18
“EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER TEATRAL DA CIDADE DE SOBRAL-CE NA DECADA DE 1980. EDILBERTO FLORÊNCIO DOS SANTOS * Muitas são as possibilidades de abordagens das relações entre história e teatro, visando apreender o fazer teatral enquanto possibilidade temática ao campo da produção histórica. Reginaldo Cerqueira aponta dois aspectos, durante muito, consagrados como proeminentes nos trabalhos relativos a essa temática, onde a relação História-Teatro é simplificada por trabalhos que buscam aprender as expressões teatrais ora por meio do “cânone da literatura dramática”, ora pelo foco na “questão da busca de sua origem” (SOUSA, 2010). Assim, as análises, inclusive no que diz respeito ao teatro brasileiro, pautavam-se em uma visão que ou compreendiam o texto dramático “como via única, ou possível, para se viabilizar a memória teatral”, ou centravam sua discussão sobre a gênese da arte dramática, para isso buscando indicar a origem do teatro brasileiro, de modo a conjecturar obrigatoriamente sobre as influências estrangeiras responsáveis por inserir o teatro em solo nacional, agregando a isso, a construção dos edifícios teatrais, compreendidos enquanto marcos fundantes desta expressão artística. Desta forma, somente em decorrência das mudanças e do alargamento de perspectivas inaugurados no campo da historiografia a partir da segunda metade do século XX, que a produção historiográfica passou a pensar a pluralidade de facetas presentes na arte, e consequentemente no teatro, de modo a permitir que a história, através da Nova História Cultural, pudesse “pensar modelos teórico-metodológicos capazes de dar conta de outras possibilidades interpretativas sobre a história dos movimentos culturais, incluindo o teatro brasileiro” (PESAVENTO, 2005:12). Portanto, foi por meio deste movimento em direção a uma abordagem mais plural e atenta as singularidades da teatralidade, que se tornou possível uma revisão sobre a produção da história do teatro no Brasil. Nesse sentido, é significativo o surgimento de uma historiografia sobre o teatro nacional, voltada à discussão e análise das diversas conjunturas

“EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

“EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER TEATRAL DA

CIDADE DE SOBRAL-CE NA DECADA DE 1980.

EDILBERTO FLORÊNCIO DOS SANTOS *

Muitas são as possibilidades de abordagens das relações entre história e teatro, visando

apreender o fazer teatral enquanto possibilidade temática ao campo da produção histórica.

Reginaldo Cerqueira aponta dois aspectos, durante muito, consagrados como proeminentes

nos trabalhos relativos a essa temática, onde a relação História-Teatro é simplificada por

trabalhos que buscam aprender as expressões teatrais ora por meio do “cânone da literatura

dramática”, ora pelo foco na “questão da busca de sua origem” (SOUSA, 2010).

Assim, as análises, inclusive no que diz respeito ao teatro brasileiro, pautavam-se em

uma visão que ou compreendiam o texto dramático “como via única, ou possível, para se

viabilizar a memória teatral”, ou centravam sua discussão sobre a gênese da arte dramática,

para isso buscando indicar a origem do teatro brasileiro, de modo a conjecturar

obrigatoriamente sobre as influências estrangeiras responsáveis por inserir o teatro em solo

nacional, agregando a isso, a construção dos edifícios teatrais, compreendidos enquanto

marcos fundantes desta expressão artística.

Desta forma, somente em decorrência das mudanças e do alargamento de perspectivas

inaugurados no campo da historiografia a partir da segunda metade do século XX, que a

produção historiográfica passou a pensar a pluralidade de facetas presentes na arte, e

consequentemente no teatro, de modo a permitir que a história, através da Nova História

Cultural, pudesse “pensar modelos teórico-metodológicos capazes de dar conta de outras

possibilidades interpretativas sobre a história dos movimentos culturais, incluindo o teatro

brasileiro” (PESAVENTO, 2005:12).

Portanto, foi por meio deste movimento em direção a uma abordagem mais plural e

atenta as singularidades da teatralidade, que se tornou possível uma revisão sobre a produção

da história do teatro no Brasil. Nesse sentido, é significativo o surgimento de uma

historiografia sobre o teatro nacional, voltada à discussão e análise das diversas conjunturas

Page 2: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

2

pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações

levados aos palcos e as ruas pelos artistas brasileiros.1

* Especilista em Ensino de História do Ceará pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA. 1 Nesse sentido cabe ressaltar os trabalhos de pesquisa realizados pelo Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura – NEHAC da Universidade Federal de Uberlândia.

Page 3: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

3

No entanto, de acordo com Rosangela Patriota, tal método de abordagem acabou

levando em alguns casos, a consolidação de uma “memória histórica” a respeito do

movimento teatral brasileiro, compartimentada e hierarquizada dentro de categorias fixas que

caracterizam e engessam as expressões teatrais em conceitos como: moderno, político,

universal, clássico, engajado, entre outros. (PATRIOTA, 2005:11)

Deste modo, os principais estudos relativos à produção teatral brasileira relacionam-se

principalmente a três matizes: a primeira temporal, que privilegia os espetáculos montados

durante o período da ditadura, a partir de 1964; a segunda temática, consolidada pelo apreço a

expressão de um “teatro engajado” ou “teatro político”, e a última geográfica, focando-se,

sobretudo nas montagens desenvolvidas no que compreende o eixo Rio – São Paulo.

