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“Tudo cheirava a África”: os clubes Africanos e os “maltrapilhos” no
Carnaval de Salvador no fim do século XIX ao início do XX.
Jéssica Santos Lopes da Silva1
Carnaval de 1898, pelo quarto ano a “colônia africana” desfilou nos dias do reinado do
momo com o Clube Carnavalesco Embaixada Africana. Naquele ano era ele o maior e mais
esperado clube, os aclamados Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe não desfilaram, para o
lamento de jornalistas e cronistas. A Embaixada Africana, por sua vez, levou por mais um ano
as nobrezas africanas recriadas por eles para as ruas de Salvador.
A Embaixada Africana não estava só, além dela mais outros três clubes que se
intitulavam africanos desfilaram naquele ano, segundo os jornais do período. Eram eles:
Chegada dos Africanos, Filhos da África e Pândegos da África. Como explicita Wlamyra de
Albuquerque, estas foram atrações comuns dos carnavais entre os anos de 1895 e 1910, não
sendo exclusivos à Bahia, no Rio de Janeiro eram muitos os grupos que de identificados como
africanos, como aponta Maria Clementina P. Cunha. 2
A intenção nesse texto é entender os discursos públicos sobre esses clubes, revelados
pela impressa, tomando como exemplo maior a repercussão dos desfiles do Clube
Carnavalesco Embaixada Africana e da presença dos mascarados nas ruas. Podemos aqui
analisar alguns debates que cercavam a tolerância e repulsa por certas manifestações negras e
populares no carnaval. Buscando entender o quanto os discursos públicos tentavam dissimular
sobre as intenções e relações sociais.
Nossa principal fonte aqui são publicações dos jornais entre os anos de 1890 e 1910.
Entre os órgãos da impressa os aqui utilizados são: o Diário de notícias, o Jornal de Notícias
e o jornal chistoso A malagueta. Parte da imprensa era responsável por reverberar, saudar ou
criticar aquilo que era apresentado nos desfiles carnavalescos. Entre os jornais aqui utilizados,
o que mais dedicava notas e colunas para os dias do reinado de momo era o Jornal de
Notícias, portanto grande parte das crônicas e dos comentários publicados no período e nesta
pesquisa analisados foram retirados de suas páginas.
1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia 2 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das letras, 2009. p.198. Ver também: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma
história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Essas páginas eram as portas da divulgação, da glorificação e condenação das
brincadeiras momescas. O brilho que poderia ter ou faltar aos clubes era ela que destacava. E
são esses clubes que pareciam ter o maior interesse pela legitimação através da imprensa.
Através dela convocaram seus filiados, e nessas páginas se preocuparam de faz-se notar, de
anunciar os seus préstitos, seu itinerário, suas canções. Exibiram suas críticas, piadas, o luxo e
a animação, tudo o que de melhor lhes pudessem classificar. Seu maior palco eram as ruas,
mas as construções de suas melhores imagens estavam nos jornais.
Quando começava o ano as notas sobre o carnaval se intensificavam. A partir de
novembro e os primeiros meses do ano na Bahia já eram muito festivos. Entre elas a Festa do
Senhor Bonfim e Festa do Rio Vermelho, que já tomavam tons carnavalescos, com bandos
anunciadores, mascarados e lança perfumes.3. Nos jornais a chegada do carnaval era sentida
também pelos anúncios das lojas. O comércio se agitava com as chegadas de encomendas
para os festejos; as lojas de vestimentas, sapatos e adereços carnavalescos se mostravam
preparadas para receber os foliões. Enquanto isso os clubes já finalizavam seus preparos para
os desfiles, entre eles os clubes que se designavam africanos e que são, nesta primeira parte,
nossos objetos.
