Upload
avimar-junior
View
133
Download
2
Embed Size (px)
DESCRIPTION
curso analise de discurso
Citation preview
Disciplina
Análise do Discurso
Coordenador da Disciplina
Prof. Nelson Barros da Costa
5ª Edição
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados desta edição ao Instituto UFC Virtual. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, dos autores.
Créditos desta disciplina
Coordenação
Coordenador UAB Prof. Mauro Pequeno
Coordenador Adjunto UAB Prof. Henrique Pequeno
Coordenador do Curso Prof. Claudete Lima
Coordenador de Tutoria
Prof.ª Pollyanne Bicalho Ribeiro
Coordenador da Disciplina Prof. Nelson Barros da Costa
Conteúdo
Autor da Disciplina Prof. Nelson Barros da Costa
Setor TecnologiasDigitais - STD
Coordenador do Setor Prof. Henrique Sergio Lima Pequeno
Centro de Produção I - (Material Didático)
Gerente: Nídia Maria Barone
Subgerente: Paulo André Lima / José André Loureiro
Transição Didática Dayse Martins Pereira Elen Cristina Bezerra Elicélia Lima Gomes Enoe Cristina Amorim Fátima Silva Souza Hellen Paula Pereira José Adriano Oliveira Karla Colares Kamille de Oliveira Viviane Sá de Lima
Formatação Camilo Cavalcante Cícero Giovany Elília Rocha Emerson Mendes Oliveira Francisco Ribeiro Givanildo Pereira Sued de Deus Publicação João Ciro Saraiva
Design, Impressão e 3D André Lima Vieira Eduardo Ferreira Gleilson dos Santos Iranilson Pereira Luiz Fernando Soares Marllon Lima Onofre Paiva
Gerentes
Audiovisual: Andrea Pinheiro
Desenvolvimento: Wellington Wagner Sarmento
Suporte: Paulo de Tarso Cavalcante
Sumário Aula 01: Caracterização Inicial da Análise do Discurso ....................................................................... 01 Introdução ............................................................................................................................................... 01 Tópico 01: O que é a Análise do Discurso ............................................................................................. 03 Tópico 02: "Análise do Discurso": O que nos diz o Título da Disciplina.............................................. 08 Tópico 03: Discurso: Uma Palavra, Dois Conceitos .............................................................................. 15 Aula 02: Contexto e Discurso ................................................................................................................... 21 Tópico 01: Contexto: Uma Palavra, Múltiplos Sentidos........................................................................ 21 Tópico 02: Materialidade Linguística E Contexto ................................................................................. 25 Tópico 03: O ethos ................................................................................................................................. 31 Tópico 04: Da Cena de Enunciação ....................................................................................................... 37 Aula 03: Contexto Interdiscursivo........................................................................................................... 44 Tópico 01: Polifonia e dialogismo ......................................................................................................... 44 Tópico 02: Intertextualidade, Interdiscursividade e Metadiscursividade ............................................... 51 Aula 04: Reflexões Discursivas sobre o Ensino do Português ............................................................... 68 Tópico 01: O Ensino da Língua enquanto Prática Discursiva ............................................................... 68 Tópico 02: Uma Visão Discursiva do Ensino da Língua ....................................................................... 75
INTRODUÇÃO
A Análise do Discurso foi fundada nos anos sessenta do século passado,
década que ficou na história por concentrar acontecimentos de grande
relevância para a Humanidade e que levaram a transformações políticas e
comportamentais decisivas no mundo ocidental.
É na década de 60 que se dá o auge da chamada “guerra fria”, tensão
gerada pela disputa de hegemonia entre dois grandes blocos mundiais de
poder. (os países organizados em torno da OTAN e aqueles pertencentes ao
Pacto de Varsóvia) Também nesse período eclode uma série de movimentos
de categorias que se sentiam marginalizadas ou oprimidas na sociedade da
época. Na França, por exemplo, no mês de maio de 1968, ano de fundação da
AD, os estudantes confrontaram a polícia criando barricadas e verdadeiras
trincheiras de guerra nas ruas de Paris.
Todo um status quo cultural e social foi questionado: o excessivo
disciplinamento das crianças em escolas francesas; o lugar inferior da
mulher diante do pai, do marido, dos filhos homens; o preconceito e a
discriminação dos homossexuais, diagnosticados pelos médicos como
doentes, etc. Alguns anos antes, as colônias francesas na África lutavam
contra a dominação encontrando grande apoio e simpatia nesses
movimentos. Esses movimentos se aliaram também aos sindicatos operários
e intelectuais promovendo grandes manifestações e propagando ideias
libertárias em todo o Ocidente que inauguraram novas maneiras de pensar
as liberdades civis democráticas, os direitos das minorias, a igualdade entre
homens e mulheres; brancos e negros; heterossexuais e homossexuais;
velhos, jovens e crianças.
PARADA OBRIGATÓRIA
Sendo assim, nesse momento histórico, a Análise do Discurso nasce
sob o signo da polêmica. A ideia original é que ela pudesse servir como um
instrumento político capaz de desmascarar as estratégias de manipulação
ocultas por trás dos textos.
Acreditando que a linguagem encobria interesses e ideologias
inconfessáveis, a AD é proposta como recurso metodológico capaz de por a
nu tais interesses e ideologias. Com o tempo, ao se distanciar dessa época de
grande acirramento ideológico, a AD supera esse finalismo para se tornar,
sem perder seu caráter crítico, uma reflexão sobre a discursividade e a
linguagem que pode, dependendo da perspectiva, se apoiar em uma
ferramenta metodológica de leitura textual mais ou menos rigorosamente
formulada.
A história de como a disciplina evoluiu de uma posição que tinha essa
meta de modo mais unificado, nos anos 60, para se multiplicar, nos dias de
hoje, em uma série de propostas diferentes, dentre as quais a que
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO
1
apresentamos aqui, está contada em muitos textos, aos quais remetemos o
leitor:
LEITURA COMPLEMENTAR
COSTA, Nelson Barros da. “O primado da prática: uma quarta época
para a Análise do Discurso” In: COSTA, Nelson Barros da (org.).
PRÁTICAS DISCURSIVAS: EXERCÍCIOS ANALÍTICOS. p. 17-48. Campinas:
Pontes, 2005.
MUSSALIN, Fernanda. “A Análise do discurso”. In MUSSALIN, F.;
BENTES, Anna Christina. INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA 2 – DOMÍNIOS
E FRONTEIRAS. p. 101-142. São Paulo: Cortez, 2001.
PÊCHEUX, Michel. “A Análise de Discurso: três épocas (1983)”. In:
GADET, F.; HAK, T. (orgs.). POR UMA ANÁLISE AUTOMÁTICA DO
DISCURSO - UMA INTRODUÇÃO À OBRA DEMICHEL PÊCHEUX. p. : 311-
319. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990.
POSSENTI, S. APRESENTAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO. São
José do Rio Preto: Glota, 1990.
OLHANDO DE PERTO
Partiremos, portanto, de uma perspectiva mais contemporânea da
Análise do Discurso, advertindo o aluno/leitor de que se trata de uma
dentre muitas outras abordagens que podem ser encontradas no atual
quadro acadêmico brasileiro e mundial.
FÓRUM 01
Já encontra-se aberto o Fórum 01, onde você pode discutir com o
tutor os conteúdos gerais da disciplina.
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
2
TÓPICO 01: O QUE É A ANÁLISE DO DISCURSO
MULTIMÍDIA
Ligue o som do seu computador!
OBS.: Alguns recursos de multimídia utilizados em nossas aulas,
como vídeos legendados e animações, requerem a instalação da versão
mais atualizada do programa Adobe Flash Player©. Para baixar a versão
mais recente do programa Adobe Flash Player, clique aqui! [1]
Utilizaremos, para nos aproximarmos de uma definição da Análise do
Discurso, de princípios e procedimentos da própria disciplina:
a. Como qualquer outra disciplina, ela será encarada como um discurso, ou seja, um dizer e uma ação sobre o real. Numa palavra: uma prática. Não se pretende uma verdade sobre a realidade discursiva, mas uma interpretação desta realidade sob óculos peculiares. Por outro lado, esta realidade, tal como a realidade não-discursiva, não é um mundo estável, estanque e imune à própria discursividade produzida pela Análise do Discurso.
b. Partindo do princípio de que o advento de qualquer discurso só existe se posicionando em um campo já habitado, procuraremos indicar em que a disciplina se aproxima e se diferencia de outras conforme suas diversas dimensões.
c. Supondo que os títulos das disciplinas não são nem inteiramente transparentes ao objeto das mesmas nem rótulos inocentes e alheios a seus modos de dizer e fazer, iremos submeter a expressão Análise do Discurso a uma análise discursiva.
• As múltiplas dimensões da Análise do Discurso e sua relação com
disciplinas concorrentes
Podemos dizer que a Análise do Discurso tem múltiplas dimensões. De
um lado trata-se de uma disciplina que se dedica a um modo de leitura de
textos. Nesse sentido, ela se filia a uma linhagem de disciplinas que
historicamente vêm se dedicando a essa prática, como a Hermenêutica, a
Filologia e a Teoria Literária.
Hermenêutica: (do grego “ermēneutikē”), trata-se de disciplina que
tem por fim a interpretação correta e objetiva de textos religiosos ou
filosóficos, especialmente das Sagradas Escrituras. Hermes, deus
grego da comunicação e do entendimento humano, é o patrono da
hermenêutica.
A FILOLOGIA (do grego antigo Φιλολογία, “amor ao estudo, à
instrução”) – disciplina que estuda a língua, a literatura e a cultura de
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO
3
um povo numa perspectiva histórica a partir de documentos escritos.
Por vezes, o termo pode também denominar o estudo científico da
história de uma língua ou família linguística, porém esse estudo é mais
apropriadamente chamado hoje de Linguística Histórica. Assim, os
filólogos propriamente ditos se dedicam ao estudo material e crítico dos
textos. São ramos da filologia a Ecdótica (arte de descobrir e corrigir os
erros de um documento escrito, preparando-lhe uma edição em que se
procura estabelecer o texto perfeito), a Crítica Textual (estudo dos
textos antigos e da sua preservação ou corrupção ao longo do tempo), a
Crítica Genética (investiga a gênese da obra literária através do estudo
dos mecanismos de produção e caminhos seguidos pelo escritor na
preparação dos originais de sua(s) edição(ões)), Paleografia (estuda
textos manuscritos antigos e medievais; estuda também a origem, a
forma e a evolução da escrita) e a Epigrafia (estuda as inscrições
antigas, ou epígrafos, gravados em material sólido visando decifrar,
interpretar e classificar as inscrições.
Teoria Literária: Disciplina que tem como objeto o texto literário,
que vai ser estudado ao nível das suas propriedades, da sua ligação com
outros textos similares, do papel do autor e do gênero. A Teoria
Literária ou Teoria da Literatura trabalha em conjunto com a História
da Literatura tentando integrar os diversos textos numa corrente
literária. Enquanto ciência, deve produzir conceitos, hipóteses
explicativas, métodos e instrumentos de análise que vão lhe permitir
obter um conhecimento profundo sobre uma obra, tendo em conta o
gênero, a corrente e a linguagem literária em que se insere.
Quanto à Hermenêutica, entendida como disciplina preocupada com a
leitura “correta” dos textos ou com o estabelecimento da melhor
interpretação de um texto, a distância se dá pelo fato de AD não pretender a
busca do Sentido, isto é, a revelação do verdadeiro sentido de um texto. Ao
contrário, a Análise do Discurso pretende liberar os múltiplos sentidos de
um texto porque segundo seus princípios, conforme veremos adiante, todo
texto é sempre legível de múltiplas formas. Embora a AD pretenda, sim,
efetuar uma interpretação de textos, interpretação que se pretende rigorosa,
na medida em que amparada em sua materialidade, esta não se pretende o
desvelamento do Sentido do texto. Um ponto crucial, portanto, marca o
distanciamento entre as duas disciplinas: uma vez que não considera o texto
como uma unidade fechada, mas sempre aberta a múltiplas interpretações, a
AD está sempre atenta à possibilidade de que o sentido pode ser sempre
outro.
VERSÃO TEXTUAL
Como qualquer disciplina do campo da cientificidade, a AD deve
rejeitar uma leitura normativa, se recusando a tentar responder
questões como "qual a melhor maneira de se descobrir o que
realmente este texto quis dizer?", "como atingir o real sentido de um
4
texto?", etc. Interessa para a AD o que de fato foi dito, os múltiplos
sentidos liberados, o como foi dito...
Quanto à Filologia, podemos dizer que não se trata para a AD de ler o
texto com o pretexto de estabelecer ou compreender seu contexto cultural.
Isso pressuporia uma visão do contexto de um texto como uma moldura,
numa relação de exterioridade, como se o contexto de um texto fosse uma
realidade constante, muda, indiferente e pré-existente ao texto. Veremos
que, para a AD, todo texto supõe seu contexto. Ele tem sempre marcas desse
contexto e nele interfere diretamente.
VERSÃO TEXTUAL
Embora muitos analistas estabeleçam objetivos diversos para a
análise e, de algum modo, um certo finalismo tenha marcado a própria
origem da disciplina, a AD deve rejeitar a ideia de pretexto, pois esta
supõe uma secundarização da análise em função de fins ou objetos
supostamente mais nobres.
À Teoria Literária a AD deve bastante...
Esta disciplina tem grande influência nas práticas de leitura e
interpretação de textos em ambiente escolar, sendo praticamente, hoje em
dia, no Brasil, a responsável quase isolada pelas práticas analíticas voltadas
para o texto e para o discurso com as quais os usuários leigos da língua têm
contato durante a infância e a adolescência. O estudo dos textos literários
historicamente desenvolveu importantes conceitos hoje apropriados pela
Análise do Discurso, como gênero, intertextualidade e posicionamento. É
clara, no entanto, a diferença entre as duas disciplinas em diversos aspectos.
Em primeiro lugar, a apreensão da AD pretende-se muito mais abrangente,
podendo inclusive tomar o próprio discurso da Teoria Literária e seu objeto
como objetos de análise. No entanto, e este é o segundo lugar, a abordagem
discursiva, mesmo a de textos literários, não será estética. Ou seja, sem
pretender substituir e sem que o aspecto estético seja negligenciado, o texto
literário não será examinado com o objetivo de apreender sua literariedade,
não será julgado em suas qualidades artísticas através de conceitos como
“belo” ou “bom gosto”, mas como uma enunciação (como tantas outras) que
funciona ligada a uma instituição discursiva específica.
Por outro lado, a Análise do Discurso é uma disciplina preocupada com
a formulação de uma teoria geral da linguagem, uma vez que a prática de
leitura que realiza pressupõe um modo de conceber o processo que tornou
possíveis os textos de que se ocupa.
E aí, por esse aspecto, a Análise do Discurso é também uma teoria do
discurso, o que a aproxima das disciplinas científicas voltadas para a
compreensão teórica da linguagem, como a Linguística (Linguística: Setor
das Ciências Humanas cujo objetivo é descrever e explicar cientificamente as
línguas naturais humanas, tanto do ponto de vista dos sistemas subjacentes
(mentais ou sociais) quanto do ponto de vista dos processos históricos que
5
conduzem à mudança desses sistemas. Pode também investigar os processos
de aprendizagem, produção, processamento e transposição material e
variação social da linguagem verbal humana.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Semi%C3%B3tica)) e a Semiótica (Semiótica:
(do grego semeiotiké ou “a arte dos sinais”) - ciência geral dos signos, estuda
os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de
significação. Ocupa-se do estudo do processo de significação ou
representação, na natureza e na cultura, do conceito ou da ideia. Mais
abrangente que a Linguística, a qual se restringe ao estudo dos signos
linguísticos, ou seja, do sistema sígnico da linguagem verbal, esta ciência tem
por objeto qualquer sistema sígnico.(http://pt.wikipedia.org/wiki/Semi%
C3%B3tica)) . Sem entrar na questão do modo como compreendem a
linguagem e o discurso, podemos afirmar que a AD comunga com esses
campos de saber no sentido não abrir mão de princípios universais de
cientificidade tais como a busca da universalidade, a validação prática de
suas descobertas, crenças e criações, a investigação metódica, etc.
Diferentemente dessas disciplinas, porém, na medida em que a AD pretende,
mais do que propor modelos de análise, verificar os condicionamentos sócio-
históricos da produção linguística concreta, ou ainda, investigar os nexos que
condicionam as formas linguísticas, ela esclarece e contribui para a
emancipação crítica do falante-ouvinte. Além do mais, a AD não separa o
produto do processo de produção. Para ela, a exterioridade é constitutiva do
texto, isto é, o falante (escritor), o ouvinte (leitor) e o contexto social e
histórico no qual estão inseridos, bem como as próprias formulações
linguísticas fixadas na memória discursiva, são levados em conta na sua
prática. Dessa forma, ela procura evitar tanto o distanciamento presente nas
ciências, quanto o pragmatismo inerente ao senso comum, procurando
descrever, explicitar e problematizar a discursividade. Diante desta, o
procedimento da AD é, portanto, de reflexão crítica, pois procura
problematizar continuamente as evidências e explicitar seu caráter político-
ideológico (ORLANDI, 1987). Note-se que a AD não se pretende colocar
como uma alternativa para a Linguística e a Semiótica - ciências positivas
que pretendem descrever e explicar a linguagem verbal humana, mas como
proposta crítica que pretende problematizar as formas de reflexão
estabelecidas (ORLANDI, op. cit.).
Um aspecto importante dessa diferença entre a Análise do Discurso e as
outras perspectivas elencadas diz respeito à forma de encarar o objeto
linguagem. A AD olha seu objeto como parte da totalidade social e histórica,
procurando articular aquilo que a olho nu aparece como desarticulado: a
linguagem, a história, a sociedade, os sujeitos. Daí o caráter interdisciplinar
da Análise do Discurso que não hesita em buscar de outras áreas do saber
elementos para tentar compreender a linguagem.
De outra parte, consideramos que a Análise do Discurso se aproxima do
saber filosófico acerca da linguagem. Naturalmente que essa aproximação
tem grande relação com o fato de serem filósofos alguns de seus precursores
como Mikhail Bakhtin, Louis Althusser e Michel Foucault, além de ser
filósofo seu próprio fundador oficial, Michel Pêcheux. Mas seria redutor
creditar unicamente a esse fato, certamente relevante, a “aura” filosófica da
6
Análise do Discurso. Pensamos que isso tem a ver com uma postura
reflexiva, crítica e de não-neutralidade, a nosso ver irredutível, diante de seu
objeto e do mundo. Diante, por exemplo, da descoberta de estratégias de
manipulação do leitor/ouvinte ou de mascaramento de determinados
mecanismos de poder, o analista não pode deixar de se posicionar e de
denunciar. Mas não apenas isso. Além dessa dimensão ética, pensamos que
outra herança do discurso filosófico incorporado pela AD compõe um
aspecto de seu instrumental metodológico baseado na reflexão sobre seu
objeto em oposição a uma linguagem meramente descritiva, que se
pretenderia transparente, reflexo do real. Mais do que desvendar a realidade
discursiva, o discurso da Análise do Discurso pretende problematizá-la. Essa
problematização passa por um uso da linguagem que problematiza ela
própria a linguagem comum das ciências positivas da linguagem. Daí o uso
de metáforas, alegorias, aparentes paradoxos, construções inusitadas, de um
código de linguagem aberto à visita da subjetividade, mas sempre preso ao
rigor e avesso à especulação.