No âmbito estadual, as produções de maior visibilidade sobre a história do teatro

cearense, ainda se pautam nas discussões sobre a gênese do teatro no estado, bem como na

construção de suas primeiras casas de espetáculos.2 Sendo latente a centralidade ocupada por

Fortaleza dentro destas análises, consolidada não somente como capital administrativa, mas

também como capital cultural, destacando-se as referências ao Teatro José de Alencar, como

símbolo maior das artes cênicas do estado, espécie de templo por onde os maiores espetáculos

e companhias teatrais do Ceará têm passagem obrigatória.

Dentro desse contexto, as menções a cidade de Sobral, cidade do interior do estado, no

que se relaciona a história do teatro cearense, se resumem basicamente as referências ao

Teatro São João, justificada pelo fato de ser este um dos teatros mais antigos do Ceará.3 Fruto

da iniciativa de um grupo de intelectuais do período, entre eles o romancista Domingos

Olímpio, autor do romance Luzia-Homem; inaugurado no dia 26 de setembro de 1880, após

cinco anos de construção, entremeados por um período de seca, configurando assim como

prova “irrefutável” do valor e apreço da elite sobralense pelas artes.

2 Representativo dessa questão são as rivalidades e referências obrigatórias aos teatros mais antigos do Ceará. Sobre a gênese do teatro cearense, ver: COSTA, Marcelo Farias. Teatro em primeiro plano, e Teatro na terra da

luz, do mesmo autor. 3 O Teatro São João em Sobral é cronologicamente o segundo teatro mais antigo do estado do Ceará, inaugurado em 1880. Fazendo parte da tríade dos teatros antigos cearenses, antecedido pelo Teatro da Ribeira do Icó, na cidade de Icó, datado de 1860, e seguido pelo Teatro José de Alencar na capital, de 1910.

Page 4: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

4

No entanto, por mais que o Teatro São João se apresente e se faça ler enquanto

símbolo representativo dentro da história e da memória da cidade de Sobral, seja como

monumento de vanguarda, que atesta o “gosto” pela arte de sua elite, seja enquanto

patrimônio histórico, único edifício tombado como patrimônio estadual na cidade,4 ao mesmo

tempo em se inserir em um dos principais núcleos do centro histórico tombado como

patrimônio nacional; a história do movimento teatral, dos artistas, atores, atrizes, diretores,

produtores e demais sujeitos que deram vida a este espaço e a cena teatral da cidade, se

encontra negligenciada na história e na memória da sociedade sobralense.

O teatrólogo Marcelo Farias afirma: “nenhum movimento teatral começa com a

construção de um teatro” (COSTA, 2017:14). Desta forma, compreende-se a existência da

produção de atividades teatrais como elemento gerador de uma demanda que justifique a

construção de uma casa de espetáculos. É possível falar em teatro sem a presença de uma casa

de espetáculos, contudo não é possível falar em um edifício teatral sem a presença de artistas

e público que lhe dêem vida e existência como tal, pois é somente no encontro entre a

presença da figura humana no palco, esteja ela sozinha ou em grupo, e a figura daquele que se

coloca na plateia, que o ritual do fazer teatral ocorre.

Nesse sentido é inquietante a ausência de outros sujeitos na história do teatro

sobralense, para além dos responsáveis pela construção de seu edifício, consagrados na

historiografia tradicional; ou seja, a presença dos homens e mulheres que construíram a

história do teatro em Sobral e que não são presentes na história do seu Teatro ou da cidade.

Deixando entrever o “indício de uma falta” na historiografia local, que silencia a dimensão de

sua presença e importância dentro da vida e da história, enquanto elemento constituinte da

cultura e da sociedade local, e que se fez na cidade, à medida que construiu com seus atos e

cenas a história deste lugar.

Pensar a arte enquanto objeto de pesquisa, e no nosso caso o teatro, é pensar também o

chão no qual ela foi fecundada, ou seja, seu tempo e espaço, enquanto lugar de onde se fala e

se produzem as manifestações artísticas, pois como nos alerta o antropólogo Clifford Geertz,

4 Protegido pelo Tombo Estadual segundo a lei n° 9.109 de 30 de julho de1968, através do decreto n° 16.237 de 30 de novembro de 1983.

Page 5: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

5

ao lidar com as matérias da cultura humana “não podemos deixar que o confronto com os

objetos estéticos flutue, opaco e hermético, fora do curso da vida social.”

(GEERTZ,1998:146)

A arte penetra de forma aguda em seu tempo e seu lugar de origem, gerando

estranhamentos, pondo em cheque verdades estabelecidas e levando seu público a encarar sua

realidade de forma desnaturalizada, através da construção de um viés estético/artístico. É

como se pudéssemos, mesmo que por um instante, nos distanciar de nossas vidas, de nossa

sociedade, e olhando de fora, rir, chorar, se emocionar e refletir sobre nossa efêmera condição

humana, para novamente adentrar nela agora com um olhar mais apurado. E afinal de contas,

não é isso também que fazemos enquanto historiadores quando olhamos para o passado?

