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LENDO E ESCREVENDO MEMÓRIAS EM CONTEXTO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DO CAMPO Maria Zélia Versiani MACHADO (Professora doutora, FaE/UFMG H[email protected] ) Amarílis C. CORAGEM (Professora Mestre FAE/UFMG H[email protected] ) RESUMO Este trabalho pretende discutir a prática de leitura e escrita de gênero memorialístico realizada em contexto de formação de professores, oriundos de comunidades do campo. As práticas que serão analisadas resultam de um projeto de produção de livro de memórias, escrito por alunos no Curso de Licenciatura do Campo – Pedagogia da Terra, na UFMG. O projeto que tinha como objetivo a escrita e publicação das memórias cumpriu as seguintes etapas: pesquisa e discussão sobre práticas de letramento nos assentamentos; leitura de textos memorialísticos; produção de textos com foco direcionado para a as relações dos sujeitos com a escrita; leituras partilhadas dos textos produzidos e reescrita; discussão da concepção e produção do livro; apresentação e divulgação do livro de memórias. Pretende-se, a partir dessa experiência, problematizar o gênero memorialístico, situado na tênue fronteira entre biografia e imaginação criadora. Gênero que incorpora elementos lingüístico-textuais na invenção possível do passado. PALAVRAS-CHAVE: leitura, escrita e oralidade; letramento; memórias; gênero autobiográfico

Apresentação da seleta: Memórias da infância

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LENDO E ESCREVENDO MEMÓRIAS EM CONTEXTO DE FORMAÇÃO DE

PROFESSORES DO CAMPO

Maria Zélia Versiani MACHADO (Professora doutora, FaE/UFMG [email protected] )

Amarílis C. CORAGEM (Professora Mestre FAE/UFMG [email protected] )

RESUMO

Este trabalho pretende discutir a prática de leitura e escrita de gênero memorialístico realizada em

contexto de formação de professores, oriundos de comunidades do campo. As práticas que serão

analisadas resultam de um projeto de produção de livro de memórias, escrito por alunos no

Curso de Licenciatura do Campo – Pedagogia da Terra, na UFMG. O projeto que tinha como

objetivo a escrita e publicação das memórias cumpriu as seguintes etapas: pesquisa e discussão

sobre práticas de letramento nos assentamentos; leitura de textos memorialísticos; produção de

textos com foco direcionado para a as relações dos sujeitos com a escrita; leituras partilhadas dos

textos produzidos e reescrita; discussão da concepção e produção do livro; apresentação e

divulgação do livro de memórias. Pretende-se, a partir dessa experiência, problematizar o gênero

memorialístico, situado na tênue fronteira entre biografia e imaginação criadora. Gênero que

incorpora elementos lingüístico-textuais na invenção possível do passado.

PALAVRAS-CHAVE: leitura, escrita e oralidade; letramento; memórias; gênero

autobiográfico

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ABSTRACT

Reading and writing of the memory genre are discussed in this paper in the context of teacher

formation, where the teachers come from the country. The practices which will be analyzed are

the result of a project, by which means teachers-to-be write a book of memories. These are

students of Country Pedagogy – an undergraduate program of UFMG. The following steps were

accomplished: research and discussion of literacy practices in settlements for the landless;

reading of memories in various literary genres; text production; shared readings of the texts

produced and rewriting; text editing and conceptual discussion of the book; book production;

presentation and publishing of the book. This experience leads to questioning ‘memories’ as a

genre in itself, since it lies on the border that separates biography and creative imagination,

tending to an organization which resembles that of the literary chronicle. It is a genre that

intertwines textual linguistic elements in a possible invention of the past.

KEYWORDS: reading, writing and spoken language; literacy; memories; auto-biographic

genre.

I – INTRODUÇÃO

As linguagens no contexto de formação do curso de licenciatura do campo: pedagogia da

terra

A área das Linguagens – LAL – para a Licenciatura em Educação do Campo: Pedagogia da

Terra, projeto-piloto de formação de professores do campo em curso desde 2005, tem buscado

articular a reflexão sobre o ensino-aprendizado de língua portuguesa, de línguas estrangeiras e de

artes à formação de sujeitos leitores e produtores de seus próprios textos. Com essa dupla

proposta, interessa à área tanto a discussão sobre práticas de letramento e de oralidade nas

comunidades de origem dos alunos como a ampliação de usos de gêneros de diferentes esferas

discursivas, entre elas a acadêmica.

A proposta da LAL pode ser compreendida, portanto, segundo três dimensões: 1) A dimensão das

habilidades, disposições e competências no campo da leitura e da escrita, das artes e das línguas

estrangeiras; 2) A dimensão dos conhecimentos e habilidades desejáveis a crianças, jovens e

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adultos que serão formados por esse futuro professor; 3) A dimensão da produção do

conhecimento ou do desenvolvimento de habilidades para a pesquisa.

A primeira dessas dimensões é aquela que será focalizada neste texto. Ela se apoia na ideia de

formação do professor-leitor-autor, sujeito que se apropria de práticas culturais, no contexto do

curso de formação, particularmente aquelas relacionadas à cultura escrita, nas suas múltiplas

funções, com destaque para a escrita autobiográfica. A autobiografia, neste trabalho, é tomada

como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando

focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. (LEJEUNE, 2008,

p. 14)

Os primeiros módulos da área com os alunos do Pedagogia da Terra tiveram como foco

principal o desenvolvimento de habilidades, de estratégias e de disposições para a leitura e a

produção de textos, destacando o desenvolvimento de habilidades e competências nos usos da

linguagem oral e da escrita em diversos gêneros discursivos. Neste artigo abordaremos alguns

aspectos relacionados ao conteúdo de artes e de língua portuguesa, a partir de uma proposta

interdisciplinar de atividades desenvolvidas nesses primeiros módulos do curso, reunidos na

etapa de formação básica. No intuito de trazer à tona concepções fundamentais que subsidiassem

as reflexões sobre concepções nucleares como a de linguagem, texto, textualidade, discurso,

gênero, variação entre outras, o ponto de partida foi a observação dos usos sociais da escrita nos

assentamentos sem-terra. Além da reflexão sobre essas práticas de letramento, foram trabalhados

outros gêneros do contexto acadêmico como esquema, resumo, resenha, artigo, e a narrativa

memorialística, ou a crônica autobiográfica, que será o gênero privilegiado neste texto.

