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Artigo publicado nos Anais do 16. Encontro dos Alunos do PPGAV/EB/UFRJ – Interaçõesnas Artes Visuais, realizado na Escola de Belas Artes da UFRJ e no Museu Naval/RJ, de 23a 27 de novembro de 2009; e apresentado em 27/11/2009.
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ANIMAÇÃO NO CONTEXTO IMAGÉTICO E VIRTUAL
1. A IMAGEM NO TEATRO, NA PINTURA, E NO CINEMA
No teatro a ação da cena é real, o contato com o público é direto – onde essa
receptividade muitas vezes influencia a atuação do ator –, o ambiente é aberto (do tamanho do
palco), a cenografia é material ou muitas vezes não existe – e conta com a memória imagética
do espectador para completá-la. Para se destacar uma ação, no teatro utilizam-se artifícios de
iluminação ou cenografia - não há close-up. Havendo algum erro do ator ou acidente em cena,
não há como evitar que a plateia o veja. A “mentira” contada ao público, no momento da
encenação, é verdadeira e acontece no mesmo plano do observador: o plano da materialidade.
Como Walter Benjamin observa, "na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na
obra de arte é a sua aura"1, isto é, com a reprodução a imagem perde a sua aura. Mas o
espetáculo teatral, sempre único, possui uma “aura”.
A pintura, o “cinema vivo”2 e a animação utilizam um “quadro”, uma área delimitada
onde se representa e se apresenta a cena. Na pintura é a moldura, e nos outros casos é a área de
projeção da imagem. Para Bazin: "A tela não é uma moldura como a do quadro, mas um
esconderijo que só deixa ver uma parte do acontecimento"3, como uma janela. Porém, como a
moldura, também há a concentração da atenção do público, e a ação acontece em um outro
plano fora do alcance material de quem vê. É uma fronteira intransponível: a da realidade e a
“não realidade” apresentada pela “janela” da tela ou da projeção. Essa irrealidade, por
semelhança, propicia a criação de um vínculo com as imagens mentais, lembranças, fantasias do
público, mais facilmente que a realidade da encenação teatral.
O espetáculo teatral não consegue ser uma reprodução convincente da vida porque o
próprio espetáculo faz parte da vida, e de modo muito visível; há intervalos, o ritmo
social, o espaço real do palco, a presença real do ator; o peso disso tudo é demais para
que a ficção desenvolvida pela peça seja percebida como real; a cenografia, por
exemplo, não tem o efeito de criar um universo diegético, não passa de uma
convenção dentro do próprio mundo real4.
A imagem (cinematográfica, cinema vivo ou animação) remete o observador a uma
viagem interna, de acordo com sua memória imagética e vivência emocional - gerando uma
reação, de identificação ou repulsa. Mas não há a interação desta reação do público com a
ação representada e o processo de comunicação se estanca no observador, provocando um
1 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. IN: GRÜNEWALD, José L.
(Sel). A idéia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 64. 2 O termo “cinema vivo” será utilizado para se referir aos filmes live-action (ficção ou documentário). 3 BAZIN apud GRAÇA, Marina E. Entre o olhar e o gesto: elementos para uma poética da imagem animada.
São Paulo: Editora Senac, 2006, p. 70.
Artigo publicado nos Anais do 16. Encontro dos Alunos do PPGAV/EB/UFRJ – Interações
nas Artes Visuais, realizado na Escola de Belas Artes da UFRJ e no Museu Naval/RJ, de 23
a 27 de novembro de 2009; e apresentado em 27/11/2009.
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tipo de agitação mental/emocional que pode ser interpretada como sendo o eks-tasis ou um
despertar, a tomada de consciência de um sonho. Para Edgar Morin, há mecanismos comuns
entre os sonhos e os filmes, e no processo de projeção-identificação - ao invés de se projetar
"no mundo, o sujeito absorve o mundo em si mesmo"5. O isolamento criado pela janela coloca
o observador da obra na posição de voyer – alguém que sente prazer em observar uma ação.
Nas três artes, como no teatro, há a representação do ambiente por meio de artifícios
cenográficos (pinturas, desenhos e/ou móveis, objetos), porém a pintura é uma imagem estática,
porém, também é bidimensional. Mas isso não escraviza essas imagens, ao contrário: a
liberdade da tela branca é maior que a do palco.