Albuquerque sugere uma análise dos desfiles desses clubes negros para pensar como
as memórias das áfricas exibidas nesses clubes revelam construções identitárias e
socioculturais e elevam de maneira alegórica suas zonas de circulação, normalmente
marginalizadas, em um contexto onde não eram tolerados pelas autoridades que se fizessem
batuques e troças livremente, sem nenhuma fantasia. Segundo ela, tratava-se de recriações de
uma África fragmentada, traçada a partir da experiência do cativeiro. E tendo como um
objetivo maior de sua obra os processos de racialização na sociedade pós-escravista, para
Albuquerque essas manifestações expunham principalmente as noções de raça desses grupos.4
A autora aborda como os debates entre intelectuais apontam para a ideia da existência
de áfricas aceitáveis, mesmo em um período onde as “africanidades” eram constantemente
atacadas e indesejadas. A Embaixada Africana representava uma dessas áfricas toleradas, pelo
menos por um período. As exaltações de intelectuais em relação aos desfiles desse clube
revelam uma classificação dos negros entre mais ou menos selvagem. Para Nina Rodrigues,
3 Sobre as festas religiosas e esse tempo festivo ver: COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a
Santa Bárbara, NS da Conceição e Sant'Ana em Salvador (1860-1940). Tese (Doutorado em História), UNESP,
Assis, 2004. 4 ALBUQUERQUE. Jogo da dissimulação. p. 197-210
expoente do racismo científico, os reinos africanos teatralizados pela Embaixada, eram
aqueles dos negros mais valorosos, “pertencentes a um ramo da raça branca.” 5
É nesse contexto, das décadas posteriores à abolição e de início da República que esse
estudo se coloca. Esses processos de racialização das relações sociais também se revelam nos
dias carnavalescos. Os clubes carnavalescos brancos, fundados nas décadas de 80 do século
XIX, eram tidos como os grandes clubes, “civilizados” e modelos ideais. Enquanto os clubes
negros enfrentaram divergências de opiniões, que culminaram na proibição dos clubes de
costume africanos em 1906, pelo chefe de polícia José Maria Tourinho.6
Alguns anos antes, nos jornais, leitores manifestaram sua opinião sobre as mudanças
que passava o carnaval naqueles anos. Em carta enviada por um leitor, não identificado, ao
Jornal de Notícias, em 12 de fevereiro de 1901, este revelou sua indignação com a forma eu
tomava os dias dessa festa. Buscando a atenção da polícia para a tais atos, em trecho ele diz:
Refiro-me a grande festa do carnaval e o abuso que nela se tem introduzido com a
apresentação de máscaras malprontos, porcos e mesmo maltrapilhos, e também do modo
por que se tem africanizado, entre nós, essa grande festa de civilização.
Eu não trato aqui de clubes uniformizados e obedecendo a um ponto de vista de costumes
africanos, como Embaixada Africana, os Pândegos da África etc.; porém acho que a
autoridade deveria proibir esses batuques e candomblés que, em grande quantidade,
alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme barulhada, sem tom nem som, como
si estivéssemos na Quinta das beatas ou no Engenho Velho, assim como essa mascarada
vestida de saia e torço, entoando o tradicional samba pois que tudo isso é incompatível com
o nosso estado de civilização.7
O cronista aponta para a tolerância aos clubes uniformizados em contraposição ao
incomodo que as batucadas geravam. Mas o que de omitido está por detrás dos discursos?
Até que ponto e em quais sentidos esses os dois clubes citados – Embaixada Africana e os
Pândegos da África – eram realmente tolerados? Questões que podemos tentar elucidar, ou ao
menos refletir, através do confronto com outras fontes, além do acesso ao debate
historiográfico já realizado.
Voltando ao ano de 1898, a Embaixada Africana foi anunciada como a principal nota
do carnaval. Prenunciavam que seriam dela as honras e o os aplausos, que viria “numerosa e
chique” para eternizar as festa daquele ano. Dias depois foi publicado o programa do desfile
5 Idem. p.216-217 6 Jornal de Notícias. 07 de fevereiro de 1906. Nesta nota o Chefe de polícia recebe o agradecimento pela
proibição em coluna intitulada “O Carnaval”. 7 Jornal de Noticias. 12 de fevereiro de 1901. Ortografia atualizada.
no Jornal de Notícias. Anunciaram que abrindo o desfile estariam dois clarins que
envergariam costumes tunisianos, diziam que assim estariam “como prova de que a
civilização não é utopia no continente negro (como propalam os maldizentes)”.8 Essa
declaração, logo de inicio do programa, claramente aparece com resposta às imagens de
barbárie e incivilidade cotidianamente associadas aos africanos e as sociedades africanas, que
além do discurso racista era também um discurso de poder, que desejava a manutenção de
uma ordem e de um projeto político embranquecido.