II – Por que memórias em livro

Escrever e publicar a narrativa da própria vida foi por muito tempo, e ainda

continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado aos membros das

classes dominantes. O “silêncio” das outras classes parece totalmente natural: a

autobiografia não faz parte da cultura dos pobres.

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(Philippe Lejeune – O Pacto Autobiográfico, 2008 p. 113)

O trabalho com as memórias tem se revelado, nos cursos de formação da Faculdade de Educação,

propício ao envolvimento dos alunos com a escrita e reescrita de textos – atividades entremeadas

por momentos de leitura partilhada – que tem como ponto de culminância a produção de um livro

de memórias. A motivação para fazer um livro, coletivo, um livro feito à mão, é fruto de uma

insatisfação com o processo de produção da escrita – desde a produção propriamente dita até as

suas formas de circulação –, na escola, em especial, com os textos escritos na e unicamente para a

sala de aula. Afinal, escreve-se, na escola, por quê, para quem e para quê? O suporte de escrita na

sala de aula é quase sempre uma folha avulsa onde o aluno escreve a caneta o seu texto, e quem o

lê é apenas o professor. Fazer um livro é, pois, uma maneira de dar um destino, uma função

sócio-comunicativa ao texto. Assim também como se pode fazer jornais, murais, panfletos, com

objetivos específicos de interesse dos sujeitos que interagem no cotidiano escolar. Se

pretendemos trabalhar com uma concepção interacionista de língua e com gêneros discursivos, os

textos precisam de um suporte e de uma circulação que lhes dêem vida própria e função nas

relações interpessoais.

Construir memórias é também um trabalho de formação do professor, que se constitui na e pela

escrita. Acreditamos que a ação do professor traz as marcas da sua história pessoal, como

aprendeu a ler e a escrever. Ele, muitas vezes, reproduz, na sala de aula, o que experimentou e

vivenciou enquanto aluno em práticas de leitura e escrita cristalizadas e repetitivas: a escrita sem

destinatário que não seja o próprio professor; a leitura desconectada dos interesses dos alunos e

de sua circulação social.

Além de promover uma espécie de volta individual ao passado, o trabalho com a memória,

com a história de vida, possibilita situar a história pessoal no contexto social. Após reconstituir

a história pessoal, é possível reconstituir também o contexto sócio-histórico da época em que

se aprendeu a ler e a escrever, o ideário pedagógico (MARINHO, 2004, p. 32), a história da

escola, a rede de ensino, as condições de exercício do magistério, a escola no cenário social,

etc.

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A produção de um livro de memórias tem também uma intenção de levar à reflexão sobre as

práticas de letramento, convidando o futuro professor a lançar um olhar sobre os usos sociais da

escrita e da leitura nas comunidades, num contraponto que pressupõe um contínuo1 com as

práticas orais. Hoje uma série de produções culturais enriquece essa discussão, entre elas filmes

como Os narradores de Javé, de Eliane Caffé, que, no projeto de produção das memórias,

contribuiu para a problematização das relações entre oralidade e escrita, cultura escrita e cultura

oral, que sabemos complexas. Dar visibilidade a essa complexidade tem sido a meta de pesquisas

para as quais grupos que predominantemente fazem usos da oralidade encontram-se inseridos em

práticas da cultura escrita:

Alguns estudos têm mostrado que as relações e mediações ocorridas entre indivíduos e grupos sociais e o mundo da

cultura escrita são muito mais complexas. Essas pesquisas revelam que grupos tradicionalmente associados à

oralidade e que, por muito tempo, encontravam-se dissolvidos em substantivos que, por sua própria carga discursiva,

tendiam a homogeneizá-los (...) utilizavam táticas e, de maneiras particulares (...) se inseriam em práticas de

letramento. (GALVÃO, 2005, p. 370)

O diálogo estabelecido entre gêneros e práticas discursivas da oralidade e da escrita passou,

assim, a fazer parte do processo de elaboração de textos memorialísticos, que, a cada encontro,

eram objeto de leitura partilhada e de reescrita. Priorizou-se, dessa forma, a formação de

leitores/falantes e escritores/ouvintes envolvidos em práticas escolares significativas que

levassem à reflexão sobre os usos sociais da língua, numa perspectiva variacionista, por

considerarmos que “(...) a estigmatização das variedades lingüísticas revela (...) uma atitude

profundamente antilinguagem, já que a variação é nuclearmente, estruturalmente, a condição que

dispõe a língua para a mudança, a substância da sua própria vitalidade”. (OSAKABE, 2001, p.

8/9.)

e também a uma reflexão sobre os diferentes letramentos2.

1 Marcuschi (2004) afirma serem oralidade e letramento atividades interativas e complementares no contexto das práticas sociais e culturais (p.16). O autor procura mostrar como oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos nem uma dicotomia. (p. 17). 2 A tendência que hoje se manifesta no emprego da palavra no plural advém da complexidade e do caráter múltiplo dos usos sociais da escrita na sociedade.

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Na verdade, o livro de memórias do grupo de alunos começou a ser escrito antes mesmo do início

do Curso de Licenciatura em Educação Básica do Campo, carinhosamente chamado Pedagogia

da Terra. Quando os autores e as autoras dos textos reunidos em três livros3 se inscreveram para

o processo seletivo do curso, apresentaram memoriais nos quais procuraram dar forma a

lembranças e recordações da trajetória que os levou até ali. Os memoriais mostraram que as

imagens do passado se recobrem por uma superposição de outras experiências vividas, entre elas

a vontade de integrar as turmas do curso pretendido, manifestada em todos os textos. Assim,

colocar no papel as memórias foi o primeiro desafio que mostrou a necessidade de apropriação da

escrita como fator determinante para que se integrar a primeira turma de licenciatura do campo da

Faculdade de Educação da UFMG.

III – Ler e escrever memórias: conhecer o outro para buscar a si mesmo

A partir do Tempo Escola II iniciamos a leitura de textos memorialísticos – de vários escritores

selecionados – e paralelamente desencadeamos um processo de escrita e reescrita dos textos de

memórias pelos autores e pelas autoras dos textos deste livro. Primeiramente lançamos o nosso

olhar para o tempo da meninice, para a infância, para as brincadeiras, para o ambiente familiar,

ainda sem a preocupação central de refletir sobre a relação dos sujeitos com a leitura e a escrita.