A tela de cinema "desaparece" enquanto superfície, [...], para se "apresentar" como
uma janela aberta para além da qual a representação parece afundar-se, sendo
percebida como tridimensional e complexa. Assim, no processo, a fruição fílmica
exige a omissão da tela enquanto suporte fenomênico e plano de representação da
imagem, e, por isso, o espectador é sutilmente conduzido a não considerar o conflito
entre a consciência da bidimensionalidade da imagem e a ilusão que lhe é proposta6.
A pintura pode apresentar a profundidade de campo com o uso de luz e sombra, do
posicionamento dos personagens e objetos e mesmo sendo uma imagem estática, pode insinuar o
movimento com a disposição dos elementos na tela ( como em O Rapto das filhas de Lêucipo, de
Rubens, 1618) ou registrá-lo (como fez Marcel Duchamp em Nu Descendant un Escalier Nº 2,
1912-1916), em um único frame7. Aliás, a pintura – além de ser de representação única (de ter
“aura” como o teatro), é de fato o registro material das ações, do movimento gestual do pintor
sobrepostos num único plano (frame).
A arte plástica, tanta pictural como escultural, é antes de mais gesto do corpo, gesto
do braço. E é em segundo lugar que é reivindicada pelo olho. Antes de ser uma coisa
a "ver", a realidade ou a expressão pictural é, portanto, gesto e movimento do corpo
[...], pelo qual se define o espaço e o tempo, [...]8.
Já a imagem cinematográfica pulveriza a ação do movimento em instantâneos (imagem
sequencial), que o espectador recebe como se fossem uma imagem única. Para Gilles Deleuze9:
Llamemos Imagem al conjunto de lo que aparece. Ni siqueiera se puede decir que
una imagen actúe sobre outra o que reaccione ante otra. No hay móvil que se
distinga del movimiento ejecutado, no hay cosa movida que se distinga del
movimiento recebido. Todas las cosas, es decir, todas las imágenes, se confunden
con sus acciones y reacciones: es la universal variación.
4 METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 23-24. 5 MORIN. E. apud MARIE, Michel. O espectador de cinema, 'o homem imaginário', IN: AUMONT, Jacques. A
estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 2008, 6a. ed., p. 237. 6 GRAÇA, M. E. Entre o olhar e o gesto: elementos para uma poética da imagem animada. São Paulo: Editora
Senac, 2006, p. 32. 7 Frame, palavra inglesa que significa “quadro". Em cinema são usados 24 quadros por segundo para se ter o
movimento. Em vídeo são 30 quadros. 8 SAINT-MARTIN, Fernande apud GRAÇA, M., op. cit., p. 32. 9 Em La imagen-movimento: estudios sobre cine. Barcelona: Ediciones Padiós Ibérica, S.A., 1983, v. 1, p. 90.
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3. A FOTOGRAFIA E AS IMAGENS CINEMATOGRÁFICAS VIVA E ANIMADA
Outro dado é que a arte cinematográfica é uma consequência do advento da imagem
fotográfica. Para Edmond Couchot, a fotografia é a automatização da representação:
Essa automatização, paradoxalmente, em vez de liberar do real a fotografia, como
pôde fazê-lo a perspectiva no quadro mais "realista", jamais conseguiu que se
descolasse dele ("A fotografia adere ao real", dizia Barthes). Marca instantânea do
real, a foto prende-se para sempre ao real através dos fios invisíveis da luz. Da
mesma forma, traço de um instante privilegiado – a pose que reuniu no mesmo
lugar o objeto a ser fotografado, sua imagem e o fotógrafo –, ela adere também ao
tempo, inscreve-se em seu fluxo, em sua cronicidade. A foto reenvia perpetuamente
(e por vezes deliciosamente) ao presente da pose, num ir e vir vertiginoso entre o
presente-presente daquele que a contempla e o presente passado da pose. De
maneira geral, todas as operações da figuração fundadas na ótica geram imagens
que "colam" ao real, imagens das quais cada ponto está ligado ao real pela lógica
projetiva da representação10
.
