerem cometer a entrada.
Se for para ter em obediencia alguns povos se deve eleger
posto que facilmente possa ser socorrido no cazo de alguma
rebelio.
Se for para ter entrada em algum paiz se deve eleger paragem
que a oferea por parte menos embaraada com rios, ou com
montanhas.
E porque podem ser muytos outros e varios os intentos, deve
o Engenheyro ser muyto circunspecto e pervisto para saber bem
informar ao Principe, e aos seus menistros do conselho de estado
e guerra, a quem toca a diliberao dos lugares que se devem
fortificar.
Engenheyro chamo hoje todas as naes politicas ao
architeto das fortificaes, nome que lhe dero os peritos da
arte melitar, porque com engenho e industria faz tanto servio nas
funes da guerra, quanto os outros soldados com o valor do ani-
mo, e foras do corpo.
Deve por tanto ser dotado de hum sublime engenho, e em
primeyro lugar deve saber geometria, porque sem ella no poder
dar razo solida da suas operaes: deve saber Arithmetica para
saber dar razo da somma das despezas; deve saber riscar, porque
seria couza vergonhoza no poder mostrar ao seu general a planta
da futura obra: deve juntamte ter noticia da architectura sevil [sic],
para saber ordenar as fachadas dos portays; as pontes, os quarteys,
os armazens, e outras couzas que so mais proprias desta
architectura que da melitar; deve ter noticia da mecanica para sa-
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0948
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ber conhecer a fora de quaisquer instrumtos, e sabellos aplicar
quando lhe seja necessario16 .
Deycho outras muytas e boas qualidades que deve ter hum
Engenheyro; finalmente deve ser valerozo, porque como nos sitios
das praas he sua obrigao traar as trincheyras dos aproxes, as
praas de armas, as galarias, os alojamentos sobre a contraescarpa,
e conduzir estes trabalhos athe o p das muralhas da praa
opugnada; e estando dentro della he sua obrigao ordenar as cor-
taduras, e todas as mais obras que se fazem para reparar a brecha,
e prohibir o asalto o que tudo se no faz sem hum grande risco de
sua pessoa.
Cap 5.
DAS MAXIMAS GERAES DA FORTIFICAO
Havendo discorrido no Cap. antecedente das qualidades dos
sitios, e quais sejo melhores para se fortificarem seguese dizer das
qualidades que deve ter hua boa fortificao, cuja perfeyo consiste
nas seguintes maximas em que todos uniformemte hoje concordo
ensinados da experiencia nos attaques, e defena de varias praas.
1 Que no haja lugar algum em toda a fortificao q de
outra parte della no seja descuberto e flanqueado pelos de-
fensores17 . A razo he porque se houver lugar que no seja
flanqueado, nelle se poder o inimigo encubrir em grande
perjuizo da praa de que segue a [2a].
16 Ensinamentos dentro do esprito vitruviano, quando fala das coisas que deve saber oarquiteto no Livro I.
17 Outra vez a demonstrao da imperiosa necessidade do flanqueamento.
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0949
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2 Que a fortificao deve ter tal forma que cada huma de
suas partes alem da defena direyta que de sy fazem, recebo
outra lateral, ou obliqua das outras partes, pelo que cada
hua deve defender, e ser defendida.
3 Que a fortificao tenha fora igual por todas as partes,
a razo he porque se houver algua menos forte esta ser
a accommetida com dno e perda de todas as mais, de que
se segue.
4 Que a fortificao regular deve ser preferida a irregular;
a razo he por ser igual por todas as partes: alem de que fica
a praa mais capaz sem mayor gasto, poys das figuras do mes-
mo ambito a regular he a mais capaz.
5 Que a fortaleza domine todos os lugares arroda della;
a razo he porque de outro modo estario os defensores me-
nos seguros tendo o inimigo lugar de donde poder infestar o
interior da praa.
6 Que as partes interiores que servem de retiradas sejo
mais altas, de modo que dominem as exteriores; a razo he,
porque se estas fossem iguais, ou mais altas, sucedendo que
o inimigo as ganhase ficaria igual, ou com ventagem [vanta-
gem] aos da praa.
7 Que as obras exteriores, e mais afastadas do centro da
praa sejo descubertas pella parte interior sem parapeyto,
ou reparo algum defensivo a os tiros das obras proximas,
a razo he porque se o inimigo as ganhar, no fique cuberto
contra a praa.
8 Que todas as partes da fortaleza sejo capazes de resistir
s armas e maquinas do inimigo, das quais hoje a mais forte,
e violenta he o canho; a razo he, porque sendo mais fracas
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0950
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as desfar facilmente com a bataria, e ficaro os defensores
expostos, e descubertos aos tiros.
9 Que os baluartes sejo capazes de receber sufficiente
numero de defensores, e que tenho bastante praa para o
manejo da artelheria, e mais funes melitares, especialmen-
te para as cortaduras.
10 Que todas as partes da fortificao tenho suficiente gran-
deza, com hua uniforme conrespondencia entre sy, de tal
modo que nenhua se aumente com detrimento da outra18 .
Mas qual deva ser esta conrespondencia entre as partes da
fortificao he toda a duvida entre os Engenheyros; discorrere-
mos em seus lugares sobre cada hua dellas em particular, e referi-
remos as opinies de muytos autores.
Cap 6.DOS NOMES DAS LINHAS, E ANGULOS
DA FORTIFICAO NO QUE TOCA AEXPLICAO DA PLANTA IGNOGRAFICA
Tres so os modos porque se explica a despozio19 de qual-
quer dezenho, assim na architectura sevil, como tambem na melitar,
a saber ignografica a qual he a plana reprezentao de toda a obra
da fortificao sobre o plano horizontal.
