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 Neil Bissoondath Apropriação da voz  Apropriação da voz Neil Bissoondath Tradução: Jacqueline C. Isoton BISSOONDATH, Neil. Selling Ilusions : The Cult of Multiculturalism in Canada. Canada: Penguin Books, 1994. p.167-185: Appropriation of Voice. Hipertextos: Jacqueline C. Isoton (UFRGS) Apropriação da voz O impulso de segregação foi sentido primeiramente na comunidade literária canadense em 1987 quando um clima desagradável se desenvolveu entre os editores da Imprensa de Mulheres em Toronto. Uma proposta antológica de contos encontrou problema quando as objeções foram levantadas, em parte por Marlene Philip, afetando algumas das histórias já contratadas para a publicação. O problema era simples: escritoras brancas tinham escrito do ponto de vista de personagens femininas negras; elas tinham "apropriado" as experiências de mulheres já exploradas em uma sociedade dominada por homens brancos. As escritoras brancas tinham, ao contar as histórias de mulheres negras, praticado um tipo de imperialismo cultural 1 . A casa, uma editora vital e necessária, opôs-se violentamente à publicação. Um tipo de golpe interno sucedeu. Fechaduras foram trocadas, empregos foram perdidos. Mas isso era apenas o começo. Logo outras exigências foram feitas: não só os brancos não deveriam escrever sobre os negros, mas os homens não deveriam escrever sobre as mulheres, os não-nativos sobre os nativos, e assim por diante, tudo baseado na afirmação de que se você não viveu a vida, você não tem o direito de escrever sobre ela. E o escritor, que ousa explorar o território julgado não ser o dele ou dela próprio, torna-se um ladrão, abre a acusações de racismo, sexismo e imperialismo de pessoas que se opõem a ser retratadas de outras formas a não ser aquelas pelas quais se retratariam - e os auto-retratos, deixam-nos ver isso bem, tendem a ser livres de manchas. Outros campos, fora a escrita, também sentiram o ferrão da apropriação cultural 2 . Em 1992, o pintor de Montreal, Lyne Robichaud inscreveu um quadro chamado Mulher com Bananas  em uma exposição do trabalho de artistas estudantes da Universidade de Concórdia. A tela, um retrato de uma mulher negra carregando um cacho de bananas sobre a cabeça, refletiu uma certa dignidade no meio do sofrimento. Isso foi, se algo, profundamente solidário. Mas Lyne Robichaud logo encontrou o seu trabalho retirado da exposição depois que um comitê julgou o trabalho racista: Lyne Robichaud era branca, o assunto dela era negro. Foram protestos em vão, e o público era tratado ao deleitoso espetáculo de um comitê de virtuosas mulheres brancas protegendo a dignidade das mulheres negras, através da censura de um comovente retrato produzido por uma mulher branca. 1 Analisando o termo etimologicamente (do latim imperare: ordenar), sentimos as forças semânticas negativa e autoritária que nele subjazem. São, justamente, esses fatores que vem a calhar um ambiente inóspito aos escritores brancos. Eles, por sua vez, são severamente condenados por apropriarem-se dos discursos dos grupos ditos marginalizados (negro, mulher, imigrante, homossexual), cuja temática visa a retratar as experiências de vida e do território desses grupos.  2 Termo considerado o núcleo temático do capítulo, pois o autor discute a questão do "explorar" a cultura do "outro", a saber a do excluído, para retratar as experiências culturais diversas. O escritor, portanto, assume a voz desse excluído ou ainda marginalizado, pondo em questão aspectos e valores que norteiam a discussão sobre a discriminação e o preconceito contra os diversos grupos culturais visando, assim, obter a conscientização e a mobilização da sociedade que desconhece a situação atual e controvertida dos grupos excluídos seja racial, política ou socialmente.  

Apropriação da voz Neil Bissoondath

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Apropriação da vozNeil Bissoondath

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  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    Apropriao da voz

    Neil Bissoondath

    Traduo:

    Jacqueline C. Isoton

    BISSOONDATH, Neil. Selling Ilusions: The Cult of Multiculturalism in Canada. Canada: Penguin Books, 1994. p.167-185: Appropriation of Voice.

    Hipertextos: Jacqueline C. Isoton (UFRGS)

    Apropriao da voz

    O impulso de segregao foi sentido primeiramente na comunidade literria canadense em 1987 quando um clima desagradvel se desenvolveu entre os editores da Imprensa de Mulheres em Toronto. Uma proposta antolgica de contos encontrou problema quando as objees foram levantadas, em parte por Marlene Philip, afetando algumas das histrias j contratadas para a publicao. O problema era simples: escritoras brancas tinham escrito do ponto de vista de personagens femininas negras; elas tinham "apropriado" as experincias de mulheres j exploradas em uma sociedade dominada por homens brancos. As escritoras brancas tinham, ao contar as histrias de mulheres negras, praticado um tipo de imperialismo cultural1. A casa, uma editora vital e necessria, ops-se violentamente publicao. Um tipo de golpe interno sucedeu. Fechaduras foram trocadas, empregos foram perdidos.

    Mas isso era apenas o comeo. Logo outras exigncias foram feitas: no s os brancos no deveriam escrever sobre os negros, mas os homens no deveriam escrever sobre as mulheres, os no-nativos sobre os nativos, e assim por diante, tudo baseado na afirmao de que se voc no viveu a vida, voc no tem o direito de escrever sobre ela. E o escritor, que ousa explorar o territrio julgado no ser o dele ou dela prprio, torna-se um ladro, abre a acusaes de racismo, sexismo e imperialismo de pessoas que se opem a ser retratadas de outras formas a no ser aquelas pelas quais se retratariam - e os auto-retratos, deixam-nos ver isso bem, tendem a ser livres de manchas.

