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Apontamentos sobre a constituição da autoria no quadro cênico resenha acadêmica (Notes about authorship constitution in scenic picture academic review) Carla da Silva Lima 1 1 Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) [email protected] Abstract: This paper has as its main goal to characterize some aspects of the process of authorship constitution in academic reviews published in scientific publications in the Linguistics field (QUALIS A), specifically the published reviews in the journal DELTA. To accomplish this, we began the analysis work identifying the discursive positions which point to different ways of insertion of the subject while author-subject within the scenic picture academic review. We assumed that the authorship is conditioned, regulated by the enunciation scene, particularly by the discourse scenic picture. The analysis indicate that the subject of the discourse inserts itself in different ways in the enclosing academic scene, and these insertions produce different authorship effects, depending on the position that the reviewer assumes towards the Other. Keywords: Discourse Analysis; Enunciation Scene; Discourse Scenic Picture; Reviews; Authorship. Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo caracterizar alguns aspectos do processo da constituição da autoria em resenhas acadêmicas publicadas em periódicos científicos da área de Lingüística (QUALIS A), especificamente as resenhas publicadas na revista DELTA. Para tanto, iniciamos o trabalho de análise procurando identificar os posicionamentos discursivos que apontam para diferentes modos de inscrição do sujeito enquanto sujeito-autor no interior do quadro cênico resenha acadêmica. Partimos da hipótese de que a autoria é condicionada, regulada pela cena de enunciação, particularmente pelo quadro cênico do discurso. As análises indiciam que o sujeito do discurso se inscreve de diferentes maneiras na cena englobante acadêmica, e estas inscrições produzem diferentes efeitos de autoria, a depender do posicionamento que o resenhista assume em relação ao Outro. Palavras-chave: Análise do Discurso; Cena de Enunciação; Quadro Cênico do Discurso; Resenhas; Autoria. 1. Propósitos e perspectiva teórica Este trabalho apresenta alguns dos resultados de uma pesquisa que buscou caracterizar aspectos do processo da constituição da autoria em resenhas acadêmicas, publicadas na revista DELTA, na versão digital, das quais dentre 50 publicadas nessa versão, selecionamos 20 textos. Apresentaremos algumas das questões identificadas em 02 destes textos, considerados como representativos das análises desenvolvidas. 1 1 Trata-se da pesquisa de mestrado desenvolvida por Lima (2008). Tomamos como base o dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso de linha francesa, considerando como referência teórica para a questão da autoria as reflexões de Michel Foucault (1969,1971) e Sírio Possenti (2001, 2002) e como eixo central das discussões a noção de cena de enunciação formulada por Dominique Maingueneau ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 38 (3): 55-67, set.-dez. 2009 55

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Apontamentos sobre a constituição da autoria no quadro cênico resenha acadêmica

(Notes about authorship constitution in scenic picture academic review)

Carla da Silva Lima1 1 Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

[email protected]

Abstract: This paper has as its main goal to characterize some aspects of the process of authorship constitution in academic reviews published in scientific publications in the Linguistics field (QUALIS A), specifically the published reviews in the journal DELTA. To accomplish this, we began the analysis work identifying the discursive positions which point to different ways of insertion of the subject while author-subject within the scenic picture academic review. We assumed that the authorship is conditioned, regulated by the enunciation scene, particularly by the discourse scenic picture. The analysis indicate that the subject of the discourse inserts itself in different ways in the enclosing academic scene, and these insertions produce different authorship effects, depending on the position that the reviewer assumes towards the Other.

Keywords: Discourse Analysis; Enunciation Scene; Discourse Scenic Picture; Reviews; Authorship.

Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo caracterizar alguns aspectos do processo da constituição da autoria em resenhas acadêmicas publicadas em periódicos científicos da área de Lingüística (QUALIS A), especificamente as resenhas publicadas na revista DELTA. Para tanto, iniciamos o trabalho de análise procurando identificar os posicionamentos discursivos que apontam para diferentes modos de inscrição do sujeito enquanto sujeito-autor no interior do quadro cênico resenha acadêmica. Partimos da hipótese de que a autoria é condicionada, regulada pela cena de enunciação, particularmente pelo quadro cênico do discurso. As análises indiciam que o sujeito do discurso se inscreve de diferentes maneiras na cena englobante acadêmica, e estas inscrições produzem diferentes efeitos de autoria, a depender do posicionamento que o resenhista assume em relação ao Outro.

Palavras-chave: Análise do Discurso; Cena de Enunciação; Quadro Cênico do Discurso; Resenhas; Autoria.