Portanto, mesmo sendo um clube que trazia uma recriação de África tolerada por
intelectuais como Nina Rodrigues, a Embaixada Africana não estava distante das tensões
sociais e das disputas pelo espaço festivo. Concordamos então, com a crítica que Albuquerque
faz à ideia de que, ao desfilar aos moldes dos grandes clubes brancos, os clubes negros
acomodavam-se aos moldes impostos, enquanto os batuques condenados e perseguidos
apresentavam resistência. Uma polarização que “deixa de lado o que me parece mais
interessante: os ajustes e tensões que envolviam a todos naqueles dias de incertezas.”9 Cunha
ainda atenta que a adesão as formatos difundidos pelos grandes clubes e pela elite letrada, não
se tratava de um processo mimético, onde os esses grupos eram passivos a uma política
pedagógica, que vinha em mão única. Formalizar-se foi muitas vezes maneira de se proteger
das repressões policiais que se intensificaram no fim do século XIX.10
Findado o carnaval de 1898, uma das publicações do jornal de caricaturas A
Malagueta pode nos ajudar refletir acerca das tensões que envolviam aquela sociedade e seus
os dias de momo. Na coluna carnavalesca escrita por um colunista denominado Xico Pronto,
foi feito o resumo dos préstitos daquele ano, mesmo elogiando os esforços da “afamada”
Embaixada africana, declarou que seu desfile foi pobre, e que mesmo o clube tendo oferecido
algo “digno de ver”, aquele não era tempo de achar graça de nada, dada a situação financeira
naquele ano, se referia ao aumento do câmbio.
Entre elogios e ponderações acerca dos motivos de um desanimado carnaval, e as
lástimas da falta dos grandiosos clubes Cruz Vermelha e Fantoches, o cronista também marca
a diferença da Embaixada a Africana em relação aos outros grupos africanos que o imitava.
Mas deu também nota de sua simpatia ao clube Filhos da Turquia. Em trecho dizia:
8 Jornal de Notícias. 19 de fevereiro de 1898. 9 Idem. 219 10 CUNHA. Ecos da Folia. p. 181
Outro clube que conquistou o préstito as minhas simpatias foi o dos Filhos da Turquia.
Souberam manter-se acordes com seu título, e a assim como na Embaixada tudo cheirava a
África, nada se notava neles que não tivesse o cunho otomano.
Mas ressentiam-se da falta de pessoal (sempre a falta de pessoal!) ainda mais notável do
que nos embaixadores africanos. Foram estes clubes que , apesar de não “me encherem as
medidas”, melhor me satisfizeram.
Apareceram outros, alguns um tanto luxuosos, mas nada tendo de notável deste luxo – já
levado ao apogeu pelos Fantoches e Cruz Vermelha nos grandes carnavais passados.
Após os comentários sobre os desfiles, Xico Pranto, diante do “diluvio dos clubes
africanos”, colocou-se a lastimar acerca do “espírito da imitação” que reinava “até nas mais
insignificantes coisas”. A imitação a que ele se referia era a que se realizava entre outros
grupos africanos, que segundo ele copiavam a Embaixada Africana. Relembrou então as
primeiras presenças dos embaixadores:
Lembrei-me de que, no Carnaval de 96, quando a então original charanga do clube
Embaixada Africana tangia no interior daquele edifício os seus esquisitos instrumentos, os
foliões e mascarados punham-se a dançar um semi-camdomblesado e arrebatador maxixe;
presentemente, porém todos ouviam aquela enxurrada de tabaques com indiferenças e sem
entusiasmo...
Os imitadores conseguiram estragar a novidade apresentada pela singular Embaixada.
[...]
Estava, pois, o zabumba no auge do seu reinado, quando surgiu a Embaixada Africana com
outra inovação. Então os imitadores de todos os tempos, os incapazes de criar alguma coisa,
largaram a maceta do bombo e gritaram com toda a força dos pulmões: - Ao tabaque! – E,
si bem o disseram, melhor o executaram: atiraram-se ao tabaque com unha e dentes,
reduzindo o Carnaval ao candomblé que se viu.11
Sua comparação continuou lembrando de que tudo ficava às claras quando os clubes
se encontravam no concorrido baile do Politeama, onde notava a diferença entre o “original” e
“caprichado” Clube Embaixada Africana e os outros clubes africanos que caracterizou como
imitações “grosseiras”, associadas ao candomblé e ligadas a uma imagem selvagem
enfatizada principalmente nas danças, das quais dizia que os foliões que dançavam ao som
desses instrumentos de candomblé “mais pareciam cobras do que seres humanos”.