    Outros campos, fora a escrita, tambm sentiram o ferro da apropriao cultural2. Em 1992, o pintor de Montreal, Lyne Robichaud inscreveu um quadro chamado Mulher com Bananas em uma exposio do trabalho de artistas estudantes da Universidade de Concrdia. A tela, um retrato de uma mulher negra carregando um cacho de bananas sobre a cabea, refletiu uma certa dignidade no meio do sofrimento. Isso foi, se algo, profundamente solidrio. Mas Lyne Robichaud logo encontrou o seu trabalho retirado da exposio depois que um comit julgou o trabalho racista: Lyne Robichaud era branca, o assunto dela era negro. Foram protestos em vo, e o pblico era tratado ao deleitoso espetculo de um comit de virtuosas mulheres brancas protegendo a dignidade das mulheres negras, atravs da censura de um comovente retrato produzido por uma mulher branca.

    1 Analisando o termo etimologicamente (do latim imperare: ordenar), sentimos as foras semnticas negativa e autoritria que nele

    subjazem. So, justamente, esses fatores que vem a calhar um ambiente inspito aos escritores brancos. Eles, por sua vez, so severamente condenados por apropriarem-se dos discursos dos grupos ditos marginalizados (negro, mulher, imigrante, homossexual), cuja temtica visa a retratar as experincias de vida e do territrio desses grupos. 2

    Termo considerado o ncleo temtico do captulo, pois o autor discute a questo do "explorar" a cultura do "outro", a saber a do excludo, para retratar as experincias culturais diversas. O escritor, portanto, assume a voz desse excludo ou ainda marginalizado, pondo em questo aspectos e valores que norteiam a discusso sobre a discriminao e o preconceito contra os diversos grupos culturais visando, assim, obter a conscientizao e a mobilizao da sociedade que desconhece a situao atual e controvertida dos grupos excludos seja racial, poltica ou socialmente.

  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    Em um artigo na revista Brick, a escritora Dionne Brand acusa meus retratos de mulheres e negros de simplesmente revalidar os mitos do "discurso eurocntrico3", de traar "somente o esteretipo to prestativo na dominao branca", de filtrar as vozes4 deles "atravs da tela eurocntrica do discurso racista, sexista. Alm disso, ao produzir um Neil Bissoondath para denunciar a crtica da apropriao cultural, o estabelecimento cultural branco produz uma face escura para rejeitar e desacreditar todas as outras faces escuras e, simultaneamente, confirmar e reinscrever aquela representao colonial, a qual essencial para a dominao racial.

    No h nenhuma dvida de que para aceitar os princpios da apropriao cultural me condenar. Eu tenho escrito no somente do ponto de vista do jovem, dos homens de pele morena descendentes dos indianos do leste, nascidos no Caribe e vivendo no Canad, mas, tambm, das perspectivas de uma jovem mulher japonesa, de jovens homens negros e de jovens mulheres negras, de uma jovem menina da Amrica Central, de um homem espanhol de meia idade e um homem idoso judeu, de uma jovem mulher branca e de um homem branco, de um revolucionrio marxista e de um agente da CIA. Eu tenho escrito sobre a esquerda e a direita e as vtimas deles. Eu tenho escrito sobre os opressores polticos e os politicamente oprimidos.

    Espanta, ento, que Ms. Brand, Ms. Philip e aqueles que apoiam as vises delas vejam em mim um racista de direita dedicado preservao do colonialismo imperialista5. Isso pode vir como uma surpresa, embora eu tambm tenha sido chamado de comunista por causa de um artigo que escrevi sobre o fascismo espanhol; de social-democrata, por escrever sobre os males sociais; e de feminista, por explorar a situao das mulheres. H, de fato, um rtulo que no foi quase atribudo a mim, a cada m apropriao, a cada contradio por algo a mais que eu tenha escrito. o risco que corre um escritor, cuja fico surge de preocupaes polticas, mais especificamente do efeito da poltica na vida cotidiana de pessoas simples. Eu no tenho nenhuma ideologia para vender e estou resignado ao fato de que nunca haver nenhuma falta daqueles que tentaro definir a mim e ao meu trabalho em termos polticos raramente favorveis.

    As acusaes niveladas contra mim e a uma variedade de outros artistas pelo pas tm no final pouco a ver com o racismo ou sexismo ou qualquer outro "ismo". Esses so, simplesmente, ganchos convenientes que tm muito mais a ver com o vazio revelado da poltrona da ideologia revolucionria. Desafiados onde isso mais machuca, aqueles que se vem nos meus personagens retrucam como crianas, com uma surpreendente, ou tpica, mente ingnua. Toda a expresso artstica - seja ela um livro, uma pintura ou uma exposio de museu - exige uma certa sutileza da mente, uma certa nudez emocional, se para se compreender. Os idelogos, que so impulsionados por freqentes mgoas legtimas de uma mente aberta recepo de idias, no tm. Vivendo atravs de idias recebidas, eles curvam e simplificam as complexidades da vida para adequar s suas prprias preocupaes ideolgicas. Eles procuram intimidar todos a aceitar suas vises e seus horrios.

    queles que procuram subordinar arte, suas funes e suas liberdades poltica sexual, racial ou religiosa procuram nada menos que impor as suas prprias vises ideolgicas nas expresses criativas dos outros. Eles prprios reivindicam direitos que eles negariam queles que no compartilham a sua viso de mundo.