1. Propósitos e perspectiva teórica

Este trabalho apresenta alguns dos resultados de uma pesquisa que buscou caracterizar aspectos do processo da constituição da autoria em resenhas acadêmicas, publicadas na revista DELTA, na versão digital, das quais dentre 50 publicadas nessa versão, selecionamos 20 textos. Apresentaremos algumas das questões identificadas em 02 destes textos, considerados como representativos das análises desenvolvidas.1

1 Trata-se da pesquisa de mestrado desenvolvida por Lima (2008).

Tomamos como base o dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso de linha francesa, considerando como referência teórica para a questão da autoria as reflexões de Michel Foucault (1969,1971) e Sírio Possenti (2001, 2002) e como eixo central das discussões a noção de cena de enunciação formulada por Dominique Maingueneau

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(1987, 1998, 2006), particularmente o que este autor define como quadro cênico do discurso.

Com relação à questão da autoria, podemos dizer que a noção de autor(ia) com a qual Foucault opera nos interessa, visto que o autor de resenhas está sendo considerado como uma posição sujeito, como uma das funções que o sujeito exerce e que emerge nos posicionamentos assumidos por esse sujeito no interior do campo acadêmico.

Em relação às formulações de Possenti, o autor inscreve sua análise no paradigma indiciário, considerando que a autoria se encontra por “indícios” e não por marcas objetivas (que fariam coincidir necessariamente marcas com presença de autoria). Possenti (2002), ao considerar os indícios a serem levados em conta para atribuição da autoria, inclui, reportando-se às pesquisas de Authier-Revuz (1998, 2004), duas categorias discursivas referidas pela autora – as formas metaenunciativas de como “dar voz a outros” e de como “manter distância” – na categoria de indícios de autoria. Esses indícios, entretanto, só produzem efeitos de autoria “quando agenciados a partir de condicionamentos históricos, pois só então fazem sentido” (POSSENTI, 2002 p. 121).

Assumiremos, com Possenti, o pressuposto de que a autoria se encontra por indícios; do mesmo modo, alinhamo-nos a esse autor no que se refere à hipótese de que tais indícios só produzem efeitos de autoria se agenciados a partir de condicionamentos históricos ou, em termos mais propriamente discursivos, a partir do quadro cênico do discurso.

Reportando-nos, pois, à reflexão desse autor, consideraremos que as marcas de heterogeneidade encontradas no fio do discurso – como se dá voz ao outro nas resenhas –, podem ser interpretadas como possíveis indícios de constituição de autoria, na medida em que apontam para o modo como o sujeito enunciador de uma resenha se inscreve e toma posição para enunciar no quadro cênico resenha acadêmica.

Por fim, trabalharemos com a noção de gênero de discurso apoiados em uma perspectiva discursiva de linha francesa, mais especificamente, na proposta de Maingueneau (1987, 1998, 2006), que formula essa categoria a partir do conceito de cena de enunciação. Tomaremos essa noção como eixo central das discussões, particularmente o que este autor define como quadro cênico do discurso – a cena englobante e a cena genérica – como referência para a análise da categoria de gênero e de suas coerções sobre os processos de constituição da autoria.

A cena de enunciação, tal como definida por Maingueneau, divide-se em três níveis interdependentes: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. Juntas, elas compõem um “quadro” dinâmico que torna possível a enunciação de um determinado discurso. Segundo o autor, nessa interdependência entre as cenas, há o estabelecimento de uma relação paradoxal, visto que “o discurso pressupõe essa cena de enunciação para poder ser enunciado, e, por seu turno, ele deve validá-la por sua própria enunciação” (MAINGUENEAU, 1999/2005 p. 75)

Sumariamente, pode-se dizer que a cena englobante corresponde ao que o autor considera “tipo de discurso” – religioso, político, publicitário, acadêmico. Para interpretá-los, é necessário situá-los numa cena englobante, a qual definirá o estatuto dos interlocutores – enunciadores e co-enunciadores – e a finalidade para a qual esses discursos foram organizados. Segundo Maingueneau, somente no interior de uma cena

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englobante se pode identificar em que papel ou posição somos interpelados por tais discursos.

Essa interpelação ocorre, também, no nível da cena genérica, o segundo nível da instância enunciativa que diz respeito à cena específica que os gêneros de discurso impõem aos interlocutores, definindo as condições de enunciação. Cada gênero do discurso é associado a uma cena genérica, que prescreve um modo de inscrição no espaço e no tempo, um suporte material, um modo de circulação, uma finalidade para os textos de um gênero particular.

Há uma relação de complementariedade entre essas duas cenas, que funcionam como instâncias reguladoras da discursividade, definindo as estabilidades do tipo e do gênero de discurso: todo tipo é um agrupamento de gêneros e todo gênero está relacionado a um tipo. Juntas, as cenas englobante e genérica configuram o quadro cênico do discurso, “o espaço estável no interior do qual o enunciado adquire sentido” (MAINGUENEAU, 1998/2001, p.87).