De tal modo, faz-se necessário direcionar nosso olhar no sentido de nos aproximarmos

do tecido social de onde são recortados os retalhos que compuseram a grande concha

multicolor da experiência teatral das últimas décadas do século passado na cidade de Sobral.

Entendendo esse movimento enquanto uma possibilidade de discussão a respeito do

surgimento/manifestação de uma nova vertente de teatro amador local, a partir da década de

1980, percebendo a configuração social do período, assim como as inquietações e motivações

que levaram à cena sobralense a manifestação de novos atores e novas problemáticas.

Nos anos de 1980 consolida-se um movimento de chegada de novos atores e atrizes,

advindos de bairros periféricos que penetram no centro da cidade a partir do teatro,

começando a discutir a realidade política e social de seu tempo, trazendo para cena teatral e

para a história sobralense, sujeitos e questões não contempladas pelo fazer teatral precedente.

Assim, as comédias de costumes e os romances burgueses5 encenados nas décadas anteriores

nos palcos sobralenses, seus temas, enredos e personagens, vão dar espaço a figuras como

camponês, agricultores, retirantes, negros, prostitutas, indigentes e toda uma classe de

desfavorecidos, a partir da discussão de temas como liberdade, exploração, miséria, reforma

agrária, migração, saúde, moradia, educação, preconceito, corrupção, e diversas outras

5 Em 1880, por ocasião da inauguração do Teatro São João foram encenadas duas peças representantes desse gênero, por jovens artistas sobralenses, sendo elas: A Honra de um Taverneiro e Meia Hora de Cinismo.

Page 6: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

6

questões que estavam na ordem do dia para estes jovens que passam a se manifestar e militar

através do teatro.

Discutir o surgimento de outros atores e a expressão de uma nova forma de pensar e

produzir teatro na cidade de Sobral se configura para nós na possibilidade de compreender a

conjuntura sobre a qual tais sujeitos constroem seus enredos pessoais e sociais, na mesma

medida que levam estes enredos a cena artística da cidade. De maneira que, por meio do

processo de produção cênica se manifesta a possibilidade de analisar a configuração social

daquele momento, bem como as repercussões de tais questões dentro da sociedade sobralense,

buscando assim “apreender os possíveis elementos com os quais os autores estão dialogando

no processo em questão.” (PUGA,2007: 02)

Pois, se bradamos convictos de que a história, e, por conseguinte o historiador é filho

de seu tempo, para nos lembrar da importância de perceber o lugar no qual construímos

nossos enredos e produzimos a história, é imperativo inferir que o artista, também é filho de

seu tempo, na medida em que metamorfoseia sua relação e suas concepções de mundo em

sentidos artísticos e estéticos. Desta maneira, a arte também pode ser vista enquanto “mãe”,

compreendida como genitora de mudanças, de estranhamentos e de novos olhares

desnaturalizados sobre a realidade.

Assim, buscamos discutir a relação entre que cidade que fala no fazer teatral desses

atores e atrizes e o teatro que surge a partir desta fala e desta cidade, justamente no “embate

entre Arte e Sociedade, mais precisamente aquele que explica o enfrentamento com as

questões de seu tempo.” (PATRIOTA, 2004: 235) Para isso, pautando-se em questões como:

que sentidos e sensações, motivos e motivações impulsionam estes sujeitos, reverberando em

suas práticas teatrais? Que cidade é essa levada à cena? Que motivações e inquietações

impulsionam um grupo de jovens a se manifestar por meio do teatro nos primeiros anos da

década de 1980? Que repertório social, cultural e político estes sujeitos se valem na produção

de seus espetáculos e em suas reflexões sobre o seu lugar? De que Sobral seus espetáculos

estavam falando e/ou queriam fazer ver?

A Cidade que fala no teatro e o teatro que fala na cidade

Page 7: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

7

A cidade de Sobral, sempre buscou se firmar como uma liderança cultural e política na

zona norte do estado do Ceará ao longo de sua história. Contudo, ao longo do século XX, essa

relativa hegemonia regional, acabou sendo quebrada na busca da consolidação da centralidade

política da capital Fortaleza.

Assim, na década de 1980, ensejavam-se, no campo da política os passos finais da

ditadura civil militar em direção à abertura democrática no Ceará, em consonância ao

ocorrido no plano nacional, como no caso do fim do bipartidarismo no final dos anos 70, e

rupturas com a política dos coronéis arraigada por anos na política do estado. Por outro lado à

experiência da militância de esquerda, bem como de grupos atrelados ao movimento de

renovação do caráter social da Igreja, desenvolvida a partir da década de 1960, impunham as

manifestações e debates para além da capital cearense, levando as discussões e críticas ao

momento político e social vivenciado também ao interior do estado, onde:

Os problemas relativos ao latifúndio, aos direitos estabelecidos pela legislação e

não cumpridos pelos patrões, bem como as condições miseráveis concorreram para

o levantamento de parte dos trabalhadores, apoiados pelos partidos de esquerda e

pela Igreja Católica. (FARIAS, 2004:444)

Na seara da cultura, esses anos presenciavam a forte atuação de um processo de

homogeneização dentro da produção artístico cultural, potencializado com o a penetração e

consolidação dos meios de comunicação de massa, mais precisamente a televisão. Sendo

recorrente a afirmação de que em meados da década de 1980, de forma concomitante ao

processo de abertura política, começam a esmaecer as movimentações e a resistência

desenvolvidas durante os anos da ditadura e muito fortemente na década de 1970 e que tinham

como suporte de expressão a arte, tendo como referência no Ceará o Grupo Universitário de

Teatro e Arte (GRUTA), surgido em 1966, que juntamente com o Grupo Independente de

Teatro Amador (GRITA), movimentaram a cena artística e teatral do estado, em atividades

como as “caravanas culturais” organizadas pelo GRUTA, que circularam algumas cidades

cearenses entre os anos de 1966 e 1968, como Juazeiro, Sobral, Crato e Barbalha.