    3 Vale aqui lembrar a acepo da palavra discurso "que a atividade lingstica nas mltiplas e infindveis ocorrncias da vida do

    indivduo (Cmara, 1950, 20). O referido conceito relevante, na medida em que ele se estende expresso de todos os grupos sociais e culturais. Entretanto, o discurso eurocntrico visa ao prevalecimento dos valores da classe dominante e culturalmente hegemnica, de cujo repertrio fazem parte a ideologia e as tradies do homem branco e europeu. 4

    No texto, a definio do termo filtrar vozes excede ao olhar estigmatizado e estvel de Dionne Brand. Segundo ela, Neil Bissoondath apropria-se do discurso eurocntrico para escoar o discurso e a ideologia do ressentimento que os grupos discriminados carregam at os dias atuais. Entretanto para o autor, o discurso eurocntrico no via de acesso para defender as idias dos segmentos discriminados da sociedade, tampouco analisa o preconceito e a discriminao com sentimento extremista e ressentido. Ele, pois, assume as diferentes vozes da sociedade, sejam elas opressoras ou oprimidas, e cria o discurso prprio de cada uma delas visando denunciar o preconceito, defender, valorizar e respeitar a alteridade, bem como desdobrar a ideologia da mgoa e da vingana que os oprimidos tm contra os seus opressores. 5

    O sistema colonialista nos faz lembrar a situao pela qual muitos pases das trs Amricas foram submetidos. A dominao europia sobre os povos dominados deu-se nos mbitos poltico, econmico e ideolgico, em que a metrpole articulava e controlava a colnia de acordo com a sua poltica cultural e imperialista (Ver Imperialismo cultural).

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    Nessa sociedade, a acusao do racismo6 algo particularmente violento. H poucos que no reconhecem o racismo como um mal, fazendo-lhe uma acusao facilmente nivelada por aqueles que interpretam o mundo atravs da cor da sua pele, por aqueles que so racializados7. Declarando-se anti-racistas, eles ironicamente dividem uma viso racial da vida com os arquitetos e defensores do "apartheid". Eu sugeriria que se definir pela cor ser racista, assim como definir-se pelo gnero sexista; isso reduzir a complexidade dos seres humanos a frmulas. Alm disso, eu sugeriria que ideologia poltica imposta distorce a realidade, e que ideologia racial aguada distorce a alma.

    Quando aplicada s artes, a ideologia imposta tem conseqncias mortais. Nos Estados Unidos, os sentimentos de direita, essencialmente, transformaram o polmico fotgrafo Robert Mapplethorpe em um porngrafo, enquanto em Toronto sentimentos parecidos conduziram apreenso, pela polcia, de quadros controversos e desenhos de uma jovem pintora chamada Eli Langer em dezembro de 1993.

    As preocupaes ideolgicas podem, tambm, ser impostas de dentro e, ainda assim, com conseqncias no menos fatais. O mais claro exemplo que eu conheo o romance Mother, do brilhante escritor sovitico Maxim Gorky. Gorky produziu muitos ntidos e penetrantes trabalhos atravs de sua ilustre carreira, mas nenhum de seus escritos fascinou o primeiro lder do estado sovitico tanto quanto Mother. Lenin declarou-o o melhor romance de Gorky, enquanto o prprio Gorky reconheceu de longe como o seu pior. O problema, como bem compreendeu Gorky, foi que o livro era muito desejado, os personagens muito manipulados, suas preocupaes conscientemente construdas na mente com final poltico. Ele havia subordinado a literatura poltica e produzido um trabalho politicamente atraente que foi, tambm, um romance esttico e artificial.

    As consideraes ideolgicas podem tambm infetar as revises. Timothy Mo um jovem e talentoso romancista britnico, cujos trs primeiros romances (Sour Sweet, The Monkey King, An Insular Possession) foram indicados para o prestigioso prmio "Booker" no U.K. Assim era seu ltimo romance, uma explorao brilhante da natureza da coragem e do comprometimento intitulada The Redundancy of Courage. a histria de um jovem homem chins chamado Adolph Ng que pego numa situao muito semelhante ocupao da Indonsia no leste do Timor. Uma reviso insensvel do romance em The Globe and Mail questionava a autenticidade da descrio de Mo de Adolph Ng, em parte porque, enquanto Ng chins puro, Timothy Mo - cuja me inglesa - s meio chins. A outra objeo do revisor era de que "o narrador muito diferente [o autor] na experincia" - uma hesitao, presumivelmente, nunca conhecida por Shakespeare quando ele estava escrevendo Hamlet ou por Tolstoy quando estava escrevendo Anna Karenina. O poder da imaginao, ento, - se no deduzido pelo menos, visto com desconfiana. Todos que incitam pergunta: as declaraes de experincia de vida e depoimentos de composio racial e tnica devem agora estar submetidos a romances manuscritos ( para no mencionar ao emprego ou s aplicaes de conferncias)? Isso representaria a ltima ordem da sociedade multicultural.

    As consideraes ideolgicas tambm exigiram s editoras que publicassem uma quota imposta dos escritores de "minoria", indiferente da qualidade do trabalho. Noes de qualidade, o argumento segue, no so nada, mas as invenes artificiais dos homens brancos que, procurando prolongar o controle deles sobre a sociedade, usam ferramentas - tais como as idias "eurocntricas" por excelncia - para manter a etnia e as mulheres nas extremidades da corrente

    6 No texto, Neil Bissoondath esclarece que o termo racismo reconhecido por muitos ainda como algo violento e negativo, em que a

    cor da pele o fator principal a ser julgado. O racismo no se restringe somente aos grupos de negros, mas a todos, que de uma forma ou outra, so discriminados e arginalizados na sociedade em que vivem. 7