QUADRO COM SÍNTESE
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.adobe.com/products/flashplayer/2. http://www.adobe.com/go/getflashplayer3. http://www.adobe.com/go/getflashplayer
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
7
TÓPICO 02: "ANÁLISE DO DISCURSO": O QUE NOS DIZ O TÍTULO DA DISCIPLINA
Fonte [1]
Michel Pêcheux - (1938-1983): uma
das figuras mais importantes da
Análise do Discurso.
A denominação “Análise do Discurso” dá poucas pistas para uma
compreensão mais precisa dos objetivos da disciplina, diferentemente de
outras e de outros segmentos do campo de saber da Linguística:
OBSERVAÇÃO
Como se pode perceber, mesmo que não se tenha uma visão completa
do que tratam as disciplinas acima, seus títulos dão alguma ideia de seus
assuntos. Sabe-se, a partir do título Psicolinguística, por exemplo, que ela
relaciona de alguma maneira “mente” e “linguagem”. E o que se sabe da
Análise do Discurso a partir de seu título? Pouca coisa!
Diante da palavra “análise”, pode-se perguntar: que tipo de análise?
Linguística? Estética? Crítica? Ideológica? Independente do sentido que se
possa atribuir à palavra “análise”, antecedendo a palavra “discurso”, o leitor
pode supor que exista um objeto passível de análise: o “discurso”, do mesmo
modo que outros objetos, como a sintaxe, a morfologia e a fonologia. Porém,
em nenhuma dessas “análises” o objeto toma a forma substantiva
definitivada (A <strong>definitivação</strong> é a utilização de uma
expressão seguida de artigo definido. Este recurso dá à expressão um caráter
de informação já conhecida.) como em “análise do discurso”. Não são
conhecidas as expressões “análise do sintagma”, “análise do fonema” ou
“análise do morfema” enquanto títulos de disciplinas ou setor de disciplinas.
Noutras palavras, a expressão “análise do discurso” não se enquadra
com sucesso no paradigma abaixo:
“Análise fonológica” = análise da fonologia de uma língua
“Análise morfológica” = análise da morfologia de uma língua
“Análise sintática” = análise da sintaxe de uma língua
“Análise do discurso” = análise do discurso de uma língua” ?
Assim, a expressão “análise do discurso” é obscura no tocante a dizer o
que realmente a disciplina consiste nos limites do que um título pode dizer
do que consiste uma disciplina.
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO
8
Isso se agrava pelo fato de que, diferentemente dos termos “fonologia”,
“morfologia” e “sintaxe”, que são mais técnicos, o termo “discurso” é
saturado nos seguintes sentidos:
A) PELO SENSO COMUM: RETÓRICA, PALAVRAS VAZIAS, FALA EM SITUAÇÃO SOLENE
Estes sentidos NÃO são, naturalmente, os do termo “discurso” que está
no título de nossa disciplina, embora eles devam ser considerados pela
Análise do Discurso, uma vez que fazem parte, como qualquer palavra da
língua, de um campo de produção de sentido, nesse caso, o que se tem
chamado discurso do cotidiano.
B) PELO SENTIDO DICIONARIZADO:HOUAISS: VERBETE DISCURSO
N substantivo masculino
1 mensagem oral, ger. solene e prolongada, que um orador profere
perante uma assistência
Ex.: d. De posse, de despedida, de formatura etc.
2 rubrica: literatura.
Peça de oratória ger. para ser proferida em público, ou escrita como
se fosse para esse fim; sermão, oração
Ex.: Rui Barbosa ficou famoso por seus discursos.
3 série de enunciados significativos que expressam formalmente a
maneira de pensar e de agir e/ou as circunstâncias identificadas com um
certo assunto, meio ou grupo
Ex.:
4 rubrica: literatura. Diacronismo: obsoleto. Texto em que se trata
com profundidade algum assunto; estudo, tratado, dissertação
Ex.: o professor aconselhou a leitura do discurso do método, de
Descartes
5 rubrica: filosofia.
Raciocínio que se realiza por meio de movimento seqüencial que vai
de uma formulação conceitual a outra, segundo um encadeamento lógico
e ordenado
obs.: p. opos. A intuição
6 derivação: por metonímia.
A exposição do raciocínio assim conduzido; pensamento discursivo
7 rubrica: lingüística.
9
A língua em ação, tal como é realizada pelo falante [para muitos
lingüistas, a palavra discurso é sinônimo de fala e figura em igualdade de
sentido na dicotomia língua/discurso.
obs.: cf. fala
8 rubrica: lingüística.
Segmento contínuo de fala maior do que uma sentença
obs.: cf. Análise de discurso
9 rubrica: lingüística.
Enunciado oral ou escrito que supõe, numa situação de comunicação,
um locutor e um interlocutor
10 rubrica: lingüística.
Reprodução que alguém faz das palavras atribuídas a outra pessoa
Obs.: cf. discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre
Como se pode ver, o verbete do dicionário (tomamos HOUAISS (2001),
mas o mesmo vale para qualquer outro dicionário) já reflete a multiplicidade
de sentidos do termo, ao mesmo tempo em que opera uma seleção e uma
fixação, cujos critérios não são explicitados, desses sentidos. Em que medida
poderemos indicar o dicionário como um auxiliar na compreensão da
expressão “análise do discurso” tal como queremos explicitar aqui? Em
nenhuma medida, como esperamos que se torne claro aqui.
Deixando de lado os sentidos do senso comum, da literatura, da filosofia
e da psicanálise, colocados em primeiro plano pelo dicionário em questão,
mas que podemos descartar, consideremos aqueles que foram reservados
pelos 4 últimos verbetes para a Linguística, sendo que em um deles a
expressão “análise do discurso” entra como exemplo de emprego do termo.
Fonte [2]Ilustração do livro “Curso de Linguística Geral”, de Ferdinand de Saussure
O primeiro deles, de número 7, assimila o conceito a fala, opondo-o a
língua, evocando a célebre dicotomia saussureana. Evidentemente, discurso
não se confunde com fala. Se Análise do Discurso equivalesse a análise da
fala, no sentido que Saussure dá a esse termo, aquela não passaria de um
dispositivo técnico de análise da materialidade dos sons. Isso porque, para
Saussure, a fala é o mecanismo psicofísico de execução da língua. Em suma,
conforme a 7ª definição de Houaiss para discurso, a Análise do Discurso
seria o mesmo que análise fonética, o que absolutamente não bate com a
realidade (os próprios foneticistas não se diriam praticando análise do
discurso).
10
Ferdinand de Saussure (1857-1913)
Na oitava definição, temos a consideração do discurso, mais uma vez,
como objeto relacionado à fala. Ele é identificado como “maior do que a
sentença”. Vale ainda dizer que esse sentido do dicionário, que inclusive dá
como exemplo o nome de nossa disciplina, advém certamente do que é
considerada a primeira utilização da expressão “análise do discurso”:
“Discourse analysis” (em português “Análise do discurso” ou “Análise de
discurso”) foi o título de um artigo do linguista norte-americano Zellig
Sabbetai Harris, publicado no número 28 da revista Language, em 1952,
traduzido para o francês e publicado no número 13 da revista francesa
Langage, em 1969, apenas um ano após a fundação oficial da Análise do
Discurso francesa. Visando aplicar a descrição sintática da frase ao texto,
Harris considera discurso o conjunto articulado de sentenças. Assim, para
Harris, do mesmo modo que, na frase, a análise sintática procede verificando
as regras de articulação entre os elementos constituintes (nomes, verbos,
preposições, artigos, etc.), a análise do discurso deveria proceder verificando
as regras de articulação entre as frases em um texto. Desse modo, o discurso
é definido como um conglomerado de frases articuladas e, portanto, como
diz o dicionário, maior do que a sentença. De fato, o discurso como realidade
empírica tem natureza diferente da sentença. Porém não em relação ao
tamanho, mas à sua própria condição de existência. Enquanto que o discurso
é uma realização concreta de uma interação entre sujeitos, a sentença é a
realização de uma estrutura linguística. Nesse sentido, o discurso pode ser
menor (ex.: “bom, eu... ”) ou maior (ex.: um romance), não sendo, portanto,
o tamanho que os diferencia. Voltaremos mais adiante a essa questão. Para
aprofundar essa discussão sugerimos o artigo “Zellig Harris: 50 anos depois”,
de Carlos Alberto Faraco Zellig Harris: 50 anos depois [3], de Carlos Alberto
Faraco.
Passemos à definição de número 10, para depois nos voltarmos para a 9.
O sentido 10 aponta para um uso muito específico da palavra discurso:
“discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre”. A rigor, trata-se
de esquemas de reportação (Ação de trazer em um enunciado fragmento de
um enunciado supostamente de outro. Deriva: “reportar” e “reportado”.) , de
enunciados ou de recortes de enunciados. Ou seja, fórmulas usadas para o
encaixamento de trechos da enunciação alheia. São fartamente conhecidos
não apenas por ser procedimento comum na enunciação, mas também por
serem muito trabalhados na escola. Embora seja um fenômeno
importantíssimo para a AD, como veremos na aula 03, não é esse o sentido
de discurso tomado pela AD, uma vez que será preferível tomar como
discurso o enunciado reportador, não o reportado nem o esquema da
reportação. Ainda mais se considerarmos que o “discurso” no discurso é
sempre modificado de alguma maneira, nunca se conservando tal qual ele
11
aconteceu, diferentemente do que a expressão “discurso direto” sugere. Em
poucas palavras, podemos dizer que o discurso reportado não é de fato um
discurso no sentido privilegiado pela AD.
Por fim, analisemos a definição 9: “enunciado oral ou escrito que supõe,
numa situação de comunicação, um locutor e um interlocutor”. É a que mais
se aproxima de um dos sentidos preferenciais de discurso que a AD se utiliza,
ainda que incompleto. Ela é criticável nos seguintes aspectos:
ASPECTO 1
a) define discurso utilizando a palavra “enunciado”, sem definir a
própria palavra “enunciado”;
ASPECTO 2
b) adota o conceito de “comunicação” de modo acrítico. Veremos que a
AD manifesta reservas a esse conceito;
ASPECTO 3
c) na prática, é redutor falar-se apenas em “um locutor e um
interlocutor”. A interlocução é sempre múltipla e sempre co-enunciativa.
Ou seja, há sempre muitas “vozes”, muitos sujeitos “falando” em qualquer
enunciado, ao mesmo tempo em que, na maioria das vezes, a enunciação
sempre envolve mais de um enunciador, que co-enunciam junto com o
enunciador.
C) PELA LINGUÍSTICA: DISCURSO = TEXTO
Nas últimas décadas, a Linguística tem se dedicado cada vez mais aos
estudos da interação linguística. Trata-se de um grande avanço, porque, no
início da disciplina, a proposta era o estudo das formas, funções e regras do
sistema linguístico. A partir da proposta de Ferdinand de Saussure, os
linguistas europeus e americanos de grande parte do século 20 tomaram
como encargo sobretudo a descrição dos sistemas linguísticos analisando
sua estrutura fonológica, morfológica e sintática, considerando apenas
esses níveis passíveis de sistematização. Os sistemas linguísticos que
possibilitam a comunicação eram estudados independente dos usuários e
do contexto de uso, seguindo a máxima de Saussure que recomendava que
a Linguística deveria ter “como único e verdadeiro objeto a língua em si
mesma e por si mesma”. No entanto, aproximadamente a partir da metade
do século vinte, influenciada por estudos de outras áreas das ciências
humanas e da filosofia, essa proposta estruturalista vai gradativamente se
abrir não apenas para a consideração do uso linguístico, mas também para
a análise de unidades que não se restringem ao campo da sintaxe. Começa
um interesse maior pela semântica (A <strong>semântica</strong> (do
grego σημαντικός, derivado de sema, sinal) refere-se ao estudo do
significado, em todos os sentidos do termo. A semântica opõe-se com
frequência à sintaxe, caso em que a primeira se ocupa do que algo significa,
enquanto a segunda se debruça sobre as estruturas ou padrões formais do
modo como esse algo é expresso.) , pela pragmática
(<strong>Pragmática:</strong> Ramo da Linguística que se interessa
pelas relações entre os signos e os usuários considerando a influência sobre
12
aqueles do contexto situacional, da cultura dos falantes e das regras
sociais.) , pela conversação, pela enunciação e pelo texto.
Fonte [4]
A Análise do Discurso, campo desde o início já interdisciplinar, que se
desenvolve independentemente da Linguística, vai tanto receber influências
como influenciar tais estudos. Não discutiremos no curto espaço desse curso
essa influência mútua. Queremos apenas chamar atenção para o uso que
muitos dos ramos pós-estruturalistas da Linguística têm feito da expressão
“discurso” e de como esse uso se distancia do principal sentido de discurso
trabalhado pela AD. Tanto a chamada Teoria da Enunciação (Teoria da
Enunciação: Perspectiva, atribuída a Émile Benveniste, voltada para a
análise dos mecanismos formais que possibilitam o uso da língua pelos
sujeitos.) , quanto a Pragmática (Pragmática: Ramo da Linguística que se
interessa pelas relações entre os signos e os usuários considerando a
influência sobre aqueles do contexto situacional, da cultura dos falantes e
das regras sociais.) , bem como a Análise da Conversação (Análise da
Conversação: Ramo da Linguística que pretende descrever e analisar como
as regras da fala são estrutural e socialmente (co)construídas no decorrer da
interação face-à-face.) , foram muito influenciadas por uma concepção de
discurso explicitada por Émile Benveniste , quando ele opõe enunciados
ancorados na situação de enunciação (“discurso”) e enunciados recortados
de sua situação de enunciação (“história” ou “narrativa”). Nos primeiros,
próprios das situações de conversação, há a clara manifestação dos
elementos de subjetividade seja dos agentes da enunciação (como “eu”,
“mim”, “comigo” - e derivados: “tu”, “te”, “contigo” -, formas verbais
correlativas, etc.), seja dos elementos temporais e espaciais que tomam por
referência esses agentes partir da enunciação do “eu” (“agora”, “hoje”,
“ontem”, “aqui”, “lá”, “acolá”, etc.). O não-discurso seria, para Benveniste,
formado por aqueles enunciados em que tais marcas estão ausentes, como no
caso dos textos científicos, narrativos, historiográficos, etc.
Embora esses estudos sejam preciosos para a AD, eles não contemplam
o seu objeto em sua integridade, pois não dão conta nem da discursividade
como um todo, que não se resume às trocas verbais situacionais, nem dão
conta do sentido mais amplo do discurso, isto é, das ordens ou campos
discursivos que são o contexto em que se dá qualquer tipo de troca verbal.
No caso da Linguística Textual, que, por conta de reformulações
recentes, tem sido chamada também de “Linguística de Texto”, a
problemática do uso do conceito de discurso se dá de modo diferente. É
interessante notar o caminho inverso que essa disciplina seguiu em relação
ao daquelas elencadas acima. Isso porque ela parte da noção de texto (termo
fortemente habitado pela ideia da escrita) para tentar extrapolá-la para os
13
enunciados não-escritos. No entanto, há uma forte tendência entre os
adeptos dessa disciplina em assimilarem a noção de texto a discurso, o que
se dá em detrimento do sentido de discurso como instância mais ampla de
produção simbólica, dentro da qual os textos adquirem sentido. A
denominação “gênero textual” substituindo a de “gênero do discurso”, tal
como propusera Bakhtin, é um exemplo dessa elisão da dimensão do
discurso, inaceitável para a AD.
Logo:
O fato de estarem combinadas as palavras “análise” e “discurso”, pela locução gramatical “do”, não implica que o sentido de “análise do discurso” seja igual à soma sintático-semântica de tais termos (“análise do discurso é uma disciplina que tem por objetivo analisar o objeto discurso”);
O sentido dos termos da expressão “análise do discurso” não pode ser compreendido sem a verificação do que na prática é a análise do discurso;
Assim, “análise”, “do” e “discurso”, têm seus sentidos “reciclados” pelo novo contexto pragmático que o simples uso combinado desses termos adquire em determinado momento histórico;
Em síntese, os conceitos expressos pelos termos em questão não são dados previamente, mas construídos por uma prática científica situada histórico e socialmente.
É preciso que se diga, aliás, antes de começar qualquer discussão, que a
análise do discurso é dilacerada por uma grande variedade de perspectivas.
Algumas vão até divergir quanto ao título da própria disciplina. Umas vão
preferir análise DO discurso, outras análise DE discurso, outras análise DE
discursoS e outras ainda análise CRÍTICA DO discurso ou análise DO discurso
CRÍTICA. O fato de termos analisado apenas a primeira denominação já
indica nossa opção por uma dessas perspectivas. Mas mesmo aqueles que
concordam com essa denominação se dividem em variadas linhas conforme
alguns critérios. Devido à exiguidade de tempo, não exploraremos essa
questão, limitando-nos a explicitar nossa concepção.
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.ple.uem.br/geduem/img/pecheux.jpg2. http://www.infoamerica.org/teoria_imagenes/saussure_a.gif3. http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/viewFile/2889/23714. http://www.arbredor.com/vmchk/cours-de-linguistique-generale
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
14
TÓPICO 03: DISCURSO: UMA PALAVRA, DOIS CONCEITOS
Agora vejamos o que é o discurso a partir da ótica da Análise do
Discurso ou, pelo menos, do que seria a ótica da Análise do Discurso sob a
nossa ótica. No discurso científico tradicional, é normal a preocupação com a
univocidade dos termos técnicos. No entanto, em AD, podemos identificar
pelo menos dois importantes conceitos de discurso. O primeiro está
relacionado à noção de acontecimento e enunciado. Vejamos:
ACONTECIMENTO
Trata-se de um evento de interação simbólica.
ENUNCIADO
Algo dito (não necessariamente através da oralidade) por um sujeito
concreto em um momento histórico concreto, em oposição ao conceito
abstrato de frase.
Conforme Maingueneau (2001), mais do que um objeto diferenciado,
trata-se do resultado de um modo novo de conceber a linguagem. Por essa
perspectiva, o discurso nunca se repete, porque são sempre diferentes as
condições de sua produção. Assim, tomemos os enunciados “eu só quero é
ser feliz” abaixo:
Fonte [1]
Eu só quero é ser feliz,
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.
(...)
ANÁLISE DO DISCURSO
AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO
15
(“Rap da Felicidade”, Julinho Rasta/Kátia - veja o clip:
http://www.youtube.com/watch?v=MXU4Ph9zZWQ [2]
Veja o leitor que, do ponto de vista gramatical, trata-se da mesma frase,
pois em ambos os casos a estrutura é exatamente a mesma. No entanto, do
ponto de vista discursivo, trata-se de dois enunciados ou discursos
diferentes. O primeiro se encontra em um blog, encabeçando um texto que
enquadra uma foto. A sua veiculação se deu através da Internet, de modo
escrito. O ambiente em que ele está é colorido e as letras da expressão têm
cor diferente do restante do texto. Ao passo que o outro, embora esteja
apresentado por escrito aqui, tem veiculação oral, na forma melódica de uma
canção, e encabeça uma estrofe que se repete várias vezes no que se costuma
chamar de “refrão”.
DÚVIDA
O aluno poderia questionar: os exemplos em questão não são
adequados, pois não são enunciados autônomos, sendo na verdade parte
de enunciados maiores. Porém, pode-se retrucar: existem realmente
enunciados autônomos? É possível encontrar expressões que não sejam
partes de um contexto, partes de enunciados maiores?
Se alguém pronunciasse essa expressão (“Eu só quero é ser feliz”) para
um interlocutor certamente seria no contexto de uma conversa (um
enunciado maior); dificilmente ele a diria isolada e, mesmo se dissesse, esse
dizer seria em resposta a algo que ele ouviu, a alguém, por exemplo, que,
anteriormente tivesse censurado suas atitudes egocêntricas. Mas mesmo se
pensarmos em enunciados supostamente autônomos, aos quais
reconhecêssemos uma autoria, como uma poesia, por exemplo, devemos nos
perguntar se esse tipo de texto não está sempre inserido em um contexto
enunciativo mais amplo (livro de poemas, livro didático, recital, etc.).