Tanto no cinema vivo quanto na animação há a necessidade da captação sucessiva do
movimento, para que uma vez projetada a sequência de imagens, seja possível “ver o
movimento”. A fotografia, como disse Roland Barthes, é o registro de “ter sido”11. É o
registro de algo real que aconteceu, não existe mais. Já a imagem no cinema, apesar de usar a
fotografia, é o registro de "ser-aqui vivo"12, devido a sua narrativa, ao seu poder projetivo e a
sua impressão de realidade a cada projeção. Como uma arte da pós-modernidade, não possui a
“aura” presente no teatro e na pintura. Ela é originariamente uma cópia13.
Mas enquanto imagem, a cinematográfica (cinema vivo ou animação) possui outros
recursos de construção que a tornam mais complexa e com uma capacidade de detalhamento
maior que a do teatro. Enquanto no teatro a imagem é vista num único plano, a imagem
cinematográfica dispõe de recursos e ferramental de composição da imagem – os cortes de cena,
os movimentos de câmera, enquadramentos, lentes, grua – que aliados à montagem, resultam
numa narrativa imagética bem diferente da observada no palco. Partindo de uma análise de
Benjamin14, é possível comparar a imagem no teatro (e na pintura figurativa) como a
observação da imagem feita a olho nu; e a do cinema vivo como sendo a observação da imagem
10 COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. IN:
PARENTE, André (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34,
1993, p. 37-48. 11 BARTHES, Roland. Lo Obvio y lo Obtuso: imagines, gestos, voces. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A,
1986, p. 40. Tradução livre. 12 METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 19. 13 No ato de filmar, tem-se um negativo do filme, que é copiado em um outro filme positivo para a exibição; no
processo digital, as imagens são captadas se transformam em dados numéricos que são copiados para o
computador onde são editadas (nesse processo criam-se várias outras cópias digitais antes da cópia de exibição). 14 "Entre o pintor e o filmador encontramos a mesma relação existente entre o mágico e o cirurgião. O primeiro,
pintando, observa uma distância entre a realidade dada e ele próprio; o filmador penetra em profundidade na
própria estrutura do dado". BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. IN:
GRÜNEWALD, José L. (Sel). A idéia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 82.
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através de uma lupa. Há um mergulho no que acontece na cena, com os takes montados
sequencialmente compondo a narrativa. Todos os artifícios de composição da imagem
cinematográfica podem ser considerados códigos da linguagem cinematográfica15 que resultam
numa imagem mais “dentro” da ação que a imagem vista no teatro.
Mas comparando a animação em relação ao cinema vivo, temos um “mergulho” na
ação ainda mais profundo: além de utilizar todos os artifícios técnicos da linguagem
cinematográfica, há também o processo de construção do personagem e suas representações,
do ambiente e do próprio movimento - o que não existe no cinema vivo. Apesar deste também
utilizar storyboard16, vale observar que não há a construção material de um personagem (que
se dá sempre sobre a materialidade física do ator - é a proximidade com o teatro), nem a
construção dos movimentos como é necessário ser feito em animação. Estes são literalmente
construídos “quadro-a-quadro”. As expressões faciais, o piscar de olhos, tudo é construído e
ordenado – no duplo sentido – de forma visual e manual. Se o cinema vivo é uma lente de
aumento sobre a ação, a animação é um microscópio ótico, resultando num ato artístico
completo, fechado17, e visualmente mais pregnante.
[...] Os novos animadores assumem responsabilidade direta por quase todos os aspectos
do processo fílmico: concepção, desenho, filmagem e até mesmo a construção da truca.
Essa reclamação da autoridade criativa contrasta bruscamente com o sistema de linha de
produção impessoal da indústria de desenhos animados dos estúdios e traz a animação
de volta ao seu impulso experimental original conforme corporificado nas obras de
Windsor McCay, Emile Cohl, Hans Richter e Oskar Fischinger18.
Christian Metz, afirma que a principal diferença entre a fotografia e o cinema é o
movimento, e que este é o que lhe dá a forte impressão de realidade, pois além de valorizar a
corporalidade dos objetos, aparece como movimento real, visto que ele próprio aparece19.