Apesar dos elogios ao capricho e esforços dos embaixadores, parece que para Xico
Pronto a associação do clube ao candomblé e as indesejadas “africanidades” era mais nítida,
ou menos velada, do que para o leitor do Jornal de Notícias. Para o colunista as danças dos
que se divertiam ao som dos “esquisitos instrumentos” eram algo próximo ao candomblé. As
exibições da Embaixada Africana e do outros grupos levavam às ruas seus espaços de
11 A Malagueta, em 15 de março de 1898.
socialização e o candomblé era um deles. A própria fundação da Embaixada estava ligada a
uma importante figura de um terreiro que se situava no Engenho Velho. 12
Marcadas as diferenças entre os a Embaixada Africana e os outros grupos que Xico
Pronto aponta como imitadores, o que ambos os discursos revelam é o forte incomodo e
tensões causados por grupos negros, que se intitulavam africanos, mas não se encaixavam nos
moldes das Áfricas toleradas, ao contrário disso, aproximavam-se das “africanidades” que
eram cotidianamente coibidas. Para Cunha o aumento dos grupos carnavalescos negros e
pobres organizados em agremiações, de certa forma, era uma vitória do plano pedagógico dos
intelectuais para o carnaval. Entretanto, naquele momento do pós-abolição e recém-república,
“não se sabia muito bem quais os limites entre o aceitável e o desejável tanto no Carnaval das
ruas como no da política”. Aquela sociedade estava envolvida na configuração de novos
limites sociais, onde os significados de liberdade e a cidadania negra eram questões centrais.13
A autora ainda destaca como a circulação das manifestações negras nos dias do momo, como
os batuques, driblava o controle público e aproveitava de certa liberdade para levar às ruas
“práticas e valores que existiam semi-ocultos no cotidiano da cidade”.14
Nas páginas seguintes o jornal prosseguiu com os comentários sobre o Carnaval, desta
vez através de uma caricatura. Nela aparece um negro fantasiado com roupas momescas,
caído ao fim de uma escada, segurando um agogô e junto a ele outros instrumentos
percussivos também estavam caídos, um tambor e um agbê. À sua frente uma senhora
estendia um braço, suponho, diante de outras caricaturas do jornal, que representava a
intendência. No topo da escada o sol de 1888 e os nomes dos clubes Cruz Vermelha e
Fantoches. Abaixo estava escrito: “Depois que surgiu a original Embaixada Africana, que
trambolhão levaste, ó Carnaval das grandes eras.”15
12 Mario Carpinteiro, fundador da Embaixada Africana, segundo Edison Carneiro, ocupava importante cargo em
um terreiro de Candomblé, cita: ALBUQUERQUE. Jogo da dissimulação. p.210 – 212. 13 CUNHA. Ecos da Folia. p.155 14 Idem . 15 A Malagueta, 15 de março de 1898.
Caricatura publicada no jornal de caricaturas A Malagueta, em 15 de março de 1898.
Mais uma vez, mesmo diante do desfile da Embaixada africana, que segundo o a
crônica do jornal, merecia nota e congratulações, a ausência dos grandes clubes brancos no
Carnaval revelava sua decadência. Mas a nostalgia dos tempos áureos dos clubes Cruz
Vermelha e Fantoches da Euterpe não era algo incomum nas páginas dos jornais. O que aqui
nos chama a atenção é a associação ao ano da abolição, 1888. O mesmo sol aparece em outra
caricatura do jornal referente a uma cordial abolição realizada entre escravos e senhores.16Há
a necessidade de análises mais profundas, mas incialmente podemos inferir que o autor da
charge constrói uma ligação entre a abolição e a decadência do Carnaval, a qual muito pode
nos revelar sobre as relações raciais erguidas ou remontadas no pós-abolição.
Mesmo sendo um clube que desfilava uma África tolerada, e até mesmo digna de certa
admiração de intelectuais como Nina Rodrigues, ela ainda assim suscitava tensões
consequentes de um passado escravo e comum a uma sociedade em que as questões raciais e
referentes à cidadania negra estavam latentes. Assim como Albuquerque defende em sua tese,
a sociedade do fim do século XIX sofreu um processo de racialização velado, onde eram
construídos lugares sociais que eram “qualitativamente distintos”17. E o espaço festivo
também foi local de disputa e de uso da liberdade.