Tal objetivo seria alcançado em etapa posterior, dando origem ao projeto das coletâneas, sob a

forma de livro. Simultaneamente, cuidava-se se também, nesse momento, das estratégias e

habilidades leitoras desses alunos.

Os textos escolhidos para a leitura constituíram uma pequena antologia. Essas leituras

compuseram um mosaico de recordações, reminiscências, lembranças, memórias vividas e

inventadas, sob a forma de narrativas e poesias, escritas por diversos autores: Graciliano Ramos,

de Infância, Helena Morley, de Minha vida de menina, Fernando Sabino, de O menino no

espelho, Drummond, de A senha do mundo, Manoel de Barros, de Memórias inventadas entre

outros. A leitura dos textos desses autores trouxe aos leitores recordações de experiências

3 Os textos dos três livros foram produzidos pelas turmas das professoras Aracy Alves Martins, Vanir Consuelo Guimarães e Maria Zélia Versiani Machado, nos tempos de formação básica do curso Pedagogia da Terra. Depois de finalizados os textos, a produção dos livros foi realizada sob a orientação da professora Amarílis Coragem.

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pessoais da infância, num processo em que se perceberam muitos elos comuns entre vidas. Por

causa desse efeito agregador de experiências, elegemos a memória de infância como gênero para

a leitura e posterior produção de texto, com o foco mais voltado para as lembranças ligadas ao

aprendizado da escrita e da leitura na escola e no ambiente familiar.

IV – Lugar de autoria e diferentes modos de construir a autobiografia

A produção dos textos que compõem os três livros feitos pelas turmas do curso Pedagogia da

Terra passou por um processo de escrita e reescrita durante três semestres, em que as

especificidades da modalidade escrita da língua puderam ser discutidas em sua relação com os

usos da modalidade oral. Usos orais da língua, sobretudo em gêneros públicos próprios a

situações de militância nos movimentos sociais, mostraram-se, nessas discussões, bastante

familiares a grande parte dos alunos. Entretanto, a entrada na universidade abre portas para um

universo de práticas discursivas e usos da escrita, certamente, pouco familiares a esses sujeitos e

a quem ainda não percorreu essa trajetória.

Partindo do pressuposto de que os usos da língua engendram desempenhos lingüístico-

discursivos em situações comunicativas da realidade social, paralelamente ao projeto de produção

de texto de memórias, os alunos realizaram uma atividade de pesquisa com o objetivo de levantar

práticas de letramento ou as funções sociais da escrita nos assentamentos. Buscava-se, assim, dar

visibilidade e discutir as formas de circulação de textos nos contextos das comunidades dos

alunos, assim como compreender as possíveis relações entre práticas orais e escritas presentes

nessas comunidades. Percebeu-se, a partir dessas pesquisas, um relativo distanciamento em

relação a algumas esferas discursivas com, por exemplo, a literária, com a qual manteríamos um

diálogo no processo de produção do livro. A proposta do livro pressupõe a socialização de textos

por meio da escrita, operando um tipo de deslocamento discursivo pouco habitual para a maioria

dos alunos, numa experiência socializadora de subjetividades. Lembrar e escrever sobre o

passado é uma experiência pessoal e intransferível, que traz não só boas mas também

desagradáveis recordações. Transformá-las em palavras supõe recortes, omissões, escolhas

subjetivas que se quer partilhar sob a forma de um livro escrito por vários autores e que terá

muitos leitores. Esta talvez tenha sido a maior dificuldade enfrentada por muitos alunos na escrita

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das memórias, principalmente porque a experiência de um lugar de autoria não é uma prática

comum a uma grande maioria de cidadãos brasileiros. Se já se reconhece a distribuição desigual

do direito à leitura, maior ainda é essa desigualdade quando se trata da escrita, do lugar de autor.

Esse lugar exige um aprendizado lingüístico, mas também uma conquista política.

Os três fragmentos de textos4 que serão analisados a seguir exemplificam três modos distintos de

constituição da autoria por três alunos do Pedagogia da Terra. O objetivo dessa análise é o de

verificar como os autores das narrativas enunciam a sua própria voz, para que o texto se constitua

como uma autobiografia, pois de acordo com Philippe Lejeune “para que haja autobiografia (e,

numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o

autor, o narrador e o personagem”. (2008, p.15)

O autor do texto 1, intitulado O ouro é provado no fogo, inicia a narrativa de suas memórias

fornecendo todas as informações necessárias para a plena identificação de quem escreve e do

sujeito construído na e pela escrita:

Nasci no dia 04 de agosto de 1973 na Comunidade dos Martins, Zona rural no município de São Francisco do Glória,

Estado de Minas Gerais. Filho de Joaquim da Silva e de Maria da Silva5. Morei nessa comunidade por pouco tempo,

mudei para Muriaé, depois para Tebas e em seguida voltei a morar em Muriaé, sempre na zona rural, com duas

breves moradas na zona urbana de Muriaé. Vivi na zona rural até os 7 anos e 6 meses de idade. Em fevereiro de 1981

meu pai veio a falecer e minha mãe resolveu voltar a morar com seus pais na cidade de Muriaé.

A primeira pessoa se coloca na primeira palavra “nasci”, e a partir desse modo de enunciação de

si mesmo, outras referências atestam lugares em que viveu e a situam como membro de uma

família do meio rural. Outros elementos como a designação do nome dos pais cumprem o papel

de reforçar a veracidade que a narrativa autobiográfica quer registrar. O início dessa narrativa

instaura um pacto de realidade, o que será equilibrado, no seu prosseguimento, quando, posto e

comprovado o estatuto de realidade, passa-se ao terreno das memórias da infância guiadas por

critérios mais subjetivos:

4 Os nomes dos alunos serão mantidos no anonimato, por questões éticas. Sempre que aparecerem nomes próprios dos alunos e de familiares eles serão trocados por nomes fictícios. Os três textos serão identificados como texto 1, texto 2 e texto 3. 5 Os nomes próprios das pessoas, presentes no texto autobiográfico, também foram alterados.