Neste trabalho, analisaremos, especificamente, a cena englobante acadêmica e a cena genérica resenha e falaremos, pois, em resenha acadêmica para caracterizar um lugar de inscrição do sujeito do discurso. Esse lugar de inscrição é o topos a partir do qual esse sujeito se torna sujeito-autor nessas condições específicas de enunciação, reguladas pela cena englobante acadêmica e pela cena genérica resenha, isto é, pelo quadro cênico (cena englobante + cena genérica) resenha acadêmica.

2. A cena de enunciação: considerações sobre as coerções impostas pelo quadro cênico

O gênero resenha será tratado como uma instância reguladora do discurso, cujos parâmetros coercivos dizem respeito à vasta gama de restrições que caracterizam esse tipo de publicação acadêmica, em sociedades como a nossa. Em práticas discursivas institucionais, especialmente, inscrever-se em uma determinada cena genérica implica modos específicos de posicionamento, por parte do enunciador, à produção de saber própria do campo discursivo em questão.

As características formais serão trabalhadas a partir da consideração de que a cena englobante, no nosso caso a cena englobante acadêmica, impõe algumas restrições que delimitam a especificidade do espaço acadêmico; esta cena, pois, caracteriza-se como uma instância enunciativa que condiciona fortemente o funcionamento discursivo da cena genérica, numa relação indissociável. Mussalim esclarece essa questão, afirmando que “apesar da especificidade da cena genérica, não é possível considerá-la independentemente da cena englobante; do mesmo modo como não é possível definir a cena englobante sem levar em conta o conjunto de gêneros que a compõem” (MUSSALIM, 2007, p. 5). Essa autora afirma, ainda, que

A cena genérica deve ser descrita enquanto uma instância de enunciação afetada por uma certa ordem discursiva, a da cena englobante que possibilitou a existência de determinado conjunto de gêneros a partir dos quais os enunciados são proferidos. (MUSSALIM, 2007, p. 13).

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Isso se justifica porque a cena englobante é a instância onde são condicionados os sentidos do discurso, onde se dá o processo de interpelação do sujeito, através de mecanismos de controle do dizível e do não dizível. Ao se inscrever no quadro cênico resenha acadêmica para enunciar, o sujeito do discurso se compromete, com a comunidade científica da qual faz parte, em permanecer na zona do dizível, em assumir o tipo de cientificidade e de linguagem técnica que caracteriza o saber acadêmico produzido no interior da cena englobante, por meio dos gêneros que a constituem.

As características formais, dessa maneira, funcionam como marcas enunciativas que produzem efeitos de sentido, decorrentes do modo como o sujeito-autor de resenhas acadêmicas se inscreve para enunciar. A estrutura do texto, portanto, é efeito da inscrição do sujeito no quadro cênico do discurso, o que pressupõe participantes que se colocam em um jogo de representações e de construção de efeitos de sentido, que encontra sua legitimidade a partir do espaço institucional que o produz. Em toda situação de fala emergem “convenções que regulam institucionalmente as relações entre sujeitos, atribuindo a cada um um estatuto na atividade da linguagem” (MAINGUENEAU, 1987/1997, p. 30).

Para a Análise do Discurso, na vertente assumida por Maingueneau, é o posicionamento discursivo2

2 A noção de posicionamento é formulada a partir do postulado do primado do interdiscurso, a partir do qual a questão da identidade discursiva passa a ser vista indissociadamente das relações que se estabelecem no interior do campo discursivo. Importante lembrar que essas relações interdiscursivas não são dadas a priori, o que abre a possibilidade para o sujeito inscrever-se discursivamente em lugares diferentes, a depender de quem seja o seu Outro (outro posicionamento com o qual estabelece uma relação de delimitação recíproca).

, no qual o enunciador está inscrito, que regula esse modo de enunciação. Entende-se por posicionamento, neste contexto, um lugar de produção discursiva específica, que engloba tanto as operações das quais deriva certa identidade enunciativa quanto a própria identidade.

Nessa perspectiva, analisar o processo de constituição da autoria, neste trabalho, pressupõe olhar para lugares e modos de inscrição do sujeito, enquanto enunciador, submetido às coerções das cenas englobante e genérica. A descrição do quadro cênico revela como a exterioridade constitui o discurso e aponta para o modo como essa exterioridade se manifesta por meio de mecanismos de controle do discurso, que funcionam no interior do quadro enunciativo por meio de coerções e interdições, que o constituem numa instância reguladora da discursividade.

Nesse ponto, parece-nos pertinente uma aproximação com as idéias de Foucault (1971/1996). Ao discutir a relação entre as práticas discursivas e o poder, esse autor destaca a existência de procedimentos de controle e delimitação, externos aos discursos, que funcionam como sistemas de exclusão, colocando em jogo o poder e o desejo: a interdição (proibição da palavra), a segregação da loucura e a vontade de saber. Destes, interessa-nos a interdição por estar mais diretamente relacionada à questão do estatuto do enunciador e do co-enunciador genérico e, em alguma medida, à constituição da autoria. De acordo com Foucault, é devido à interdição que não podemos falar de qualquer coisa (tabu do objeto) em qualquer lugar (ritual da circunstância) e a qualquer um (direito de falar), visto que estes três tipos de interdição se cruzam, necessariamente, na prática discursiva.