Os tais instrumentos “esquisitos”, novidade que para o colunista foi trazida com o
desfile da Embaixada de 1896, eram os mesmos que aparecem na caricatura. Ligados aos
proibidos batuques e candomblés esses sons levavam as ruas de Salvador o “barulho do
vatapá”. Era assim que os embaixadores anunciaram nos seus versos no segundo ano que
desfilaram, ano que Xico Pranto se referiu na lembrança:
A esse povo baiano,
Qui eu sariva cum aligria,
Pruque tudo tá contente
Cum a fessa d’esse dia,
Pide a Deu, vida saúde
Móde vê nossa fulia.
Qui pra ano nosso tá hi,
Conforme deu ajudá,
Cum prazê i aligria
Na fessa de cranavá,
Qué pá prova todo povo,
O baruio do Vatapá.
16 A Malagueta, 7 de junho de 1898. 17 ALBUQUERQUE. Op.cit. 242
(Abedé – Ogan)18
A embaixada africana levou paras ruas de salvador a “colônia africana” da cidade,
com seus estandartes, símbolos e toda pompa de sua corte. A banda era a ultima parte do
desfile, conduzida pelo maestro Abedé, com seus “Agogôs, hilu, querebês, etc.”19
As máscaras do zé-povinho
Além dos grupos africanos, os mascarados avulsos e maltrapilhos se aprontavam para
os dias festivos, eles também preocupavam e incomodavam uma elite letrada e as autoridades
policiais. Segundo Cunha, pilhérias feitas por mascarados passaram a ser ligadas a crime e
violência, justamente em um período de intensificação da racialização das relações sociais. 20
Porém, figuras dos dias momescos que eram criminalizadas apresentavam “caráter de
liberdade de trânsito em diferentes espaços”, como aponta Eric Brasil Nepomuceno ao tratar
dos diabinhos no Carnaval carioca.21 Válido ressaltar que os autores em questão pesquisam a
cidade do Rio de Janeiro, portanto não devemos determinar que em ambas as cidades isso se
dessem das mesmas maneiras, mas talvez seja possível utilizar essa bibliografia para a análise
das dinâmicas do Carnaval de Salvador se pensarmos que havia um compartilhamentos de
ideias no período.
No caso da análise de Nepomuceno, seu argumento sobre esse “caráter liberdade de
trânsitos” é realizada ao se debruçar sobre fontes produzidas em momentos próximos à
abolição, mas ainda em um mundo escravista. O autor enxergar como os as crônicas permitem
perceber essas circulação e liberdade das personagens carnavalescos que figuravam pela
cidade nos dias de festa. Algo que se aproxima de uma de uma das crônicas aqui utilizadas,
que também deixava transparecer essas movimentações na cidade de figuras não tão desejadas
por uma elite letrada. Aqui guardada as devidas proporções, já que estamos tratando de uma
fonte produzida após abolição, ou seja, em uma sociedade que remodelava as suas relações
18 Jornal de Notícias, 22 de fevereiro de 1896. 19 Jornal de Notícias, 15 de fevereiro de 1896. 20 CUNHA. Ecos da Folia. p.26 -41. Sobre a criminalização de alguns tipos de pilherias e fantasias
carnavalescas, ver também: NEPOMUCENO, Eric Brasil. Diabos encarnados – carnaval, liberdade e
racialização (1880 – 1900). In: ABREU, Martha. PEREIRA, Matheus Serva.(orgs.) Caminhos da liberdade :
histórias da abolição e do pós-abolição no Brasil. Niterói : PPGHistória- UFF, 2011. 21 NEPOMUCENO. Op. Cit. p.457
diante do fim da instituição escrava, mas que ainda conviviam com as memórias de uma
escravidão recente.
Em 15 de fevereiro de 1893, com o fim do carnaval, em uma coluna dedica à festa,
relatavam:
“[...] O numero de mascarados avulsos foi também maior, alguns fugindo espírito e raros
possuindo-o verdadeiramente.
Cedo principiou a afluência ás ruas. Ainda sol muito quente, já o Zé povinho saíra a
divertir-se, esquecido da carestia, esquecido das chulas e da careta. Careta porque ele mal
conhece o que é mascara.