Em seu texto sobre a cultura cearense, o teatrólogo e antropólogo Oswald Barroso,

membro ativo dos movimentos teatrais nas décadas de 1970 e 1980 no estado, enquanto

Page 8: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

8

integrante do GRITA e de outras instâncias de engajamento e atuação na cena cultural, afirma

“O teatro dos anos 80, no Ceará, foi marcadamente de transição, entre um teatro de resistência

advindo da década anterior, e um teatro que quebrava seu isolamento provinciano [...]. Com o

fim da Ditadura, na segunda metade da década, o teatro de resistência perde fôlego”.

(BARROSO, 2002: 192)

Na contramão desse processo, que delimita o processo de abertura democrática na

primeira metade de 1980, como um fator preponderante, quando não um marco delimitador,

para o desencadeamento de um processo de desaparecimento das manifestações artísticas

pautadas em ideais políticos e de engajamento social na conjuntura nacional, podemos

perceber em nossa pesquisa, que o teatro ganha contornos de uma arte engajada na realidade

sobralense justamente neste período. Assim, se no âmbito nacional e estadual, se fala em um

“esfriamento” desta proposta de atuação politizada durante essa década, é nesse mesmo

recorte que ela surge, se consolida, ganha formas e espaço na cena teatral da cidade de Sobral.

Como a produção teatral sobralense compreendida em nossa pesquisa, escapa a esta

determinação temporal recortada nos anos da ditadura, nos cabe aqui tentar apreender e

discutir o contexto histórico, para além dos consolidados marcos temporais, que possibilitou a

atores e atrizes vindos da periferia da cidade, oriundos de movimentos sociais, tomar o espaço

da cena teatral e o palco do Teatro São João, levando ao público sua leitura e sua percepção

da sociedade e da conjuntura política de um período.

Questionando por meio do trabalho, de que modo se deu o processo de apreensão e

seleção pela experiência cênica das companhias sobralenses, das temáticas sociais, que em

geral, compunham as encenações e textos dos principais grupos de teatro do Brasil durante os

anos da ditadura, e que contraditoriamente só irão brotar na cena sobralense nos anos de

fenecimento do governo militar.

Quando o teatro “surge tão bem-vindo”: das Igrejas e Partidos para os festivais.

É recorrente entre aqueles que vivenciaram a agitação do teatro sobralense desse

momento, a afirmação do engajamento religioso e a militância política, como elementos

essenciais na formação de uma nova atuação no campo da produção teatral desenvolvida no

período. Pois, se os espetáculos levavam aos palcos as discussões em torno de questões

Page 9: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

9

sociais como pobreza, desigualdade social, conflitos de terra, êxodo rural, crise econômica,

etc.; isso se dá pelo fato da existência e inserção destes sujeitos em uma conjuntura para além

do teatro, ou seja, as lutas por demandas sociais, na qual estavam inseridos e que os levaram a

discutir tais temáticas no campo da arte, por meio do teatro.

Os fatores e organizações referenciados pelas falas dos atores e atrizes enquanto

elementos que influíram no surgimento deste processo de consolidação de uma nova vertente

cênica, apesar de algumas divergências frutos da pessoalidade e subjetiva destas memórias,

consolidam um fio condutor comum, relacionando-se a dois pontos ligados à conjuntura

política vivida por eles à época, de transição entre a ditadura e o regime democrático.

O primeiro deles se refere à atuação junto aos movimentos jovens de caráter religioso,

mais diretamente a atuação leiga nos movimentos católicos organizados a partir de grupos

como as Comunidades Eclesiais de Base (CEB's) e a Pastoral da Juventude do Meio Popular

(PJMP), oriundos de um processo de mudança no posicionamento da Igreja Católica, por

meio das propostas de atuação social experienciadas na conjuntura das décadas de 1960 e

1970.

O segundo fator de condensamento dessas memórias, fala da relação da juventude com

o engajamento político-militante nos partidos de esquerda, no presente caso relacionados aos

quadros do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na

cidade de Sobral, que recém-saídos da clandestinidade, ganhavam a adesão da juventude

local, ora disputando ora misturando-se aos quadros da Igreja, contribuindo para o processo

de politização desta geração.