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Na minha infância, pensava em ser piloto de avião, brincava de pilotar nos pés de goiaba e saltava imaginando ser

um pára-quedista. Quando meus primos iam lá em casa passear, brincávamos de bola. Meu pai era retireiro, saía bem

cedo para buscar e juntar as vacas no curral para ordenhá-las. Aos 4 anos de idade já andava a cavalo e aos 5 anos

acompanhava meu pai em seu trabalho, levava merenda para ele, para o meu irmão mais velho e para os

companheiros que estavam plantando ou roçando. Ajudei a plantar arroz no brejo, feijão e milho, buscava barro

branco para minha mãe passar no fogão a lenha e estrume de boi para passar no chão da casa. Adorava ficar na

banqueta no fogão para me aquecer do frio. Todos os dias à noite a família se reunia para rezar e para ouvir rádio que

funcionava à pilha e também para conversar à luz da lamparina a querosene.

A vida do menino do campo, reconstituída pelas memórias, mistura as brincadeiras típicas da

infância à lida diária dos adultos da qual as crianças participam. O modo de construção do texto

apresenta ecos de textos lidos na preparação do projeto como o poema Infância, de Drummond:

“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./Minha mãe ficava sentada cosendo./Meu irmão

pequeno dormia./Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson

Crusoé,/comprida história que não acaba mais” (1974, p. 3-4), com a diferença que o autor-

personagem da nossa história protagoniza a sua história de menino do campo, dividindo a cena da

vida com crianças e adultos com quem convive, numa história que, também ela, “não acaba

mais”. Outras partes da narrativa memorialística apresentam-se como textos que recuperam o

passado de modo a aproximarem-se da abertura das indagações e não das respostas fechadas,

típico da escrita literária, como na passagem em que o autor se lembra da morte do pai:

Lembro-me do dia em que meu pai morreu. Uma tia (Tia Dinha) que é evangélica foi para o velório e reuniu eu,

meus irmãos e irmãs, embaixo de uma árvore enorme que tinha no quintal e nos contou a história da criação do

mundo e do pecado original para nos explicar a morte. Confesso que naquele momento eu não entendia nada do que

estava acontecendo, porém, aprendi a história e nunca mais esqueci.

Depois disso, o texto 1 passa a tratar do aprendizado da leitura e da escrita, inicialmente pela

memorização da escrita do próprio nome, com a ajuda e estímulo da mãe, e depois por episódios

lembrados da vida escolar.

No texto 2, com o título Memória: caixa mágica de recordações, também selecionado para a

análise do modo de enunciação do eu, observa-se que a autora, curiosamente, se inscreve no texto

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de maneira indireta, em terceira pessoa. A autora utiliza uma estratégia de enunciação comum em

escritas autobiográficas quando confunde o leitor quanto à realidade extratextual:

É (...) em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. Nos textos impressos, a

enunciação fica inteiramente a cargo de uma pessoa que costuma colocar seu nome na capa do livro e na folha de

rosto, acima ou abaixo do título. É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única

marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma,

que lhe seja, em última instância, atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. Em muitos

casos, a presença do autor no texto se reduz unicamente a esse nome. (LEJEUNE, 2008, p. 23)

Embora haja identificação entre o nome que assina o texto e a personagem Aparecida6 , conforme

veremos abaixo, tratar a si próprio por um ponto de vista em terceira pessoa produz um efeito de

distanciamento que potencializa o caráter de reconstrução “ficcionalizada” do processo de

reconstrução do passado:

Nasce, no dia 28 de outubro de 1983, para a alegria e união do casal Maria e João, uma linda menina que recebeu o

nome de Aparecida em homenagem a duas amigas da família. O casal veio de famílias de poucas posses, que, desde

crianças, lutavam por sua sobrevivência. Com muito esforço compraram uma casinha, resolveram se casar e

receberam a ajuda de amigos quando a filha nasceu. O tempo vai passando, a menina vai crescendo, os outros filhos

foram nascendo,e as posses e as necessidades vão aumentando. O lazer da família era a visita à casa da avó, mãe da

mãe, todos os natais eram passados lá.

A autora lembra a infância dessa menina que se evidencia como outra na narrativa do passado,

como se a escrita do passado fizesse da sua existência uma realidade ficcional. Sobre a leitura e o

contato com a escrita na infância, é interessante o trecho em que aparecem as leituras variadas e

possíveis, quando aparecem, lado a lado, gêneros e suportes de diferentes naturezas, no processo

de formação dessa leitora que intuía significados da cultura escrita:

Nas férias gostava de ir para a casa de sua avó, pois lá encontrava uma de suas maiores alegrias. Eram revistinhas em

quadrinhos da Turma da Mônica que sua tia ganhava de sua patroa. Entrava no quarto e ficava horas entretida nas

aventuras da leitura. O mundo da leitura passa a ser seu lugar predileto, lia tudo o que encontrava: livros

emprestados, achados, propagandas, contas, documentos, jornais e revistas, enfim tudo de escrito que chegava a sua

mão ou a sua vista. Tudo o que era escrito chamava sua atenção, dedicava horas e horas nessa atividade, sua mãe até

6 Nome fictício.

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dizia: “de tanto ler essa menina vai ficar louca um dia”. Pena que não teve muito contato com os clássicos da

literatura, sua timidez muitas vezes a impediu de ir à biblioteca. Acreditava que toda leitura “sempre vale a pena”,

considera o livro um companheiro constante e maravilhosa a oportunidade que ele proporciona de conhecer outros

lugares, outras culturas, enfim outras vidas.

A cultura letrada aparece na narrativa não só como espaço de fruição. É preciso relatar também

os modos de acesso para alcançá-la. Índices de aproximação e de distanciamento – a identificação

entre leitura e loucura evidencia este último aspecto – apontam aspectos reveladores de valores

socioculturais sobre a leitura e sobre as formas de democratização do livro, entre os quais

destacamos o trecho que soa como se a responsabilidade disso recaísse sobre a própria

personagem: “Pena que não teve muito contato com os clássicos da literatura, sua timidez muitas

vezes a impediu de ir à biblioteca.”