    Esse termo citado no captulo anterior do livro, cuja definio bastante significativa no tocante busca da individualidade em decorrncia da excluso social. H dois exemplos para distinguir essa noo, uma a experincia pessoal ocorrida na Inglaterra nos anos cinqenta em que o isolamento e a solido na terra estranha e pouco receptiva, conduziram Mr. Naipaul individualidade inatacvel. A outra experincia exemplifica a noo do termo que, ao contrrio de Mr. Naipaul, Mr. Miki, um homem de cor decide estudar literatura inglesa na universidade, embora os pais dissessem que nunca ele seria aceito para trabalhar como professor na universidade. Apesar das barreiras, Mr. Miki enfrenta a solido no departamento de ingls da universidade, pois era o nico homem de cor a freqentar o mesmo. Essa experincia conduziu Mr. Miki a viver em comunidade, o qual ele mesmo descreveu como racializado. Nas palavras de Bissoondath o termo parece implicar um sentido da prpria raa de algum dentro de uma apreciao do mais amplo contexto racial, a habilidade, em outras palavras, de ver a vida e todas as suas ramificaes atravs da cor da prpria pele de algum. Se essa definio justa, eu devo me julgar culpado de no ser racializado. Ele ainda diz que ser racializado adotar uma viso limitada da vida.

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    principal. preciso ser dito que tais idias so os produtos da inabilidade que, tornada hipcrita, procura um tipo de bem-estar artstico para suportar suas fantasias.

    O mundo acadmico, tambm, foi severamente afetado. Uma idia fazendo a ronda em alguns departamentos de literatura da universidade, sugere que desde que os professores homens sejam, pela sua prpria natureza, incapazes de compreender completamente o ponto de vista feminino, eles no poderiam ensinar romances de escritoras mulheres. ( Diz que um argumento parecido poderia ser feito, pois Northrop Frye teria sido incapaz de ensinar um romance da africana vencedora do prmio nobel Wole Soyinka). Isso ocorre para poucos, comentou um professor, que se os homens no podem ensinar Atwood e Akhmatova, ento, dessa mesma forma, professoras mulheres no podem ensinar Shakespeare ou Chaucer. A noo aquela que diminuiria a idia essencial de uma universidade, reduzindo nossas perspectivas sobre grandes, ou mesmo no to grandes, trabalhos de literatura atravs de atitudes reminescentes de uma criana mau, recusando deixar outras crianas brincarem com seu beisebol, simplesmente porque, na opinio dela, eles no jogam bem.

    Doreen Kimura, neuro-psicloga na universidade de Simon Fraser e antiga professora com mais de vinte anos de experincia, entregou o discurso de convocao na universidade do Oeste de Ontrio em trs de junho, 1993. O que ela tinha para dizer era to revelador quanto angustiante.

    A professora Kimura falou em defesa do direito liberdade acadmica - uma liberdade a qual, na sua essncia prpria, deve requerer o direito de perturbar e at ofender. Assim como uma cientista biolgica, ela enfatizou, que lida com idias provocativas. A sua pesquisa sobre o crebro e o comportamento, por exemplo, a qual requer a noo que todo o comportamento uma funo do sistema nervoso e no da alma, poder desafiar as crenas bsicas de certos fundamentalistas religiosos. Nem algumas feministas podero considerar, gentilmente, a idia de que o sexo um fator contribuinte na forma como os crebros humanos esto organizados, na forma "que os indivduos diferem um dos outros nos seus talentos intelectuais especiais". A "ofensa dos alunos no sentido intelectual", ela insistiu, muito mais o papel de uma universidade: somente ao ter suas crenas e pressuposies bsicas desafiadas, que os alunos aprendem e crescem.

    com essa experincia que a professora Kimura continuou a detalhar a atmosfera criada por alguns alunos que estavam ofendidos por serem ofendidos:

    Eu infelizmente sei de colegas, ambos dentro e fora da minha prpria universidade, que tiveram os seus cursos invadidos por membros dos tribunais de interesse especial, meramente, porque eles foram socialmente contraditrios. Um professor na universidade de York teve observadores colocados na sua aula por um dia quando ele discutia a evoluo de diferenas de comportamento entre homens e mulheres. Um comit de guarda foi estabelecido na universidade de Toronto para assegurar que nenhuma das referncias feitas em livros-textos poderiam ser construdas como desfavorveis para qualquer minoria, no importa quo fatual ou bem-estabelecido so tais referncias. Esses no so eventos isolados, infelizmente, mas agora se tornaram banais, pelo menos nas universidades do leste. Os graduandos de hoje sero muito jovens para recordar as reportagens de invaso nas aulas da universidade pelos partidrios fascistas na Europa nos anos trinta, mas alguns dos pais, hoje aqui, podem recordar tais tticas. De fato, os regimes totalitrios, tipicamente, iniciam com a supresso do discurso livre. Podemos ns, honestamente, exigir que haja alguma diferena fundamental entre o controle comunista e fascista da academia do passado e a supresso de idias que esto se espalhando por nossos campus hoje?

    O que brota no cenrio universitrio tem uma maneira de se expandir para o todo da sociedade. A intimidao que a professora Kimura detalha , hoje, para muitos, um fato da vida nas comunidades acadmicas e artsticas.

    Na universidade Trent em Peterborough, Ontrio, um grupo de professores assinou uma petio requerendo o direito de serem ofensivos, uma ao que eles levaram luz de uma ordem da polcia emitida em outubro de 1993 pelo Departamento de Educao e Treinamento de

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    Ontrio. Visando respeitar a dignidade de todos, a ordem "probe a discriminao por quaisquer das razes usuais (raa, credo, sexo, orientao sexual, incapacidade, idade) mais algumas que no so to usuais (dialeto, pronncia, 'o recibo da assistncia pblica, o registro das ofensas provinciais ou as ofensas federais perdoadas')". Nenhum desses chos so instveis, mas a ordem lana ento uma sentena de possibilidade surpreendente: "Uma reclamao no tem que ser um alvo direto a ser opostamente afetado por um ambiente negativo.