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Essas três interdições, consideradas no nível do estatuto dos enunciadores, funcionam como mecanismos que regulam a constituição do sujeito enquanto sujeito-autor no interior do quadro cênico. Para se constituir sujeito-autor no quadro cênico resenha acadêmica, o enunciador precisa entrar na ordem do discurso, o que significa: i) ser autorizado, ter legitimidade (precisa se inscrever na cena englobante como especialista em Lingüística ou Lingüística Aplicada para ter direito de falar); ii) inscrever-se num lugar discursivo reconhecido como instância de enunciação legítima (precisa se inscrever na cena genérica – ritual da circunstância) e iii) produzir enunciados legitimados por esse lugar discursivo – tabu do objeto.

3. Modos de inscrição do sujeito no quadro cênico resenha acadêmica

Analisando as 20 resenhas que compõem o corpus desta pesquisa, chegamos à hipótese de que a constituição da autoria no quadro cênico resenha acadêmica se dá a partir de dois diferentes modos de inscrição do sujeito: um modo em que o sujeito se inscreve sem instaurar uma polêmica aberta com nenhum outro posicionamento no campo; e um modo em que o sujeito se inscreve instaurando uma polêmica aberta no campo. No processo em que a inscrição no quadro cênico se dá sem a instauração da polêmica, o sujeito procura construir sua identidade discursiva enquanto sujeito-autor apagando as diferenças entre os posicionamentos para criar o efeito de que o lugar discursivo onde se inscreve é hegemônico dentro do campo. No segundo caso, quando o processo de inscrição ocorre instaurando uma polêmica aberta, o sujeito se constitui sujeito-autor na polêmica com o(s) outro(s) posicionamento(s), buscando legitimar o lugar discursivo em que se inscreve no campo.

Esta hipótese se sustenta no postulado do primado do interdiscurso, formulado por Maingueneau (1984/2005) a partir do qual considera-se que os discursos se constituem no interior de um campo na relação com o seu Outro (outros posicionamentos). Por ser um campo interdiscursivo, a figura do Outro3 encontra-se, dessa maneira, presentificada no interior do discurso, sendo, portanto, constitutiva da identidade discursiva. Essa interação constitutiva da relação de um discurso com seu Outro, segundo Maingueneau, está ligada a uma interincompreensão – um desentendimento recíproco, “manifestação de uma impossibilidade radical, a mesma que permitiu a constituição do discurso” (MAINGUENEAU, 1984/2005, p. 22). Esse desentendimento é o que estabelece a polêmica4

3 Importante esclarecer qual o estatuto conferido ao Outro por Maingueneau: “No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível na compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. É o que faz sistematicamente falta a um discurso e lhe permite fechar-se em um todo. É aquela parte de sentido que foi necessário que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade”. (MAINGUENEAU, 1984/2005, p. 39).

, entendida como um processo de

4 O processo de delimitação recíproca, uma espécie de tradução generalizada, que o autor define como interincompreensão, consiste no fato de a identidade do discurso se estabelecer a partir da oposição entre dois conjuntos de categorias semânticas: as categorias reivindicadas, a que o autor chama de “positivas”, e as categorias recusadas, que ele chama de “negativas”. Faz parte da identidade discursiva o mecanismo polêmico com o Outro (o discurso “adversário”, o “avesso” constitutivo de todo discurso), uma vez que

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tradução dos enunciados do Outro em categorias do registro negativo do discurso em questão.

Nessa perspectiva, a polêmica existe sempre; ela é constitutiva dos discursos. Portanto, a divisão que fizemos entre os dois modos distintos de inscrição do sujeito no quadro cênico resenha acadêmica de modo algum pressupõe a inexistência da relação polêmica entre posicionamentos do mesmo campo; diferentemente, pressupõe a sua existência, distinguindo, entretanto, entre a instauração de um confronto aberto ou não.

Assumindo os pressupostos acima apresentados, procedemos à análise dos textos, separando-os em dois grupos, de acordo com os modos de inscrição do sujeito no quadro cênico. Para este trabalho, selecionamos os dois textos que nos pareceram mais interessantes para observar a relação entre modos de posicionamento do sujeito discursivo em relação ao Outro e a constituição da autoria no quadro cênico resenha acadêmica.

