Arquimedes e a Corda Do Rei Problemas Historicos - Art

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  • Cad.Cat.Ens.Fs.,v.17, n.2 p.115-121, ago.2000 115

    ARQUIMEDES E A COROA DO REI: PROBLEMASHISTRICOS

    Roberto de Andrade MartinsInstituto de Fsica - UNICAMPCampinas - SP

    Resumo

    Este artigo discute a histria de que Arquimedes teria descoberto afalsificao da coroa do rei Hieron de Siracusa a partir de medidas dagua derramadas pela coroa e por iguais pesos de ouro e de prata.Esta histria, relatada pela primeira vez por Vitruvius, repetidaconstantemente em livros didticos e em sala de aula. Esse mtodoatribudo a Arquimedes no seria,no entanto,adequado, por causa doserros introduzidos pela tenso superficial do lquido. Galileo jsuspeitava que Arquimedes teria utilizado outro mtodo, empregandopesagens (balana hidrosttica) e no medidas de lquido derramado.H mais de cem anos, Berthelot encontrou um texto do incio da eracrist que confirmava a conjetura de Galileo, pois atribua aArquimedes esse segundo mtodo. Apesar disso, autores sem um bomconhecimento sobre a histria da cincia copiam-se uns aos outros eperpetuam a velha interpretao implausvel e sem base histrica.

    I - Introduo

    Muitos livros e enciclopdias repetem histrias que no possuem nenhumfundamento, como a lenda sobre Arquimedes e a coroa do rei Hieron II de Siracusa.Costuma-se dizer que o famoso matemtico estava tentando determinar se o ourives que a fabricou havia substitudo uma parte do ouro por prata e que a soluo surgiu duranteum banho. A lenda afirma que Arquimedes teria notado que transbordava umaquantidade de gua da banheira, correspondente ao seu prprio volume, quando entravanela e que, utilizando um mtodo semelhante, poderia comparar o volume da coroa com os volumes de iguais pesos de prata e ouro: bastava coloc-los em um recipiente cheiode gua, e medir a quantidade de lquido derramado. Feliz com essa fantstica

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    descoberta, Arquimedes teria sado correndo, nu, pelas ruas, gritando ereka (emgrego, evidentemente!)1.

    Como determinar se um suposto relato histrico fidedigno ou no? Quetipo de critrio se pode utilizar para saber se um fato descrito por um autor ocorreu ouno? Esse o tipo de questo que ocorre imediatamente a um historiador da cincia aoler descries como essa.

    II - Mtodo de anlise

    Questes relativas a um passado remoto devem ser discutidas com base emdocumentos, testemunhos e objetos associados quele passado remoto. Alm disso,questes envolvendo a histria da cincia esto sujeitas a uma anlise que leva em conta o prprio conhecimento cientfico atual, uma vez que uma anlise anacrnica (emboracriticvel sob outros aspectos) vlida para tentar-se determinar se um fenmeno possvel ou plausvel2.

    A partir da anlise de todos esses fatores, pode-se construir um argumentodefendendo alguma concluso e deve-se deixar claro at que ponto a concluso algobem fundamentado ou apenas uma opinio ou conjetura. Tentar esclarecer, porexemplo, se Arquimedes realmente analisou a coroa do rei Hieron de tal e tal maneiraexige uma anlise de diversos aspectos:

    1) Quem descreveu os procedimentos, quando e a partir de que fontes deinformao?

    2) Esses procedimentos so possveis e plausveis (do ponto de vistacientfico)?

    3) Que documentos, testemunhos e objetos do passado podem ser utilizados para tentar esclarecer esse ponto?

    4) At que ponto se pode chegar a uma concluso segura sobre essaquesto?

    1 O leitor poder encontrar um grande nmero de relatos semelhantes a este. Para citar apenasuma obra recente que contm essa descrio, ver ROBERTS, Descobertas acidentais emcincias, pp. 19-21.

    2 Atualmente existe uma resistncia dos historiadores da cincia contra o uso de informaescientficas atuais para analisar episdios antigos. No entanto, em certos casos esse uso parecedefensvel, pois o conhecimento cientfico atual pode ser necessrio para reconstruir o objeto deinvestigao. Ver, por exemplo, PICKSTONE (1995).