18 Ensinamentos contidos na euritmia, simetria e decoro de Vitrvio explicadas no Livro I.
19 Do dispositio vitruviano contido no Livro I: A disposio o arranjo conveniente de todasas partes de sorte que colocadas segundo a qualidade de cada uma formem um conjunto harmo-nioso. As espcies de disposio, chamadas em grego idias, so o traado em planta, em eleva-o e em perspectiva (Iconografia, Ortografia e Cenografia).
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0951
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Ortografia, ou perfil he a reprezentao do vale e fosso cor-
tado em angulos rectos por hum plano perpendicular ao dito vale
e fosso.
Scenografia chamada vulgarmente prespectiva [sic], he a pin-
tura da futura obra como aparecer a quem a vir de algua certa
distancia.
Neste Cap dizemos os nomes das linhas e angulos perten-
centes a explicao da planta ignografica (das outras se dir em
seu lugar) e so as seguintes.[:]
GG lado do poligono interior.
GN demigola20 .
NQ gola legitima, ou gocier21 .
NN cortina.
NR flanco primario, ou flanco recto.
NY flanco secundario, ou flanco oblico.
YN complemento da cortina.
XR face.
XN linha fechante.
XRY linha razante.
RY continuao da face.
XX lado do poligono exterior.
XZ sobre face.
NZ flanco prolongado.
20 Demigola seria o segmento QG ou ento o GN da Fig. 2, Est. 1 dos desenhos de Vellozo.
21 O uso de termos originrios de outras lnguas era muito comum entre os tratadistasportugueses quando se tratava de fortificaes. Alguns eram usados ipsis literi, outrosaportuguesados na sua grafia. A maior influncia era do francs e do italiano, mas haviaat termos de origem holandesa como hornaveque. Mas, voltando para o significadoespecfico da palavra gola podemos dizer que a garganta ou entrada do baluarte que ficadelimitada pelo encontro das duas cortinas laterais ao baluarte.
Fig.a 2.
a [Est.1]
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RZ exteno do flanco.
GX capital.
XA semediametro [sic] mayor.
GA semidiametro menor.
Angulos
XAX angulo do centro.
ZXZ angulo do poligono exterior.
GGN angulo do poligono interior.
RXR angulo flanqueado22 .
XRN angulo da espalda.
RNY angulo flanqueante.
RYN angulo flanqueante interior, ou angulo da razante
e cortina,
RFN angulo flanqueante exterior, ou angulo da tenalha.
A face, flanco, e cortina so s as tres linhas que se fazem
realmente de muralha, e com as quais se forma o recinto de toda a
fortificao: as mais so imaginarias, mas sua contemplao con-
corre muyto para inteligencia da conrespondencia que devem ter
as ditas tres face, flanco, e cortina, como se ver nos discursos
seguintes.
22 Quando a fortificao regular a bissetriz do ngulo flanqueado corresponde linhacapital.
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Cap 7.
DO MODO DE TIRAR A PLANTA DO TERRENOPARA ASSENTO DA FORTIFICAO.
Toda a fortificao assenta sobre alguma figura geometrica;
a eleyo desta figura pertence particularmente ao Engenheyro:
nas campanhas razas, e livres he facil de accommodar qualquer
que lhe parecer; porem nos sitios irregulares, e com altos e bayxos
pende [depende] esta eleyo da dispozio do tal terreno, e aqui
he que se ve a boa eleyo e pratica do Enginheyro; deve por tanto
primeyro que tudo tirar a planta do sitio, e descrevelo em hum
papel com todas as suas circunstancias para melhor examinar e
julgar se he capaz de hua fortificao regular, ou se deve ser forti-
ficado irregularmente.
Para este exame se necessita de algum instrumto dos em que ja
falamos na planemetria em que se posso medir, e hua cadea de ara-
me dividida por humas argolinhas de dez em dez palmos ou ps; o que
assim preparado se signalaro com balizas todos os angulos que tiver
a figura natural do terreno, que supponhamos he o exagono irregular
AXYZRG23 da qual se far hum rascunho ainda que tosco em hum
papel que servir de memorial para nelle se escreverem as medidas
que se tomarem, o que assim feyto se armar o instrumento em qual-
quer dos angulos da dita figura signalada, como por exemplo no angulo
A, e olhando pellas pinolas para as duas balizas dos dous angulos G e
mais X o instrumento mostrar de quantos graos he o dito angulo A,
23 bom que se chame a ateno para o fato de que este polgono deve ter sido executadocom transferidor e em uma escala no muito precisa, de modo que quando colocamos osvalores dos segmentos de retas e ngulos internos indicados em uma ferramentacomputacional como o AUTOCAD aparecem algumas diferenas de ngulos e de tama-nho de linhas.
Figa3
a Est. 2
MIOLO.pmd 27/9/2010, 17:0954
55
os quais se assentaro no memorial ou rascunho, e logo se midiro os
lados AX, e AG com a cadea: feyto isto se mudar o instrumento para
o angulo X, e olhando pellas pinolas do instrumento para as balizas
do angulo A, e do angulo Y se assentaro os graos que o instrumto
mostrar pelo valor do dito angulo X, e dahi com a cadea se medir o
lado XY: da mesma sorte se medir o angulo Y, e os mais angulos, e
tambem os outros lados, o que assim feyto se descrever a figura no
papel bem ajustada, e semelhante do terreno por meyo de hum
semicirculo de lamina transparente, ou de lato24 aberto