OBSERVAÇÃO
Desse modo, já temos uma boa característica do discurso: sua
indissociabilidade do contexto. Qualquer enunciado é inseparável do
contexto graças ao qual ele existe. Daí que, como todo contexto é único e
irrepetível, os discursos nunca se repetem. O discurso é, portanto, um
acontecimento e, enquanto tal, é sempre único e sempre histórico, no
sentido de que é sempre marcado pelo contexto histórico.
Nesse sentido, que temos chamado de específico, “discurso” é o
mesmo que “enunciado” . O termo “texto” também pode ser usado com o
mesmo sentido. Porém a palavra “texto” tende a ser empregada mais
quando se trata de enunciados acabados, fixados e mais suscetíveis de
circulação e armazenamento. Assim, dificilmente se fala em texto quando
se trata de enunciados proferidos em uma conversação. Ao contrário, pode
-se chamar indiferentemente de discurso, enunciado ou texto exemplares
de um poema, de um romance, de uma receita de bolo, de uma notícia de
jornal, etc. Seja como for, tenhamos claro que tais conceitos têm em
comum o fato de serem objetos empíricos da Análise do Discurso. Isto
16
significa que é sobre estes objetos, que têm realidade material, concreta,
que o analista se debruçará.
O fato de nunca se repetirem não impede que os discursos componham
tipos. O caso do enunciado “Eu só quero é ser feliz”, que ocorre no segundo
exemplo, podemos tanto relacioná-lo a outros que têm o mesmo modo de
veiculação (como outras canções populares ou outros raps). Ou seja, os
discursos se enquadram em gêneros, importante categoria tipológica da qual
voltaremos a falar mais adiante. Por outro lado, podemos associar o
enunciado em questão a outros tantos enunciados que tematizam a
felicidade do indivíduo, como o que segue abaixo, também retirado de um
blog:
Fonte [3]
Ou como esse que segue abaixo, na capa de um livro de auto-ajuda:
Fonte [4]
Ou ainda, como o que se vê nos dois panfletos abaixo:
17
Fonte [5]
Apesar da diferença em termos gramaticais, um analista do discurso não
pode ignorar que os enunciados “Eu só quero ser feliz” (do blog e da canção),
“Eu quero ser feliz” (do blog e do livro de auto-ajuda), “Você feliz da vida” e
“A felicidade sempre chega quando menos se espera” (estes últimos, dos
panfletos publicitários) fazem parte do que poderíamos chamar de discurso
sobre (ou da) felicidade individual. Não pode ignorar também que o
acontecimento desses enunciados pressupõe um momento histórico que
propicia não só que eles ocorram da forma como ocorrem, mas também que
eles possam falar na idéia de felicidade individual e mesmo na própria idéia
de indivíduo, algo certamente indizível na Idade Média, uma vez que nesse
estágio da Humanidade conceitos como os de indivíduo, de felicidade
individual, pelo menos tal como concebemos hoje, mereciam quase nenhuma
importância.
OLHANDO DE PERTO
Em suma, o analista deve tanto investigar como determinado
enunciado muda de sentido conforme o contexto apesar de conservar a
estrutura (polissemia), quanto compreender como o sentido pode
permanecer apesar da variação da estrutura em diferentes contextos
(paráfrase).
Porém o que queremos que você perceba é que já estamos trabalhando
com outro sentido de discurso. Quando remetemos diversos discursos (no
sentido específico) a uma instância anônima que, digamos assim, os
“dispersa” em diferentes gêneros e na “boca” de diferentes enunciadores,
estamos propondo que cada um desses discursos é manifestação material de
um DISCURSO, ou do que Michel Foucault chamou de formação discursiva.
Este sentido “ampliado” de discurso não é estranho ao senso comum. Ele
aparece quando falamos em “discurso político” ou “discurso religioso”.
Porém é mais comum pensarmos nesse sentido ligado a um sistema
institucional que produziria um tipo determinado de discurso. É o que se dá
quando falamos de “discurso religioso”, por exemplo. Pressupõe-se, quando
se utiliza essa expressão, que uma dada instituição (a Igreja Católica, a Igreja
18
Evangélica, etc.) gera a partir de um centro uma série indefinida de discursos
que iremos qualificar genérica (discurso religioso) ou especificamente
(discurso católico). No entanto, embora reconheça a existência e o papel
dessas instâncias, a AD pensa o discurso como uma dispersão. Isso significa
que o DISCURSO não se concentra em um lugar ou lugares específicos na
sociedade, produzindo a partir daí seus efeitos sob seu controle. Também
esse sentido de dispersão está em certo uso comum da palavra: quando, na
linguagem cotidiana, falamos em “discurso machista” ou “racista”, por
exemplo, não pensamos em uma instância tal como pensamos quando
falamos em “discurso religioso”. Assim, o “discurso racista” pode estar
presente na novela, na conversação familiar, no parlamento, na escola, em
qualquer lugar. Mas a AD não deve se contentar com essas imagens de
discurso do senso comum (sejam ligadas a uma instância central (político,
pedagógico, etc,), sejam ligadas a um tipo de ideologia abstrata (conservador,
nacionalista, etc.)), mas vai examinar como os discursos se constroem (se
materializam) se atualizando historicamente, interagindo e influenciando-se
reciprocamente, e, sobretudo, mediando as relações inter-humanas e
condicionando a visão que temos do mundo.
Fonte [6]MICHEL FOUCAULT - (1926 — 1984) - FILÓSOFO E PROFESSOR DO COLLÈGE DE FRANCE.
EXERCEU GRANDE INFLUÊNCIA SOBRE A ANÁLISE DO DISCURSO.
RESUMO: DOIS SENTIDOS DA PALAVRA DISCURSO
FÓRUM 02
Em que sentido utilizamos a palavra discurso no cotidiano? Em que
esses sentidos se aproximam e se distanciam do uso em Análise do
Discurso?
FONTES DAS IMAGENS
1. http://srtawill.blogspot.com/2008_08_05_archive.html2. http://www.youtube.com/watch?v=MXU4Ph9zZWQ3. http://www.angelamoura.hpg.ig.com.br/mensagem/eu_quero_ser_feliz.htm
19
4. http://www.marisacajado.com/capa%20eu%20quero%20ser%20feliz%
20livro.jpg
5. http://3.bp.blogspot.com/_2PbB4SG2L-
4/Rpj0CTD3njI/AAAAAAAAAIw/BUXM-lHj_qs/s1600-
h/ODONTOCARD_FELICIDADE_PANFLETO+verso.jpg
6. http://www.skjstudio.com/franck/images/Foucault.jpg
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
20
TÓPICO 01: CONTEXTO: UMA PALAVRA, MÚLTIPLOS SENTIDOS
Se consultarmos o livro Termos-chave da Análise do Discurso
(MAINGUENEAU, 2000), veremos que seu primeiro verbete, que trata
justamente da Análise do Discurso, assim a define:
Disciplina que, em vez de proceder a uma análise linguística do texto em si ou a
análise sociológica ou psicológica de seu 'contexto', visa a articular sua
enunciação sobre um certo lugar social. Ela está, portanto, em relação com os
gêneros de discurso trabalhados nos setores do espaço social (um café, uma
escola, uma loja...) ou nos campos discursivos (político, científico...)
(p. 13, grifos do autor)
Observemos que, conforme a definição, tem-se a preocupação em definir
a AD como uma disciplina que objetiva estudar a relação entre texto e
contexto, este referido pelas expressões “lugar social”, “espaço social” e
“campos discursivos”. Ela não abre mão de ter como objeto a matéria verbal,
uma vez que se debruça primordialmente sobre enunciados ou textos, o que
a situa institucionalmente no campo da Linguística; mas também se recusa
em situar-se apenas no nível puramente linguístico-textual, o que, de certo
modo, a distancia de tal campo.
Os 3 sentidos elencados por Maingueneau são apenas alguns dos
sentidos da palavra “contexto”. Uma aula proferida por um professor, por
exemplo, tem necessariamente múltiplos contextos: este pode ser a sala de
aula enquanto espaço físico (as paredes, o quadro, os móveis, os aparelhos
elétricos, a porta, etc.), a sala de aula enquanto lugar social (o professor, os
alunos, um eventual estagiário ou ouvinte), a instituição (pode tratar-se de
uma escola de 1º ou 2º grau, pública ou privada, de uma universidade
pública ou privada, de um curso de graduação ou pós-graduação), o campo
discursivo (o chamado “discurso pedagógico”), o contexto da nacionalidade
(trata-se de uma instituição brasileira, a língua usada é o português, os
assuntos são pertinentes à sociedade e à cultura brasileira), a conjuntura
sócio-histórica (dá-se em um momento de economia liberal, onde o Brasil é
governado por uma presidente de um partido de esquerda em uma economia
mundial em estágio avançado de globalização); etc.
Pode-se pensar, ainda, num contexto menos óbvio, que é o chamado
contexto ideológico: se pensarmos que uma aula só se dá porque em nossa
sociedade se acredita que existe algo chamado de “conhecimento” ou
“saber” que tem um valor e que precisa ser disseminado por aqueles que o
detêm entre aqueles que não o detêm; se admitirmos que, desde crianças,
em nossa sociedade, somos convencidos a ir pra escola sob a promessa de
que o saber que lá vamos adquirir nos servirá pelo resto da vida e que sem
ele estaremos “perdidos”, incapazes de “sobreviver” na “civilização”, ou
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO
21
que não conseguiremos obter a “cidadania” e seremos como cegos por falta
da “luz” dos números, das letras e dos “conhecimentos gerais”, e que sem
isso não haveria aulas, temos que levar em consideração que este evento
discursivo é tornado possível em um contexto ideológico.
Outra dimensão contextual pouco óbvia, mas nem por isso menos
importante, é a dimensão interdiscursiva. Uma aula é um discurso que se
relaciona com outros discursos. Não apenas porque uma aula dada por um
professor pressupõe uma orientação para um público ouvinte concreto,
que são os alunos; mas também porque é preciso sempre pensar que uma
aula nunca é um evento isolado: a ela se seguiu uma aula e a ela se
seguirão outras. Pode-se pensar na aula como um exemplar de uma
linhagem histórica de eventos discursivos semelhantes que vieram se
transformando no tempo até se aproximar do modelo atual. Por outro
lado, o que se chama aula é uma enunciação derivada de outras, talvez de
um antigo modelo de diálogo familiar, onde um único interlocutor de um
grupo tinha o poder de fala e de distribuição da fala, seja para permiti-la,
seja para exigi-la. Podemos pensar ainda que o que o professor fala em sala
de aula se apoia e adquire legitimidade a partir de um outro discurso, o
discurso científico. É ele que, na nossa sociedade, produz enunciados com
poder de crença suficiente para dar suporte ao discurso pedagógico, que o
comenta e o retextualiza para disseminá-lo na instituição escolar se
nutrindo de seu prestígio e o reforçando.
PARADA OBRIGATÓRIA
Por fim, nessa questão do contexto interdiscursivo, vale à pena
mencionar o fato de que é comum o professor em sua aula trazer a
manifestação de outros discursos. Por exemplo, se se trata de uma aula de
literatura, certamente irão ser convocados textos literários o mais
diversos, bem como textos de críticos literários e de biógrafos.
Merece destaque também, pelo pouco que tem sido levado em conta na
história da própria Análise do Discurso, o que podemos chamar de contexto
posicional ou posicionamento. Conforme Maingueneau,
O posicionamento corresponde à posição que um locutor ocupa em um campo
de discussão, os valores que ele defende (consciente ou inconscientemente) e que
caracterizam reciprocamente sua identidade social e ideológica. Esses valores
podem ser organizados em sistemas de pensamento (doutrinas) ou podem ser
simplesmente organizados em normas de comportamento social que são mais
ou menos conscientemente adotadas pelos sujeitos sociais e que os caracterizam
identitariamente. Pode-se falar, portanto, em posicionamento também para o
discurso político, midiático, escolar... p.392)
Também a teoria literária já há muito tempo trabalha com a ideia de
posicionamento. Mas trata-se de um conceito que pode, assim como os de
gênero e ethos (cf. mais adiante), ser expandido para o conjunto da
discursividade. Embora os posicionamentos sejam mais claramente
22
observáveis em discursos estritamente institucionais como a Literatura, a
Ciência e a Religião, também nos discursos não institucionais como a Mídia e
a Pedagogia eles existem. Para prosseguir no caso anteriormente tratado, o
da sala de aula, perceba-se que há diferentes posicionamentos em relação a
que tipo de aula um professor deve dar. Há aqueles que pensam que uma
aula deve ser não diretiva, com grande liberdade na relação entre os alunos e
entre professor e alunos. Mas há também aqueles que julgam que uma
tradição pedagógica deve ser mantida: o professor deve impor sua “moral”
diante dos alunos, que devem se comportar de acordo com regras rigorosas.
Cada um desses posicionamentos deve implicar até mesmo um ordenamento
dos móveis da sala de aula e a posição física dos alunos de modos
diferenciados.
Fonte [1] Fonte [2]
OLHANDO DE PERTO
Como dar conta dessa dimensão contextual assim tão ampla e
múltipla? É impossível dar conta do discurso em todas essas dimensões de
uma só vez. Por isso, o analista do discurso é forçado a fazer recortes e, ao
mesmo tempo, admitir a existência e indissociabilidade entre o discurso e
todas essas dimensões contextuais. Em princípio, não há razão para
quaisquer uma delas ser privilegiada ou negligenciada. O que vem
acontecendo é que uns focalizam os aspectos mais imediatos e outros os
mais mediatos. Pode ser desconcertante uma perspectiva científica admitir
que, por mais abrangente que será seu trabalho analítico, ela irá
forçosamente deixar na sombra uma boa gama de aspectos. No entanto, é
melhor assim do que se propor ilusoriamente uma totalidade inalcançável
ou pretender que a dimensão explorada dispensa as outras,
negligenciando sua importância e jogando-as para debaixo do tapete da
ciência.
Este curso consistirá em introduzir questões relativas à articulação da
materialidade linguística em relação com algumas dessas dimensões
contextuais, deixando ao leitor a questão de quais recortes fazer. Apesar de
estarem imbricadas, propomos separá-las do seguinte modo:
Contexto físico (ambiente, midium e suporte)
Situação social (papéis sociais dos interlocutores)
Contexto institucional
23
Comunidade discursiva
Formação/ordem discursiva
Posicionamento
Formação ideológica
Contexto histórico
Contexto interdiscursivo
FONTES DAS IMAGENS
1. http://jarbacunha.files.wordpress.com/2008/06/nossa-sala-de-aula.jpg2. http://1.bp.blogspot.com/-nhsYvl5sqXs/Tck6piILSEI/AAAAAAAABd8/R9s3FHhNOKQ/s320/sala-de-aula_.jpg
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
24
TÓPICO 02: MATERIALIDADE LINGUÍSTICA E CONTEXTO
OS GÊNEROS DO DISCURSO
Na interface linguística do discurso, temos que atentar que um
enunciado, se considerado do ponto de vista do acontecimento de que ele
consiste, se materializa de diferentes formas conforme o contexto discursivo.
Um dos aspectos mais importantes dessa materialidade, que foi evidenciado
pelo pensador russo Mikhail Bakhtin, é o dos gêneros do discurso. Dimensão
desde sempre negligenciada em função da priorização histórica de uma ou
outra família de gêneros (Teoria Literária, Retórica ou Gramática Descritiva)
ou da sequer colocação dessa realidade na reflexão sobre a língua
(Gerativismo), ela é ressaltada pelo autor russo, que a resgata do domínio
estrito da arte e do lugar secundário a ele relegado pelas perspectivas
formalistas, para expandi-la ao todo das relações sociais, vinculando-a às
situações interativas das múltiplas esferas da comunicação social (da
discursividade espontânea do cotidiano àquela dos sistemas complexos da
ciência, da arte, da filosofia, etc.).
A retórica é a técnica ou arte de convencer o interlocutor através da
oratória, ou outros meios de comunicação. Classicamente, o discurso no
qual se aplica a retórica é verbal, mas há também — e com muita
relevância — o discurso escrito e o discurso visual. Em verdade, a
oratória é um dos meios pelos quais se manifesta a retórica, mas não o
único. Pois, certamente, pode-se afirmar que há retórica na música
("Para não dizer que não falei da Flores", de Geraldo Vandré: retórica
musical contra a ditadura), na pintura (O quadro "Guernica", de
Picasso: retórica contra o fascismo e a guerra) e, obviamente, na
publicidade. Logo, a retórica, enquanto método de persuasão, pode se
manifestar por todo e qualquer meio de comunicação. A retórica
aristotélica, de certa forma herdeira daquela de Sócrates, procura fazer
o interlocutor convencer-se de que o emissor está correcto, através de
seu próprio raciocínio. Retórica não visa distinguir o que é verdadeiro
ou certo mas sim fazer com que o próprio receptor da mensagem
chegue sozinho à conclusão de que a ideia implícita no discurso
representa o verdadeiro ou o certo. A retórica era parte de uma das "três
artes liberais" ou "trivium" ensinadas nas faculdades da Idade Média
(as outras duas corresponderiam à dialética e gramática).
(adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Ret%C3%B3rica [1]
A GRAMÁTICA DESCRITIVA é uma gramática que se propõe a
descrever as regras de como uma língua é realmente falada, a despeito
do que a gramática normativa prescreve como "correto". É a gramática
que norteia o trabalho dos lingüistas que pretendem descrever a língua
tal como é falada. As gramáticas descritivas estão ligadas a uma
determinada comunidade linguística e reúnem as formas gramaticais
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO
25
aceitas por estas comunidades. Como a língua sofre mudanças, muito
do que é prescrito na gramática normativa já não é mais usado pelos
falantes de uma língua. A gramática descritiva não tem o objetivo de
apontar erros, mas sim identificar todas as formas de expressão
existentes e verificar quando e por quem são produzidas.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gram%C3%A1tica_descritiva [2]
Conforme Bakhtin (1997), os gêneros são tipos de enunciados
relativamente estáveis sempre relacionados a uma esfera de atividade
humana. Quanto mais complexa for uma sociedade, mais diversificada será
essa esfera e, consequentemente, maior a profusão de gêneros em uso, de
modo que o estudo dos gêneros utilizados muito pode nos dizer sobre o
funcionamento de uma sociedade em seus aspectos econômico, cultural e
intelectual. Essa estreita imbricação com as relações sociais dá ao gênero
uma natureza histórica, uma vez que qualquer mudança nessas relações
conduzirá a uma modificação dos gêneros a elas articulados. Daí a relativa
estabilidade dos gêneros que é também, por dedução lógica, uma relativa
instabilidade. Instabilidade que faz também com que os gêneros reflitam de
modo sensível as mínimas mudanças na formação social.
VERSÃO TEXTUAL
Para Bakhtin, os gêneros remetem a conjuntos de enunciados que,
vinculados estreitamente a uma atividade social, têm em comum uma
construção composicional, um estilo e um conteúdo temático. Noutras
palavras, gênero são artefatos a um só tempo formais e conteudísticos,
assumindo sempre uma feição própria capaz de ser projetada e
identificada cognitivamente pelos usuários. Essas características
praticamente tornam possível a comunicação, pois seria
tremendamente oneroso termos de, a cada situação comunicativa,
inventar dispositivos comunicacionais novos.
Vejamos cada um desses componentes, só separáveis para efeito
didático:
Conteúdo
Construção composicional
Estilo
DOS CONTEÚDOS:
Os conteúdos são o objeto dizível através do gênero.