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    III - A fonte da lenda: Vitruvius

    Comecemos pelo ponto (1): como se originou essa verso da histria?Nenhuma das obras de Arquimedes que foram conservadas menciona essa

    questo. O autor mais antigo que a descreveu foi Marcus Vitruvius Pollio, um arquitetoromano do sculo I a.C., em sua obra De architectura. Eis a traduo do trechorelevante:

    Quanto a Arquimedes, ele certamente fez descobertas admirveisem muitos domnios, mas aquela que vou expor testemunha, entremuitas outras, um engenho extremo. Hieron de Siracusa, tendochegado ao poder real, decidiu colocar em um templo, por causa de seus sucessos, uma coroa de ouro que havia prometido aos deusesimortais. Ofereceu assim um prmio pela execuo do trabalho eforneceu ao vencedor a quantidade de ouro necessria,devidamente pesada. Este, depois do tempo previsto, submeteu seutrabalho, finalmente manufaturado, aprovao do rei e, com umabalana, fez uma prova do peso da coroa. Quando Hieron soube,atravs de uma denncia, que certa quantidade de ouro havia sidoretirada e substituda pelo equivalente em prata, incorporada aoobjeto votivo, furioso por haver sido enganado, mas noencontrando nenhum modo de evidenciar a fraude, pediu aArquimedes que refletisse sobre isso. E o acaso fez com que elefosse se banhar com essa preocupao em mente e ao descer banheira, notou que, medida que l entrava, escorria para forauma quantidade de gua igual ao volume de seu corpo. Isso lherevelou o modo de resolver o problema: sem demora, ele saltoucheio de alegria para fora da banheira e completamente nu, tomouo caminho de sua casa, manifestando em voz alta para todos quehavia encontrado o que procurava. Pois em sua corrida ele nocessava de gritar, em grego: [ Encontrei,encontrei! ]. Assim encaminhado para sua descoberta, diz-se queele fabricou dois blocos de mesmo peso, igual ao da coroa, sendoum de ouro e o outro de prata. Feito isso, encheu de gua at aborda um grande vaso, no qual mergulhou o bloco de prata.Escoou-se uma quantidade de gua igual ao volume imerso novaso. Assim, depois de retirado o corpo, ele colocou de volta a gua

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    que faltava, medindo-a com um sextarius3, de tal modo que o nvelvoltou borda, como inicialmente. Ele encontrou assim o peso deprata correspondente a uma quantidade determinada de gua. Feita essa experincia, ele mergulhou, ento, da mesma forma o corpo deouro no vaso cheio, e depois de retir-lo fez ento sua medidaseguindo um mtodo semelhante: partindo da quantidade de guanecessria, que no era igual e sim menor, encontrou em queproporo o corpo de ouro era menos volumoso do que o de prata,quando tinham pesos iguais. Em seguida, depois de ter enchido ovaso e mergulhado desta vez a coroa na mesma gua, descobriuque havia escoado mais gua para a coroa do que para o bloco deouro de mesmo peso, e assim, partindo do fato de que flua maisgua no caso da coroa do que no do bloco, inferiu por seuraciocnio a mistura de prata ao ouro e tornou manifesto o furto doarteso (VITRUVIUS, De l architecture, livro IX, prembulo, 9-12, pp. 5-7).

    H elementos um pouco estranhos na histria. Por que motivo algumencheria uma banheira at a borda? Para molhar todo o cho do lugar onde a pessoa iatomar banho? Se o banho havia sido preparado por um escravo (uma hipteseplausvel), ele prprio teria que secar todo o cho, depois. No muito razovel pensarque ele enchesse a banheira at a borda.

    Vitruvius no viveu na poca de Arquimedes e sim dois sculos depois,portanto suas palavras no constituem uma informao de primeira mo. Em que tipode fonte ele baseou-se? No o sabemos.

    IV - Dificuldades fsicas do mtodo

    Vejamos, agora, o ponto (2): poderia Arquimedes ter utilizado essemtodo?