Ele é o general, de chicote em punho; a crioula cheia de ouro batendo chinelinhas na
calçada: o caipora; o esteira; a mulher capona, etc, qualquer cousa enfim, que dê-lhe o
direito de á noite chegar em casa dizendo que divertiu-se muito, depois de ter gritado, de ter
corrido, de ter sambado, de ter visto a capital inteira.[...].”22
A animação desses personagens, nem mesmo o autor negou, declarou no texto que o
último dia de carnaval foi animado e que o “Zé povinho” sabe se divertir. Ao falar em “Zé
povinho” se referia a população em geral, dos mais pobres à classe média, tal classificação era
comumente utilizada nos periódicos23. A declaração da falta de “espírito” por figuras
indesejadas no projeto que se tinha de Carnaval civilizado também era recorrente, para ele o
que “Zé Povinho” usava nem chegava a ser máscara, “mal conhece o que é máscara”. Talvez
para o cronista estes também fossem “maltrapilhos”, como apareceu nas posturas que
regulamentava o uso das máscaras alguns anos depois.
Ainda assim, esse texto não nos deixa de revelar ricas figuras desses dias. Fantasiados
eles viam “a capital inteira”, faziam uso da “liberdade de trânsito”, que Nepomuceno fala.
Não sem disputas, o espaço festivo se tornou lugar para exercê-la. E mesmo em tom de
condenação o texto desse cronista nos dá a brecha pra entender a construção desse direito de
festejar o Deus Momo ao seu modo pela população mais pobre e negra. O que salta aos olhos
do historiador é justamente que o texto permite perceber a circulação desses grupos driblando
a intenções de coibi-los. Eles continuaram a correr e a sambar por toda a cidade, ainda assim
as tentativas de condená-los permaneceram os outros anos.
A mobilização para a organização das ruas para o carnaval começava semanas antes
do seu início. Todos os anos os jornais anunciavam as comissões carnavalescas distritais da
cidade. Nomeadas pelo chefe de segurança pública, as comissões eram encarregadas das
organizações dos festejos nos bairros. Os nomeados responsáveis por enfeitar a ruas para os 22 Jornal de Notícias, 15 de fevereiro de 1983. Ortografia atualizada. 23 LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas:
Editora da UNICAMP, 2001. p.125
desfiles e promoviam festas nos largos com bandas e bailes. Seus trabalhos passavam pelo
crivo dos jornalistas também, que os elogiavam ou criticavam. Uma futura análise dessas
comissões podem nos ajudar a pensar em que mãos eram desejadas que estivessem os
carnavais e as tensões que envolviam esses espaços, mesmo que por muitas vezes acabassem
nos “desagradáveis” divertimentos do “zé-povo”.
No ano de 1902 o Jornal de Notícias, em notas sobre carnaval dos bairros na terça-
feira gorda, relata sobre como maxixou uma multidão no Jardim da Piedade:
Jardim da Piedade – Num dos seus elegantes pavilhões tocou uma das bandas de polícia e
Zé Povo, em falta de outros salões, maxixou em regra, até o cansaço dar-lhe com o basta.
A graça é que sem se conhecerem, a folião irmanou a todos e não houve em meio daquela
multidão uma leve desconfiança.24
A presença do povo nas ruas da Piedade durante o carnaval não eram de agrado aos
seus moradores. Em 1903, as vésperas dos festejos, o Jornal de notícias recebeu uma carta em
nome das Famílias moradoras no Portão da Piedade. Em tal, era pedida a intersecção do
jornal para a resolução de problemas que a as incomodavam. O jornal introduziu:
Recebemos a carta abaixo, que entregamos ao espírito generoso do povo e ao zelo do Sr.
Dr. João Pedro dos Santos. Há realmente mascarados, que abusam da tradicional diversão,
transformando-a, muitas vezes, em pelourinho, o que não é nem nobre nem civilizador.