    Um ambiente negativo: imagine, conforme postula Robert Fulford, a possibilidade para acusaes de racismo por um estudante nativo em uma aula ministrada por um professor oposto soberania nativa; a possibilidade de desconforto intenso por alunos homens em uma aula ministrada por uma professora mulher; "os ambientes negativos" nas aulas onde os judeus eram convidados a estudar O Mercador de Veneza, negros exigidos a ler Otelo e mulheres a ler Ulisses. Ambientes negativos - ambientes de desconforto e aflio - so parte do funcionamento normal de uma universidade: somente governos burocratas e mentes deformadas fracassam ao compreender que, segundo o senhor Fulford coloca, ser ofendido parte do aprender como pensar.

    O medo de ofender tocou ainda o judicirio, como John Sopinka do supremo tribunal de justia abordou em um discurso para os estudantes de cincia poltica da universidade de Concrdia: "No passado, os juzes foram insensveis s preocupaes legtimas dos grupos de minoria ou inferiorizados. Entretanto, h motivo para a preocupao legtima que superzela a dissecao de toda a palavra que abandona os tribunais, com vistas de encontrar alguns defeitos que podem ser a base para uma reclamao ao conselho judicial e que podem resultar em decises que so politicamente corretas, mas no legalmente e fatualmente corretas. O juiz que est analisando, pode decidir um caso que evitar o conselho judicial, ao invs de concordar com o material apresentado".

    na universidade Concrdia, tambm, que as preocupaes sobre a liberdade de discurso conduziram ao estabelecimento do clube Sociedade para a Liberdade Intelectual, onde um dos estudantes organizadores disse para as pessoas falarem sem ter que se subjugar.

    No segredo que a ideologia de todos os tipos, rigorosamente aplicada, tem uma forma de, eventualmente, comer suas prprias crianas. A cobia "reaganista", por exemplo, consumiu pratadas de seus prprios partidrios.

    Alguns anos atrs, enquanto em um turismo de promoo do livro em Vancouver, eu encontrei uma jovem mulher com uma histria interessante para contar. importante saber que ela se considerava uma feminista arraigada. Ela contou-me sobre um artigo que havia escrito sobre a sua cantora favorita, uma mulher negra e americana, de grande talento e renome. Ela submeteu o fragmento uma revista feminista que tinha publicado seu trabalho anteriormente. Aps algum tempo, os editores informaram-na que, embora eles gostassem muito do artigo, eles no o publicariam. Ela tinha, eles explicaram, citado muitos crticos homens. A sua explicao - que a maioria dos crticos de msica so homens - e sua sugesto de que publicar escritoras mulheres poderia ajudar a mudar aquela situao, no produziu nenhum efeito. A objeo bsica deles para o artigo foi que a cantora era negra e a escritora era branca - uma situao intolervel na viso deles. O artigo, sob solos puramente raciais, nunca poderia ser suficientemente bom.

    Tais limitaes sobre o assunto conduzem a frias concluses lgicas. Isso no significa, pois, que mulheres jovens no devam escrever sobre mulheres velhas, homossexuais sobre homens, protestantes sobre catlicos? Isso no significa que escritores doentes fsicos devam escrever somente sobre os doentes fsicos e escritores nativos somente sobre escritores nativos - de fato, um escritor cree s sobre crees, um escritor mohawk s sobre mohawks? Afinal, ento, essa viso no diz que a fico, e tambm a no-fico, devam dar prioridade autobiografia? (Numa nota sem importncia e de um campo diferente, isso nos negaria o prazer do que pode ser o melhor exemplo de apropriao cultural jamais vista: o time jamaicano de tren olmpico).

    "Encontre o seu prprio rio", o escritor nigeriano Chinua Achebe disse uma vez do livro Heart of Darkness de Conrad. "No aproprie nossa geografia s suas viagens psquicas". uma noo curiosa, essa idia de apropriao. Afinal de contas, o rio e tudo o que isso representa esto ainda aqui, mesmo depois que Kurtz tenha viajado em sua extenso. Nada previne Achebe, um escritor

  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    de distino e sucesso internacional, de enviar algum de seus personagens uma viagem para dentro de seu brilho e suas escurides - ou junto ao brilho e as escurides do Thames, Mississipi ou St. Lawrence. O que, precisamente, Achebe e outros escritores africanos perderam da explorao psquica de Conrad em relao a um rio tropical? O mundo ganhou uma obra-prima, e eu por ele estou contente que Conrad tenha acompanhado Kurtz naquela viagem. Limitar Kurtz ao Thames exigir o empobrecimento da imaginao.

    Deve-se salientar que, no artigo para a Brick, Brand explicitamente se desvincula de quaisquer tentativas de censura. Ela gentilmente afirma que "Neil Bissoondath pode escrever em qualquer voz que o agrada. Entretanto, em uma entrevista com Dagmar Novak em 1990, Brand tomou uma posio bastante diferente sobre escritores brancos que abordam temas nativos: "Eu acho que eu posso dizer, categoricamente, que os brancos no podem escrever sobre a vida nativa. No deveriam? ela questionada. "No devem. Sim, no devem e no podem, " ela responde. No , ento, uma censura externa que ela requer, mas uma censura interna - a qual ainda mais suavizante para a vida criativa.