É neste contexto que se dão as primeiras experiências com teatro de muitas das

pessoas que irão compor a produção teatral dos anos seguintes. É também nesse contexto que

se dá a criação do primeiro grupo de teatro a partir desse movimento pastoral, o Grupo

Teatral Reluz, atuante na proposta de levar as críticas às desigualdades e injustiças sociais

discutidas nas reuniões e leituras dos grupos religiosos, juntamente com as vivências nos

meandros dessa militância para o âmbito do fazer teatral. Assim, a juventude da época

transitava entre os universos da religião, da política e da arte, congregando os pontos em

Page 10: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

10

comum entre esses discursos, na elaboração de um processo que possibilitou o acesso a uma

visão crítica de mundo e um novo posicionamento diante da realidade vivida.

As narrativas dos atores e atrizes atinam para o fato de que o Grupo Reluz começa

suas ações, em um primeiro momento, desenvolvendo alguns trabalhos e experimentos

cênicos, voltados inicialmente para as temáticas religiosas, leituras do evangelho, e pequenas

comédias. Com o tempo outras temáticas mais ligadas à realidade local e aos problemas

sociais vão emergindo e adentrando os textos. E o caso da esquete Arrocho Salarial, encenada

no ano de 1983, que abordava de maneira satírica a situação econômica brasileira do período,

parodiando a música de Milton Nascimento e cantando em cena, a insatisfação com a

realidade financeira da população: “Como poderei viver/ Como poderei viver/ Dia e noite/

Noite e dia/ Com a barriga vazia.” 6

No mesmo ano, surge a montagem da peça Pedro do Mato, com um texto escrito pelos

membros do Grupo Reluz, sob orientação do padre João Batista Frota, no período reitor do

Seminário Diocesano e coordenador do movimento de Pastoral de Sobral. A esquete abordava

a questão da emigração, da movimentação de famílias expropriadas do meio rural pela falta de

terra, que acabavam indo compor o quadro de miséria das cidades. Sendo responsável por

lançar o grupo para além das igrejas e espaços religiosos, sendo apresentada no palco do

Colégio Sobralense, colégio particular tradicional na cidade, e sobretudo permitindo com que

o grupo chegue pela primeira vez ao ribalta do Teatro São João.

Embasado nas questões políticas de seu tempo o Grupo Reluz monta no ano de 1986,

o espetáculo Sangue por Terra. A peça levava à cena as discussões sobre a reforma agrária e

os conflitos por terra, questões de primeira ordem tanto nas discussões dos partidos de

esquerda quanto dos movimentos de base da Igreja. Congregando novamente membros de

diferentes grupos religiosos, grupo de jovens, pastorais e seminaristas, e embalado pela

canção Funeral de um Lavrador de Chico Buarque de Holanda, o espetáculo estreia no Centro

Social Rosa Gattorno, no bairro Alto da Brasília, e circula por diversas cidades vizinhas,

agregando-se as discussões políticas sobre a temática agrária na região.

6 Francisco Rogênio Martins do Nascimento. Entrevista realizada no dia 11 de fevereiro de 2011. Sobral-Ce. Arquivo do autor.

Page 11: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

11

No espetáculo Sangue por Terra, podemos encontrar o enraizamento das práticas

teatrais sob a realidade local, em sua consonância com as problemáticas presentes no contexto

social daquele momento, bem como o posicionamento dos movimentos populares perante

essa realidade. Pois, no dia 05 de agosto de 1986, as manchetes dos jornais locais noticiavam

a morte do agricultor Benedito Antonio Moreira, conhecido como Benedito Tonho,

assassinado a mando de um grupo de grileiros, na Fazenda Queimadas na localidade de

Ubaúna, no município de Coreaú, vizinho a Sobral. O assassinato de Benedito Tonho

justamente no momento em que o Grupo Reluz, circulava na região apresentando esse

espetáculo, marcou a memória dos membros do grupo que participaram da montagem. Tendo

o Grupo Reluz apresentado Sangue por Terra, durante os festejos religiosos da comunidade

de Ubaúna, meses depois da morte de Benedito Tonho, e com a memória do fato ainda muito

presente naquela comunidade.

Fig.01 - Cena representando a morte do camponês – Espetáculo Sangue Por Terra, Grupo Reluz – Fonte: Arquivo Rogênio Martins

Mesmo com a dimensão tomada pelas apresentações de Sangue por Terra, e de alguns

outros espetáculos montados no período, e da relação desses jovens com os quadros da Igreja

Católica, são pouco expressivas as inserções e exposições de suas peças e montagens na

impressa local, praticamente inexistem, nos anos acessados no arquivo da sede do jornal,

qualquer citação direta ao Grupo Reluz ou a esse movimento de teatro produzido na cidade.

Sendo que, as únicas referências sobre a realidade do teatro local são de crítica à

administração pública pela falta de atividades e abandono do prédio do Teatro São João.

Page 12: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

12

A constatação relativa ao lugar ocupado pelo teatro, enquanto manifestação artística,

no seio da sociedade e da Igreja em Sobral nesse momento, releva o indício desta falta na

história cultural da cidade, nos levando a questionar sobre o conceito de arte e de teatro que a

sociedade sobralense nutria. Haja vista que, durante seus anos de atuação e de agitação da

produção cênica na região, tais grupos e suas montagens não figurem de forma circunstancial

nas páginas da imprensa do período, do mesmo modo que hoje não constam na memória e na

história oficial da cidade.

Um período de efervescência para a cena teatral: a FESTA e o CAC em Sobral.