O texto 3, com o curioso título Sagrado Coração, é aquele em que se mostra uma maior

disposição para a escrita literária da autobiografia, pois a forma pela qual o texto se apresenta

rompe com o modelo narrativo orientado pela seqüência: 1) apresentação (quem sou eu, quem é

minha família, onde vivi); 2) casos da infância (geralmente que antecedem o ingresso na escola);

3) a entrada na escola e o aprendizado da leitura e da escrita. Esta pode ser considerada a

estrutura básica de quase todos os textos das coletâneas. O texto 3, em que a autora se exibe em

primeira pessoa, foge desse modelo e propõe uma reconstrução do passado em mosaico7, cujos

fragmentos trazem para um primeiro plano “personagens” que fizeram parte da vida da narradora,

que se mostra, por sua vez, através dessas pessoas:

1. Minha tia Maria

Minha Tia Maria era uma figura assustadora. Vestia-se de preto, marrom, vinho ou verde bem escuro. Cada vez que

eu ia a sua casa, geralmente forçada, evitava me afastar da porta, assim imaginava que era mais fácil correr. Era uma

casinha de “enchumento”, caiada por fora e barreada por dentro da cozinha. No quintal muitos pés de cana, banana e

as batatas doces, que ela sempre nos servia cozidas. Eu tinha medo da minha tia. Sempre imaginava aquelas pernas

com sanguessuga subindo e fortalecendo os poderes dela de bruxa. Às vezes à noite, sonhava que ela nos cozinhava

em um caldeirão, lá no curral do meu avô. Cozinhava e rezava, cozinhava e rezava... Em Tia Maria, o que eu gostava

sempre era as trocas que fazíamos. Durante as festas de São João e barraquinhas, juntávamos eu e minhas irmãs, as

caixas de fogos com fotos dos Santos, para trocá-las por pintinhos e frangos. Com as gravuras dos Santos, Tia Maria

7 Para uma melhor visualização disso, o texto Sagrado coração será reproduzido integralmente.

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enfeitava o presépio, que todo ano fazia em sua casa. O presépio era mais um motivo para não entrar na sua casa:

uma lona preta manchada com rabiscos de tinta prateada, algumas imagens de Santos descascados, algumas velas, e

lá estava Cosme e Damião, São João e Nossa Senhora. Naquele tempo, na roça não tinha luz. Eu ficava inquieta para

ir embora, mas só ia quando ficava de tardezinha.

B2. Minha casa Para mim, nós éramos todos juntinhos. Eu era criança e adorava a velha Rua do Mercado. Éramos seis. Minha mãe

(Nancy), meu pai (Pedro), meus 03 irmãos (Wesley, Mariana, Anelise), e eu. Vivíamos numa casa com três quartos,

02 salas, cozinha, 01 banheiro e um quintal enorme. Era no quintal de casa, junto às árvores e nas brincadeiras que

inventávamos que passava a maior parte do dia. Era lá que eu concretizava minha imaginação com as coisas que eu

via e ouvia. Tudo se transformava em brincadeira. Com um martelo fazia pratinhos das tampinhas de refrigerante; as

caixas de sapato viravam armários e as de latas de sardinhas eram carrinhos. Eu adorava fazer conjuntos de sofá, com

as caixas de fósforo. Com os galhos secos das árvores, fazíamos cercadinho, estradas e fazendinhas. Eu me alongava

no quintal. Fechava os olhos e o reflexo de tanta luz me fazia ver fadinhas. Meu irmão mais velho brincava de chefe

apache. Para mim, ver aqueles indiozinhos e o cenário de bang-bang espalhado pelo quintal era uma maravilha. Ele

não deixava brincar com aquelas miniaturas tão bem feitas, mas a gente era danada e malina, e sempre escondia

umas para colocar na casinha.

B3. As lembranças que guardei da Infância, ao lado de meu pai Eu achava que meu pai parecia com o personagem do Zé Carioca. Usava chinelos de dedo Havaianas, bermudão, e

camisa de botão estampada, como as de praia.Gostava de deitar-se no sofá da sala e assistir televisão. Via O gordo e

o magro, Mazzaropi e não perdia um programa do Chaves. Trabalhador autônomo, tinha sua própria selaria. Não sei

se era bom, isso o fazia trabalhar quando quisesse. Com os amigos saía para pescar e passava dias à beira do rio.

Quando voltava, para nós era uma alegria. Quanto peixe! A maioria trazia vivos. Eu adorava brincar com a boca dos

cascudos. Para minha mãe não era tanta alegria, além de ficar sozinha com os filhos durante a pesca, quando ele

chegava, limpava todos os peixes e, meu pai, os dava para os amigos. Ele criava passarinhos nas gaiolas, e tinha

muitos galos de briga. Nas horas “vagas”, treinava os bichos para brigar na rinha. Na rinha eu gostava de ir. Era raro

nos levar, mas eu gostava da mandioca frita, passada no ovo que eles faziam lá. Minha mãe separou-se do meu pai

quando eu tinha 05 anos. Eu não lembro se sofri muito. Acho que não. E não que não gostasse de meu pai, a imagem

que preservei dele, talvez até pra me guardar, foi a de uma pessoa festeira, feliz, que nunca me bateu. Passamos a

morar na mesma rua e aos finais de semana, se sentíssemos vontade, passávamos com ele. Meu pai vive hoje sozinho

e continua a fazer selas. Segue o mesmo padrão de liberdade de quando era solteiro, durante o casamento e após a

separação.

A tia, a casa e o pai são os três elementos pinçados que darão o mote para a reconstrução do

passado. O nome próprio da autora das memórias só aparece abaixo do título do texto, mas a

primeira pessoa – reiterada pela presença de pronomes possessivos em todos os subtítulos da

narrativa: minha tia, meu pai, minha casa – produz a identificação plena entre a personagem e a

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autora de “carne e osso”. Com fortes predisposições para o humor, a autora prefere agir

seletivamente sobre a matéria bruta que o passado lhe oferece, e assim propõe uma leitura

distanciada e autocrítica da vida por meio da liberdade criativa que brinca com o estatuto da

realidade vivida:

Valéry dizia que todo julgamento que estabelece uma relação a três entre produtor, obra e consumidor é ilusório, já

que essas três instâncias nunca participam ao mesmo tempo de uma mesma experiência. Talvez a autobiografia (seja

ela literária ou não) brinque justamente de criar essa “ilusão” (...) (LEJEUNE, 2008, p. 56-57)

Para nós leitores, que participamos dessa experiência, resta uma ilusão com sabor de verdade dos

pequenos textos, que querem se passar como narrativas vividas.