    Uma sociedade livre depende de uma multiplicidade de vozes8 e vises, da interao de vises conflitantes. Ns s nos diminuiramos ao diminuir essa variedade. Os termos desse debate esto alterando as percepes da arte, de sua natureza e de seu papel, e isso saudvel. Mas eu temo, tambm, que o tom indignado do debate - o nome evocativo, a criao dos mrtires - esteja desprezando as artes de forma rgida e desagradvel. O "debate" na unio dos escritores sobre acusaes de racismo contra June Callwood conduziram (aps vrias cartas agressivas contra Callwood, algumas annimas, outras no) a dez dos mais elegantes escritores do Canad a publicar uma carta sugerindo que "todos deveriam se danar por um perodo de considerao arrependida." O debate sobre a conferncia "Escrita atravs da Raa" acabou, inconclusivamente, depois que "uma combinao de gritaria estourou ... com cerca de 150 membros da unio se ajustando." Todas as perspectivas em cada tpico de disputa deveriam ser bem-vindas - como cidados de uma sociedade livre, ns todos seremos os mais ricos por isso - mas ningum mais tem o direito de tentar suprimir a voz de ningum, no importa o quanto desagradvel aquela voz possa ser.

    Qualquer tentativa de fechar a mente uma questo de liberdade fundamental. Qualquer limitao do assunto ou ponto de vista, se imposto de dentro ou de fora, representa para ns todos uma restrio forte no livre jogo da imaginao. Assim como Salman Rushdie salientou, no que diz respeito aos escritores, voc tem que sentir que escreve em liberdade absoluta - e liberdade de expresso9 no significa nada se ela no inclui a liberdade para ofender.

    A partir desse tpico, a unio dos escritores do Canad assumiu uma posio mais definida. Numa deciso aprovada em junho de 1992, a unio, "resolutamente", afirmou "a liberdade de imaginao e a liberdade de expresso de todos os escritores em qualquer lugar. Entretanto, seguindo rapidamente essa afirmao estavam seis oraes iniciando ou com "Mas desde que" ou "E desde que" - suas prprias versezinhas de oraes concessivas. O endosso da liberdade criativa , ento, qualificada, de uma forma ou outra, em reconhecimento de que "a mal- apropriao cultural existe como uma forma de opresso. Ela termina com a declarao de que a Unio "reconhece e afirma a responsabilidade e a obrigatoriedade que visam liberdade de imaginao e liberdade de expresso. Isso tem sido descrito por alguns como um chamado ao exerccio da sensibilidade, um objetivo louvvel, provavelmente. Mas, no reino da apropriao cultural, quem que vai decidir o que sensvel, o que responsvel? E no so essas qualidades julgadas, essencialmente, sob critrios polticos, no-literrios? E quanta sensibilidade, qual definio de responsabilidade, ser aceitvel aos ativistas polticos para os quais a noo essencial de escrita sobre uma cultura no a dele prpria antema?

    8 O termo bastante coerente com o contexto das Amricas e do Canad, onde a composio tnica e cultural extremamente

    heterognea. Por isso, a interao e o posicionamento crtico desses grupos diversificados devem ser livres para manifestar vises de mundo, tambm, diferenciadas e enriquecedoras, na medida em que essa multiplicidade contribua para uma sociedade livre e justa. 9 Para melhor definir esse termo, utilizemos a seguinte citao do prprio autor que diz: voc tem que sentir que escreve em liberdade

    absoluta e ela no significa nada se no inclui a liberdade para ofender. O termo nada mais que estar livre para se apropriar de uma das mltiplas vozes para denunciar a agresso contra as minorias, bem como clamar em favor do excludo, valorizar o diverso e respeitar a alteridade. , alm disso, no duvidar dos valores da sua prpria cultura, acreditando na importncia de express-los no mbito da sociedade.

  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    Embora maquiada, a posio da Unio dos Escritores do Canad menos uma resoluo que uma irresoluo.

    No que se refere aos escritores, est claro que aqueles que defendem a chave da imaginao, ou que exigem que as imaginaes dos outros procedam de formas prescritas, so profundamente ignorantes do processo da escrita.

    Em uma entrevista, Timothy Findley disse uma vez, "Na comunidade gay eles dizem, 'Quando voc vai escrever o romance gay?' Mas eu no defino a minha vida pela minha sexualidade. Eu no sou um escritor gay, eu no sou um escritor homem, eu s sou um escritor. "

    Somente um escritor: aquelas trs palavras encontram-se no corao disso. De certo modo, ser um escritor de fico a mais simples das tarefas. ser um contador de

    histrias, nada mais, nada menos. Mas para contar uma boa histria, e cont-la bem, um processo exigente, s vezes, misterioso. Ser s um escritor ser vtima, at certo ponto, das exigncias e desejos do processo de escrita em si.

    Uma descrio do meu processo de escrita - e um pouco diferente para cada escritor - deve comear com o que eu no fao.

    Eu no sento no meu computador e penso: Eu hoje escreverei uma histria sobre uma mulher negra ou um homem judeu e ofenderei algum - pois fazer isso seria engajar-se no jornalismo. Eu no decido que escreverei uma histria para marcar pontos sobre racismo ou socialismo ou capitalismo - pois fazer isso seria engajar-se em propaganda. Eu evito, a qualquer preo, desempenhar o papel de marionete, bem como manipular meus personagens, dizendo-lhes o que pensar ou como agir; ou de insistir na essncia poltica ou socialmente correta deles. Fazer qualquer um desses, seria matar toda a possibilidade de tecer fico digna de crdito.

    O conselho mais corriqueiro para jovens escritores : Escreva sobre o que voc sabe. Descreva, em outras palavras, o que voc experimentou. bom conselho - contanto que algum lembre que h muitas maneiras de experimentar um evento. Escrever sobre o que voc sabe no significa escrever somente sobre o que voc viveu. Isso inclui tudo o que voc veio a entender e apreciar atravs da troca de idia, observao, leitura, sonho, filmes - os vrios afluentes para a imaginao humana. O crebro um instrumento extraordinrio; ele no unidimensional e quase sempre conhece coisas de que ns no estamos conscientes. Ele, constantemente, processa aquela informao, acrescentando, reparando, alterando, conectando. dessa forma que, originalmente, ocorre.

