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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA Letras – Língua Portuguesa Literatura Infanto-Juvenil I - 2014.2. Prof. Dr. Henrique Eduardo de Sousa Discente: Pedro Lucas de L.F. Bezerra O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO: a linguagem e a desmedida

Apanhador No Campo

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Universidade Federal do Rio Grande do NorteCentro de Cincias Humanas, Letras e Artes CCHLALetras Lngua Portuguesa

Literatura Infanto-Juvenil I - 2014.2. Prof. Dr. Henrique Eduardo de SousaDiscente: Pedro Lucas de L.F. Bezerra

O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO:a linguagem e a desmedida

O que um adolescente? A biologia trata como aquele que est no estgio entre a infncia, a juventude e a vida adulta. O corpo muda, as vibraes emocionais surgem mais fortemente, o mundo parece sempre inimigo. O cinema trata como aquele transtorno assistido (Ferris Bueller, Adventureland, as crianas emancipadas de Dazed and Confused). Na Histria no se sabe quando se cria o mito do adolescente Rimbaud no era um adolescente para a Histria, a despeito de seu Uma estadia no inferno ter vindo luz quando o autor mal tinha 16 anos. Mas o adolescente, essa figura que irradia entre as escolas secundaristas, os corpos impberes e a urgncia de certa indstria da cultura, passa a surgir como fenmeno histrico moldado por uma arte urgente no Ocidente, um manifesto de micro-guerrilha, uma proposta de linguagem que nasce, que se amplia pelo barulho e invaso: o conceito de juventude atravessa politicamente o curso da arte atravs das vanguardas. A necessidade de conhecer as diversas formas de linguagem presentes no mundo cria um lugar para essa voz oculta entre os cnones, essa expresso que se dilata mas no se percebe (at ento). Para a fico, o adolescente Holden Caulfield: 17 anos, verborrgico, voltando para casa, entortando o que o cerca, dinamitando o que bem entender. A partir de sua assuno na literatura, ascende tambm um universo que ficou conhecido como cultura jovem: o desmembramento da ordem, a sensibilidade aflorada, a alegria do desastre, a inconsequncia, o interesse camicase de entender seu papel na histria e no mundo, as vises do paraso, as vises desde o inferno, a vida e os seus sintomas. A juventude passa a ter uma potica; uma senha, um motivo de embarque. Um lugar. Holden Caulfield, protagonista-narrador de Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, o emblema do que seria um adolescente no entanto, h mais do que a superfcie das aparncias a surgir da tessitura desse romance. Livro-marco, romance-chave da moderna literatura americana, o porto aberto para uma mente-bombardeio, desequilibrada e nos eixos, ao mesmo tempo brutal e singela, rosa que se despetala ao mnimo toque. Holden Caulfield viraria o smbolo de uma voz que passa a ter ressonncia como fora e lugar de criao. J.D. Salinger contava 32 anos no momento da publicao dO Apanhador no Campo de Centeio. No era um iniciante, todavia, apesar de ser seu romance de estreia: produzira diversos contos antes do romance, inclusive publicando-os na renomada revista New Yorker. Mas depois da publicao do livro e sua meterica vendagem de 15 milhes de exemplares, Salinger passou a se isolar, pouco a pouco; publicou outros 3 livros at 1965, quando passa a ter recluso total at a sua morte, em 2010. Morou numa casa escondida entre as montanhas, casou-se 3 vezes, permaneceu oculto at onde pde. Talvez tenha contrado a opresso que o mundo causa queles que assumem o curso da liberdade, sem postergaes, sem ligar para os que lhe gritam boa sorte (ref. cit. Eu nunca gritaria boa sorte para ningum. Se a gente pensa um pouquinho na coisa, v que um troo desses soa um bocado mal [p. 28]). O estrondoso sucesso do seu romance de estreia abalaria Salinger, de um modo ou de outro: passara a ser marco, a ser o vrtice de geraes inteiras que beberiam de sua fonte, sem jamais esquec-lo, sempre o reafirmando. O Apanhador no Campo de Centeio, desde seu lanamento, possui status de romance formador do jovem americano; um livro que passa de pai para filho, ritual de formao, rito de passagem; coisa de que Salinger, cido como seu Holden, tampouco se orgulharia.A questo que a criao dessa voz definiria da para frente o que era um adolescente, o jovem em luta consigo mesmo, o que seria uma inquietao. A inquietao de Holden uma reverberao contnua.