    Basta um pouco de bom senso para perceber que esse mtodo de medida de volume no pode funcionar. Suponhamos que a coroa do rei tivesse um dimetro daordem de 20 cm. Ento, seria preciso utilizar um recipiente com raio superior a 10 cm,cheio de gua, e medir a mudana de nvel ou a quantidade de lquido derramadoquando a coroa fosse colocada l dentro. Suponhamos que a massa da coroa fosse da

    3 O sextarius era uma medida romana de volume (0,547 litros, em valores atuais), que tinhaesse nome por ser equivalente a 1/6 do congius . O congius correspondia a aproximadamenteum galo moderno.

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    ordem de 1 kg e que a sua densidade (por causa da falsificao) fosse de 15 g/cm (umvalor intermedirio entre a densidade do ouro e a da prata). Seu volume seria ento de67 cm. Colocando essa coroa no recipiente cheio de gua, cuja abertura teria uma reasuperior a 300 cm, o nvel do lquido subiria uns 2 milmetros. pouco plausvel quefosse possvel medir essa variao de nvel ou medir a quantidade de lquido derramado com uma preciso suficiente para chegar a qualquer concluso, por causa da tensosuperficial da gua. Se o recipiente estivesse totalmente cheio, ao mergulhar a coroadentro dele, poderia cair uma quantidade de lquido muito maior ou muito menor doque o volume da coroa (ou mesmo no cair nada). Portanto, fisicamente poucoplausvel que Arquimedes pudesse utilizar esse tipo de mtodo.

    Muitos autores antigos perceberam as dificuldades do mtodo queVitruvius atribuiu a Arquimedes. Um deles foi Galileo Galilei, que comentou sobre issoem um pequeno trabalho chamado La bilancetta. Nesse trabalho, ele afirmou que omtodo utilizando a quantidade de gua que transbordava do recipiente seria muitogrosseiro e longe da perfeio , ou de todo falho , e comentou:

    Acreditaria sim que, difundindo-se a notcia de que Arquimedeshavia descoberto o furto por meio da gua, algum autorcontemporneo ter deixado algum relato do fato; e que o mesmo,ao acrescentar qualquer coisa ao pouco que havia entendido pelosrumores espalhados, disse que Arquimedes havia utilizado a guado modo que passou a ser o universalmente aceito (GALILEO,1986, p. 105).

    Galileo sugeriu que, em vez de utilizar o mtodo descrito por Vitruvius,Arquimedes teria realizado medidas de peso (e no de volume) para resolver oproblema, utilizando aquilo que chamamos de princpio de Arquimedes : cada corpomergulhado em um lquido sofre um empuxo igual ao peso do lquido deslocado.Suponhamos que tomamos a coroa e um igual peso de ouro (medidos no ar). Depois,mergulhamos cada um na gua, preso a um fio, e medimos novamente seu pesoaparente. Esse peso ser menor do que o peso anterior (medido no ar), por causa doempuxo. Se os volumes forem iguais, os empuxos sero iguais. Se a coroa contiverprata, seu volume ser maior do que o do ouro puro, e seu empuxo ser tambm maior,portanto seu peso na gua ser menor do que o do bloco de ouro puro. Atravs demedidas de peso da coroa e de blocos de prata e ouro puros, na gua e no ar, possveldeterminar-se com grande preciso a proporo de prata utilizada pelo ourives. No seupequeno tratado, Galileo mostrou como poderia ser construda uma balana especialque permitisse realizar facilmente esse tipo de comparao.

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    Bem, Galileo no foi um historiador da cincia. Estava se guiando apenaspor seus conhecimentos fsicos e no por algum documento antigo que indicasse comoArquimedes havia realmente feito seus experimentos. Os argumentos de Galileo sofisicamente plausveis, mas poderiam no corresponder verdade histrica. Existiriamdocumentos, testemunhos e objetos do passado que pudessem ser utilizados para tentaresclarecer esse ponto?