4. Análises: a questão da heterogeneidade mostrada e sua relação com a constituição da autoria

Dos textos pertencentes ao grupo 1, caracterizados pelo gesto de o sujeito se inscrever no quadro cênico sem instaurar uma polêmica aberta com outros posicionamentos do campo, analisaremos a resenha identificada como R1 – Magalhães, Célia Maria (org). (2001). Reflexões sobre a Análise Crítica do Discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG; dos textos pertencentes ao grupo 2, que se caracterizam pelo gesto de o sujeito se inscrever no quadro cênico instaurando uma polêmica aberta com outro(s) posicionamento(s) no campo, analisaremos a resenha R2 – MARI, Hugo; WALTY, I.; VERSIANI, Z. (2005) Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte: PucMinas,. 228 p.

O nosso objetivo é analisar a materialidade discursiva, a fim de verificar se há indícios por meio dos quais se pode reconstituir o processo de inscrição do sujeito no quadro cênico em questão. Estamos tomando a heterogeneidade mostrada marcada (o discurso relatado e as aspas de conotação autonímica), como um “lugar” privilegiado de onde se pode verificar modos de posicionamento do sujeito discursivo em relação ao Outro (outros posicionamentos) e, nesse sentido, aspectos da constituição desse sujeito enquanto sujeito-autor no interior do quadro cênico resenha acadêmica. Passemos às análises.

A resenha R1, acima referida, apresenta o livro organizado por Célia Maria Magalhães, uma coletânea de oito artigos escritos por diferentes autores da Análise Crítica do Discurso (ACD). O que chama a atenção neste texto é o modo como o sujeito lida com as coerções para se inscrever na zona do dizível no campo e construir a imagem de que a ACD configura-se como um posicionamento hegemônico no campo da Lingüística. Nessas condições, o sujeito constitui-se autor do texto, evitando qualquer tipo de confronto, de ataque ao Outro, mesmo que de forma polida. O sujeito, neste caso, constitui-se autor apagando toda e qualquer diferença entre o seu

cada uma das formações discursivas (posicionamentos discursivos no interior do campo) só pode traduzir como “negativas”, recusadas, inaceitáveis, as unidades de sentido construídas por seu Outro, e é através dessa rejeição que cada formação discursiva define sua identidade.

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posicionamento e o do Outro. Em outras palavras, realiza-se o apagamento da polêmica, o que se dá pela ausência total de avaliações negativas.

O comentário presente no início do texto é um primeiro indício desse modo de inscrição, apontando que o sujeito alinha-se ao posicionamento em que se inscrevem a organizadora e os autores do livro resenhado. Destacamos, abaixo, algumas passagens do primeiro parágrafo da resenha que :

(01) Já de saída, o livro deixa bem claro a que veio: divulgar uma das teorias e métodos de Análise do Discurso - A Análise Crítica do Discurso -, bem como situá-la no panorama da grande área da Lingüística e promover reflexões sobre questões relevantes de interesse dessa área de pesquisa. Ao final da leitura, tem-se a certeza de que as propostas foram realizadas a contento. O livro consegue mais: convida o leitor/pesquisador não apenas a pensar, mas também a fazer análise crítica do discurso. O que é um convite irresistível.

É importante destacar que essa forma de apagamento da polêmica é recorrente nesse modo de inscrição, o que aponta para a hipótese de que “tecer elogios” é uma das rotinas discursivas previstas pela cena genérica em questão. Essa cena genérica, por sua vez, responde às restrições impostas pela cena englobante acadêmica, que impõe modos de como se pode “tecer elogios”. Por exemplo, é pertinente que se teçam elogios em relação à qualidade acadêmica de um trabalho e à história de contribuições teóricas de um pesquisador para área – que é o que se faz na resenha ora analisada. Mas não é pertinente, por exemplo, que se teçam comentários em relação à personalidade do pesquisador, ou em relação ao projeto gráfico do livro – ao menos no quadro cênico considerado. Assim, quando o autor de R1 se inscreve nesse quadro cênico sem instaurar a polêmica, ele o faz por meio de uma rotina discursiva (tecer elogios) prevista nesse quadro, e está, portanto, constituindo-se em sujeito autor por meio de uma forma específica de lidar com a alteridade, forma esta que é, de acordo com a perspectiva teórica assumida neste trabalho, sempre regulada pelas coerções do quadro cênico em que o sujeito se inscreve: no caso, o quadro cênico resenha acadêmica.

Neste texto predominam as citações em que a voz do Outro parece ser recortada de maneira a não comprometer o autor da resenha em relação ao que ele cita – já que se atribui ao Outro a responsabilidade do dizer – e de forma a evidenciar a autoridade do discurso em questão. O sujeito constitui-se na alteridade sem instaurar uma polêmica com outros posicionamentos, o que tem por efeito a construção da imagem do Outro como um posicionamento hegemônico no campo. Esse efeito vai se construindo no texto por meio das passagens em que a voz do Outro aparece na forma de discurso direto (DD), modalização em discurso segundo (MDS), discurso indireto quase-textual (DI quase-textual).