CLIQUE AQUI PARA VER O CASO DA RECEITA
26
Fonte [4]
Dizemos DIZÍVEL porque, em princípio, o gênero não se confunde com o
enunciado concreto, já que se trata de uma classe de enunciados. Sendo
assim, podemos afirmar que o conteúdo de um gênero é um campo de
possibilidades ou de preferências. O gênero receita culinária, por exemplo,
tem como conteúdo preferencial a elaboração de pratos e secundariamente a
preparação de bebidas. Raramente esse conteúdo será diferente. No entanto,
veja o exemplo abaixo, retirado do endereço Receitas de produtos de limpeza
ecológicos [5]:
CLIQUE AQUI
O exemplo mostra que o conteúdo temático de um gênero como
receita pode ter uma certa variabilidade, podendo chegar às raias da
metáfora, como quando usamos ou ouvimos/lemos expressões do tipo:
“receita para segurar marido” ou “receita da felicidade”.
27
Mas essa variabilidade depende do tipo de gênero. Há gêneros
extremamente abertos a uma variedade enorme de conteúdos. Os gêneros
literários, por exemplo, podem, em princípio, tratar de qualquer assunto. No
caso desses gêneros, outras variáveis como o posicionamento do autor,
conceito que comentamos na aula 01, vão determinar que assuntos serão
preferenciais. Por outro lado, há outros que praticamente só admitem um
tipo de conteúdo, como a lista telefônica, o mandato de busca e apreensão, o
boletim meteorológico e a bula de remédio. Esses gêneros são tão ligados a
seus conteúdos que têm sua denominação inseparável dos mesmos.
VERSÃO TEXTUAL
Aliás, essa relação do gênero com o conteúdo põe problemas
importantes para sua caracterização. Por exemplo: as cartas de amor
formam um gênero à parte? Ou a carta íntima é um gênero aberto,
podendo eventualmente tratar de amor? Tomando um dos casos
citados acima: a lista telefônica é um gênero à parte, ou a lista é um
gênero e a lista telefônica é apenas um dos usos desse gênero?
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL
As configurações de determinadas partes de um texto, bem como a
presença de determinadas estruturas sintático-textuais (também chamadas
“sequências discursivas” ou “tipos de discurso”), podem aparecer em muitos
outros. Essa recorrência, conjuntamente com outros aspectos abordados
aqui, contribuem para que consideremos que esses textos são espécies de um
mesmo gênero. A receita de produtos de limpeza ecológicos que vimos acima
será identificada como uma receita (mesmo se não contivesse o nome
“receita”) apesar do conteúdo um tanto discrepante das expectativas que
temos quanto ao conteúdo de uma receita, devido justamente a sua
construção composicional, qual seja, a enumeração de elementos
(ingredientes) dispostos em frases nominais encabeçadas sempre por um
numeral (quantidade). Muitas vezes essas frases são constituídas por uma
medida em forma de metonímia (X colher(es) de Y, X xícara(s) de Y, etc.).
Após essa lista, segue-se um texto, muitas vezes “corrido”, com estruturas
frasais compostas quase sempre por verbos no imperativo ou no infinitivo.
Não há descrições extensas ou argumentações. O texto estabelece uma
sequência de ações bem precisas que se desenrolam temporalmente no mais
das vezes repletas de referências aos elementos listados antes e à suposta
realidade resultante da ação do leitor. O aluno deve ter notado, nesta rápida
descrição dos aspectos composicionais do gênero receita a presença de
expressões como “muitas vezes”, “quase sempre” e “no mais das vezes”. O
uso dessas expressões torna-se forçoso justamente devido à relativa
estabilidade do gênero que, decorrente de seu caráter histórico, lhe
proporciona uma plasticidade que torna inevitável uma descrição
aproximativa.
São estruturas responsáveis pela organização interna do enunciado
seja ele oral ou escrito. A tipologia de sequências discursivas mais
comum é a que as classifica como narrativas, descritivas,
28
argumentativas, injuntivas e conversacionais. Dificilmente aparecem
sozinhas em um enunciado. Assim, um mesmo enunciado geralmente
estrutura-se com base em uma ou mais de uma sequência discursiva.
Entretanto, geralmente, uma delas é predominante.
Metonímia é a substituição de um nome por outro devido haver
entre eles alguma relação de sentido. As relações mais comuns são
causa/efeito (“o álcool foi a sua desgraça”, parte/todo (“um rebanho de
12 cabeças de gado”), continente/conteúdo (“pediu o prato mais caro”),
instrumento/finalidade (“ele é um bom garfo”), etc. No caso das
receitas, por exemplo, quando se fala numa receita culinária em “colher
de sopa” a relação se dá entre o objeto e seu tamanho ou sua
capacidade.
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Sugerimos que você imagine que tem um blog destinado a publicar
receitas de comidas populares pouco conhecidas. Escreva um e-mail a
alguém que não conhece o gênero receita culinária, mas que sabe cozinhar
muito bem uma comida que você provou e gostou muito, explicando como
elaborar uma receita a ser publicada no blog.
DO ESTILO
Do exposto, conclui-se que os gêneros não são moldes previamente
acabados conforme os quais os falantes viriam modelar seus enunciados. Ao
contrário, os gêneros são estreitamente ligados à enunciação concreta e,
enquanto tal, sujeitos a se adaptar ao uso dos falantes. Podemos mesmo
dizer que este é justamente o fator que dá a relativa es(ins)tabilidade ao
gênero. As marcas singulares que os falantes dão ao gênero é o que se chama
ESTILO. Há gêneros extremamente dóceis às singularidades de seus
usuários. É o caso dos gêneros literários. Não seria exagero afirmar que se
trata de gêneros concebidos especialmente para pôr em relevo a
singularidade de seu usuário, o que não significa dizer que estejam
totalmente infensos aos constrangimentos institucionais, sociais, históricos,
etc. Outros gêneros são assaz resistentes à manifestação da individualidade
dos usuários. Os gêneros usados na burocracia (ofícios, requerimentos,
declarações, etc.) e em muitas outras situações de trabalho como nos
hospitais (prontuário, laudo médico, etc.) e no comércio (balancete, nota
fiscal, etc.) são bons exemplos.
CLIQUE AQUI, LEIA A RECEITA E IDENTIFIQUE ELEMENTOS ESTILÍSTICOS
BOLO LUIZ FELIPE DA BELA
3 xícaras de açúcar
1 vidro pequeno de leite de coco e a mesma medida de leite de
vaca
4 ovos inteiros
29
5 colheres de sopa de queijo parmesão (aquele que vc compra de
saquinho mesmo)
5 colheres de sopa de farinha
1 colher de sopa de manteiga
Bata tudo no liquidificador. Unte uma forma de furo no meio
generosamente com manteiga e farinha de trigo. Bote pra assar em
fogo forte e deixe esfriar com a porta do forno entreaberta.
ps: Eu deletei a calda (por motivos preguiçoides & calóricos) e não
senti falta. A não ser que vc seja mais doceira do que eu muuuuito.
Faça um café.
Coma um pedaço.
Agora responda: Não dá uma felicidade imediata?
Fonte do texto: Bela Caleidoscópica [7]
A descrição dos diversos gêneros textuais tem-se constituído em um
ramo à parte dos estudos do discurso e da Linguística Textual. Para a Análise
do Discurso, no entanto, a realidade genérica é apenas uma das dimensões
da materialidade discursiva: uma descrição em si e por si mesma dessa
realidade é insatisfatória. Para a AD, é necessário pensar nas implicações do
que Maingueneau chama de “investimento genérico” e “cena genérica”
pensados no âmbito de uma prática discursiva, conceitos que abordaremos
mais adiante.
FÓRUM 03
O que são os gêneros do discurso? Qual a importância dos gêneros do
discurso na nossa vida cotidiana?
FONTES DAS IMAGENS
1. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ret%C3%B3rica2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Gram%C3%A1tica_descritiva3. http://www.adobe.com/go/getflashplayer4. http://tudogostoso.uol.com.br/receita/1075-coquetel-de-frutas-sem-alcool.html5. http://www.ipemabrasil.org.br/receita.htm6. http://www.adobe.com/go/getflashplayer7. http://belacaleidoscopica.blogspot.com/2006/10/luiz-felipe-o-bolo.html
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
30
TÓPICO 03: O ETHOS
Observe a figura abaixo:
Trata-se evidentemente da figura de um macaco. No entanto, não é
apenas isso. Trata-se da imagem de um macaco professor. Dizemos isso não
apenas porque há um giz em sua mão e por trás dele um quadro verde
escrito. Se esse macaco estivesse sem roupa, curvado, pulando e brincando
com o giz, não o identificaríamos com um professor. O que acontece é que
identificamos nesse macaco uma postura professoral, caracterizada não
apenas por sua roupa, mas pela forma de segurar o giz, de olhar para frente,
de empostar o tronco, de colocar a mão no bolso. Reconhecemos essa
postura pelo fato de termos tido em nossa experiência discursiva contato
direto ou indireto com indivíduos que assumiram essa postura nas instâncias
pedagógicas da nossa sociedade. Toda sociedade constrói um repertório de
posturas como essa que aprendemos formal ou informalmente e que fica
armazenado na memória coletiva. Um habitante de uma sociedade em que
não existe a figura do professor certamente não reconhecerá no macaco a
postura professoral, identificando, no máximo, o aspecto humano de sua
postura devido a suas roupas e o fato de estar de pé.
Trata-se do fenômeno do ETHOS, que desde a antiguidade já começa a
ser estudado. Já então se percebe a estreita ligação com a postura corporal e
a linguagem verbal. O ethos era, para Aristóteles, a imagem que um orador
deveria mostrar juntamente com o conteúdo de suas palavras. Ao dizer
palavras que se pretendam sinceras, não basta ao orador dizer expressões
como “nunca fui tão sincero em toda minha vida” ou “falando sinceramente”,
etc. Ele deve sobretudo se mostrar sincero. Maingueneau (1989), que
atualiza o conceito aristotélico, considera o ethos um importante aspecto da
materialidade linguística. O autor ressalta que, sendo todo texto uma
“enunciação estendida a um co-enunciador”, ele implica uma VOCALIDADE
de base, um TOM de uma voz que atesta o que é dito, o ethos. Assim como na
oratória é necessário não apenas dizer-se, mas também e principalmente
MOSTRAR-SE não só com o tom da voz, mas também com gestos, jeitos de
corpo, modo de vestir, todo enunciado se apresenta necessariamente como
vinculado a uma corporalidade que lhe confere legitimidade. Qualquer texto,
para ser consistente, precisa constituir-se como corpo: um jeito (do texto, do
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO
31
autor, das vozes citadas, dos elementos referidos ou personagens) de habitar
os espaços sociais.
Tal representação, por sua vez, baseia-se no imaginário social de um
lugar e de uma época acerca do corpo. Assim, por exemplo, um texto
religioso está, no mais das vezes, associado um tom profético e de
autoridade, com suas maneiras características de dizer e de gesticular.
Igualmente, as receitas culinárias estão muitas vezes associadas a um ethos
de sabedoria e domínio de uma técnica artesanal, de um saber ancestral
acerca do sabor, do cozimento e da mistura dos alimentos, etc., onde a
certeza da eficácia prevalece e origina um tom de segurança com que as
instruções são transmitidas; e assim por diante.
OLHANDO DE PERTO
É preciso lembrar que o ethos é uma categoria social. Ele não se
confunde com o estilo, pois não diz respeito a uma individualidade, mas ao
que Dominique Maingueneau (2008) denomina de MUNDO ÉTICO. Nesse
sentido ele não se confunde com o estilo, dado que não se refere a uma
imagem singular de um indivíduo, mas se relaciona a uma maneira social
de ser:
... o ethos implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina
tácita do corpo apreendida através de um comportamento. O destinatário a
identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais
avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação
contribui para confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo
dinâmico, a mocinha romântica…(p. 18)
OBSERVAÇÃO
Cabe observar ainda que o fenômeno do ethos suscita, conforme
Maingueneau (1995), a dimensão ANALÓGICA da comunicação, como
aquela dimensão da enunciação em que, ao se dizer algo, imita-se esse
algo no movimento mesmo da enunciação. Ao dizermos algo gentil, o
dizemos gentilmente e os discursos mais elaborados não fazem senão
efetuar um processo semelhante em nível muito mais complexo.
Para entender melhor o ethos é mister comparar dois textos sobre um
mesmo tema e identificar como os autores, através da escrita, tentam
simular de diferentes modos o corpo falante baseando-se em um esquema
ético (gestualidade, tom de voz, postura corporal, etc.):
TEXTO 01: O QUE É A FÉ
FÉ SIGNIFICA ...
Agora observe: a fé é o firme fundamento – a certeza – das coisas que
se esperam (Hb 11:1). Portanto, a fé vem primeiro, antes de possuirmos o
que desejamos.
32
Uma vez que tenha recebido e tomado posse do que deseja, você não
mais tem esperança de recebê-lo. Entretanto, mesmo antes de receber,
você já o tem em essência; e esta essência, que é substância – a certeza de
que você chegará a possuí-lo – chama-se FÉ!
Então, repetindo, fé é a evidência ou a prova – "a prova das coisas que
se não vêem". A fé antecede o recebimento tangível daquilo que se pede. E
fé é a prova – a evidência – de que você o possuirá, antes mesmo que o
veja! É a prova de coisas ainda não vistas. Você não possui, não vê, não
sente – contudo a fé é para você a evidência dele e a prova de que você
receberá o que pediu. E qual é esta prova – esta evidência? Será o
recebimento específico da resposta, quando você vê, ouve ou sente que
recebeu? Não!
O que vemos, o que sentimos, não é uma evidência verdadeira. Possuir
a coisa pedida, vê-la, não é fé. A fé precede a posse, porque FÉ significa
confiança – certeza de que possuiremos o que pedimos.
A mente humana, naturalmente, pode receber conhecimento somente
por meio dos cinco sentidos. Estes são os únicos canais capazes de
transmitir conhecimento à mente humana por processos naturais, a saber:
a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato.
Mas isso não é fé. Fé é um assunto espiritual, e nada tem a ver com os
cinco sentidos, que são físicos.
A oração é assunto espiritual. Deus é espírito! E quando Lhe pedimos,
por exemplo, a cura, temos efetivamente a evidência de que as nossas
orações foram ouvidas e de que Deus as responderá da maneira que haverá
de ser a melhor para nós – mas essa evidência não é algo que se pode ver,
sentir ou ouvir – não é uma evidência física – mas antes um testemunho
espiritual de FÉ. Fé é a nossa evidência.
Certo homem se expressou muito bem neste sentido: "Fé é a certeza
de que as coisas que Deus disse em sua Palavra são verdadeiras: e que
Deus agirá conforme ao que disse em sua Palavra. Esta certeza, esta
dependência da Palavra de Deus, esta confiança, é fé!" E esta é uma
definição bíblica verdadeira. Esta obra de Deus tem sido edificada pela
prática da fé!
http://www.ofundobiblico.org/?page_id=74 [1]
NDOP.: TRECHOS DESTACADOS PELO AUTOR.
TEXTO 02: A FÉ
Fé (do Latim fides, fidelidade e do Grego pistia) é a firme opinião de
que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de
verificação, pela absoluta confiança que depositamos nesta idéia ou fonte
de transmissão. A fé acompanha absoluta abstinência à dúvida pelo
antagonismo inerente à natureza destes fenômenos psicológicos e lógica
conceitual. Ou seja, é impossível duvidar e ter fé ao mesmo tempo. A
expressão se relaciona semanticamente com os verbos crer, acreditar,
confiar e apostar, embora estes três últimos não necessariamente
33
exprimam o sentimento de fé, posto que podem embutir dúvida parcial
como reconhecimento de um possível engano. A relação da fé com os
outros verbos, consiste em nutrir um sentimento de afeição, ou até mesmo
amor, por uma hipótese a qual se acredita, ou confia, ou aposta ser
verdade.[2] Portanto se uma pessoa acredita, confia ou aposta em algo, não
significa necessariamente que ela tenha fé. Diante dessas considerações,
embora não se observe oposição entre crença e racionalidade, como muitos
parecem pensar, deve-se atentar para o fato de que tal oposição é real no
caso da fé, principalmente no que diz respeito às suas implicações no
processo de aquisição de conhecimento, que pode ser resumidas à oposição
direta à dúvida e ao importante papel que essa última desempenha na
aprendizagem. É possível nutrir um sentimento de fé em relação a um
pessoa, um objeto inanimado, uma ideologia, um pensamento filosófico,
um sistema qualquer, um conjunto de regras, um paradigma popular social
e historicamente instituído, uma base de propostas ou dogmas de uma
determinada religião. Tal sentimento não se sustenta em evidências,
provas ou entendimento racional (ainda que este último critério seja
amplamente discutido dentro da epistemologia e possa se refletir em
sofismos ou falácias que o justifiquem de modo ilusório) e, portanto,
alegações baseadas em fé não são reconhecidas pela comunidade científica
como parâmetro legítimo de reconhecimento ou avaliação da verdade de
um postulado. É geralmente associada a experiências pessoais e herança
cultural podendo ser compartilhada com outros através de relatos,
principalmente (mas não exclusivamente) no contexto religioso, e usada
frequentemente como justificativa para a própria crença em que se tem fé,
o que caracteriza raciocínio circular. A fé se manifesta de várias maneiras e
pode estar vinculada a questões emocionais (tais como reconforto em
momentos de aflição desprovidos de sinais de futura melhora,
relacionando-se com esperança) e a motivos considerados moralmente
nobres ou estritamente pessoais e egoístas. Pode estar direcionada a
alguma razão específica (que a justifique) ou mesmo existir sem razão
definida. E, como mencionado anteriormente, também não carece
absolutamente de qualquer tipo de argumento racional.
http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A9 [2]
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Leia em voz alta e expressivamente esses textos. Faz sentido ler os
dois da mesma forma, com o mesmo tom de voz? Descreva as diferenças
que você encontrou. Que elementos da escrita orientaram cada leitura?
O conceito de ethos é utilizado não apenas nos estudos linguísticos, mas
também em vários campos das ciências humanas, como a Antropologia e a
Sociologia, que destacam diferentes aspectos da noção aristotélica. Mas a
questão do ethos, tal como a do gênero, não interessa em si mesma para a
AD. Em primeiro lugar, interessa o ethos discursivo, isto é, aquele que se
materializa na enunciação verbal que naturalmente vem sempre
acompanhada de uma materialidade não-verbal. Há uma tendência muito
forte nos analistas principiantes de buscarem o ethos nas imagens que,
34
sobretudo em um mundo superimagético como o que vivemos hoje, tendem
cada vez mais a acompanhar os textos escritos. Porém, o avanço no resgate
do conceito clássico está justamente em captar o ethos nas linguagens oral e
escrita, não apenas nos discursos de persuasão e convencimento no sentido
estrito, como era o caso dos estudos clássicos, nem apenas nas imagens que
acompanham os textos escritos, tentação à qual incorrem os analistas
iniciantes, mas em toda e qualquer situação discursiva. E não apenas o ethos
discursivo em si mesmo, mas sua articulação com o contexto em suas
diferentes dimensões (ordem discursiva, lugares sociais, o posicionamento
sócio-discursivo, a correlação de forças na interação face-à-face, as relações
interdiscursivas, etc.). No caso da receita, por exemplo, a disposição em lista
dos ingredientes, a especificação das quantidades e unidades de medida, a
presença de verbos no imperativo ou infinitivo, a separação/contraste entre
uma lista e um texto “corrido”, tudo isso é inseparável do ethos inscrito em
tal gênero, que, como vimos, encarna uma espécie de lógica artesanal acerca
da transformação dos alimentos. Para finalizar esta sessão, vejamos o texto
abaixo:
Extraído da Revista NET – Tecnologia Cabo – Fortaleza / CE, março, 2007.