    V - Evidncias antigas

    Nenhum historiador encontrou, at hoje, documentos da poca deArquimedes que pudessem esclarecer a questo. No entanto, h mais de 100 anos,Berthelot localizou documentos bastante antigos que favorecem a interpretao deGalileo (BERTHELOT, 1891). Em primeiro lugar, analisando textos medievais, esteautor mostrou que, de fato, o mtodo da balana hidrosttica era descrito em tratadostcnicos antigos para resolver problemas semelhantes ao da coroa. Um texto do sculoXII, chamado Mappae clavicula, fornece indicaes precisas sobre como fazer aspesagens dentro da gua e, a partir da, calcular a porcentagem de prata utilizada(BERTHELOT, 1891, pp. 478-9).

    Teria sido esse mtodo utilizado por Arquimedes ou teria sido, porexemplo, uma inveno rabe transmitida Europa durante o perodo medieval? Essasegunda possibilidade foi excluda por Berthelot, pois ele localizou um poema latino dosculo IV ou V d.C. (Carmen de ponderibus et mensuris), onde est descrito o uso dabalana hidrosttica para resolver o problema da coroa e onde esse mtodo explicitamente atribudo a Arquimedes. Comprovou, assim, a existncia de umatradio bastante antiga que interpretava a soluo de Arquimedes de um modocompatvel com nosso conhecimento cientfico.

    Alm disso, Berthelot indicou tambm que algumas partes do Mappaeclavicula so tradues palavra por palavra de textos gregos antigos, o que indica umatransmisso de uma tradio muito antiga sobre o processo de pesagem no ar e na guacomo meio de avaliar as ligas metlicas (BERTHELOT, 1891, p. 485).

    Os argumentos e documentos estudados por Berthelot reforam a idia deque Arquimedes teria utilizado um mtodo de pesagens no ar e na gua e no o mtodode derramamento de gua, descrito por Vitruvius.

    VI - Comentrios finais

    Podemos ter certeza de que essa a interpretao correta? No, nopodemos. Ns nem sequer sabemos se existiu a coroa do rei Hieron. Porm, supondo-seque a coroa existiu e supondo que Arquimedes descobriu a falsificao, a verso de

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    Vitruvius implausvel, e a idia de que Arquimedes utilizou uma balana hidrosttica a mais razovel.

    Apesar de Berthelot j ter proporcionado uma boa anlise desse problemahistrico h mais de um sculo, autores que no so historiadores da cincia copiam-seuns aos outros e perpetuam interpretaes que carecem de uma boa base.

    Alm de ser historicamente sem fundamento, essa histria passa uma visofalsa sobre Arquimedes e sobre a cincia em geral. D a impresso de que a cinciaevolui por acidentes, e que Arquimedes nada mais foi do que uma pessoa esperta eexcntrica. Na verdade, Arquimedes foi um excelente matemtico, que deu grandescontribuies esttica e hidrosttica e que atravs desses conhecimentos, tinhacondies de determinar um modo adequado de avaliar se ocorreu ou no umafalsificao na coroa do rei Hieron. Alm de proporcionar uma viso histrica falsa,essa verso popular faz um servio negativo ao prprio ensino da fsica, pois descreveum mtodo invivel de comparao de densidades, em vez de ensinar como se poderiarealmente detectar a fraude.

    Infelizmente, a lenda da gua transbordando na banheira continua at hojea ser repetida e contada nas escolas e nas universidades e provavelmente continuar aser contada no futuro.

    VII - Referncias bibliogrficas

    BERTHELOT, Marcel. Sur l histoire de la balance hydrostatique et de quelques autresappareils et procds scientifiques. Annales de Chimie et de Physique [srie 6], 23:475-485, 1891.

    GALILEI, Galileo. La bilancetta a pequena balana ou a balana hidrosttica. Trad.Pierre H. Lucie. Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia (9): 105-7, 1986.

    PICKSTONE, John V. Past and present knowledges in the practice of the history ofscience. History of Science 33: 203-24, 1995.

    ROBERTS, Royston M. Descobertas acidentais em cincias. Trad. Andr OliveiraMattos, reviso de Oswaldo Pessoa Jr. Campinas: Papirus, 1993.

    VITRUVIUS, Marcus. De l architecture. Trad. Jean Soubiran. Paris: Belles Lettres,1969.