V – Feito a várias mãos: encadernando memórias

Lidar com papel é atividade prazerosa: papel estampado, colorido, liso, texturado, fino ou

espesso, seja para desenhar, escrever, colar, dobrar, recortar ou simplesmente guardar por suas

qualidades estéticas. Fazer livros com as mãos de modo simples, bem feito e principalmente de

fazer livros com qualidades artísticas é um desafio. A experiência de construir um livro

artesanalmente, para guardar memórias escolares, antecede ao projeto desenvolvido no

Pedagogia da Terra, pois já vem sendo realizada em outros cursos da FaE e de outras instituições

com as quais estabelecemos parceria8.

Depois de uma das felizes aventuras de fazer livros com as mãos, conhecemos o livro Feito à

mão de Lygia Bojunga (1996). Foi como encontrar mais uma cúmplice desse fazer que cada vez

mais nos encanta. Lygia encontrou as palavras certas quando disse as razões por que queria fazer

o livro com as próprias mãos: “(...) eu queria voltar atrás na minha vida pra reencontrar o pano

bordado, a terra cavada, o barro moldado, e queria juntar eles todos numa pequenina homenagem

ao feito à mão”. (1996, p.7)

8 Iniciado em 2000, esse projeto ganhou forças com a descoberta do trabalho de Lygia Bojunga (1996), o qual foi fonte de inspiração para o seu nome Feito à mão, o livro de nossas memórias. Aliando ensino e pesquisa, vários livros foram produzidos e uma pesquisa encontra-se em andamento, com a publicação de artigos (MARINHO, 2004, MARTINS, 2005) e apresentação de trabalhos em congressos.

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É que esse fazer artesanal promove uma rica experiência ao mesmo tempo construtiva e reflexiva.

Numa dimensão poética, é possível tocar nos textos ao colocar folha por folha cuidadosamente

umas sobre as outras, envolvê-las em papel colorido e protegê-las com papel forte; observar

atentos a seqüência das páginas, a posição da margem, verificar a espessura do dorso, prever as

dobras e o movimento do papel; escolher uma capa que seja mais um espaço de expressão dos

autores, para que revele o tema comum que abrace os sentidos dos outros textos.

O aspecto pedagógico dessa construção exige qualidade e criatividade para escolher

procedimentos que não necessitam de habilidades muito específicas, habilidades que estão ao

alcance de todos, inclusive das crianças; sem lançar mão de ferramentas de corte ou ponta,

evitando “os perigos” nas mãos dos alunos, utilizando apenas recursos simples encontrados entre

os materiais escolares; incentivando o reaproveitamento dos recursos disponíveis e conhecendo

as possibilidades dos recursos naturais seja no uso do papel artesanal ou do papel reciclado.

Fazer livros com os alunos do curso Pedagogia da Terra acrescentou ao educativo e artístico, um

sentido filosófico e político. Ao expressar as qualidades da terra, nas suas cores, na sua

simplicidade e na sua força; ao valorizar a dimensão histórica de sua forma memorialística,

viabilizou-se a expressão autêntica e autônoma de aspectos da identidade revolucionária de seus

autores.

Recorrendo à linguagem da terra, esse processo é como uma metáfora do plantio. É preciso

selecionar imagens que, como sementes, componham o texto, acrescentando significados à

palavra escrita e ampliado seus sentidos. Como se fosse o tempo de germinar, é preciso saber

esperar para folhear o livro, deixá-lo descansar entre outros livros enquanto a cola seca e as

folhas se ajustam. Também é preciso cuidar, pensar não só na beleza, mas também no possível

desgaste causado pelo manuseio do livro e recortar o reforço da lombada e das ponteiras.

Nesse processo de construção do livro, aos poucos, as mãos descobrem seu jeito próprio de lidar

com a cola e o papel, reinventando a técnica, criando, produzindo, articulam a teoria e a prática.

Ao som da música, os risos e comentários dos escritores-artesãos se tornam cada vez mais alegres

e expressivos. O tempo de fazer é um tempo de compartilhar um pouco da história de cada um,

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na promessa de poder guardar também as memórias desse tempo de construção no livro pronto e

acabado. O livro artesanal pode ser um objeto a ser cultivado como uma das possibilidades de

criação de espaços e suportes para construção de um lugar de autoria e de circulação da escrita,

nessa comunidade. Encadernado, acabado, em torno do livro faz-se a partilha dos sabores das

memórias, o retorno à oralidade, uma leitura mediada pela escrita, o ponto do qual se partiu no

início da sua confecção. Folhear, ler, comentar e socializar os sentidos do que nele se inscreve, no

ritual de “lançamento” de uma obra que terá leitores e leituras particulares. Deixamos aqui

fragmentos das nossas leituras, de alguns dos tantos significados que esses textos podem

produzir.

A criação do objeto-livro soma-se à dimensão icônica do texto, quando as imagens criadas pela

escrita tomam corpo na construção da capa, da ilustração, da diagramação. Esse fazer

potencializa os sentidos do texto na sua materialidade, na sua visualidade e até mesmo na sua

funcionalidade, assumindo uma expressividade própria da linguagem artística, que procura

ultrapassar a simples representação para realizar-se como presença.

As soluções técnicas e estéticas da construção do objeto-livro, para além do que nos comunicam

as palavras do texto escrito, trazem à tona habilidades esquecidas, que ficaram guardadas desde a

infância: o modo de lidar com o traço, com o papel, com a cor, a tesoura e a cola. É assim

também que acontece no trabalho de ilustração.Todos trazem de volta suas memórias individuais

de outras épocas, mas que em geral têm muito em comum quando comparadas. Todos os

desenhos guardam as marcas daquele tempo de escola em que se iniciavam nas primeiras letras.

A maioria dos desenhos parece que permaneceram lá, intactos, com seus traços ingênuos, com

seus recursos gráficos limitados.

Apesar da ausência de recursos para desenhar, muitos acabam por apresentar imagens que captam

e congelam o gesto no traço, como um retorno à infância, não apenas do ponto de vista daquilo

que se desenha, mas também a infância do modo como se desenha.