    Como a minha fico sucede precisamente, no facilmente explicado. um processo da mente, e quando me perguntam, como freqente, onde eu obtenho as minhas idias para as histrias, eu no posso oferecer nenhuma resposta coerente. A verdade que eu no sei realmente. O que acontece isso: eu no acho as histrias, elas me acham.

    Os personagens surgiro desordenados, freqentemente resultando de histrias ou eventos que se gravaram em meu subconsciente; s vezes, suas vozes falam no mais inconveniente dos momentos (tal como quando eu estou no banho ou lavando a loua). Quando uma voz est obrigando, quando ela comea a relatar o conto, eu me esforo, com a linguagem que eu tenho minha disposio, para capturar para o papel o que ela diz ou mostra para mim. Eu sigo a voz desse mundo, agradecido pela sua generosidade, compelido pela sua reticncia. E na escrita que eu descubro quem o personagem, e qual histria ele ou ela tem para contar. na escrita, palavra por palavra, frase por frase, que eu descubro as aparncias e as vidas dos meus personagens, suas alegrias e suas dores. Nada planejado, nada decidido antecipadamente. Enredo e estrutura cuidaro de si, moldadas pelas revelaes das vozes na minha cabea - vozes que pertenam a estranhos que eu, lentamente, comeo a conhecer, palavra por palavra, frase por frase. raro, quando eu comeo a trabalhar com uma histria, que eu saiba qual ser o resultado - e mesmo quando eu sei, eu nunca tenho qualquer idia de como ns chegaremos l. Freqentemente, na escrita, minha prpria histria me surpreender. Esse o medo de escrever fico: ser conduzido a um mundo, a vidas, nunca previstas.

  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    Se os personagens vivem, s vezes eles faro e diro coisas que eu no gosto ou com as quais eu no concordo, mas isso, longe de diminuir a validade deles, os conduzem a uma integridade maior. Em Immoral Fiction, Marlene Philip v misogamia na descrio que fao de uma personagem feminina. A personagem no fisicamente atraente; ela descrita como "rosto descuidado", sua cor plida, seus seios so pndulos. Eu poderia, eu suponho, ter interferido para faz-la uma mulher mais atraente. Mas ela no era; o mundo est cheio de homens e mulheres que no so atraentes. Os personagens literrios no so os brinquedos do escritor; eles no so um amontoado de argila para serem moldados em retratos idealizados. Se eles fossem verdadeiros, eles deveriam ser indivduos, completamente, desenvolvidos com mentes e vidas prprias, existindo dentro do mundo criativo do escritor.

    Os personagens literrios devem ser verdadeiros s para eles mesmos e suas circunstncias. Eles no devem fidelidade nem ao escritor nem ao grupo social ao qual pertencem. Eles so seres humanos que respiram, se realmente vivem, indivduos com psicologia e biografia prprias, nem mais nem menos representativo ou simblico de um grupo de qualquer espcie. O retrato, do qual Philip tem tal desgosto, no considerado uma representao da feminilidade canadense; a personagem somente representa a si prpria.

    Obrigar os personagens a adotar uma postura predeterminada, matar os personagens. tirar a sua individualidade, remover sua liberdade de escolha. Quando as preocupaes ideolgicas so prioridade sob as artsticas, a arte - o conto, o romance, o filme - surge montona e sem vida, o feito artstico sacrificado ao documento poltico e, em particular, ao papel da fico que subvertido.

    Assim como Timothy Findley no define sua escrita pelo seu gnero ou seu sexo, ento eu no defino minha escrita pelo meu gnero e cor. A preocupao de um escritor vai alm dessas caixas, extendendo-se a uma humanidade mais ampla. A romancista vencedora do prmio nobel, Nadine Gordimer, uma mulher branca culpada de no escrever nem das perspectivas do branco nem da mulher, uma vez explicou sucintamente: "Quando isso surge para a faculdade essencial deles como escritores", Gordimer uma vez escreveu, "todos os escritores so seres andrgenos. por essa razo que a noo de apropriao cultural ou de voz desprovida de legitimidade artstica.

    Mas h uma outra razo para essa falta de legitimidade e tem a ver com o papel da fico, conforme eu a percebo.

    Meu objetivo primrio como escritor, conforme eu j afirmei, contar uma boa histria, entreter. Mas em parte ele , tambm, o desafio de capturar to precisamente como a lngua representar um breve momento da experincia humana e compartilhar aquele sentimento, aquela percepo com outros. Eu, tambm, viso na minha escrita questionar realidades cruis e desafiar verdades assumidas, para oferecer novos ngulos sobre verdades preestabelecidas.

    Mas o desejo de escrever vai alm disso, porque algum tambm espera por um efeito grandioso. E o que poderia ser mais esplndido que verter luz, na melhor das habilidades de algum, sob o desconhecido? Essa a razo por que eu sou atrado, na minha fico, h personagens sugestivamente diferentes de mim. Escrever no , para mim, nem autobiografia nem terapia. , antes de mais nada, um ato de descoberta. Eu procuro, atravs da explorao literria, compreender vidas muito diferentes da minha prpria, exercendo o que eu chamaria de desmistificao do Outro10. somente atravs da verdadeira compreenso dos outros que ns podemos sempre esperar fazer progresso real contra o racismo, sexismo e todos os outros males que nos afligem. Somente ao substituir ignorncia por conhecimento - no a retrica da poltica, no as simplicidades dos esteretipos multiculturais, mas os detalhes ntimos de vidas nicas - ns podemos esperar para movermo-nos para alm deles. , precisamente, por isso que eu no tenho vivido a vida que eu procuro explorar e, eu espero, compreend-la - e, com sorte, ajudar os outros a compreend-la, tambm. por isso que eu no escrevo sobre comunidades, racial ou

    10 Esse termo o produto da explorao literria,na qual se empregam, no ato da escrita, conceitos como apropriao de vozes,

    multiplicidade de vozes e, sobretudo, liberdade de expresso para gerar uma discusso sobre o "outro" e, consequentemente, (re)descobrir a sua completude cultural. somente atravs desse ato que se pode estabelecer um dilogo para compreender verdadeiramente o outro e, talvez assim, debater contra as idias de excluso e racismo.