Textos do gênero publicitário como estes são geralmente multimodais,
ou seja, envolvem mais de uma modalidade semiótica (simbólica). Portanto,
ele conjuga uma pluralidade de ethé (plural de ethos). Mas examinemos
apenas o que se traduz pelo texto escrito central intitulado “Promoção Net
Satisfação Automática”. Observe que o texto mostra uma
35
corporalidade/vocalidade muito ligada à imagem dos apresentadores de
videomarketing, sempre dispostos a apresentar de modo dinâmico a
praticidade do produto que estão vendendo. A sucessão de frases que vão
acrescentando benefícios constrói uma enunciação que fala diretamente ao
leitor através do pronome você e dos pontos de exclamação estabelecendo
um apelo que se pretende irresistível como o conteúdo que está sendo
vendido. Também em par com esse produto, que é apresentado como
proporcionador de “satisfação automática”, está a estruturação das frases em
dualidades de causa e consequência mediadas por conectivos sumários de
modo a simular automatismo, senão vejamos:
COM ANET é ASSIM
Você assina e Só tem alegria ~
______________ além
de
Levar até a sua casa a
melhor programação...
Você solicita seu
pagamento em débito
automático
e Ganha 1 ponto
adicional (...) na hora
Solicitou , Ganhou
______________ e Você ainda concorre
a um Cruzeiro...
é só Responder: Por
quê a NET me dá
satisfação automática?
, _______________
Visite o nosso site e Participe!
Esperamos que você tenha compreendido que o ethos é inseparável do
“conteúdo” que se pretende transmitir. Se é a “satisfação automática” que
está sendo vendida, o jeito de vender esse produto se apresenta simulando
eticamente um automatismo que pretende satisfazer o leitor.
FÓRUM 04
A importância do ethos na interação verbal. Os campos discursivos e a
maneira corporal de dizer. O que diferencia o ethos do estilo individual?
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.ofundobiblico.org/?page_id=742. http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A9
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
36
TÓPICO 04: DA CENA DE ENUNCIAÇÃO
Desde muito tempo, os estudiosos da linguagem humana já preconizam
o caráter representacional da linguagem humana. Os antigos gregos
propunham que o objeto da representação linguística era simultaneamente o
mundo (a realidade, o cosmos) e o pensamento. Haveria uma relação
reflexiva (de reflexo) entre esses três elementos (pensamento, linguagem e
mundo), do seguinte modo: os dois primeiros refletiriam o último, que pré-
existiria àqueles. A mente e a linguagem seriam, então, espelhos da natureza.
Nossa tarefa seria apenas extrair as “informações” contidas no mundo
através da cognição e da língua. Essa concepção, denominada de
representacionismo, pretende então que o mundo existe independentemente
de nossa experiência, seja linguística, seja cognitiva.
VERSÃO TEXTUAL
No que tange à linguagem, esta seria uma imagem do mundo em
sua estrutura. A chamada Gramática Tradicional, que herdamos dos
antigos gregos, está eivada dessa concepção. A própria ideia de separar
as categorias gramaticais (“partes do discurso”) em, dentre outras,
substantivos (palavras que nomeiam os seres), adjetivos (palavras que
modificam os substantivos, atribuindo-lhes um estado, qualidade ou
característica) e verbos (palavras que expressam processos, ação,
estado, mudança de estado e fenômenos da natureza), é uma
separação que toma como critério uma relação especular entre língua e
mundo: uma categoria gramatical para cada aspecto da realidade.
Mas será que essa é a principal função da linguagem? A AD faz parte de
uma série de perspectivas do âmbito das ciências humanas e da filosofia que
contesta a concepção representacionista da linguagem. Elas preferem pensar
que a linguagem participa ativamente do mundo que pretende representar. A
linguagem não apenas medeia nossa relação com o mundo, mas também tem
por função agir sobre esse próprio mundo. Podemos não perceber, mas a
cada vez que falamos modificamos o mundo. Se existe representação na
linguagem, o fato é que a representação que a enunciação opera é inseparável
dessa ação sobre o mundo, incluindo nele o sujeito o qual ela pretende
atingir.
OLHANDO DE PERTO
É preciso ficar claro, portanto, que a ideia da linguagem como ação
não invalida aquela segundo a qual a enunciação representa o mundo,
desde que se entenda a representação como estando a serviço da ação
sobre o mundo. Por outro lado, se de algum modo a linguagem representa
o mundo, este não é um mundo estanque, acabado e pré-existente à
própria linguagem. Não é a representação de uma ordem harmônica e
dotada de sentido em si mesma. Trata-se de uma realidade à qual ela dá
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO
37
sentido e da qual ela faz parte e modifica. A linguagem, enfim, representa
uma realidade interferida por ela própria, sofrendo, ao mesmo tempo,
interferência dessa realidade.
Maingueneau traduz essa ideia de representação na de encenação. Em
primeiro lugar, o autor (2001) afirma que a enunciação supõe 3 cenas:
A cena englobante, que confere estatuto pragmático ao discurso, integrando-o em um tipo: publicitário, administrativo, filosófico.
A cena genérica, aquela relacionada ao gênero ou subgênero de discurso no qual a enunciação está investida: o editorial, o sermão, a receita culinária, a consulta médica.
A cenografia, a cena construída pelo próprio texto.
VERSÃO TEXTUAL
Pode-se perceber que as cenas não são senão representações de
alguns dos contextos que vimos anteriormente. Temos, assim, que o
contexto da enunciação se inscreve na própria enunciação através de
sua encenação.
Antes de prosseguir vendo como se dá a encenação complexa que toda
enunciação pressupõe, é preciso lembrar que uma cena enunciativa supõe
sempre funções enunciativas. Veja o aluno que a ideia de cenário e de cena se
utiliza de uma metáfora do sentido que tais palavras têm na dramaturgia.
Pensando nesse sentido, percebemos que uma cena típica do teatro envolve
personagens que dialogam num espaço que nos remete a outro espaço, tudo
isso se desenrolando em uma temporalidade que, igualmente, nos remete a
outra. Essa remissão só faz sentido na nossa cultura, que criou e
institucionalizou uma forma de enunciar, chamada “teatro”, e que nós
chamaremos de “discurso dramático”, que supõe todo um aparato para que
ele possa funcionar e ser legitimado como um tipo especial de enunciação
(que inclusive leve as pessoas a se demorar assistindo e, por vezes,
participar, e pagar para isso). Assim, na cena teatral a que você poderá
assistir através do link Sete Gatinhos (Bibelot e Aurora) [3] percebem-se
várias cenas interligadas. O espaço-tempo dramático (cena genérica), posto
em ação pelos atores (Flavio Barollo e Bibi Cavalcante) e o público, é tornado
possível pelo espaço-tempo imaginado pelo dramaturgo (no caso, Nelson
Rodrigues), diretor (Francisco de Assis) e outros – cena englobante. Tudo
isso se materializa, pelo menos no recorte apresentado, graças à conversação
entre os personagens Bibelot e Aurora (cenografia). A ideia de cena
enunciativa é, como se pode ver, uma extrapolação desse sentido
dramatúrgico. Assim como o gênero saiu de um uso restrito à literatura, a
ideia de cena sai da dramaturgia para ser percebida em qualquer evento
enunciativo seja oral, seja escrito; seja verbal ou não.
Como dissemos acima, qualquer uma das cenas que um evento
comunicativo pressupõe implica papéis enunciativos, ou seja: alguém que
“fala”, que chamaremos de enunciador, alguém a quem é dirigida a
38
enunciação, mas que não é mero receptor, mas um sujeito em função do qual
existe a enunciação, daí ser denominado co-enunciador, e também um
espaço de enunciação, a topografia, e um tempo, a cronografia da
enunciação. Nem sempre é fácil identificar esses elementos, pois muitas
vezes eles são estrategicamente omitidos.
Examinando a questão sob outro ângulo, podemos dizer, com
Maingueneau (2001), que um texto nos interpela em três planos diferentes.
Vejamos como isso acontece em uma canção como a que segue.
CLIQUE AQUI PARA VER A LETRA DA CANÇÃO
Bilhete – (Ivan Lins - Vitor Martins)
Quebrei o teu prato,
Tranquei o meu quarto,
Bebi teu licor.
Arrumei a sala,
Já fiz tua mala,
Pus no corredor.
Eu limpei minha vida,
Te tirei do meu corpo,
Te tirei das entranhas,
Fiz um tipo de aborto
E por fim nosso caso acabou,
Está morto.
Jogue a cópia da chave
Por debaixo da porta
Que é pra não ter motivo
De pensar numa volta.
Fique junto dos teus,
Boa sorte, adeus.
DESAFIO
É importante que você assista ao vídeo em que o cantor e compositor
da canção Ivan Lins a executa:
Bilhete - Ivan Lins / Vitor Martins [4]
Do começo ao fim, a canção nos interpela através das formas dêiticas de
pessoa presentes em toda a canção: um eu se dirige a um tu encenando
transmissão de um comunicado dramático e peremptório de um final de
relacionamento decidido unilateralmente. Nos breves minutos em que a
canção se desenrola, somos convidados a contemplar e “participar” dessa
cena representada em forma de bilhete pondo-nos ora no lugar do co-
enunciador (“tu”), caso apenas a ouçamos, ora no lugar do enunciador, caso
a cantemos também. Trata-se aí da cenografia, estreitamente ligada a um
ethos de mulher (Embora não seja explicitado de que se trata de um eu
39
feminino, expressões como “arrumei a sala”, “te tirei das entranhas”, “fiz um
tipo de aborto” nos induzem a caracterizar o enunciador como uma voz
feminina.) magoada e resoluta. Provisoriamente, envolvidos por essa
cenografia, esquecemos que quem “fala” tudo isso é um homem,
melodicamente, isto é, se utilizando cada vogal em uma frequência e uma
duração específicas formando curvas entonacionais ascendentes ou
descendentes e um padrão rítmico também específicos, de modo que essa
especificidade torna essa “fala” repetível. O que a cenografia nos fez esquecer
foi que ela só foi possível graças a essa outra cena, que é a cena genérica. É
ela que nos interpela na condição de ouvintes ou mesmo de “intérpretes”, se
nos pusermos a cantarolar a canção. Embora a cenografia, enquanto cena
efetivamente textualizada, seja a cena que nos “fisga” e conduz nosso
imaginário a um micro-universo das brigas conjugais que nos leva a pôr de
lado momentaneamente a cena genérica, esta é não meramente o seu
suporte: ela legitima a cenografia e é legitimada por ela.
Designam o conjunto de palavras ou expressões que têm como
função “apontar” para o contexto situacional. Deste modo, essas
palavras ou expressões, ao serem utilizadas num discurso, adquirem
um novo significado, uma vez que o seu referente depende do contexto.
Por outras palavras, a dêixis pode ser definida como o conjunto de
processos lingüísticos que permitem inscrever no enunciado as marcas
da sua enunciação, que é única e irrepetível. Assim, assinalam o sujeito
que enuncia (enunciador), o sujeito a quem se dirige (co-enunciador), o
tempo e o espaço da enunciação. O sujeito da enunciação/enunciador é
o ponto central a partir do qual se estabelecem todas as coordenadas do
contexto: eu é aquele que diz eu no momento em que fala; tu é a pessoa
a quem o eu se dirige; agora é o momento em que o eu fala; aqui é o
lugar em que o eu se encontra; isto é um objeto que se encontra perto
do eu, os tempos verbais indicam um tempo anterior, simultâneo ou
posterior ao momento da enunciação (ex.: escrevi, escrevo, escreverei).
Com efeito, é o sistema de coordenadas referenciais (EU/TU—AQUI—
AGORA) da enunciação que possibilita a atribuição de sentidos
referenciais. (Adaptado de
http://apoioptg.blogspot.com/2007/06/deixis.html)
O alongamento das vogais, o ritmo lento (blues), bem como o tom
sussurrado da voz do cantor, dentre outros elementos que estão presentes
graças ao fato de se darem no contexto do gênero canção, contribuem para
sustentar a cenografia melancólica que, por sua vez, dá sentido ao estilo
desse gênero. Mas tal dispositivo composto por essa imbricação gênero-
cenografia nos interpela em outra cena: a cena pragmática configurada pelo
que temos chamado de prática discursiva literomusical. Nessa cena habitam
os compositores Ivan Lins e Vitor Martins, personas midiáticas de grande
importância na instituição “MPB”.
40
Ivan Lins [5] Vitor Martins [6]
OLHANDO DE PERTO
Curiosamente, no jargão da música popular, utiliza-se a própria
palavra “cena” para designar esse universo. Veja os links abaixo:
Cena Musical Independente [7]
TV Brasil/Cena musical [8]
Ao vermos o vídeo, nos pomos diretamente em contato com essa cena
englobante, pois vemos o compositor em um palco, sentado ao teclado,
cercado de músicos e tocando para um auditório que o aplaude no final.
PARADA OBRIGATÓRIA
ATENÇÃO: a cena englobante não é esse contexto empírico e
situacional em si mesmo, mas o discurso que possibilita esse contexto e
que esse contexto evoca. Trata-se do mundo discursivo da música popular,
que institui autoria, obras, competências; legitima enunciadores
consagrados, modos de enunciação e de recepção; prestigia ou não
gêneros e temáticas, timbres e dicções; funda tradições e elabora uma
memória; valida suas próprias cenas ou se apóia em outras já validadas,
etc, como qualquer discurso institucional.
Aliás, acabamos de tocar em um assunto que merece um pouco mais de
atenção: as cenas validadas. Assim, como os diversos artefatos discursivos
com os quais lidamos cotidianamente se consolidam, se estabelecendo na
memória coletiva, como acontece com os gêneros, o ethos e as próprias
estruturas linguísticas, também as cenas enunciativas podem se “cristalizar”
e servir para facilitar certas estratégias discursivas.
CLIQUE AQUI PARA VER UM TEXTO
AÍ GALERA!
Jogadores de futebol podem ser vítimas de estereotipação. Por
exemplo, você pode imaginar um jogador de futebol dizendo
“estereotipação”? E, no entanto, por que não?
- Aí campeão. Uma palavrinha pra galera.
- Minha saudação aos aficionados do clube e aos demais
esportistas, aqui presentes ou no recesso de seus lares.
- Como é?
41
- Aí, galera!
- Quais são as instruções do técnico?
- Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho de contenção
coordenada, com energia otimizada, na zona de preparação,
aumentam as probabilidades de, recuperado o esférico,
concatenarmos um contragolpe agudo com parcimônia de meios e
extrema objetividade, valendo-nos da desestruturação momentânea do
sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada do fluxo da
ação.
- Ahn?
- É pra dividir no meio e ir pra cima pegá eles sem calça.
- Certo. Você quer dizer mais alguma coisa?
- Posso dirigir uma mensagem de caráter sentimental, algo banal,
talvez mesmo previsível e piegas, a uma pessoa à qual sou ligado por
razões, inclusive, genéticas?
- Pode.
- Uma saudação para a minha progenitora.
- Como é??
- Alô, mamãe!
- Estou vendo que você é um, um...
- Um jogador que confunde o entrevistador, pois não corresponde
à expectativa de que o atleta seja um ser algo primitivo com
dificuldade de expressão e assim sabota a estereotipação?
- Estereoquê?
- Um chato?
- Isso.
(Luis Fernando Veríssimo. Correio Brasiliense, 2004)
O texto acima tem por objeto e ao mesmo tempo satiriza a cena validada
entrevista com jogador de futebol. Como se pode notar, pelo exemplo, as
cenas validadas não necessariamente são cenas marcadas positivamente na
memória coletiva.
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Considerando que se trata de uma crônica humorística, analise o texto
de Veríssimo acima do ponto de vista das cenas envolvidas.
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer
42
2. http://www.adobe.com/go/getflashplayer3. http://www.youtube.com/watch?v=PLyjKhcFPJI4. http://www.youtube.com/watch?v=mCkQMFam_GI5. http://www.jazz.com/assets/2008/5/28/ivan_linsAG330.JPG 6. http://3.bp.blogspot.com/_Zfgcvsyuh8E/SOI61FUOYpI/AAAAAAAACMY/mDzVK3mCjS8/s400/DSC_5232VM.JPG7. http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/CenaMusical/index2.html8. http://tvbrasil.org.br/cenamusical/
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
43
TÓPICO 01: POLIFONIA E DIALOGISMO
Fonte [1]
1ª CONCEPÇÃO:
Formalista: enfatizava a dimensão estrutural da linguagem, as regras
imanentes situadas no plano social. Tratava-se justamente das ideias
defendidas pelos estruturalistas e pelos formalistas russos, que tiveram
Ferdinand de Saussure e Vladimir Propp, respectivamente, como seus
principais mentores.
2ª CONCEPÇÃO:
Subjetivismo idealista: dava ênfase ao aspecto subjetivo da linguagem
e da literatura, concebendo-as uma emanação do gosto pessoal, da criação
individual.
Devemos os conceitos de dialogismo e polifonia a Mikhail Bakhtin. Este
autor, nascido em 17/11/1895, viveu uma parte da sua vida sob o antigo
regime czarista da Rússia pré-revolucionária do fim do século XIX e início do
século XX e a outra parte (a maior) sob o regime socialista ditatorial fundado
por Vladimir Ilich Lênin em 1917 da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS). Estudou História e Filologia na Universidade de São
Petersburgo e empreendeu profundas pesquisas teóricas sobre literatura,
filologia, filosofia alemã e arte. Logo após a Revolução Soviética, que apoiou
participando intensamente da efervescência intelectual que se seguiu a ela,
reuniu em torno de si um grupo de intelectuais de várias áreas do
conhecimento (linguistas, poetas, músicos, filósofos, etc.) que foi depois
intitulado “Círculo de Bakhtin”. Com a implantação do stalinismo no regime
soviético, foi perseguido, chegando a publicar em seu nome, apesar da fértil
produção, apenas dois livros: “Problemas da Poética de Dostoievski” e “A
Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto da obra de
François Rabelais”. Mais tarde descobriu-se que vários membros do seu
grupo, como Volochínov e Medvedev, assinaram textos de sua autoria.
Embora haja uma grande polêmica sobre isso, trata-se de estratégia
plenamente compreensível, tendo em vista a grande repressão sofrida por
Bakhtin, que chegou a ser preso e sofrer exílio interno no Cazaquistão.
Bakhtin morreu aos 80 anos de idade, em Moscou, no ano de 1975.
O DIALOGISMO
As ideias do Círculo se opuseram a duas concepções extremas a cerca da
língua e da literatura.
A perspectiva bakhitiniana contesta os dois extremos, concebendo a
linguagem como um fenômeno de natureza essencialmente interativa. Ou
seja, a essência da linguagem não está nem no sistema que se impõe ao
falante nem na criação individual, mas na interação entre os sujeitos que
estabelece os elementos sistemáticos e assistemáticos da língua. É nisto que
consiste o DIALOGISMO.
ANÁLISE DO DISCURSO
AULA 03: CONTEXTO INTERDISCURSIVO
44
OLHANDO DE PERTO
Para Bakhtin, todo enunciado, toda forma de expressão é
essencialmente dialógica. Mas o que é “dialógico”? Há uma forte tendência
a ligarmos a palavra “dialógico” a diálogo, ou seja, a interação síncrona
(que se dá num mesmo contexto de tempo) oral ou escrita entre duas
pessoas. Mas “dialógico” não se refere apenas a esse tipo de interação.