Porém, enquanto o domínio da linha está no desenho; o da mancha está na pintura; o da
interpretação dramática está no teatro; a montagem20, sim, está no cinema; mas o ‘movimento’
15 "Conjunto de todos os códigos cinematográficos particulares e gerais." Onde os "códigos cinematográficos gerais
são instâncias sistemáticas [...] são comuns (efetiva ou virtualmente) a todos os filmes", os particulares "agrupam os
traços de significação que aparecem somente em certas classes de filmes", como os gêneros de filmes - western, por
exemplo. Segundo METZ, C. em Linguagem e Cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980, p.73 e 81. 16 Storyboard é a narrativa apresentada através de pequenos desenhos ordenados como numa história em
quadrinhos e é pré-requisito fundamental para uma produção animada, onde há um estudo prévio de
enquadramento, movimento de câmera e cortes. 17 Exemplo disso são as produções da conceituada Escola de Zagreb (Croácia), onde há tradicionalmente a
participação do “criador” da animação em todas as etapas do processo de sua produção. Isso resulta numa
unicidade narrativa, estética e conceitual, impossível quando há a pulverização das etapas entre diferentes
profissionais. 18 GRIFFIN, George (animador independente nova-iorquino) apud GRAÇA, M. E. Entre o olhar e o gesto:
elementos para uma poética da imagem animada. São Paulo: Editora Senac, 2006, p. 18. 19 METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 20-21. 20 Considerando montagem como um conjunto de códigos cinematográficos (enquadramento, movimento de
câmera, cortes), e não somente o ato de montar, como valorizado por Eisenstein.
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está na animação (e na dança). A justificativa é que, é na animação que o movimento se torna
um código como o é a luz, e a angulação da câmera no cinema vivo. É na animação que o
movimento foi conceitualizado21 objetivando a visual “veracidade” do mesmo.
Aristóteles já caracterizava o "movimento próprio" como distinção entre os animais
(que possuem anima) e as coisas estáticas (inanimadas). Então, se um objeto se move, ele
“está vivo”. Essa conclusão é a magia básica da animação. Para Rudolf Arnheim22, “o
movimento é a atração visual mais intensa da atenção”. Linhas mal-traçadas, massinha de
modelar, tudo pode ganhar vida (!) numa animação - mas isso vai além de “mexer” o
personagem. Para se obter a sensação de algo vivo, é necessário que os movimentos desse
personagem sejam reais. O caminhar de um personagem, não é apenas o movimento de
pernas, há o balançar e o sobe-e-desce do corpo, o movimento do cabelo, das roupas, do
olhar desse personagem - é a sua própria anima que a diferencia dos outros. Equivale à boa
interpretação do ator que vai convencer o público da veracidade23 da ação e da emoção da
cena. É o staging na animação, que contribui para a empatia com o público.
Outro diferencial que merece destaque é que em animação tudo é realmente possível
de ser realizado na cena. Tempo, espaço, morte ou gravidade não são limites para a animação,
sendo um campo fértil para a surrealidade.
Do ponto de vista da técnica, o Surrealismo se apropria da desinibição dadaísta, quer
no emprego de procedimentos fotográficos e cinematográficos, quer na produção de
objetos "de funcionamento simbólico", afastados de seus significados habituais,
deslocados (o ferro de passar cheio de pregos, a xícara de chá forrada de pele).
Todavia, também se utilizam as técnicas tradicionais, principalmente entre os artistas
mais interessados no conteúdo onírico das figurações, seja porque, sendo de uso
corrente, prestam-se muito bem à "escrita automática", seja porque a normalidade ou
mesmo a banalidade da imagem isolada ressalta a incongruência ou o absurdo do
conjunto (como quem narra as coisas mais incríveis da maneira mais normal e
aparentemente subjetiva)24.
21 São princípios que devem ser seguidos a fim de se conseguir a fiel representação dos movimentos do personagem:
Achatamento (quando o personagem ou partes de seu corpo é (são) achatado(s) ou alongado(s)); Antecipação
(resultado de uma série de pré-movimentos secundários que resultam no movimento principal); Aceleração e
desaceleração (descrição de todo processo de movimento que se inicia com a inércia à parada do movimento);
Staging (representação do personagem, suas expressões faciais e corporais); Ação Direta ou Quadro a quadro (a
primeira é quando a animação é contínua, desenhada seguidamente.; na segunda, quando o tempo do movimento é
calculado, desenhando-se os quadros-chave e depois a intervalação); Ação sucessiva ou sobreposta (quando há
vários movimentos decorrentes de um principal); Ação Secundária (ações que acontecem paralelamente à ação
principal); Contagem de tempo (12 desenhos para 24, ou 24 para 24 frames); Exagero (nos movimentos é
desejável e necessário para visualizá-lo como verídico e real); Desenho sólido (a representação da perspectiva no
desenho sempre enriquece a imagem); Arcos (todo movimento do corpo que parte de um eixo); Sedução Estética
(criação de empatia com o público). 22 Ver em: Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1986, p. 365. 23 Considerando o termo “veracidade” dentro do foco da encenação, e não no sentido material. 24 ARGAN, G. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 361.