Discurso direto (DD): segundo Authier-Revuz (1998), o DD é um modo de representação no discurso de um discurso outro em que o enunciador relata o outro ato de enunciação usando suas próprias palavras na descrição (sintagma introdutor), mas faz menção (autonímia) na parte citada, que é mostrada.

(02) A segunda dimensão é a análise das práticas discursivas, aqui sendo entendidas como "a dimensão do uso da linguagem que envolve os processos de produção, distribuição e consumo dos textos, sendo variada a natureza desses processos dentre os tipos diferentes de discurso e de acordo com os fatores sociais", nas palavras de Magalhães (neste volume, p.17)

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(03) Como pode ser lido neste capítulo, de acordo com Fairclough (1992:22), "qualquer evento discursivo (isto é, qualquer exemplo de discurso) é considerado simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social".

Modalização em discurso segundo (MDS): esta é uma forma de DR em que a alteridade é menos marcada do que no DD, já que não há ruptura sintática com uso de dois pontos. O enunciador do discurso citante indica que não é a fonte enunciativa do discurso, remetendo ao outro enunciador – o do discurso citado – e atribuindo-lhe a responsabilidade pelo que é dito.

(04) Magalhães descreve as três tendências principais que, segundo Fairclough, têm afetado o discurso nas sociedades contemporâneas: a democratização, a comodificação e a tecnologização.

(05) Fairclough trata de outro tema de importância crucial em sua teoria: a linguagem e o discurso na sociedade capitalista tardia. Segundo ele, a relação entre o discurso e as outras facetas do social é uma variável histórica, podendo ser observadas mudanças qualitativas na dinâmica dessa relação. De acordo com o autor, uma ordem do discurso global está emergindo, e o discurso na sociedade contemporânea caracteriza-se por ter o papel de destaque, o papel mais importante na constituição e na reprodução das relações de poder, operando por meio do senso comum das práticas cotidianas.

Este tipo de estrutura de discurso relatado é bastante comum nos gêneros acadêmicos e é bastante freqüente na resenha. O uso da MDS permite ao enunciador do discurso citante um trabalho de reformulação do dizer do Outro, ao mesmo tempo em que não deixa de atribuir-lhe a responsabilidade pelo que é dito, usando expressões modalizadoras como as que estão em negrito. Modalizar a voz do Outro, neste texto, parece ser uma estratégia que permite ao sujeito, não só fazer referência ao outro discurso, mas se aproximar e, por conseguinte, apagar diferenças, deixando entrever que se constitui autor alinhando-se ao posicionamento do Outro e sem, portanto, instaurar polêmica. Um indício desse posicionamento está na ausência de qualquer discordância do sujeito em relação aos enunciados recortados e apresentados na forma da MDS.

Discurso indireto quase-textual (DI quase-textual): Authier-Revuz (1998, p. 158) considera que esta é uma forma particular de DI, em que a parte entre aspas não é DD, mas uma “ilha textual” estendida. Os fragmentos isolados (aspas ou itálico) são atribuídos ao enunciador citado, mas encontram-se perfeitamente integrados, do ponto de vista sintático, à estrutura do enunciado citante como um todo.

(06) Na discussão teórica, Fairclough esclarece que a teoria em foco é nomeada "crítica" porque enseja "explorar sistematicamente relações freqüentemente opacas de causalidade e determinação entre práticas discursivas, eventos e textos e estruturas sociais e culturais" e "relações e processos mais amplos" (p.35).

(07) A autora nos convida a olhar a hibridização e a transformação como inerentes às formações genéricas, já que "O hibridismo parece surgir, assim, da práxis ou da produção textual, que, se bem participa de um gênero específico ou se vincula a ele, está sempre ativando outros gêneros". (p. 90).

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Apesar de essa forma de DR não ser tão explorada pelo autor como as outras formas de heterogeneidade mostrada acima analisadas, julgamos de interesse para as análises apresentá-la. O exemplo (06) é o caso típico de DI quase-textual, com a estrutura verbo dicendi + que, seguido da ilha textual estendida. O exemplo (07), entretanto, não apresenta um “autêntico” verbo dicendi, mas estamos considerando, ainda assim, que esta seqüência seja um caso de DI quase-textual, já que o dizer do Outro é introduzido pelo verbo “convida”, que denota um trabalho de interpretação, reformulação das palavras do Outro pelo autor da resenha. Além disso, observa-se o emprego das aspas para demarcar a ilha textual, definindo as fronteiras entre o discurso citado e o discurso citante, sem romper a estrutura sintática do discurso citante.

Aspas: trata-se de marcas de distanciamento metalingüístico, em que a natureza da alteridade não é especificada no fragmento mencionado, exigindo um trabalho de interpretação.

(08) Chouliaraki & Fairclough (1999:16) chegam a caracterizar a ACD como "síntese mutante de outras teorias".