Para Bakhtin, afirmar a dialogicidade de todo e qualquer enunciado é, de
certo modo, dizer que uma propriedade essencial do diálogo é na verdade
essencial também da enunciação em geral. E essa propriedade é a
presença da alteridade, do outro. E essa alteridade se dá na medida em
que todo enunciado responde a outro já dito e antecipa outro ainda não
dito. Nas palavras de Bakhtin (Volochínov):
Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita é uma resposta a
alguma coisa e é construída como tal. Toda inscrição prolonga aquelas que a
precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da
compreensão, antecipa-as”. (In Bakhtin (Volochínov), 1988, p. 98)
Fonte [2]
Por isso, mesmo em um texto escrito, em que o autor escreve para si
mesmo (um diário íntimo, por exemplo) pressupõe-se a existência de um
outro, ainda que esse outro, seja, no fundo, imaginário, uma projeção. Veja
abaixo o poema “Elevação”, do poeta francês Charles Baudelaire (lê-se,
aportuguesadamente: “bôdelér”)
CLIQUE AQUI PARA LER O POEMA ELEVAÇÃO
Por entre os pantanais, os vales orvalhados,
As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,
Para além do ígneo sol e do éter que há nos ares
Para além dos confins dos tetos estrelados,
Flutuas, meu espírito, ágil peregrino,
E, como um nadador que nas águas afunda,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Como um lascivo e fluido gozo masculino.
Vai mais, vai mais além do lodo repelente,
Vai te purificar onde o ar se faz mais fino,
E bebe, qual licor translúcido e divino,
O puro fogo que enche o espaço transparente.
Depois do tédio e dos desgostos e das penas
Que gravam com seu peso a vida dolorosa,
Feliz daquele a quem uma asa vigorosa
Pode lançar às várzeas claras e serenas;
45
Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz,
De manhã rumo aos céus liberto se distende,
Que paira sobre a vida e sem esforço entende
A linguagem da flor e das coisas sem voz!
(Tradução: Ivan Junqueira)
OBSERVAÇÃO
Observe que o poema acima constitui explicitamente uma alteridade
que é o próprio “espírito” do poeta (tratado por “tu”). No entanto, podem-
se inferir outros “tu” a quem o poeta se dirige e polemiza. O mais evidente
é o próprio leitor, interlocutor onipresente em todo texto escrito. Mas há,
na verdade, uma alteridade difusa por todo o poema. Tomemos apenas seu
final. O poeta exalta seu espírito por compreender “sem esforço” “a
linguagem da flor e das coisas mudas”. Pode-se captar nessas palavras
uma polêmica com uma ideologia materialista ou cientificista (quem sabe
até da própria Linguística, que já dá os primeiros passos no século XIX,
período em que viveu Baudelaire), que atribuiria a capacidade da
linguagem apenas aos seres humanos.
Podemos dizer então que o diálogo é o tipo de interação verbal em que
mais claramente se percebe a dialogicidade, porque o outro está
explicitamente presente, de modo que a enunciação é construída a dois. No
entanto, todas as outras modalidades de interação são co-construídas. Não
haveria, na verdade, enunciação se não houvesse alteridade.
Mas por que alguns tipos de interação são explicitamente dialógicos e
outros parecem não se dirigir a ninguém, como o texto abaixo?
“Um dos principais fatores, que tem conduzido para a corrida
generalizada à globalização, tem sido o fenômeno das privatizações, um
pouco por toda a parte. A privatização das empresas públicas, por um lado,
e a desregulamentação (reduzindo ou desmantelando os monopólios), por
outro, tem contribuído para o aumento da fluidez dos mercados e da
concorrência.
A liberdade de trocas tornou-se num fenômeno de moda e levou à
constituição de zonas de total liberdade econômica, como é o exemplo da
criação do mercado único entre os Estados Unidos e o Canadá, desde 1988,
e do mercado único europeu, desde 1993. É também nesta linha que se
insere a assinatura de acordos de livre-troca entre o Brasil e a Argentina e
a Austrália e a Nova Zelândia.
Neste novo contexto, a ideologia da economia de mercado encontra-se
numa fase de expansão e assiste-se à internacionalização dos mercados e
da concorrência que se acelera, por um lado, sob o efeito cumulativo de
fatores favoráveis e, por outro, do próprio tempo”.
“Causas e Efeitos da Globalização na Economia” in: LIMA, Fábio
Uchoa de. Ambiente Econômico Global.
46
http://www.scribd.com/doc/6939549/AEG1Cad1Globalizacaoimpresso
[3]
A resposta pode estar justamente no discurso. Não no conceito
específico, uma vez que, neste sentido, o próprio enunciado se trata de um
discurso. Referimo-nos ao sentido ampliado. O texto acima emana do
discurso científico e é sabido que esta instância discursiva pretende que seus
enunciados se constituam como um espelho do real, isto é, que reflitam o
mais fielmente possível o mundo natural ou social/humano. Trata-se de um
modelo de enunciação em que o que foi enunciado sobre o mundo, no caso a
economia globalizada, não deve depender de um “eu”, de um tempo ou de
um espaço. O que foi dito É... independentemente de quem disse, de quando
se disse e de onde foi dito. Trata-se, no entanto, de uma estratégia, pois se
sabe muito bem hoje o quanto é relativo o que se diz sobre o mundo, seja de
qual discurso esse dizer provém.
Fonte [4]
A POLIFONIA
Eis outro conceito da teoria bakhtiniana que exerceu grande influência
na Análise do Discurso dos anos 80, a chamada 3a época. Nos escritos do
Círculo de Bakhtin, a polifonia denomina a pluralidade de vozes em
equilíbrio presente na obra de alguns autores, notadamente Dostoiévski,
romancista russo que viveu no século XIX. Diferentemente de outros
autores, que organizam na obra literária todos os pontos de vista nela
expressos sob a ótica do narrador, aquele autor russo distribui os diversos
pontos de vista sobre o tema do romance de forma equipolente entre os
personagens, não colocando o narrador ou o herói como monopolizador ou
detentor do ângulo privilegiado a partir do qual é avaliado o ponto de vista
dos demais personagens. O conceito de polifonia é uma metáfora cunhada da
teoria musical (como foi dito acima, do Círculo, faziam parte músicos). Em
música, polifonia se opõe à organização homofônica das vozes melódicas. É
fácil entender a polifonia na música. Imagine uma banda qualquer, como
Legião Urbana ou Cidade Negra. Normalmente quando executam uma
canção, os vocalistas de tais bandas desenvolvem uma melodia e os demais
instrumentistas ou vocalistas também, cada um a sua. Porém, a melodia do
vocalista (pensemo-lo como um instrumentista como os outros)
normalmente apoiada em uma letra, tem um estatuto principal em relação às
demais melodias, que existem apenas para servir de contexto, de pano de
fundo para essa melodia principal: é o que se chama de acompanhamento ou
base.
OLHANDO DE PERTO
Nesse caso, não se trata de uma relação polifônica a que existe entre
tais melodias, pois há como que uma hierarquia entre tais fios melódicos.
No entanto, quando se põem a solar simultaneamente alguns
instrumentos, como a guitarra e os metais, entre estes se estabelece uma
relação polifônica. Mesmo assim, na música popular, quando isso
acontece, sempre se dá sobre a base de outros instrumentos como o violão
e o teclado. O grau máximo de polifonia, ou a polifonia plena se daria se
cada instrumento melódico (o que exclui a bateria e a percussão,
47
instrumentos não-melódicos) executasse uma melodia diferente ao mesmo
tempo e em consonância com o todo. Isso raramente ocorre na música
popular, mas é comum na música erudita e teve em Johan Sebastian Bach
o seu grande mestre.
MULTIMÍDIA
Ouça a música polifônica de J. S. Bach
(http://www.youtube.com/watch?v=cH_C3Yt3NBI&feature=related [5])
e repare que cada instrumento desenvolve uma melodia diferente que por
vezes se aproxima e se distancia da melodia dos demais compondo um
conjunto harmonioso. Saiba mais sobre a polifonia na música em Polifonia
[6].
Aplicando o conceito musical à linguagem verbal, Bakhtin vai localizar a
polifonia em dois planos: no plano artístico, apontando Dostoiévski como o
grande inventor do romance polifônico, como foi dito acima; no plano
utópico, vislumbrando como um ideal social a ser alcançado o respeito à
liberdade de expressão de pontos de vista, sejam eles quais forem, em total
desierarquização.
Em Análise do Discurso, o uso do conceito de polifonia tende a perder
tanto o foco artístico quanto o caráter utópico para tentar dar conta da
flagrante dispersão da subjetividade enunciativa nos diversos tipos de texto.
Vejamos o caso do “ventriloquismo”: se, por exemplo, sou assessor de um
político que me encarrega de escrever os seus discursos, terei que escrever
em primeira pessoa (eu) sem que necessariamente esse «eu» se reporte a
mim como pessoa física ou cidadão. No entanto, mesmo que eu não me
responsabilize pelo que está ali dito, não há como negar que há a minha voz
naquelas palavras: ainda que apresentem pontos de vista que pretendam ser
do outro, são o ponto de vista do outro sob o meu ponto de vista. Outro
exemplo é o caso do discurso citado. Na frase “ele disse muito bem: o povo
de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém” (letra da canção “Ele
disse”, de Edgar Ferreira), há pelo menos duas vozes: uma responsável pelo
enunciado inteiro e outra pelo enunciado reportado, atribuído a “ele”. Há, aí
também, uma ambivalência de pontos de vista, pois a expressão citada
representa o ponto de vista de quem foi citado e o ponto de vista de quem
cita. O primeiro é marcado pela forma como foi inserido no enunciado do
sujeito citante inclusive em rima com o restante do enunciado. Pode-se ainda
pensar numa outra voz, emanada do discurso da História Oficial, que
recortou o enunciado reportado da Carta Testamento [7], de Getúlio Vargas,
que tem sido citado e recitado em detrimento de outros trechos da mesma
carta com determinados propósitos.
Antes de passarmos adiante, vejamos mais dois exemplos, ambos
mencionados por Oswald Ducrot (DUCROT, 1987), linguista da enunciação
responsável pela primeira utilização “não-bakhtiniana” do conceito de
polifonia:
48
Fonte [8]
“PEDRO NÃO É INTELIGENTE”
Tipo de enunciado denominado por Ducrot (linguista francês, professor
da École des Hautes Études en Sciences Sociales, criador da Teoria da
Argumentação, a luz da qual releu o conceito bakhtiniano de polifonia.) de
“negação polêmica”, ele pressupõe duas vozes em tensão: uma (não
necessariamente realizada por um discurso efetivo) afirma a inteligência de
Pedro, outra a nega.
O outro exemplo é a ironia. Para Ducrot, ela põe em cena duas figuras
enunciativas: uma responsável pelas palavras enunciadas, mas não pelo
ponto de vista que elas expressam. Trata-se da voz do que ele chama de
locutor. Este enuncia palavras que expressam um ponto de vista em total
oposição ao seu e que, portanto, deve ser atribuído à voz de outra figura
discursiva que ele denomina enunciador.
Tomemos o exemplo abaixo, fornecido por Ducrot (op. cit., p. 198):
“Vocês vêm, Pedro não veio me ver”
Para que o enunciado acima seja considerado irônico, é necessário
imaginar o seguinte contexto: Paula, que falou essa frase, havia, no dia
anterior, advertido a seus amigos que Pedro viria vê-la, mas eles se
recusaram em acreditar. No dia seguinte, Pedro veio e Paula pôde,
mostrando-lhes Pedro efetivamente presente, lhes dizer a frase de modo
irônico. Ao produzir essa enunciação irônica, Paula assumiu a
responsabilidade por ela enquanto locutor – é a ela que o me designa –
apresentando-a como a expressão de um ponto de vista absurdo, porém
imputa essa absurdidade ao enunciador, ou seja, seus amigos, na presença
destes e do próprio Pedro, o que dota ironia de bastante agressividade.
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Leia e escute com atenção a canção Mulheres de Atenas [9], de Chico
Buarque. Baseado(a) no texto presente no endereço.
A vida em família na Antiguidade Clássica [10]e no texto A mulher
sábia é submissa. (Visite a aula online para realizar download deste
arquivo.)
Analise a letra procurando realizar o que está sendo solicitado nos
itens abaixo:
a) tente localizar as duas principais vozes apresentadas pelo autor
(pergunte-se: quem fala aqui? De onde provém esse enunciado?);
b) você diria que o autor de “Mulheres de Atenas” concorda com a
autora de “A mulher sábia é submissa”? Justifique à luz do conceito de
polifonia.
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.isfp.co.uk/images/mikhail_bakhtin.jpg
49
2. http://www.fotosimagenes.org/imagenes/baudelaire-6-thumb.jpg3. http://www.scribd.com/doc/6939549/AEG1Cad1Globalizacaoimpresso4. http://4.bp.blogspot.com/-tIjltce_pL8/USuiU9rauAI/AAAAAAAASK8/kjI9r8MDgps/s1600/Vasily+Grigoryevich+Perov%2526%25E3%2582%25AB%25E3%2582%25A4-13.jpg 5. http://www.youtube.com/watch?v=cH_C3Yt3NBI&feature=related6. http://pt.wikipedia.org/wiki/Polifonia7. http://www.culturatura.com.br/dochist/Carta%20Testamento%20-%20Getlio%20Vargas.pdf 8. http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/img/832364_not_fot.jpg9. http://www.youtube.com/watch?v=094GnJWIrCw&feature=related10. http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=405
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
50
TÓPICO 02: INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E METADISCURSIVIDADE
A ideia do interdiscurso propõe, no âmbito da análise da articulação
entre discurso e contexto, a investigação de relações específicas seja entre
textos ou enunciados (relações intertextuais – texto # texto), seja entre
discursos (no sentido ampliado - relações interdiscursivas – texto #
discurso), seja entre o sujeito e seu próprio discurso (no sentido específico -
relações metadiscursivas). Discutamos um pouco cada uma delas.
DA INTERTEXTUALIDADE
VERSÃO TEXTUAL
O problema do intertexto
Uma outra realidade fundamental da relação entre o discurso e
seu contexto interdiscursivo é a chamada intertextualidade.
Curiosamente o termo nasce significando mais ou menos o mesmo que
dialogismo. Porque foi essa a palavra que Julia Kristeva, introdutora
das ideias de Bakhtin no Ocidente com sua obra “Séméiotiké -
Recherches pour une sémanalyse”, utilizou para traduzir o termo
russo. Desse modo, para Kristeva, a intertextualidade é essencialmente
uma permutação de textos. Para ela, o texto é uma combinatória, o
lugar de reciclagem de fragmentos de textos: construir um novo texto é
partir sempre de textos já construídos, que são decompostos, negados,
retomados. A construção de um texto é, portanto, um processo, uma
dinâmica intertextual. Mas a intertextualidade de todo texto não
provém apenas do fato de que este eventualmente contém elementos
emprestados, imitados ou deformados. Qualquer texto, o processo
mesmo de produção textual é um trabalho de resdistribuição,
desconstrução, disseminação de textos anteriores. O texto, então, é um
conjunto inextricável de traços dificilmente recuperáveis, muitas vezes
inconscientes, de enunciados anteriores ou contemporâneos.
Embora tenha pretendido usar o termo “intertextualidade” como
sinônimo de “dialogismo”, podemos constatar que a posição de Kristeva se
distancia do conceito bakhtiniano e parece se colocar mais próxima na
perspectiva do que a analista do discurso francesa Jacqueline Authier-Revuz
denomina de heterogeneidade constitutiva, que nos diz da propriedade
essencial de todo texto ser sempre saturado pela alteridade. Para Authier-
Revuz, tudo que utilizamos em textos que julgamos nossos é sempre “de
segunda mão” pois, sejam as palavras, sejam estruturas, sejam gêneros, etc.,
trata-se de objetos que já foram utilizados por outros, marcados, portanto,
pela voz de outrem. O objeto “intertexto” é, por esse ângulo, um objeto
disperso; resulta inútil sua identificação e classificação, uma vez que, num
texto, ele está em toda parte.
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 03: CONTEXTO INTERDISCURSIVO
51
Uma orientação diferente é a de Gérard Genette, que estabelece sua
concepção de intertextualidade no seu “Palimpsestes” (GENETTE, 1989).
Para esse autor, a intertextualidade é apenas um das formas de relação entre
textos definidoras da instituição literária às quais cada texto singular
pretende adesão. Para Genette, o objeto de uma teoria do texto literário não
seriam os textos em sua singularidade, mas tudo aquilo que situa o texto no
contexto de sua relação explícita ou implícita com outros textos, em uma
palavra, a transtextualidade. Esta, então, incluiria cinco tipos de relações:
ARQUITEXTUALIDADE
a) A ARQUITEXTUALIDADE é a relação que um texto contrai com o
gênero de discurso no qual ele pretende se enquadrar. Assim, fazer um
soneto é desde já contrair uma relação com outros textos do mesmo
gênero;
PARATEXTUALIDADE
b) A PARATEXTUALIDADE é a relação de um texto com o seu
paratexto (prefácio, advertência, ilustrações etc.). Dificilmente um texto,
sobretudo se ele é escrito, aparece isolado. Ele é quase sempre
acompanhado por textos apostos que o contextualizam;
METATEXTUALIDADE
c) A METATEXTUALIDADE é a relação estabelecida quando um texto
comenta outro, sem necessariamente citá-lo ou nomeá-lo. Trata-se da
relação crítica, analítica, interpretativa;
HIPERTEXTUALIDADE
d) A HIPERTEXTUALIDADE é a relação de derivação entre um
determinado texto (hipotexto) e um outro (hipertexto), que é construído a
partir dele. É o caso da paródia e do pastiche;
INTERTEXTUALIDADE
e) A INTERTEXTUALIDADE é a presença mais ou menos explícita de
um texto no interior de um outro. Entram aí a citação, o plágio, a alusão.
Desse modo, Genette coloca a intertextualidade em um quadro bastante
restritivo, dando conta apenas das relações estritamente objetivas de
pertinência entre textos. Pelo seu caráter restrito, trata-se, então, de uma
concepção de natureza oposta à de Julia Kristeva, portanto, merecedora de
ponderação por parte de Nathalie Piégay-Gros (PIÉGAY-GROS, 1996):
Para ser pertinente à análise, com efeito, a noção (de intertextualidade) não
deve ser nem objeto de uma extensão excessiva - todo traço de heterogeneidade
seria uma marca intertextual - nem de uma restrição abusiva - apenas
importariam as formas explícitas, que seria necessário examinar
independentemente de toda referência ao autor e à História. (p. 41)
A autora propõe uma abordagem dos fenômenos intertextuais enquanto
“estratégias de escrita deliberada”, em meio à heterogeneidade generalizada
de todo discurso, concepção inseparável da consideração dos “efeitos de
52
sentido” resultantes dessas estratégias. Ou seja, citar o outro, dependendo da
forma como é feita, produz efeitos no real e, muitas vezes, deliberados. Daí a
necessidade apontada pela autora de se investigar e sistematizar as formas
de inserção do discurso alheio no discurso de um enunciador.
Comentaremos a proposta classificatória de Piegay-Gros, por nós modificada
visto julgarmos que ela privilegia textos literários. Em seguida, nos
utilizaremos da proposta da autora para pensar outros fenômenos relativos
ao interdiscurso: a interdiscursividade e a metadiscursividade.
AS RELAÇÕES INTERTEXTUAIS
Como se pode notar pelo esquema, distinguem-se dois grandes tipos de
relações intertextuais: aquelas fundadas sobre uma relação de CO-
PRESENÇA entre dois ou mais textos e as que são fundadas sobre uma
relação de RETEXTUALIZAÇÃO de um ou vários textos a partir de um texto-
matriz, podendo ser, cada uma delas, explícita (marcada por um código
tipográfico ou por menção) ou implícita (cabendo ao leitor sua recuperação).