No ano de 1986 um novo momento se inicia na história do teatro na cidade, naquele

ano o movimento teatral de Sobral se filia a Federação Estadual de Teatro Amador do Ceará

(FESTA), pondo o teatro sobralense em relação direta com os diversos grupos e artistas de

todo o estado, através da participação em oficinas, das mostras de teatro amador e do

intercâmbio proveniente da política de divisão das cidades cearenses em microrregiões

interligadas por uma constante relação de troca e fortalecimento mútuo.

É através da FESTA que o movimento teatral de Sobral, mais especificamente o

Grupo Reluz, tem a primeira experiência junto ao movimento teatral cearense, através da

participação, no ano de 1986, da IX Mostra de Teatro Amador, realizada na cidade de

Fortaleza. Para a Mostra, o grupo teatral monta o espetáculo Quem matou Aparecida?, um

texto do poeta Ferreira Gullar adaptado por Gil Brandão, um dos atores do Reluz.

Esta era a primeira incursão do movimento teatral sobralense, em um evento

específico de teatro, junto a outras companhias e a um público totalmente distinto do qual até

então destinava suas apresentações. Nessa primeira empreitada, o grupo acaba participando de

um episódio, bastante representativo do contexto político do período, que marca as memórias

e narrativas sobre a participação sobralense na mostra estadual. Conforme relembra Rogênio:

Page 13: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

13

E a gente foi, claro, num período meio tenso. Porque a gente vai, leva todo o

cenário, e lá a gente é hospedado no colégio militar, na [Avenida] Santos Dumont.

E nessa noite jogam-se – na noite em que a gente tá hospedado – jogam-se umas

bombas dentro do colégio. Há uma revolução ali dentro, sabendo quem é. Na

realidade, de teatro, quem estava hospedado ali dentro, era só o Grupo Reluz,

Sobral. E na realidade, de manhã começou a ser chamado algumas meninas para

depor, por conta disso. Ficam algumas meninas detidas no colégio militar, o resto

do pessoal é expulso mesmo. Eles mandaram a gente embora, e saímos com o

cenário nas costas. Greve geral, greve nacional, no país. Greve nacional. Não tinha

um carro articulando, movimento em Fortaleza parado. E tivemos que sair com o

cenário arrastando nas costas, do Colégio Militar até o Teatro Universitário, onde

fomos fazer a apresentação. Aí foi um dia muito tenso, tumultuoso. [...] Porque

naquele dia foi muito tenso, por isso que o teatro é muito ligado a política, até no

dia que a gente vai apresentar acontece isso. 7

Apesar do episódio de caráter político, da inexperiência do elenco e da pouca

receptividade a apresentação de “Quem matou Aparecida”, foi através da participação na IX

Mostra que o movimento teatral sobralense começa a repensar a sua atuação, por meio do

contato junto a outras companhias cearenses e o envolvimento com a FESTA. Sendo a partir

da participação sobralense com o Grupo teatral Reluz que surge a proposição relativa à

realização no ano seguinte, da X Mostra de Teatro Amador na cidade de Sobral. Esse

momento contribuiu para fortalecer a opção desses sujeitos com o fazer teatral, descortinando

um horizonte de atuação para além da realidade local.

Ao longo das montagens e um maior engajamento com o teatro, através de oficinas

com artistas, grupos e espetáculos vindos de Fortaleza, alguns desses jovens envolvidos e

“encantados” com o universo do fazer teatral, acabam distanciando-se da atuação junto aos

movimentos da Igreja Católica em Sobral, para se enveredar cada vez mais nos encantos dos

palcos e do teatro. É o caso de Rogênio Martins, não sendo ele o único, que acaba deixando o

Seminário Diocesano e a vida religiosa para se dedicar definidamente ao teatro, o que por

outro lado, não era uma decisão fácil. Sobre esse momento ele comenta brincando: “um dia

chegou o padre João a perguntar pra mim se eu queria ser ator, ou à toa, ou queria ser padre.

Então definisse ali o que poderia acontecer”.8

7 Francisco Rogênio Martins do Nascimento. Entrevista realizada no dia 11 de fevereiro de 2011. Sobral-Ce. Arquivo do autor. 8 Francisco Rogênio Martins do Nascimento. Entrevista realizada no dia 11 de fevereiro de 2011. Sobral-Ce. Arquivo do autor.

Page 14: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

14

Qual o significado do ato de decidir ser ator, ser “gente de teatro” na cidade de Sobral

em meados da década de 1980? Quais as implicações sociais dessa postura, em uma cidade do

interior do Ceará que se orgulha de seu Teatro, mas que não conhece nem valoriza seus atores

e atrizes nem sua produção dramática?