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Brinquedos infantis: amarelinha, Pipa, pião, bola, carrinho, ursinho. Elementos da natureza: sol,

lua e estrelas. (Aluno do Pedagogia da Terra)

São acanhados, inseguros, mas revelam um certo grau de sinceridade e pureza que acaba se

traduzindo em expressividade:

Uma cena na sala de aula: o menino de braços abertos sobre tampinhas e grãos de milho. Na

parede está escrito: canto do castigo. (Aluno do Pedagogia da Terra)

Alguns desenhos são apenas tentativas de verbalização, com elementos de um vocabulário

minimalista e simplificado. Por outro lado, o seu aspecto acaba sendo muito apropriado às

lembranças de sua iniciação ao mundo da leitura e da escrita, na escola, o que, muitas vezes,

marca o corte de seu processo de desenvolvimento no desenho, como vemos em um deles:

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Árvores, montanha, sol, balanço, três crianças (figuras palito) caminham para a escola

(casinha).(Aluno do Pedagogia da Terra)

As intenções de resgate da memória estão muito mais na escrita que na ilustração. Esta,

entretanto, condensa a imagem e com poucos elementos o desenho e enfatiza aquilo que, na

narrativa verbal, comove:

Debruçada na enorme carteira, a menina esconde o rosto entre os braços, enquanto cruza as

pernas sobre uma pequena “lagoa” (uma linha fina, medrosa e sinuosa, quase fechada em

círculo).( Aluna do Pedagogia da Terra).

Encontramos desenhos com detalhes da cultura e do cotidiano e da vida do campo, registros de

cenas, elementos descritivos e poéticos. Pode-se relacioná-los às cerâmicas, aos bordados, às

canções que caracterizam as artes do povo do campo. Observamos, por exemplo, tais

características em um dos desenhos:

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Uma mulher dando milho para as galinhas; um homem com enxada nas costas; crianças subindo

no coqueiro e apanhando cocos. No ar, pássaros e notas musicais; árvores frutíferas ao lado da

casa de adobe no alto do morro e o sol brilhando sobre a paisagem. As ações indicam a relação

produtiva com a terra; o trato da composição, da linha e do sombreado – que traduz a intensidade

das cores que ali não estão –, revela a sensibilidade para com a beleza do lugar. Os cuidados com

pequenos detalhes o distinguem do desenho infantil, caracterizando uma observação minuciosa

do cotidiano da vida no campo e expressando uma memória curiosa marcada pelo afeto. (Aluna

do Pedagogia da Terra).

Temos, ainda, outro estilo de desenhos nos quais, para expressar seu processo escolar, a autora

coloca o foco menos na história individual e mais no sentimento de grupo, de seus ideais, de seu

engajamento político. Não se preocupa em descrever, mas em contextualizar a palavra de ordem

do movimento que move sua busca pela educação: “MST, por escola, terra e dignidade”. E

mesmo não tendo escrito essa frase, ela é transparente neste desenho:

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Aqui tudo é predominantemente simbólico. A luta pela terra e pela educação está expressa até

mesmo nas proporções. O enorme sol, que parece indicar o amanhã, tem, no seu brilho a força do

presente ao mesmo tempo em que evoca experiências passadas. Em torno de uma bandeira que se

sustenta num “lápis-enxada” e de um vegetal que nasce de uma semente gigante, o livro aberto e

a roda de crianças que se abraçam.(Aluna do Pedagogia da Terra).

Entretanto, é impossível não se notar nesta imagem-síntese, proposta como capa do livro, o

domínio do desenho e a marca individual dos traços da autora:

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À citação de elementos do imaginário do movimento se somam elementos do imaginário pessoal

numa estética emblemática. Entre a enxada e a caneta, uma linha contínua modula o perfil de dois

jovens segurando uma bandeira que se projeta sobre um enorme girassol – símbolo do curso de

Licenciatura do Campo. O desenho adquire um maior grau de expressividade quando as

proporções dos elementos fazem acentuar o caráter simbólico da composição. (Aluna do

Pedagogia da Terra).

Com base numa pedagogia crítica, Marián Cão, no seu artigo sobre o olhar como eixo articulador

da experiência na educação intercultural, ressalta a construção de conhecimentos “numa possível

didática da imagem não tanto sob fórmulas técnicas, mas sim da perspectiva da vivência pessoal

e mediada da imagem como narração pessoal e também como narração – narrações do mundo”

(2005, p.197).

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Em síntese, podemos afirmar que a oportunidade de narrar memórias através da escrita e do

desenho promove a experiência particular e pessoal em algo significativo tanto para o indivíduo

como para o grupo, contribuindo para a auto-reflexão e atingindo a dimensão dialógica em nível

mais amplo.

A divulgação do livro de memórias é um momento culminante desse percurso, é o que completa

o sentido de todo o trabalho. Registrar as memórias não para guardá-las de novo, já que estavam,

de certo modo, arquivadas, por cada um de seus autores, entre as lembranças da escola, da sua

infância, da sua vida. Estes registros feitos em páginas de um livro têm as mãos do outro como

destino. O que antes estava fora do alcance do outro sob o risco do esquecimento é agora possível

de ser compartilhado.

VI – O eu e os outros nas memórias sobre o aprendizado da leitura e da escrita

Ler as memórias dos alunos do Pedagogia da Terra permite perceber não só o aprendizado dos

autores dos textos nas suas trajetórias individuais, mas, para além disso, ensina sobre a relação

com a cultura letrada e as dificuldades para apropriar-se da escrita, por quem busca, por meio

dela, trazer de volta o passado. Uma relação que, mesmo conduzida pela pessoal e intransferível

experiência da subjetividade, mantém um forte lastro com os anseios do grupo, da coletividade.

Este lastro se evidencia pela convicção de que somente o coletivo pode garantir a mudança que se

quer alcançar. A apropriação da escrita ultrapassa, assim, a dimensão individual de formação dos

sujeitos. Os textos exibem, cada um a seu modo, que a escrita, sustenta, justifica e renova a

condição dos sujeitos que se reconhecem na e pela linguagem. Muitos desejos tornam-se

passíveis de realização quando se reconhecem os sentidos daquilo que se escreve, para o outro,

no papel em branco.