  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    tnica. Essa a razo por que eu escrevo sobre os indivduos. Na minha fico, a humanidade no a minha preocupao. Os humanos so.

    Em junho de 1990, a dramaturga Joanna Glass escreveu em The Globe and Mail sobre a Segunda Conferncia Internacional de Dramaturgas Femininas em Toronto. Ela escreveu com dor indisfarada e raiva indissolvida ao encontrar um predomnio poltico. Ela contou com embarao sobre a dramaturga sovitica que viu o seu tradutor despejado por ser homem; sobre dois dramaturgos que foram, abertamente, ridicularizados depois de admitir a sua heterossexualidade. Ela descreveu vrias "colees" detendo sinais de identificao: "Mulheres de Cor" disse algum; "Mulheres de Palidez" disse um outro. Lamentando a falta de dramaturgos srios e a ausncia de toda discusso sobre o arteso, Glass queria saber, lamentosamente, porque ela tinha que procurar tanto para achar as Mulheres de Talento. Isso era tanto com a Conferncia de Mulheres Dramaturgas, como nos debates sobre apropriao de voz e "Escrita Atravs da Raa. As Mulheres de Talento, como se suspeita, estavam em suas mesas, trabalhando em seu ofcio. "Eu acredito que seja importante salientar", Glass escreveu, "que os demagogos no so espancadores de mulheres do gnero que eles tanto desprezam. Eles so fanfarres. O comportamento deles no deveria ser condenado por ningum, de qualquer persuaso poltica ou sexual. Eles, severamente, impedem nossa causa.

    Os demagogos estimulam o povo a fim de obter ateno. aconselhvel sempre decifrar o que eles dizem, para julgar a legitimidade no s das suas reclamaes, mas das suas propostas, para separar o sbio do tolo, o significante do insignificante, o genuno do falso. A tarefa determinar quem, ou quais, em outras palavras, so merecedores de ateno duradoura.

    Na Brick, Dionne Brand considerou exceo a minha histria The Cage e o retrato sobre uma jovem mulher japonesa buscando liberdade em uma nova terra. Isso s "revalida o mito da 'mulher oriental' no discurso eurocntrico", ela escreve. Isso crtica, embora, ela deva ser pesada contra a mais positiva reao de uma variedade de outras mulheres, mais notavelmente uma jovem mulher da Malsia que, depois de ler a histria, comentou para um amigo prximo que embora ns nunca tivssemos nos encontrado, ela sentia que eu havia compreendido algo vital sobre a sua prpria vida.

    Marlene Philip repreende o meu romance A Casual Brutality por causa do seu defeito poltico - e isso tambm crtica que deva ser pesada contra as palavras de um jovem homem etope que me procurou para dizer que o romance, estabelecido em Toronto e no Caribe, realizou ressonncias assombrosas para ele.

    E as objees polticas perderam todo o significado antes da atitude perturbadora de uma jovem refugiada romena que, depois de ler em aula a histria de um pretendente refugiado latino-americano, agradeceu-me por explicar aos seus colegas, mais claramente do que ela poderia, como era viver a vida de refugiado. Se eu me satisfizer em alguns dos comentrios positivos que meu trabalho recebeu, s para contrastar a reao de leitores no-polticos contra as reclamaes daqueles politicamente motivados. Ela uma tentativa de mostrar onde se encontra a verdadeira importncia da expresso artstica.

    Eu no confio em ningum que exija falar no nome dos Povos. Os Povos tm sua prpria voz. Os demagogos no representam o eleitorado, exceto suas prprias obsesses ideolgicas. Sua mensagem aquela da negao e diviso, procurando levantar o "multicultural11", o apartheid como paredes ao redor dos guetos de comunidades tnicas e culturais. Eles so barulhentos - mas isso no significa que eles sejam certos.

    Poltica na pintura. Poltica na escrita. Poltica no teatro. curioso que artistas, que raramente do ateno s homilias de polticos, deveriam dar tal ateno s homilias daqueles que so polticos quase no nome. A psicologia e a poltica do multiculturalismo produziram discrdia em nome dos direitos tnicos e raciais, socialmente aceitveis. Eles deram legitimidade,

    11 Termo que diz respeito variedade de culturas que ocupam um mesmo espao fsico, cujos povos expressam, atravs de sua

    prpria voz, os sentimentos a respeito da negao e da fronteira que o homem branco europeu construiu e, de certa forma, resiste ultrapass-la at hoje.

  • Neil Bissoondath Apropriao da voz

    aqui, para o que era uma vez deplorado na racialmente segregada frica do Sul. Conduzidos por um plano aparentemente benigno e trados por nossas prprias sensibilidades, ns alcanamos um crculo completo e curioso.

    Um tipo de coragem exigida agora, a coragem para reconhecer a insensatez e dizer no para ela: a coragem do senso comum e a verdadeira sensibilidade exibida pelo editor de The Hockey Sweater que, ao recusar o pedido de deletar da histria as referncias a Deus, salientou que "uma das propostas de educao adotar tolerncia de variadas experincias e crenas de outros que compartilham este planeta.

    Como escritor, continuarei a praticar o meu ofcio. Continuarei, como continuaro muitos outros, a contar as histrias de homens e mulheres que se apresentam minha imaginao, indiferentemente da raa, indiferentemente do gnero. Eu continuarei a perseguir, minha melhor habilidade, a desmistificao do Outro.