(09) O autor ilustra a prática da análise crítica do discurso discutindo o que ele chama de "mercantilização" do discurso público na educação superior da Grã-Bretanha contemporânea.

(10) Concentrando-se no que chama de "promoção como função comunicativa" (p.48), Fairclough termina o artigo analisando o já citado discurso de instituições da educação superior na Grã-Bretanha, relacionando-o à emergência dos traços discursivos apontados por ele como típicos da sociedade contemporânea.

Assumimos que os fragmentos acima ilustram as aspas de

conotação/modalização autonímica, apesar da natureza da alteridade ser, de certa forma, explicitada nos exemplos selecionados. Essa explicitação se dá pela indicação do autor e da página de onde o fragmento foi recortado. Esse funcionamento das aspas, entretanto, não é específico deste texto, aparecendo com freqüência nas outras resenhas do corpus, o que leva-nos a supor que se trata de uma das rotinas que integram a cena genérica em questão.

Em todos os exemplos encontrados nesse texto, as aspas manifestam uma suspensão de responsabilidade, um distanciamento acompanhado de um comentário implícito que, no caso deste texto, aponta para a preocupação do autor em ser fiel às palavras do Outro, ressaltando conceitos, expressões relevantes para a teoria em questão. Os fragmentos colocados entre aspas ao longo do texto não estão sendo questionados, criticados; ao contrário, eles funcionam como uma fronteira que aponta para a existência de um exterior em função do qual sua adequação deve ser avaliada, ao mesmo tempo em que mostram que o autor da resenha não fará tal avaliação, pelo menos não negativamente, já que se trata de um exterior com o qual o autor do texto indicia que não pretende polemizar.

Observou-se que as citações feitas em DD e MDS são as que predominam no texto em grande quantidade, possivelmente porque essas formas de discurso relatado permitem ao sujeito dar mais relevo à qualidade acadêmica do livro e às contribuições teóricas dos pesquisadores da área. O uso das aspas também é um recurso que indicia o lugar discursivo onde o sujeito se inscreve, pois os efeitos produzidos apontam para um

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distanciamento que tem o objetivo de destacar, chamar a atenção para relevância dos fragmentos aspeados, selecionados para mostrar a autoridade e a contribuição acadêmica do dizer do Outro.

A segunda resenha analisada, R2, apresenta um livro que discute, dentre outras questões, a leitura, o ensino de leitura e os gêneros textuais; trata-se de uma coletânea de ensaios organizada pelos três autores acima referidos. Chama a atenção, neste texto, a brevidade dos comentários que são feitos pelo resenhista em relação ao conteúdo dos ensaios. Percebemos, no decorrer da análise, que esta objetividade é regulada pelo posicionamento no qual o resenhista se inscreve para constituir-se enquanto autor do texto, posicionamento este que leva o resenhista a apresentar, privilegiadamente, os pontos que interessam à instauração de uma polêmica aberta com o Outro (outro posicionamento).

A seleção deste texto permitiu proceder à análise de outro modo do sujeito lidar com as coerções para se inscrever na zona do dizível no campo da Lingüística, já que, neste caso, o sujeito se constitui autor na polêmica com outro posicionamento, o que significa que não temos mais um posicionamento hegemônico, mas posições enunciativas que se delimitam reciprocamente e que, portanto, precisam legitimar-se. Nessas condições, o sujeito constitui-se autor do texto atacando o Outro, confrontando-o para poder anulá-lo, expondo-o por meio de questionamentos e críticas. No exemplo (11) temos um primeiro indício desse modo de inscrição no quadro cênico, quando o autor da resenha identifica, nominalmente, o pesquisador cujo posicionamento será alvo da polêmica.

(11) Em minha opinião, o texto mais polêmico é o de Perini - "Pelos caminhos da perplexidade: uma receita para ler sem entender" - que encontra contrapontos não apenas na entrevista de Chartier, mas também em outros ensaios dessa coletânea.

Mas, é preciso lembrar, conforme aponta Maingueneau (1984/2005), que um discurso lida parcialmente com o seu Outro, mais especificamente com a parte do Outro com a qual é necessário confrontar-se para que possa manter a identidade. Este pressuposto funciona no texto em questão observando-se o que o autor da resenha escolhe para citar e o modo como cita – em outras palavras, analisando as relações interdiscursivas que se materializam nas formas de heterogeneidade mostrada presentes no texto. Vejamos como esta questão se apresenta nos exemplos abaixo:

(12) Perini começa seu texto de forma perigosamente generalizante ao afirmar, com letras maiúsculas, que "nossos alunos lêem mal" e acrescenta que "nós professores não lemos tão bem como deveríamos".

(13) Ao contrário de Perini, que enfatiza a distinção do gênero (literário e informativo) como determinante da estratégia de leitura (p.37-38), Chartier considera o conhecimento prévio como o fator mais importante para a compreensão de um texto, independente do gênero. Diz ela: "Isso parece evidente quando se trata de um texto científico, mas é também verdade para se ler um romance, um jornal ou uma página de manual" (p.63).