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É clássica a cena do Aprendiz de Feiticeiro (em Fantasia, Disney, 1950) onde Mickey,
um rato, briga com uma vassoura. Muitos chamam essa possibilidade, de representar o irreal, de
“câmera virtual”25. Por esse motivo a animação tem sido cada vez mais utilizada pelo cinema
vivo na criação de ambientes irreais, na criação de monstros, etc – onde X-Men e Harry Porter
são bons exemplos. Outra utilização é na representação de ambientes oníricos – sonhos,
lembranças e fantasias – como no filme O Homem que Copiava26 (de Jorge Furtado, 2003).
4. AS TÉCNICAS DE ANIMAÇÃO E A VIRTUALIDADE
Fechando o universo de observação, a própria variedade das técnicas de animação abre
diferentes caminhos na criação de imagens e, consequentemente, resultados visuais diversos.
Consideraremos a animação com quatro técnicas básicas – desenho sobre papel, 2D (desenho
digital e incluindo a rotoscopia27), 3D (desenho digital usando as três dimensões) e o Stop
motion – que engloba as técnicas com areia, objetos, massinha, recorte, pixilation28, pin
screen29, e pintura sobre vidro pois todas são produzidas pela captação da imagem por uma
câmera, quadro-a-quadro, onde cada imagem é resultado da alteração da imagem anterior que
é materialmente perdida. Essa “perda” da imagem anterior aproxima o Stop motion do cinema
vivo, e em menor grau, do teatro30 – já que neste não há a captação da ação. Uma encenação,
no momento em que acontece, é única, assim como também é único o posicionamento de um
boneco, ou de uma pincelada. Mesmo que seja repetida, nunca será igual ao anterior já que é
outro instante, é outra imagem. Portanto, as técnicas de Stop motion diferem das outras
técnicas de animação que, tendo o desenho como base, sempre terão uma matriz que poderá
ser fotografada/digitalizada (no caso de desenho sobre papel), ou um arquivo da animação que
poderá ser renderizado31 ou editado, modificado se necessário. Ou seja, há o registro material
25 Não confundir com a “câmera” dos programas de animação tridimensionais. 26 A sequência da lembrança da infância do personagem André (Lázaro Ramos). 27 Técnica de animação onde a imagem animada é desenhada a partir de uma imagem filmada previamente que
pode ser utilizada como modelo a ser copiado, ou somente como referência. 28 Animação em que pessoas executam seus movimentos quadro a quadro. 29 Técnica da tela de alfinetes, onde uma tela furada é travessada por inúmeros pinos, que são movidos para criar
mais ou menos sombra, que fazem surgir as imagens e seus movimentos. 30 No caso de Stop motion com bonecos, a aproximação com o teatro é maior devido a própria ligação da
animação de bonecos com a histórica tradição da manipulação de bonecos do “Teatro Negro de Praga”, o que
por esse motivo, resultou na força dessa técnica no Leste Europeu. 31 “Renderizar” é o termo utilizado para o processo da criação de um arquivo digital de animação ou cinema
vivo, que poder ser visto como uma “imagem de filme” pronta e acabada, e pode ser convertido em vários
formatos digitais diferentes. Este arquivo é diferente do arquivo utilizado para se animar ou editar uma
imagem filmada.
7
(ou virtual, no caso dos arquivos digitais) das etapas que foram realizadas, diferente do Stop
motion, onde há apenas o registro fotográfico do “ter-sido” – segundo Barthes32.