O envolvimento e a militância dos atores e atrizes sobralenses, passa a se desenvolver

muito mais no campo da política partidária de esquerda, do que nos movimentos de base da

Igreja, como o era na primeira metade da década. Desta maneira, o posicionamento de

assumir o teatro enquanto opção de vida, representado no desejo de ser “gente de teatro”,

acaba acarretando uma série de preconceitos e estereotipações sofridas por esses jovens

dentro da sociedade sobralense desses anos. Sobre o preconceito sofrido, questão bastante

cara as memórias dos sujeitos que vivenciaram esse momento, Tess Alves, militante do

PCdoB, uma das atrizes fundadoras do Grupo Resistência, surgido após a IX Mostra comenta:

Todo mundo dizia que a gente era puta, maconheiro. [...] Por ser de Sobral, por ser

de partido de esquerda, por pegar nome de puta, por sentar num bar e pagar sua

cerveja, beber sua cerveja junto com um bocado de pessoal da esquerda, sem ter

hora pra voltar em casa, a gente era rotulada. Rotulada mesmo! E credibilidade da

prefeitura, muito pouco.9

A fala de Tess, além de evidenciar os “rótulos” impostos aos membros do movimento

teatral, permitindo compreender muito do porque da ausência de divulgação da produção

teatral nos periódicos locais, também toca em uma questão bastante cara aos entrevistados e

as ações perpetradas por esse movimento teatral na cidade, que é sua relação com a gestão

cultural municipal e o apoio a produção artística e teatral em Sobral, ponto esse que ainda

hoje permeia os debates sobre a produção cênica local.

O maior acesso e a apoio ao fazer teatral na cidade, se dão a partir do ano de 1987,

quando o Sobral é uma das cidades do estado a receber um dos núcleos do Centro de Ativação

Cultura (CAC), projeto que tinham como objetivo mobilizar as expressões culturais locais,

englobando diversas áreas do fazer artístico, com acentuado destaque as manifestações da

cultura regional cearense. Tendo como sede o edifício do Teatro São João, o CAC inaugura

9 Teresinha de Jesus Alves Pereira (Tess Alves). Entrevista realizada no dia 09 de junho de 2011. Sobral-Ce. Arquivo do Autor.

Page 15: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

15

um novo momento de fomento as expressões artísticas na cidade, de ocupação do centenário

prédio, e de efervescência cultural no campo das artes.

Nesse momento, alguns remanescentes do Grupo Reluz montam em 1987 o espetáculo

Tumulto Negro, levando para o tablado as discussões políticas sobre as torturas no período da

ditadura, assim como a experiência de resistência consolidada no episódio da Guerrilha do

Araguaia. O espetáculo teve pequena temporada de apresentações, estreando em Sobral e

sendo levado à cidades da região como Tianguá, Massapê e Santa Quitéria.

Com um nome bastante representativo, e até certo modo, de caráter revolucionário, o

que mais se destaca na lembrança dos atores sobre a montagem deste espetáculo diz respeito a

sua repercussão na sociedade sobralense. Isso porque, diante da dificuldade de divulgação

junto à mídia local, e a dificuldade de recursos para uma panfletagem mais efetiva junto ao

público, os atores decidem espalhar em alguns muros do centro da cidade a seguinte frase:

“Vem aí Tumulto Negro!”, como forma de chamar atenção da população para o espetáculo.

Se o movimento teatral não obtinha espaço para vinculação na mídia e na sociedade

sobralense, acabava encontrando outros mecanismos para se inserir e se fazer ver na textura

social. Assim, mesmo que a história oficial da cidade construa uma visão, que de certo modo,

chega a negar a influência dos embates e manifestações da ditadura militar na realidade local,

a inserção de anuncio de um “tumulto negro” nos muros da cidade, em um período posterior

ao rompimento com o estado de exceção, ainda causa impacto e receio na população.

Tal questão exemplifica o quão frágeis podem ser as tentativas de apreender as

dinâmicas do cotidiano e das representações sociais por meio das limitações impostas por

marcos temporais fixos. Nesse sentido a expressão de um movimento teatral de embasamento

Page 16: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

16

político e social, presente em Sobral na primeira metade da década de 1980, momento

firmado como um marco do desaparecimento do ”teatro engajado” no Brasil, denota a

necessidade de ampliar as análises e recortes das pesquisas em história, de modo a fugir aos

modelos que engessam o olhar do historiador, e que perpetuam discursos monofônicos sobre

o passado que se insurge plural.

Iniciado em 1983 com a formação do Grupo Reluz, esta nova faceta do movimento

teatral de Sobral, composto por jovens que descobrem o teatro através de sua atuação no

engajamento religioso e na militância política dos partidos de esquerda, procurou ao longo

dos anos firmar seu espaço dentro da vida cultural e da cena teatral da cidade, montando e

apresentando peças que levam à cena discussões e problemáticas sociais debatidas nas

reuniões e encontros dos grupos dos quais faziam parte. Suas apresentações iniciadas nos

bairros, nas capelas e associações de Sobral e região, ganham com o tempo o Teatro São João,

e mais que isso, conseguem levar o público dos bairros e periferias da cidade para o interior

do espaço elitista e consagrado do Teatro.

É neste cenário que tais sujeitos chegam ao universo do teatro, e que o teatro aparece

enquanto linguagem possível em suas vidas. No entanto, é através da sua produção teatral, da

formulação de suas experiências cênicas, que suas lutas vão ganhar novas formas de

dizibilidade e visualidade no corpo social, onde o diálogo entre realidade e arte, possibilitou a

reflexão e a indicação de novas formas de ver e de atuar sobre a realidade e o cenário já posto,

e que geraram transformações, se não na sociedade de uma forma mais ampla, certamente nos

sujeitos que participaram deste processo, que por sua interferiam nesta sociedade como

cidadãos e como artistas.