1) As relações de co-presença englobam a citação (direta, indireta ou
indireta livre), ), o plágio, a referência e a alusão.
a) A citação é a mais emblemática das relações intertextuais. É quando
se torna mais clara a inserção de um texto em outro. Em textos escritos, um
sistema de sinais tipográficos (aspas, itálico etc.) materializa essa
heterogeneidade. Na oralidade, a entonação e os chamados verbos dicendi
(dizer, afirmar, falar, declarar, etc.) ajudam nessa demarcação. Pode cumprir
diversas funções, dentre as quais, a autoridade, o ornamento etc.
Vejamos alguns exemplos:
53
EXEMPLO 1
Ex.: a1) citação direta:
APAGA O FOGO, MANÉ (Adoniran Barbosa)
Inês saiu dizendo que ia
comprar pavio pro lampião
pode me esperar, mané
que eu já volto já
acendi o fogão botei água pra esquentar
e fui pro portão só pra ver inês chegar
anoiteceu e ela não voltou
fui pra rua feito louco
pra saber o que aconteceu
Procurei na central,
Procurei no hospital e no xadrez
andei a cidade inteira e não encontrei inês
voltei pra casa triste demais
o que inês me fez não se faz
pois no chão bem perto do fogão
encontrei um papel escrito assim
pode apagar o fogo, mané
que eu não volto mais
(para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=GDiXiGtPFP4 [2])
54
EXEMPLO 2
Ex2.: a2) citação indireta:
Miséria no Japão
Composição: Pedro Luiz
Somos tios da pobreza social
Somos todos pára-brisas do futuro nacional
Eu sou tio, ela é tia
O pavio tá aceso, aqui é quente
País é quente
O mundo é quente
E quem te DISSE que miséria é só aqui?
Quem foi que disse que a miséria não ri?
Quem tá PENSANDO
que não se chora miséria no Japão?
Quem tá FALANDO que não existem tesouros na favela
A vida é bela
Tá tudo estranho
É tudo caro
Mundo é tamanho
Paraíso, pára-raios, capital
Parabólicas, pirâmides, trem-bala
Coisa e tal
Lá faz frio, cá é noite
Os açoites nos navios são história
Mas não é glória
Memória triste
E quem resiste faz a raça evoluir
Mas ainda existe guerra
Querendo fazer o mundo ruir
Não tem medida o amor em certos casos
O ódio atinge generais, soldados rasos
(para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=wttoOxnyBnI [3])
55
EXEMPLO 3
Ex3.: a3) citação indireta livre
COM A PERNA NO MUNDO (LUIZ GONZAGA JR.)
Acreditava na vida na alegria de ser
nas coisas do coração
nas mãos um muito fazer
Sentava bem lá no alto
pivete olhando a cidade
sentindo o cheiro do asfalto
desceu por necessidade
Ô Dina! Teu menino desceu o São Carlos
pegou um sonho e partiu
Pensava que era um guerreiro
com terras e gentes a conquistar
Havia um fogo em seus olhos
um fogo de não se apagar
Diz lá pra Dina que eu volto
Que seu guri não fugiu
Só quis saber como é
Qual é
Perna no mundo sumiu
E hoje
Depois de tantas batalhas
A lama dos sapatos
É a medalha
Que ele tem pra mostrar
O passado, meu irmão,
É um pé no chão e um sabiá
Presente
É a porta aberta
E futuro é o que virá
Mas, e daí, ê ô ê ê á
O moleque acabou de chegar, ê mãe
ô ê ê á
Nessa cama é que eu quero sonhar,
ê ô ê ê á
Eu vou me embora...
Amanhã bato a perna no mundo,
E lá vou eu...
ê ô ê ê á
É que o mundo é que é meu lugar
(para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=PtE48yc_AO0 [4])
56
OBSERVAÇÃO
Na canção que está na aba 3, observe as vozes que emergem no
discurso do narrador sem nenhuma marca citacional: a de vermelha pode
ser atribuída talvez a um vizinha de “Dina”, mãe do menino protagonista
da história; a de azul, ao próprio menino.
b) A referência, do mesmo modo que a citação, remete o leitor a um
outro texto, sem, porém, convocar as palavras deste. Nesse caso, podem ser
evocados títulos, personagens, lugares, épocas, etc., pertencentes a outros
textos.
c) Como no plágio, na alusão não é explicitada a retomada intertextual,
mas, diferente dele e do mesmo modo que na referência, não há a
convocação literal das palavras do outro. A alusão elabora um jogo de
sugestão ao leitor, solicitando sua memória e inteligência, sem romper a
continuidade do texto (op. cit.: p. 52). Assim, para que a alusão faça efeito, é
necessário que o leitor relacione o que o autor disse efetivamente com o que
ele deixou de dizer diretamente. Em outras palavras, o leitor deve recuperar
o texto aludido por meio dos poucos índices que o autor lhe põe à disposição.
Tais índices são, na maior parte das vezes, palavras, mas podem aparecer
como um formato textual, uma entonação, um estilo.
PRA NINGUÉM
(Caetano Veloso)
Nana cantando "Nesse mesmo lugar”
Tim Maia cantando "Arrastão“
Bethânia cantando "A primeira manhã"
Djavan cantando "Drão“
Chico cantando "Exaltação à Mangueira"
Paulinho, "Sonho de um carnaval"
Gal cantando "Candeias"
E Elis "Como nossos pais”
Elba cantando “De volta pro aconchego”...
(Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=8zoai8MJR14 [5])
LIVROS
Composição: Caetano Veloso
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
57
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou o que é muito pior por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas
(PARA VER/OUVIR: HTTP://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH?
V=AKPOZZLSRSM [6])
COMO 2 E 2
Composição:Caetano Veloso
Quando você me ouvir cantar,
Venha, não creia, eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar
Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto, não minto
Estou longe e perto
Sinto alegrias tristezas e brinco
Meu amor,
Tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco
Quando você me ouvir chorar,
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar
Tudo vai mal, tudo
Tudo mudou, não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco
Meu amor,
Tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco
Cinco.
(Para ver/ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=yjhOVaG21oA [7])
58
CHÃO DE ESTRELAS
Composição: Sílvio Caldas / Orestes Barbosa
Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Pareciam estranho festival!
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas os astros, distraída,
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão
(Para Ouvir/ver: http://www.youtube.com/watch?v=Li5SWL5tISE [8])
c) Já o plágio é uma espécie de citação não marcada. Um texto plagia
outro quando apresenta uma passagem deste, sem indicar que isto foi feito.
A ideia de plágio levanta a questão da normatização social da
intertextualidade: a forma e o grau da presença de um texto em outro estão
sujeitos a uma regulação jurídica e moral. Assim, o plágio é condenado
socialmente e será considerado tanto mais censurável e punível, tanto maior
e mais literal for o trecho convocado (PIEGAY-GROS, op. cit.: p. 50). Por
conta desse caráter polêmico, não daremos exemplos aqui. Sugerimos a
leitura das seguintes reportagens:
Plágio? "Águas de Março" teria sido inspirada em folclore [9]
Ideias roubadas [10]
2) As RELAÇÕES DE RETEXTUALIZAÇÃO, de sua parte, supõem uma
intimidade maior e mais integral entre dois textos. Trata-se da
transformação que um texto sofre total ou parcialmente para consubstanciar
-se em outro. Cada cultura elabora seus esquemas de retextualização. Os
mais conhecidos são a tradução, o pastiche, a estilização, o resumo, a
resenha, a recriação, a paródia, o comentário, a escrituração, a oralização,
etc. Vejamos um exemplo do discurso literomusical:
59
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Descreva as alterações feitas em cada um dos textos-fonte que
resultaram no texto da canção “Até amanhã”, de Belchior, e analise os
possíveis propósitos do autor.
DA INTERDISCURSIVIDADE
AS RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS
Em oposição às relações intertextuais, as relações interdiscursivas, como
o próprio nome indica, consistem nas relações da enunciação com o
interdiscurso, isto é, com o exterior discursivo. Note-se que aqui o sentido de
“discurso” é ampliado, pois se refere ao discurso enquanto sistemas
discursivos anônimos (modos de dizer, gêneros, regras, fórmulas, ethé, etc.)
que circulam na sociedade e constroem uma memória. A interdiscursividade
é, assim, a convocação de, ou o “dar a ouvir”, elementos que fazem parte de
sistemas linguageiros co-relacionados a práticas sociais externas ao discurso
do qual emana uma dada enunciação.
60
Assim, quando um texto faz uso de expressões populares, quando utiliza
termos habitados por outras esferas, registros discursivos e até mesmo
linguísticos, ou ainda quando se reporta a ethé, gestos e esquemas
discursivos de outras práticas discursivas, temos RELAÇÕES
INTERDISCURSIVAS ou INTERDISCURSIVIDADE.
Podemos incluir, então, como interdiscursivos mecanismos semelhantes
às relações textuais, com a diferença que o objeto da interdiscursividade não
é o texto, mas os elementos arrolados no início do parágrafo anterior. O
esquema das relações interdiscursivas assume uma configuração mais
simples dada a própria feição pouco formatada dos objetos interdiscursivos.
Nesse esquema, os conceitos de Maingueneau de “captação” e “subversão”
são utilizados. Para o autor (MAINGUENEAU, 1998), a CAPTAÇÃO acontece
quando um locutor, pretendendo beneficiar-se da autoridade do enunciado
de outro, incorpora em diversos aspectos a estrutura deste e mostra que o
faz. Assim, aquele que usa da CAPTAÇÃO revela sua atitude interdiscursiva
com o objetivo de marcar sua filiação a determinado estilo, escola ou
doutrina estética. Na SUBVERSÃO, por sua vez, o locutor pretende
desqualificar outro discurso legitimando, em contrapartida, seu próprio
texto e discurso.
Os dois conceitos estão ligados também à ideia de
“validação” (MAINGUENEAU, 1998) e
“legitimação” (MAINGUENEAU/CHARAUDEAU, 2004), conceitos que
dizem respeito a elementos lingüístico-discursivos já instalados na memória
coletiva, seja negativa seja positivamente. Assim, podemos, portanto, obter o
seguinte esquema, das relações interdiscursivas:
OBJETO DE
INTERDISCURSIVIDADE
RELAÇÕES
INTERDISCURSIVAS
Captação cenas validadas;
etos;
palavras (lexical);
códigos de linguagem;Subversão
Temos assim os seguintes casos:
61
CAPTAÇÃO INTERDISCURSIVA
a) captação interdiscursiva: um texto pode representar cenografias,
gêneros, gestos, ethé validados pertencentes a outras práticas discursivas.
Podemos citar como exemplo certos poemas de caráter religioso cuja
cenografia se apóia em cenários referentes aos episódios bíblicos. Pode
também mimetizar o etos de outros discursos para legitimar seu discurso.
É o caso de um professor que, ao dar a sua aula, imita a postura do
cientista.
Fonte [11]Cena validada bíblica: Cristo reúne os seguidores e profere o “Sermão da Montanha”
SUBVERSÃO INTERDISCURSIVA
b) subversão interdiscursiva: textos podem incorporar parodicamente
etos, cenários validados, códigos de linguagem etc. de outras formações
discursivas para subvertê-los, legitimando-se por oposição. Um texto
literário pode atacar o discurso religioso através de personagens
apresentados como religiosos, mas praticando atos anti-religiosos.
EXEMPLO
Veja o exemplo da canção Paixão e Fé [12], de Milton Nascimento e
Fernando Brant, que, ao criticar uma cena religiosa, mimetiza aspectos do
discurso religioso (cf. o coro, os instrumentos e a própria melodia da
canção). Configura-se nessa canção a interdiscursividade entre o discurso
literomusical e o discurso religioso..
DA METADISCURSIVIDADE
AS RELAÇÕES METADISCURSIVAS
É importante distinguir claramente a metadiscursividade da
intertextualidade e da interdiscursividade. Se na primeira, o locutor pretende
tomar um Outro enquanto sujeito enunciador singular, autor de um texto,
mesmo que esse autor não tenha identificação assegurada ou seja hipotético;
e na segunda, ele toma um outro indefinido, disperso na “atmosfera
discursiva” que envolve as enunciações em geral e as formas discursivas
(ethos, gêneros, gestos, etc.); na metadiscursividade, o locutor toma a si
mesmo como outro, pois “a heterogeneidade enunciativa não está ligada
unicamente à presença de sujeitos diversos em um mesmo enunciado; ela
também pode resultar da construção pelo locutor de níveis distintos no
interior de seu próprio discurso” (MAINGUENEAU, 1989, p. 93).
Authier-Revuz (1990) considera que a metadiscursividade se concretiza
através de gestos metalinguísticos que se dão em fórmulas como: “a palavra
X...”, “o termo Y...”, “a expressão Z...”, “o adjetivo W...” etc. e também através
62
do que a autora denomina modalização autonímica em que o locutor
suspende a obviedade ou transparência de determinada palavra ou expressão
de seu discurso, ao tomá-la como objeto. Em poucas palavras, ele usa e
menciona o signo ao mesmo tempo, tal como no exemplo abaixo:
É um marginal, como se diz hoje em dia.
Em que a palavra marginal é utilizada ao mesmo tempo como um falar
sobre o mundo (marginal = “indivíduo à margem da sociedade”) e sobre o
signo marginal. Além desse desdobramento, há também o remeter-se a uma
outra fonte enunciativa em relação à qual o discurso pretende afirmar sua
identidade e unidade. Neste último caso, essa alteridade pode ser
representada por:
UMA OUTRA LÍNGUA
“Al dente, como dizem os italianos”.
UM OUTRO REGISTRO DISCURSIVO
Familiar, vulgar etc.: “para usar uma palavra dos jovens de hoje em
dia...”.
UM OUTRO DISCURSO
Técnico, político, marxista etc.: “...'significante', no sentido que a
linguística estrutural confere ao termo...”).
UMA OUTRA MODALIDADE DE SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA
Recorrendo-se explicitamente a um exterior linguístico ou a um outro
universo discursivo (no primeiro caso, o da língua como lugar de
polissemia, homonímia, metáfora etc. - “X, sem trocadilho” ou “X, para
usar de um eufemismo...”; e no segundo caso, o da palavra já habitada
historicamente por um ou mais discursos: “uma contradição, no sentido
materialista do termo”).
UMA OUTRA PALAVRA
Potencial ou explícita denotativa de reserva (“X, se se puder chamar
isso de X...”), hesitação ou retificação (X, ou melhor, Y), confirmação (X,
essa é a palavra exata...) etc.
UM OUTRO FALANTE
(“como diria Marx...”, ) ou o interlocutor suscetível de não
compreender ou de não aceitar expressões tidas como óbvias (“...X, com o
perdão da palavra...”, “se você quiser, X”, “X, se você me entende”)
(AUTHIER-REVUZ, 1990).
Em um sentido mais amplo, o METADISCURSO consiste, como o nome
indica, no processo segundo o qual o discurso de um locutor tem como
objeto seu próprio discurso, constituindo a si mesmo como alteridade, ou seu
próprio discurso como outro. Assim a metadiscursividade deve ser
interpretada como uma consciência de si de uma prática discursiva. Não se
trata do gesto de o enunciador falar apenas de sua própria enunciação, mas
de referir-se a sua prática discursiva, legitimando as condições enunciativas
que possibilitam seu falar.
63
Nesse sentido, vale distinguir dois gestos metadiscursivos. Um, que
poderíamos denominar METADISCURSIVIDADE ENUNCIATIVA, é aquele em
que o locutor volta-se para seu próprio enunciado, reformulando,
assinalando uma dada parte dele, manifestando insatisfação com ela, etc. O
outro é aquele em que o locutor se refere ao discurso do qual faz parte sua
enunciação, o qual podemos denominar METADISCURSIVIDADE
PROPRIAMENTE DITA. Vejamos os dois casos nessa canção abaixo:
CLIQUE AQUI PARA VISUALIZAR A CANÇÃO APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO, DE BELCHIOR:
APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO
Composição: BELCHIOR
Eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco (REFRÃO)
Sem parentes importantes
E vindo do interior...
Mas trago, de cabeça
Uma canção do rádio
Em que um antigo
Compositor baiano
Me dizia
Tudo é divino
Tudo é maravilhoso...(2x) (Aqui o locutor se refere ao discurso
literomusical, campo discursivo em que atua, configurando uma
metadiscursividade propriamente dita)
Tenho ouvido muitos discos
Conversado com pessoas
Caminhado meu caminho
Papo, som, dentro da noite
E não tenho um amigo sequer
Que ainda acredite nisso
Não, tudo muda!
E com toda razão...
(REFRÃO)
Mas sei
Que tudo é proibido
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê...(2x) (Nesse caso, o locutor se refere ao
64
próprio texto da canção, mais especificamente à palavra “permitido”,
configurando uma metadiscursividade enunciativa. )
Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém...
Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer!
A vida é muito pior...
E eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Por favor
Não saque a arma no "saloon"
Eu sou apenas o cantor... (Aqui trata-se também de
metadiscursividade enunciativa, pois o locutor se refere ao próprio
texto da canção, no entanto não a palavras específicas, mas ao gênero
de seu enunciado.)
Mas se depois de cantar (Aqui trata-se também de
metadiscursividade enunciativa, pois o locutor se refere ao próprio
texto da canção, no entanto não a palavras específicas, mas ao gênero
de seu enunciado.)
Você ainda quiser me atirar
Mate-me logo!
À tarde, às três
Que à noite
Tenho um compromisso
E não posso faltar
Por causa de vocês...(2x)
(REFRÃO)
Mas sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é sagrado
65
Nada, nada é misterioso, não...
Na na na na na na na na...
(Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=mLhpvrhFrWY
[13])
OLHANDO DE PERTO
O texto de Belchior é repleto de intertextualidade com outros textos
da Música Popular Brasileira. Caso lhe interesse, seria um trabalho
bastante agradável pesquisar os trechos de textos incorporados e as
operações feitas sobre esses textos pela canção.
RESUMO DA AULA 3
DIALOGISMO
POLIFONIA
INTERTEXTUALIDADE (RELAÇÃO ENTRE TEXTOS)
RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS(RELAÇÃO ENTRE TEXTO E EXTERIORIDADE
DISCURSIVA)
RELAÇÕES METADISCURSIVAS
FÓRUM 05
66
Nossas palavras e as palavras dos outros. A questão da autoria: temos
direitos sobre as nossas palavras? Quando devemos citar e quando não
devemos citar? O papel das instâncias discursivas (escola, ciência, Direito)
na relação intertextual.
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer2. http://www.youtube.com/watch?v=GDiXiGtPFP43. http://www.youtube.com/watch?v=wttoOxnyBnI4. http://www.youtube.com/watch?v=PtE48yc_AO05. http://www.youtube.com/watch?v=8rkl3JR0y6o6. http://www.youtube.com/watch?v=AkPozzLSrsM7. http://www.youtube.com/watch?v=yjhOVaG21oA8. http://www.youtube.com/watch?v=Li5SWL5tISE9. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u13819.shtml10. http://www.secom.unb.br/unbagencia/ag0706-27.htm11. http://www.ceallankardec.org.br/jesus%20pregando.jpg12. http://letras.mus.br/milton-nascimento/405855/13. http://www.youtube.com/watch?v=mLhpvrhFrWY
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
67
TÓPICO 01: O ENSINO DA LÍNGUA ENQUANTO PRÁTICA DISCURSIVA
VERSÃO TEXTUAL
Pela ótica discursiva, o professor de português ou estudante de
letras é sobretudo alguém que escolheu se envolver com uma atividade
que consiste em lidar com um paradoxo: tomar distância crítica de
algo que constitui a materialidade de sua própria consciência e de suas
relações com o mundo social: a linguagem (Genouvrier e Peytard,
1974).