Neste ponto faz-se necessário uma análise em relação à imagem animada quanto às
suas diferenças de representação e de natureza, seja ela obtida por meio puramente ótico –
gelatina do filme sendo “queimada” pela incidência da luz –; por meio digital – onde o raio
luminoso é convertido em impulsos elétricos que são codificados em dados numéricos e
armazenados na memória da filmadora/câmera digital (e que na tela ou na projeção são vistos
como pixels) –; e pela criação de ambientes virtuais 3D (como citado anteriormente).
O texto de Edmond Couchot é bem esclarecedor sobre esta problemática:
Se alguma coisa pré-existe ao pixel e à imagem é o programa, isto é, linguagem e
números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais o
mundo real, ela o simula. Ela o reconstrói, fragmento por fragmento, propondo dele
uma visualização numérica que não mantém mais nenhuma relação direta com o
real, nem física, nem energética. [...] A realidade que a imagem numérica dá a ver é
uma outra realidade: uma realidade sintetizada, artificial, sem substrato material
[...], uma realidade cuja única realidade é virtual. Nesse sentido, pode-se dizer que a
imagem-matriz digital não apresenta mais nenhuma aderência ao real: libera-se
dele. Faz entrar a lógica da figuração na era da Simulação. A topologia do Sujeito,
da Imagem e do Objeto fica abalada [...]. Eles se desalinham, se interpenetram, se
hibridizam. A imagem toma-se imagem-objeto, mas também imagem-Iinguagem,
vaivém entre programa e tela [...]. O sujeito não mais afronta o objeto em sua
resistência de realidade, penetra-o em sua transparência virtual, como entra no
próprio interior da imagem. [...] Mesmo o tempo flui diferente; ou antes, não flui
mais de maneira inelutável; sua origem é permanente "reinicializável": não fornece
mais acontecimentos prontos, mas eventualidades. Impõe-se uma outra visão do
mundo. Emerge uma nova ordem visual33.
Observa-se então que, se para a imagem ótica a “aura” já estava perdida, com a
imagem digital perde-se a integridade do instantâneo, uma vez que esta é re-interpretada
digitalmente através das várias etapas do processo de sua criação34. Além disso, com a
qualidade e a capacidade dos programas de animação 3D, de simularem a igualdade visual do
real no virtual, não há mais como diferenciar, somente pelo olhar, uma cena captada de forma
puramente ótica de outra criada virtualmente. Há também uma variedade de filtros e de plug-
ins35 que alteraram o resultado da imagem final, criando materiais e texturas. Assim, é
possível ver uma animação feita em um programa 3D, mas com resultado visual igual a de um
32 BARTHES, R. Lo Obvio y lo Obtuso: imagines, gestos, voces. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A,
1986, p. 40. 33 COUCHOT, E. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. IN: PARENTE,
André (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 37-48. 34 Além de que com a imagem digital “nós passamos de lugar fechado, e de uma imagem fechada em si mesma,
a um universo infinito, uma imagem que pode ser explorada e modificada ao infinito”, comentário do
professor da Paris 8, François Soulages durante a sua palestra “Por uma Nova Estética da Imagem", na UFRJ,
durante o Colóquio sobre “Cooperação universitária e cultural entre o Brasil e a França: a experiência de Paris
8”, um dos eventos do “Ano da França no Brasil/ L´Année de la France au Brésil” (em 17 de maio de 2009). 35 Plug-ins são pequenos programas que trabalham em conjunto com outros programas na criação de efeitos de
imagens que, individualmente, os programas principais não seriam capazes de produzir.
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desenho animado – imagem bidimensional, sem volume, feita a lápis –, ou de uma animação
de bonecos (Stop motion) – quando utiliza “materiais”36 que simulam massinha. Os
movimentos são perfeitos, sem vibração e podem ser acelerados e desacelerados simulando
uma movimentação real. Mas se a vibração for necessária, utilizam-se controladores de
movimento, filtros ou outros plug-ins, que “calcularão” – lembrando que são informações
matemáticas – o movimento com a vibração que se desejar com o total controle por parte do
animador 3D - mas esses controles são numéricos. Ainda, segundo Couchot:
À semelhança da imagem ótica, a imagem digital recorre a modelos
morfogenéticos. Mas os modelos da simulação numérica pertencem a uma outra
ordem [...]. São abstratos e provêm do domínio científico: das chamadas ciências
"duras", como as matemáticas, a física, a química, as ciências da vida, [...]. Procura
recriar inteiramente uma realidade virtual autônoma, em toda sua profundidade
estrutural e funcional. Dessa maneira, criar a imagem (de animação) de um sol se
pondo, num mar agitado por ondas, será recriar numericamente um mundo virtual
aonde os raios vêm se refletir na superfície da água de acordo com as leis próprias
da luz, onde as ondas se deslocarão de acordo com as leis da hidrodinámica. [...]