(14) Perini parece ter uma concepção de texto literário entendido como "paisagem mental subjetiva, eivada de intenções estéticas, insinuações vagas, impressões nebulosas" (p.41-42), diferentemente de Paulino e Walty que, apesar de não negarem o fictício e a dissimulação, adotam uma concepção que "não descola a literatura do social" (p.143).

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(15) Perini suspeita de "que os alunos estejam sendo intensivamente treinados na interpretação de textos literários" e afirma ser grande o percentual de gêneros desse domínio nos livros didáticos. No entanto, reconhece que o estudo fica muito concentrado na compreensão literal, no que é, de certa forma, respaldado por Lopes que afirma que "[O] universo literário permite muitas vertentes de sentido e os LDP (livros didáticos de português) balizam em demasia para o evidente, como se estivessem tratando de gêneros puramente informativos".

O DI e o DI quase-textual são as formas de DR utilizadas para citar o discurso com o qual se estabelece a polêmica. O efeito produzido é o de diluir as fronteiras entre o discurso citante e o citado, dificultando, assim, a identificação dos contornos exteriores do discurso citado, o que pode favorecer a instauração da polêmica. Observou-se que as citações em DD predominam quando o efeito pretendido é evidenciar a autoridade acadêmica e as contribuições teóricas do posicionamento com o qual o autor do texto vai se alinhar, a fim de legitimar-se no campo. O DD funciona como forma de simular a integridade e autenticidade do discurso no qual o resenhista irá se apoiar para justificar a instauração da polêmica com outro posicionamento.

Percebemos que o funcionamento das aspas, neste texto, é mais uma pista interessante para se observar o posicionamento discursivo por meio do qual o sujeito está se constituindo enquanto autor no quadro cênico resenha acadêmica. Quando o resenhista faz referência aos posicionamentos com os quais se alinha, observamos que o uso das aspas foi mais freqüente nas formas de DD e DI quase-textual, cuja função é criar um contorno exterior em torno do discurso citado, de maneira que o discurso citante possa criar a impressão de fronteiras mais nítidas e estáveis em relação ao discurso citado. Os efeitos produzidos pelas aspas, neste caso, apontam para um distanciamento a partir do qual o resenhista pode realçar a autoridade e a contribuição acadêmica do dizer do Outro, o que contribui para legitimar tanto o posicionamento do resenhista, quanto do seu Outro. Entretanto, quando as aspas são utilizadas para referir-se ao dizer do Outro com quem o resenhista está polemizando, produzem o efeito de distanciamento que tem o objetivo de proteção, de questionamento que permite a construção da polêmica.

5. Considerações finais

No decorrer deste trabalho, procuramos mostrar as implicações entre lugares e modos de inscrição para a constituição da autoria no quadro cênico resenha acadêmica, partindo da hipótese de que a função-autor se constitui, fundamentalmente, a partir da relação de alteridade que o sujeito-autor estabelece com os diversos posicionamentos discursivos com os quais se relaciona no campo acadêmico. Essa relação de alteridade foi analisada a partir das marcas de heterogeneidade mostrada, consideradas como indícios que permitem reconstituir o processo de inscrição do sujeito e os modos de constituição da autoria.

A análise aponta para o fato de que aquele que relata a fala de outro o faz a partir de um posicionamento a partir do qual enuncia. Portanto, a “tradução” do Outro, presente nas formas de DR e das aspas analisadas, deve ser entendida como condicionada pelo posicionamento do sujeito que se inscreve no quadro cênico resenha acadêmica para enunciar. Percebemos que esses condicionamentos, determinados pelo quadro cênico em questão, são reflexo de coerções mais amplas, próprias do campo acadêmico, e estão fortemente associados à área específica da Lingüística no interior

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deste campo, o que nos permite supor que os aspectos da constituição da autoria, evidenciados neste trabalho, são efeitos das relações interdiscursivas que se constituem nesta área.

Estamos considerando que as reflexões desenvolvidas revelam algumas das contribuições que a noção de quadro cênico do discurso podem trazer para as análises discursivas, visto que analisar as restrições impostas pela instância de enunciação é um meio de se chegar às condições sócio-histórico-ideológicas que permitiram certo funcionamento discursivo. Entretanto, considerando os limites deste trabalho, defendemos como relevante a possibilidade de aprofundar a análise acerca das implicações entre lugares e modos de inscrição, ampliando a discussão para o nível da relação entre a cena englobante acadêmica e o campo interdiscursivo onde este discurso é produzido, buscando, assim, outros aspectos histórico-ideológicos do funcionamento discursivo. Esse caminho pode revelar outras nuances do processo de constituição da autoria em gêneros acadêmicos.

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