No final do ano fizemos as últimas provas. Fiquei curiosa para saber o resultado, pois meu sonho era passar para a

quarta série. Lembro que, no último dia de aula, estávamos curiosos para saber o resultado e tia Laura, com seu

jeitinho doce e muito calmo, foi dando os resultados por ordem alfabética. Como o meu nome inicia-se com a última

letra do alfabeto, fiquei sendo a última. Quando eu ouvi aquela voz pronunciando minha nota que dizia que eu havia

sido aprovada, fiquei tão feliz que não pude conter e chorei de emoção. Mas a alegria durou pouco, pois na época,

em nossa região, não existiam professores capacitados para trabalhar com os alunos de quarta série em diante. Se

quisesse dar continuidade aos estudos, precisaria ir para a cidade de Governador Valadares ou outras como São

Geraldo da Piedade e Sardoá que também ficavam longe. E isso não foi possível, pois meus pais não concordavam

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com a idéia de eu estudar fora, porque naquela época eu só tinha 12 anos de idade. Isso causava muitas preocupações

para eles, portanto, só depois dos 40 anos retomei meus sonhados estudos. (Aluna do Pedagogia da Terra)

As memórias se tornam para muitos um modo de reafirmar a condição coletiva, fortemente

vinculada ao MST. A entrada no movimento e a apropriação da escrita no processo de formação

escolar fazem parte da infância e da juventude, conforme mostra o fragmento a seguir:

Em meados do inverno no ano de 2001, inicio uma nova etapa de minha vida. Estava eu com 16 anos, saindo da

adolescência, mas já tinha juízo – segundo Dona Maria, minha querida mãe. Lá fui eu, para meu primeiro curso de

formação política, conviver com pessoas de idades e estados diferentes. Foi mais que uma aprendizagem social, foi

humana também. Aprender a cultivar os valores do companheirismo, da ternura, do compromisso, da mística em

forma de utopia, entre outros. A partir desse curso, conhecido como “prolongado”, cresce em mim o compromisso

com a organização a que pertenço, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Meses após a

conclusão deste, fui indicada para cursar o magistério, no estado da Bahia, era a primeira turma do MST com a

UNER, por meio do PRONERA e o estado socializou algumas vagas com o Espírito Santo. (Aluna do Pedagogia da

Terra)

Não se separam, em quase todos os textos, o discurso sobre o aprendizado da escrita e as

condições sociais, políticas e culturais dos seus autores. Em vários textos, as disposições para o

aprendizado da leitura e da escrita encontram-se muito mais enraizadas no contexto familiar do

que na experiência escolar propriamente dita:

Meu primeiro caderno posso dizer que foram as brilhantes areias brancas às margens do rio Jequitinhonha. Nelas

assentado, fazia com areia molhada inúmeros castelos, muito parecidos com a igreja da minha cidade, obra do estilo

arquitetônico da Holanda, país onde os padres da paróquia local residiam. (Aluno do Pedagogia da Terra)

Em outros casos, valoriza-se a experiência familiar de iniciação e mostram-se o desconforto e o

desajuste em relação à instituição escolar, que, de certa forma, interrompe um ciclo supostamente

harmonioso, o que produz efeitos visíveis no texto do aluno “avoado”:

Nasci em pleno reveillon de 1986. Sou filho, e com muito orgulho, da família Horácio. Se falar de infância para mim

já é difícil, falar sobre minha infância escolar a coisa complica ainda mais. Mas vamos lá! Nossa casa, mesmo antes

de irmos para o MST, tinha um grande fogão a lenha. Ele tinha um lastro para a frente e outro para trás e, enquanto

minha mãe cozinhava, minha irmã, brincando, me alfabetizou, com gibis da Turma da Mônica: uma parede branca

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servindo de quadro e carvão servindo de giz. Fui para a escola já alfabetizado e acabei descobrindo que ela não era

bem do jeito que imaginava: não tinha fogão a lenha, muito menos brincadeiras de irmã. Nunca tomei bomba, mas na

primeira série, por tamanha frustração, faltei um mês direto. Era o mais diferente da sala e era muito “avoado”.

(Aluno do Pedagogia da Terra)

Ou da aluna atenta aos poucos textos que circulavam no ambiente doméstico (embalagens,

rótulos), cujos valores ultrapassavam os estritamente simbólicos comumente atribuídos à

linguagem:

Um dos meus primeiros contatos com as letras, as palavras e desenhos foi com as embalagens dos alimentos que

minha mãe colocava em casa. Isto me chamava muita atenção porque nesse período não tinha quase nada para

comer, então quando minha mãe comprava uma sacola de arroz ou pó de café era novidade, ficava muito feliz,

pegava, cheirava. Minha mãe diz que eu até abraçava a sacola de arroz. E quando minha mãe virava o alimento na

lata, eu guardava as embalagens, ficava observando as letras, o desenho da panela, da xícara de café. Mesmo sem

saber ler, já observava, pois era novidade. Na roça onde morava não tínhamos nenhum contato com televisão e rádio.

(Aluna do Pedagogia da Terra)

O contato com a ficção aparece, em grande parte dos relatos, em situações orais, nas quais há a

mediação de um contador de histórias, geralmente um parente mais velho.

Também tinha história de assombração nas estradas e o meu avô contava muitas de pescadores que pegavam peixes

enormes, todos acabavam sorrindo com ar de quem não acreditava. Quanto a outras de assombrações eu não gostava

de ouvir à noite para não ter pesadelos ou perder o sono de tanto medo quando olhava para o escuro. (Aluna do

Pedagogia da Terra)

Lendo os memoriais, se percebe o quanto as histórias passadas se misturam à vida presente, como

cacos que compõem um mosaico – a um só tempo individual, porque cada história de vida é

única; e coletivo, porque cada pessoa quer comunicar a sua história por meio da linguagem

escrita para estabelecer relações com o outro. Assim, por mais que essas histórias sejam

diferentes entre si, os seus protagonistas se unem no ato de escrever, indiciando um cenário

histórico, político e cultural específico de um grupo social com características particulares. Esses

alunos e alunas trazem consigo as marcas e conseqüências de uma sociedade que, de um lado,

demanda o acesso às práticas de leitura e de escrita, de outro, dificulta esse acesso. São sujeitos

que lutam apenas pela terra, mas também pela escola e suas práticas de gêneros orais e escritos

próprios. Não é gratuito que para eles a entrada na universidade, através de um programa

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especial, significa uma conquista ou, em seus próprios termos, uma “ocupação do latifúndio do

saber”. A escrita autobiográfica foi, então, o pontapé inicial para o que viria depois, no percurso

de construção de outros textos/gêneros, inclusive os acadêmicos, no decorrer do curso de

formação de professores.

Referências Bibliográficas

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1974.

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