A exemplo das técnicas figurativas óticas, as técnicas figurativas numéricas são
também interpretações do mundo, [...] segundo os princípios da lógica formal e das
matemáticas. Elas substituem o real "bruto", originário - o real que a imagem ótica
pretende representar - por um real secundário, refinado, purificado no cadinho dos
cálculos e das operações de formalização. [...] Não se trata mais de figurar o que é
visível: trata-se de figurar aquilo que é modelizável37.
Levando-se em consideração que digitalmente tem-se duas técnicas de animação
diferentes, conhecidas como “2D” e “3D”, estas são análogas, respectivamente, ao desenho
animado e ao Stop motion tradicionais. No universo digital, o distanciamento do animador e o
objeto a ser animado é ainda maior no caso da animação 3D que na 2D – na qual o animador
usa uma caneta digital, semelhante ao lápis. Os riscos dos desenhos produzidos por ele são
mais diretos, a gestualidade do desenho é registrada e marca presença na imagem – apesar
desta ser vista na tela do computador (e não mais no papel) e poder ser alterada inúmeras
vezes (mas isso é um processo posterior). Já na animação 3D há a modelagem dos objetos,
semelhante ao trabalho do escultor porém, sem o contato direto das mãos com o material a ser
esculpido – o que é necessário em Stop motion. Não há a resistência ou densidade do material,
pois ele é virtual, não existe, e precisa ser “criado” nesse ambiente. Para a criação do colorido
deste material, de sua textura, é necessária a utilização de outro programa, para se pintar uma
imagem plana – trabalho de um pintor – que será aplicada ao objeto modelado, juntamente
36 No linguajar da animação 3D, o termo “material” é utilizado para se designar um conjunto de características
que são arquivadas pelo programa sob um determinado nome, e que são aplicadas em uma determinada área ou
objeto da animação. Por exemplo: o material denominado vidro – que possui a cor verde, tem transparência, brilho
e reflexão –, é aplicado ao objeto garrafa, dentro da cena tridimensional. 37 COUCHOT, E. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. IN: PARENTE,
André (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 37-48.
9
com outras características materiais – dureza, peso, luminosidade, transparência, etc. Portanto,
não há o contato direto do animador com o objeto a ser animado.
Outro ponto que merece atenção é a observação de Couchot sobre a “simulação” dos
ambientes virtuais, que encontra eco nos estudos de Jean Baudrillard38. Para este,
representação é diferente de simulação – que é diferente de simplesmente “fingir” algo. A
primeira leva em consideração a imagem com valor representativo de algo real, um símbolo.
A segunda parte desse princípio de equivalência, mas nega o valor do símbolo39. Sob este
raciocínio ele lista as quatro situações possíveis para uma imagem: ser esta o reflexo de uma
realidade básica – como numa foto realista –; ser uma máscara e perverter uma realidade
básica – como uma fotografia digitalmente tratada, que “altera” a idade da modelo –; ser uma
máscara da ausência de uma realidade básica – tem haver com magia, já que é algo que não
existe –; e, não carregar qualquer ligação com o real, ser ela própria um puro simulacrum –
não se trata de aparência mas de simulação, é a criação de algo que passa a ter uma
importância própria, como a Disneylândia.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, 1986.
_______. A arte do filme. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1986.
AUMONT, Jacques. A imagem. Lisboa: Ofício, Arte e Forma, 1990.
BARBOSA JÚNIOR, Alberto L. Arte da animação: técnica e estética através da história.
São Paulo: Editora SENAC, 2005.
BARTHES, Roland. Lo Obvio y lo Obtuso: imagines, gestos, voces. Barcelona: Ediciones
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modernidade é um "simulacro": a arte, a economia, a cultura, a política a sociedade. Há a necessidade da
simulação, gerando uma hiper-realidade. 39 Algo que representa algo, ou que está no lugar de algo, significando este.
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