*** A impresso que o contato inicial com O Apanhador... nos traz a de que toda a linguagem desprogramada em algum mdulo da conscincia humana est serventia da juventude; um jovem usa o discurso como uma arena de grias e desprendimento total do imaginrio (as imagens to palpveis e ingnuas de Holden se confundem com todas as imagens que produzimos desapercebidamente e nos parecem menores; a projeo dos patos do Central Park no inverno, o hbito de contar mentiras, pagar uma prostituta apenas para conversar com ela). Holden Caulfield no vive entre os pudores; disseca suas runas, abre as pequenas valas entre o figurado e o possvel se minto, abro todo um mundo, se falo o que penso, re-preencho-o, consigo faz-lo maior. O lirismo de abarcar o mundo pela linguagem, ou seja, abrir uma picada que deslinde a selva, que funde pontos luminosos entre as trevas, produz o fluxo narrativo de Holden; sua voz preenche todos os ambientes, e por essa voz tudo passa: uma bola de neve, a quase experincia sexual, a expresso de uma freira.Essa disperso de uma hierarquia dos fatos narrativos, de uma seleo que conduza o relato, forma um biombo de acontecimentos que se conjugam a um pensamento catico e ao mesmo tempo organizado. Organizado em torno da superfcie das perdas; Holden sempre perde algo. A lembrana da irm, uma cartinha perdida dentro de um livro. A hora de pegar o trem. Esquece o nmero do telefone da namorada. Para depois relembrar e trazer tona novos relatos, novas relaes, novos nortes. O trao pico da narrativa (a fbula da Odisseia: um dia inteiro entre as ruas de Nova Iorque at a volta para casa) revela diversos tipos ababacados, imbecis, cretinos; nada parece agradar a Holden e o que o agrada sempre menor aos olhos do mundo, algo de lrico entre o concreto da cidade. A cidade, esfera opressora que lhe abre os caminhos, uma teia em que se bifurcam os tipos rarefeitos que Caulfield captura; atendentes de metr, taxistas, donos de bares, prostitutas. Movimento alucinado at a depresso.

*** J.D. Salinger comea a trabalhar em seu romance no fim da Segunda Grande Guerra, quando voltava de seu posto de batalha na Europa. A escrita como respirao. Antdoto contra o trauma. Antdoto? No seria The Catcher... o prprio documento de todo trauma da guerra? A acidez com que se proclama o humano, a avidez em destruir o que o circunda, as ogivas da linguagem prontas a explodir tudo e todos. A guerra sedimenta todos os traumas; o trauma da viso, o trauma da linguagem, o trauma da expanso. Tomar as terras desocupadas (a gria, o palavro, o desinteresse). Abarcar com a rebeldia de estar livre tudo o que se probe/cobe. Caulfield no seria mais do que algum ocupado com o prprio senso de liberdade?Para Benjamin (1936) no final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos, e sim mais pobres em experincia comunicvel a histria, o mecanismo que produz o romance burgus, se dissipa preciso achar a margem dos escombros, encontrar um lugar de permanncia, um campo obstrudo e irrelevante em que se possa indicar o novo deserto. O novo jogo narrativo passa a ter o caminho de uma zona de subjetivao da individualidade; estou s e isso basta a experincia da comunicao se d num vo oculto de minha linguagem, onde posso achar novas retas, encontrar novas linhas a perseguir. Age como experimentao, mas a reivindicao de uma fuga uma necessidade de extirpar a guerra de seu corpo. A crueza do relato tem a fora da fuzilaria entre as trincheiras. Toda sordidez, toda frieza em estar deprimido em New York, em no saber se consegue atravessar a rua, em estar bbado o suficiente pra no enxergar nada, estragar os pulmes em duas noites, ligar para uma namorada, andar desvairadamente nas ruas, dormir quando todos acordam, viver no limite sempre. No seria esse o refugo de guerra? Salinger mostra um adolescente em fase de construo de sua maneira de ver o mundo; ele diz que vai ler mais, que acha tudo um saco, tudo execrvel; a cultura que faz do dio o mantm forte, o faz desbravar sua prpria misria. Cria um emblema com sua fragilidade; vive a noite entorpecida, entre os escuros e os abertos que o circundam. A volta em depresso para a casa, para a me, para o local basilar da fundao, uma mmica da guerra; o retorno pela batalha, em farrapos, derrotado, o corpo em limite, o estertor. Holden diz A gente nunca deve contar nada a ningum. Mal a gente acaba de contar, a gente comea a sentir saudade de todo mundo. ltima expedio na zona escura da linguagem. *** Pra variar, estava me sentindo bem e mais nada s vezes a alegria, a vontade de estar livre diante das prprias escolhas, sem a responsabilidade natural de lidar com elas a cada passo, de poder estar livre do texto-limite do Ocidente, de no se adaptar a lugar nenhum, tudo isso cria em torno de si o estigma da rebeldia. Mas a biotica da liberdade no est transferida causa da anarquia to somente; est em todo universo ficcional: o quixotesco, o sublime, o narrvel. So clulas de liberdade e libertinagem. onde se pode criar o mundo em suas potncias negativas e imagens simblicas (o desprezo pelo regime de imagens do cinema que Holden nutre um desses sintomas: estar livre em todos os sentidos, estar no controle da percepo e poder abal-la como bem entender: pela literatura, pela observao).