Em trecho inicial da carta é dito:
Sr. Redator do Jornal de Notícias – A v., que tanto tem se esforçado para a elevação dos
créditos desta capital, por meio do conceituado Jornal de Notícias, recorremos hoje,
pedindo o seu valioso auxilio para conseguirmos do exm. Sr. Dr. João Pedro dos Santos
providencia contra os abusos que se dão em dias de Carnaval! Nada mais doloroso do que
famílias, que estão tranquilas nas janelas de suas casas, serem debicadas e até mesmo
insultadas por indivíduos mal educados. Que por estarem mascarados, se formam ousados a
esse ponto.25
As famílias incomodadas com o que descrevem como “cenas deploráveis”, ocorridas
pelo permitido uso das máscaras após as seis horas da tarde, acreditavam que o auxílio do
Jornal de Notícias traria medidas mais enérgicas por parte do chefe de segurança pública. A
imprensa é colocada aqui como parte essencial e reconhecida para a mudança desejada por
24 Jornal de Notícias. 4 de fevereiro de 1903. 25 Idem.
uma parte da sociedade. A “ousadia” dos mascarados é colocada pelo jornal, porta-voz de
uma classe, como abuso da diversão que aproximava a festa a um pelourinho26.
A conveniência do uso da máscara no Carnaval em Salvador foi questionada por
posturas em 1905, que colocou imposição de horário, e proibiu a circulação dos que eram
considerados “maltrapilhos”.27 Segundo Fry, Carrara e Martins-Costa, essa medida teve
caráter disciplinar e individual. A máscara não era questionada como elemento carnavalesco,
mas criam-se regras de como e por quem devem ser usadas.28 Os mascarados não luxuosos,
presentes nas ruas eram ligados à desordem, entretanto, mesmo diante do perigo, da iminência
de cometer uma infração, esses sujeitos eram parte da construção desse Carnaval e suas
distintas significações.
Os sentidos que a população de libertos deram a liberdade após a emancipação nas
antigas sociedades escravista foi muitos e variados. Do mesmo modo se deram também as
maneiras de criminalizá-la. Eric Foner aponta como os conflitos gerados no pós abolição
giravam também em torno das questões sobre propriedade e trabalho. As leis e as coerções
policiais foram maneiras de redefinir as relações de classe, mantendo hierarquias e
engendrando uma nova disciplina de trabalho.29 Por isso a criação de leis que classificavam as
práticas e a circulação negra com baderna e vadiagem, dignas de repressão, eram articulações
que procuravam manter uma ordem conquistada ainda no período escravista. Assim, para as
autoridades as celebrações negras se “revertiam em uma lógica do não-trabalho, evidenciando
a sobreposição entre liberto/negro/vadio”. 30
Assim podemos encarar o carnaval como um palco da dramatização e construção das
relações sociais que nos oferece brechas para analisá-las. Quando a Embaixada Africana
anunciou que levaria as ruas uma civilização africana, contrariando a ideia de muitos que
26 Jornal de notícias. 17 de fevereiro de 1898
27 Jornal de Notícias, 24.02.1905. apud FRY, Peter. CARRARA, Sérgio. MARTINS-COSTA. Ana Luiza.
Negros e brancos no o Carnaval da Velha República. In: REIS, J. J.(org.). Escravidão e invenção da liberdade –
estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.253.
28 FRY, Peter, et al. Negros e brancos no o Carnaval da Velha República.
29 FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Brasília: Paz e Terra, 1988. p. 73-124.
Ver também: FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias e trajetórias de escravos e
libertos na Bahia, 1870-1910. Tese de doutorado. Unicamp: Campinas, 2004. Fraga trabalha em sua tese as
diversas significações de liberdade por libertos e descendentes de escravos no recôncavo baiano, vislumbrando
as construções de trajetórias individuais e familiares desses sujeitos no pós-abolição.
30 ALBUQUERQUE. O jogo da dissimulação. p.132. Ver também: FRAGA FILHO, Walter. Mendigos
moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo/Salvador: Hucitec/Edufba, 1996.
divulgavam uma África selvagem ou quando os mascarados maltrapilhos circulavam pelas
ruas com sua “ousadia”, era exposto as tensões de um debate que buscavam delimitar a ideia
de civilidade, decidadania e liberdade, mas também as resistências cotidianas às tais
tentativas.
Bibliografia
ABREU, Martha. PEREIRA, Matheus Serva.(orgs.) Caminhos da liberdade : histórias da
abolição e do pós-abolição no Brasil. Niterói : PPGHistória- UFF, 2011.
ALBUQUERQUE, Wlamyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 2009
COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição
e Sant’Ana em Salvador (1860 – 1940). Tese (Doutorado em História). Assis, SP: UNESP,
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