Assim, é no período da década de 1980, que o movimento de teatro amador sobralense

firmas suas bases e mostra sua feição, seus gestos, suas cores e formas para a cidade. Tal

movimento tem como ápice e momento mais fecundo a relação com a Federação Estadual de

Teatro Amador e a estruturação do Centro de Ativação Cultura de Sobral, que permitiram

conectar a produção local, com as demandas e produções estéticas e ideológicas do restante

Fig.02 - Ensaio espetáculo Tumulto Negro - Grupo Reluz. Fonte: Arquivo Rogênio Martins

Page 17: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

17

do estado, através do intercâmbio e da vinda de atividades de formação para os atores locais,

como também por sua inserção no circuito das mostras de teatro amador no Ceará.

Nesse sentido, a realização da X Mostra de Teatro de Amador em Sobral no ano de

1987, foi primordial para o estabelecimento de uma nova postura diante da produção cênica

local, por partes dos artistas e da sociedade sobralense. A Mostra parece afirmar uma espécie

de reconhecimento, que vindo de fora, gesta uma nova forma de ver a produção teatral local,

inclusive por parte da gestão municipal. É a cena mudando o cenário, produzindo novas

formas de ver e de ser vista, pois como nos lembra Durval Muniz, em um fragmento já citado

no inicio deste texto: “é a cena que realiza o cenário, pois é ela que o pratica”,

(ALBUQUERQUE, 2010:218) de maneira que realizando a cena, os atores (sociais) se inserem

no cenário da cidade, praticando por meio do fazer teatral esse cenário.

Walter Benjamim nos coloca que “o palco não se apresenta sob a forma de “tábuas

que significam o mundo” e sim uma sala de exposição, disposta num ângulo favorável.”

(BENJAMIN, 1994:79) Desta forma, nosso trabalho assim como o palco da concepção

benjaminiana, se insurge enquanto “ângulo favorável” para discutir a configuração histórica e

cultural da cidade de Sobral na década de 1980, a partir da experiência teatral levada a cena e

ao grande teatro da cidade. Buscando através do trato com as fontes, evidenciar uma

possibilidade de compreensão e discussão da historicidade do “existir-fazendo atuando” do

movimento teatral sobralense deste período, que se insurge no enredo da história de Sobral

como o “indício de uma falta”, onde a cena teatral local existe na medida em que se faz, e que

ganha corpo e espaço na proporção em que refaz suas formas e recria a cidade, conquistando

seu lugar e fazendo ver seus gestos e ouvir sua voz, por entre os rígidos estratos da sociedade

sobralense.

BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE, Durval Muniz. O teatro da história: os espaços entre cenas e cenários. In:

ARAUJO, Francisco Sadoc de. O Teatro São João. In: Origem da Cultura Sobralense.

Sobral: Edições UVA, 2005.

Page 18: “EXISTIR-FAZENDO, ATUANDO”: A EXPERIÊNCIA DO FAZER … · 2 pelas quais o país passou, utilizando como base para isso os espetáculos, textos e encenações levados aos palcos

18

BARROSO, Oswald. Ceará uma Cultura mestiça. Disponível em: <

www.oswaldbarroso.com.br/arquivos/ceara400umaculturamestica.pdf>. Acesso em:

23/05/2011.

BENJAMIN, Walter. O que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: Magia e técnica,

arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol.1. 7 ed. São Paulo:

Brasiliense, 1994.

COSTA, Marcelo Farias (org.). Teatro na terra da luz. Fortaleza: Edições UFC, 1985.

____________. Teatro em primeiro plano. Fortaleza: Grupo Balaio, Casa da Memória

Equatorial, 2007.

FARIAS, José Airton de. O Ceará na ditadura militar (1964-1985). In: História da sociedade

cearense. Fortaleza: edições Livro técnico, 2004.

FREITAS, Nilson A., JR., Martha M., HOLANDA, Virgínia, C. C de. Múltiplos olhares

sobre a cidade e o urbano: Sobral e região em foco. Sobral: UECE/UVA, 2010.

GEERTZ, Clifford. A arte como um sistema cultural. In: O saber local. Petrópolis: Vozes,

1998.

PARANHOS, Kátia Rodrigues. Arte e engajamento no Brasil pós-1964: dramaturgos e

grupos de teatro trafegando na contramão. Anais do XX Encontro Regional de História.

ANPUH/SP, 2010.

PATRIOTA, Rosangela. A escrita da história do teatro no Brasil: questões temáticas e

aspectos metodológicos. História, São Paulo, v.24, N.2, P.79-110, 2005.

PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Escrita, linguagem, objetos: leituras de história

cultural. São Paulo: EDUSC, 2004.

_______________. História & História Cultural. 2º ed. – Belo Horizonte: autêntica, 2005.

SOUSA, Dolores Puga A. de. O Brasil do Teatro Engajado: a Trajetória de Vianinha, Paulo

Pontes e Chico Buarque. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Janeiro/ Fevereiro/

Março de 2007 Vol. 4. Ano IV nº 1.

SOUSA, Reginaldo Cerqueira. Arte e política: o teatro como prática de liberdade – Curitiba

(1950-1978). Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.