Isso porque , diferentemente de quem lida com geografia ou
matemática, que tem bem claro que seu objeto de estudo não
necessariamente lhe afeta de modo tão visceral, o estudante ou profissional
de letras é falante da língua que supõe estar dominando ou manipulando
para o ensino.
Sendo ele próprio falante dessa língua, está sujeito aos mesmos desafios
cuja superação deve propor aos alunos, estes também já falantes da língua.
Tais desafios, por sua vez, só podem ser propostos através da linguagem, daí
que esta, quando se lida com o ensino da língua materna, é ao mesmo tempo:
1. Materialidade da consciência de quem ocupa a função de professor;
2. Objeto sobre o qual se pretende refletir e que se deseja aperfeiçoar nos alunos;
3. Meio de transmissão e execução desses propósitos;
4. Materialidade da consciência de quem ocupa a função de aluno.
E como o uso da linguagem ultrapassa os limites da escola, quem se
matricula em um curso de letras está, portanto, querendo ou não, se
inscrevendo num percurso de situações discursivas que vão lhe exigir
posicionamentos que dirão respeito a sua própria vida extra-escolar e dos
quais não poderá fugir. Tais situações podem ser abordadas em dois planos
em íntima associação.
O DISCURSO DA SALA DE AULA
ANÁLISE DO DISCURSO
AULA 04: REFLEXÕES DISCURSIVAS SOBRE O ENSINO DO PORTUGUÊS
68
Fonte [2]
No plano da própria natureza discursiva da situação interlocutiva mais
comum no âmbito escolar, a sala de aula, o professor mantém sua inserção
num tipo de interação linguística muito particular situada no âmbito de uma
ordem discursiva (Foucault, 2001) com características muito bem definidas
em nossa sociedade:
VERSÃO TEXTUAL DO FLASH
1. Primeiramente, a situação se constitui como um espaço onde a
autoridade de usar a palavra é institucionalmente concedida a um
único interlocutor – o professor. Em contraponto, aos demais
interlocutores a tomada da palavra é ora negada, ora facultada, ora
solicitada, ora exigida.
2. Em segundo lugar, a sala de aula é o lugar em que um dos
interlocutores está investido do poder de apresentar os objetos
discursivos (regras, frases, textos, poesias, diálogos, etc.), que deverão
ser utilizados pelos demais de forma determinada de antemão, e de
autorizar ou determinar o modo de recepção e interpretação desses
mesmos objetos.
3. Em terceiro lugar, em contradição com o poder e a autoridade
anteriormente aludidos, a fala desse interlocutor, que é o professor, é
restringida pela própria instituição que o autoriza a se comportar
como tal. Isto é, o professor não tem em sala de aula a liberdade de
falar qualquer coisa e de utilizar de qualquer forma o seu discurso.
Apenas determinadas palavras podem e devem ser ditas, outras só
podem ser ditas em ocasiões muito especiais e outras ainda não devem
ser ditas em absoluto.
O discurso pedagógico a ser assumido pelo estudante de letras, futuro
professor de português, é, portanto, atravessado por contradições internas e
se modifica historicamente. A situação de sala de aula é um incontestável
jogo de poder e enquanto tal supõe uma negociação entre os agentes em
questão. Os alunos aceitam tacitamente o papel do professor de disciplinador
da fala e lhe conferem esse poder conforme seja esse o seu interesse (um dos
quais pode ser o de não serem punidos, ou o de tirar boas notas, ou o de
apenas ouvir o que o professor tem a falar). O professor aceita esse papel
embora finja que ele não lhe foi concedido e pode agir na ilusão de que é
absoluto.
Quanto à historicidade, é notório que as contradições no espaço escolar
são contingentes às condições sociais de produção de diferentes épocas e
lugares. Outrora autoritária, atualmente a interação linguística entre alunos
e professor em sala de aula, influenciada por fatores extraescolares diversos,
caminha para uma situação mais equilibrada ao menos em relação à questão
da democratização da tomada da palavra.
Assista ao vídeo abaixo e veja uma representação da ação discursiva de
um professor em sala de aula.
69
http://www.youtube.com/v/-hoKDT1ksN4&hl=pt_BR&fs=1&
Vídeo 1 - O filme A Sociedade dos Poetas Mortos apresenta a história de um professor que, no
final dos anos 50, tenta subverter os ditames de uma escola ultra-conservadora dos Estados
Unidos.
Em casos extremos a situação pode se inverter: é quando os alunos
adquirem mais poder de palavra do que o professor, o que pode por em crise
a situação discursiva e conduzir à casos de violência e humilhação em que o
professor é a vítima.
LEITURA COMPLEMENTAR
Confira uma reportagem sobre a questão da violência na escola:
Violência é assunto da escola, sim! [3]
No caso específico do professor de português, também as ciências da
linguagem, como veremos adiante, têm questionado a adequação do tipo de
objeto linguístico atualmente usado em sala de aula, pondo, ela também, em
cheque a autoridade do professor como aquele que sabe a língua e interferido
em sua prática. No entanto, essa intervenção, como também veremos, vem
justamente no sentido de tornar o trabalho com a língua mais eficaz e
produtivo, dado que o ensino tradicional, baseado no discurso normativista
da gramática, tem levado os alunos ao estranhamento da linguagem, como se
não se tratasse de algo que, como vimos, está intimamente ligado à própria
subjetividade de cada um. Essa eficácia pode ajudar a tornar o trabalho
educativo no campo da linguagem num momento prazeroso de construção
do conhecimento para ambas as partes envolvidas na interação escolar.
Fonte [4]
O DISCURSO NA SALA DE AULA
Se no plano da interação pedagógica, o estudante de letras e o professor
se inscrevem na memória discursiva das relações dialógicas professor-aluno,
cabendo a eles, em sua experiência cotidiana como aluno/professor,
posicionarem-se na correlação de forças inerente a essa interação, a questão
da POSTURA FRENTE À LINGUAGEM que balizará a interação dialógica em
sala de aula nos remete a diversos lugares teóricos.
Nesse tópico, veremos as duas posturas mais comuns para, no tópico
seguinte, apresentar a postura mais coerente com os preceitos da Análise do
Discurso.
A POSTURA TRADICIONAL (NORMATIVA)
Fonte
A maneira mais tradicional é a de pensar a linguagem como um
patrimônio, ou seja, como um conjunto de formas e normas passadas de
geração em geração, pelo qual é preciso zelar para que não se corrompa, se
desgaste ou se degenere. É essa concepção a que fundamenta a chamada
GRAMÁTICA TRADICIONAL ou GRAMÁTICA NORMATIVA e, é preciso dizer,
é ainda dominante nos meios educacionais de nosso país. Esta concepção,
tão enraizada no senso comum, baseia-se em velhos pressupostos.
Em primeiro lugar, na ideia de que existe uma língua pura. Esta língua
estaria concretizada nos dicionários, que discriminariam as palavras que são
“regionais”, “chulas”, “vulgares”, etc., e as que seriam realmente
70
pertencentes à Língua; e principalmente nas gramáticas e nos livros
didáticos que determinariam o que pode e deve ser falado em vários aspectos
da linguagem (fonético, morfológico, sintático, etc.). A gramática, por esse
ponto de vista, seria uma instância disciplinadora do comportamento
linguístico da sociedade.
Aliás, esse é outro pressuposto dessa concepção: a de que é possível
manter uma língua imune às mudanças históricas, que é possível
salvaguardar a língua do poder subversivo dos usuários, especialmente os
das novas gerações.
Como se pode perceber, trata-se muito mais do que uma mera forma de
conceber a linguagem. Consiste mesmo em um projeto linguístico-social. Há,
portanto, não somente ideias pressupostas nessa concepção. Há
principalmente, metas subjacentes. Uma delas é a homogeneização dos
comportamentos linguísticos. Essa concepção é inimiga das variações, das
mudanças, das diferenças. Outra é a tentativa de fazer de cada falante um
policial de sua língua. Um policial de seu próprio comportamento linguístico
e do comportamento dos outros.
Hoje em dia, no Brasil, essa forma de encarar a linguagem conta com
mais um meio de veiculação: trata-se dos meios de comunicação de massa
(rádio, televisão, jornal). Vem com um visual modernoso, jovial, e se traveste
de “serviço de utilidade pública”; apresenta-se também mais tolerante para
com os chamados “erros”, admitindo uma esfera de uso em que eles podem
ser “cometidos”; faz apelo aos jovens, principalmente os de classe média e
alta, ilustrando suas explicações com canções dos astros da MPB e
solicitando a opinião de personalidades da música e de outros meios
artísticos e intelectuais. Enxergamos no prof. Pasquali Cipro Neto, a figura
mais representativa dessa “nova gramática”.
MULTIMÍDIA
Pausa lúdica:
http://www.youtube.com/v/s5MCZ8BB_Ts&hl=pt_BR&fs=1
A VISÃO DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
A língua seria como um jogo de
xadrez: para jogar (usar), é necessário
o conhecimento das regras e das
funções de cada peça. - Fonte [5]
A língua está, segundo este ponto de vista, na consciência social dos
falantes que, através da FALA, a põem em prática individualmente. Assim,
desaparece a ideia de que alguns falantes detêm o saber da língua (os
escritores, os intelectuais, os gramáticos, etc.) e outros, não. Segundo essa
perspectiva, todos os falantes sabem a língua e nenhum a sabe
completamente, pois a língua está no todo social.
OLHANDO DE PERTO
Mas o que os falantes sabem exatamente?
71
Sabem quais são as unidades fonológicas e morfológicas de sua
língua, sabem o valor de cada uma delas e como combiná-las e,
principalmente, unir essas formas em blocos sintáticos para usá-las
comunicativamente com os outros falantes.
Por essa perspectiva todas as línguas e dialetos, sejam eles falados pelos
povos de cultura mais sofisticada ou pelas tribos mais rudimentares; pelas
camadas socialmente favorecidas da sociedade ou pelas camadas populares
do campo ou da cidade, todos eles são subsistemas de um sistema geral que
lhes dá unidade e, enquanto tal, têm o mesmo grau de complexidade e de
capacidade de cumprir sua função comunicativa.
Entenda-se então que os critérios que determinarão o que é certo ou o
que é errado são bem diferentes dos critérios utilizados pela gramática
tradicional. Um primeiro seria o da comunicação, isto é, só é errado o que
não cumpre o efeito essencial de qualquer ato de fala: a comunicação. Um
segundo critério seria o de adequação, ou seja, todas as formas de falar são
corretas e legítimas desde que adequadas ao contexto social no qual elas são
realizadas.
APÓS ESSE BREVE RESUMO DESSA PERSPECTIVA, ENUMEREMOS ALGUMAS
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA CONCEPÇÃO SISTÊMICA DE LINGUAGEM (CLIQUEAQUI PARA LER).
1. Uma primeira observação é que, se todos sabemos falar uma
língua já na idade de entrarmos na escola, o ensino da teoria
gramatical é redundante para o desenvolvimento dessa aptidão;
2. Falar supõe o domínio de regras. É claro, são regras
internalizadas, mas que as usamos sem a mínima necessidade de ter
consciência delas. Essas regras contemplam todos os aspectos da
língua falada: fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos e
pragmáticos, aspectos, aliás, infinitamente mais ricos do que qualquer
gramática normativa pode contemplar;
3. Se, por um lado, a criança, ao entrar na escola, já conhece
implicitamente a sua língua, por outro, ela não sabe ainda se utilizar
de outros meios de expressão linguística, sendo o principal deles a
escrita. Caberia, portanto, à escola o desenvolvimento do uso da
escrita, não só o que se chama de alfabetização, mas o ensino da
produção e da compreensão de todas as variedades de texto.
4. Se é verdade que a criança em idade de ingressar na escola já
tem aptidão suficiente para um bom desempenho comunicativo, é
também verdade que esse desempenho pode ser melhorado, mas não
através do ensino da teoria gramatical. Saber definir um substantivo,
um sujeito ou uma oração subordinada completiva nominal é bem
menos importante do que saber usá-los. A psicolinguística [6] afirma
que é possível saber usar algo sem a necessidade de saber
conscientemente uma teoria desse algo, assim como muito de nós
sabemos dirigir um automóvel ignorando quase completamente como
ele funciona.
72
5. Quanto à questão dos dialetos, a ideia de que todos são
funcionais e legítimos implica que a forma de falar do aluno,
especialmente o das classes populares, deve ser respeitada, mas que é
papel da escola torná-lo bidialetal (isto é,dominar, além do seu, o
dialeto de prestígio na sociedade). Aliás, não só isso, mas torná-lo apto
a se comunicar nas mais variadas formas de linguagem conforme as
exigências do contexto. Então, não só o aluno deve dominar além de
seu dialeto, o dialeto padrão na sociedade, mas também deve ele saber
usar a linguagem para os mais diversos fins.
Evidentemente, a Linguística conta com uma variedade muito grande de
tendências, incorporando aspectos colocados de lado em seus primórdios
como, por exemplo, a função pragmática da linguagem e as realidades do
sentido, do texto e da enunciação. São exemplos o Funcionalismo, a
Sociolinguística, a Semântica, dentre outros. No entanto, tais perspectivas
ainda resistem em abordar dimensões mais amplas como as do discurso e do
contexto social, dimensões que são essenciais quando se tem por tarefa
ensinar a língua.
Embora o conhecimento trazido pela perspectiva científica da linguagem
seja fundamental para um bom ensino, uma postura estritamente técnica
diante da língua pode levar a uma prática que é indiferente aos problemas
práticos que o cotidiano constantemente impõe no uso da língua. Embora
seja essencial, para se falar comunicativamente uma língua, o domínio de
suas regras de funcionamento, é certo que não é possível falar sem conhecer
as regras sociais de interação verbal e não-verbal. E isso deve ser ensinado
em sala de aula.
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Antes de passar para o próximo tópico, em que apresentaremos uma
visão discursiva do ensino da língua materna, assista, no link abaixo, um
trecho do filme “Entre os muros da escola”: Entre os muros da escola [7] e
resuma as posições em conflito (do professor e dos alunos) a cerca do
objeto de ensino em questão: o imperfeito do indicativo.
FÓRUM 06
O que fazer para que os alunos passem a gostar das aulas de
português?
É comum crianças e adolescentes detestarem “aula de português”.
Segundo Luft (1995), isso se dá porque os professores de português
procuram o método mais difícil para o ensino, aquele através de regras
gramaticais – que tanto aterrorizam os alunos, que saem das aulas com a
sensação de que nada sabem sobre o idioma.
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer
73
2. http://3.bp.blogspot.com/_Di90QOa2Prc/SpGSab8qVaI/AAAAAAAALcI/ZxKSmuCu1q8/S1600-R/deadpoets.jpg3. http://educarparacrescer.abril.com.br/comportamento/violencia-nas-escolas-426392.shtml4. http://www.influx.com.br/imgblog/image/grammar.jpg5. http://2.bp.blogspot.com/_EtsyjekJFqk/Rz1zQSntc1I/AAAAAAAAAO0/-9mxyghmdmU/s1600-h/logo_xadrez.jpg6. http://pt.wikipedia.org/wiki/Psicolinguística7. http://www.youtube.com/watch?v=vhqJ3iTi-pQ
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
74
TÓPICO 02: UMA VISÃO DISCURSIVA DO ENSINO DA LÍNGUA
PRESCRITIVA
Indica como se deve usar corretamente a língua.
METALINGUÍSTICA
Onde se tecem considerações sobre a língua e se definem categorias
classificatórias das unidades componentes das palavras e das frases.
VERSÃO TEXTUAL
É importante ver que as duas concepções resumidas no tópico
anterior, apesar das profundas divergências em relação a uma série de
aspectos, devem ter o seu lugar no ensino da língua portuguesa.
O PAPEL DA GRAMÁTICA NORMATIVA.
A gramática normativa deve perder o lugar de destaque que sempre teve
nas salas de aula de português, mas não deve ser descartada definitivamente
do ensino escolar. Perceba o aluno que os compêndios de gramática
normativa geralmente se compõem de duas dimensões:
Temas como concordância, regência, colocação pronominal, conjugação
verbal, dentre outros, são prescritivos porque indicam como usar a língua
utilizando por modelo uma variedade linguística prestigiada na sociedade
por motivos socioeconômicos. Essa dimensão normativa do ensino
certamente tem sua razão de ser num ensino discursivamente orientado. Os
alunos precisam ser conscientizados de que existe, na sociedade, um capital
linguístico socialmente valorizado, nas palavras de Bourdieu (1987). Faz
parte desse capital o emprego dessas regras que, portanto, devem ser
dominadas pelo aluno, ficando bem claro que não tornam seu falar
intrinsecamente melhor do que o falar popular ou próprio de regiões
situadas na periferia dos grandes centros urbanos. Como bem já mostraram
os estudos sociolinguísticos, não há línguas ou dialetos melhores, mais
bonitos ou mais corretos do que outros do ponto de vista de seus sistemas
linguísticos.
Por outro lado, a dimensão metalinguística da gramática normativa
também pode ser aproveitada. Afinal, termos como “substantivo”, “adjetivo”,
“verbo”, “pronome”, bem como “frase”, “oração”, etc., bem ou mal, já se
incorporaram ao léxico da linguagem comum e é necessário que o aluno
saiba do que se trata. No entanto, do ponto de vista teórico, as análises e
definições são francamente insatisfatórias como têm mostrado
abundantemente diversas teorias linguísticas.
ANÁLISE DODISCURSO
AULA 04: REFLEXÕES DISCURSIVAS SOBRE O ENSINO DO PORTUGUÊS
75
DICAS
Saiba mais sobre esses temas lendo os livros:
Fonte: SOARES, Magda. Linguagem
e escola: uma perspectiva social.
São Paulo: Ática, 1986.
Fonte: MACAMBIRA, José Rebouças. A
estrutura morfo-sintática do
português: aplicação do
estruturalismo linguístico. 2. ed. São
Paulo, Pioneira, 1974.
O PAPEL DA LINGUÍSTICA SISTÊMICA
Já a linguística científica deve fundamentar os saberes do professor em
relação à dimensão estrutural da linguagem. Essa dimensão compõe o
chamado “núcleo duro” da materialidade linguística.
Trata-se da formação técnica indispensável para o profissional de letras.
Seria ingenuidade pensar que uma consciência discursiva da linguagem
dispensa o profissional de letras desse conhecimento, pois toda a
discursividade funciona sobre essa base material da linguagem. No entanto,
duas advertências cabem aqui:
PRIMEIRA
Diferentemente do que é prática comum no ensino normativamente
orientado, em que os conteúdos metalinguísticos são objetos de ensino, os
conhecimentos obtidos pela linguística moderna não devem entrar
diretamente como “matéria de aula”. Não se trata de, por exemplo, em sala
de aula, substituir “sujeito” por “sintagma nominal” e ensinar aos alunos o
que é um “sintagma nominal”. Trata-se de exercitar o uso linguístico quer a
partir de modelos estruturais, quer a partir da observação de fatos reais de
língua. Em suma, a linguística deve alicerçar o trabalho pedagógico na
medida em que instrumentaliza o professor no conhecimento da estrutura
da língua para que ele, conhecendo-a, possa trabalhar o aprendizado de
estruturas não conhecidas, seja porque não são próprias da variedade
linguística do aluno, seja porque pertencem a outro registro de língua (da
escrita, por exemplo);
SEGUNDA
76
Saber falar uma língua materna é um conhecimento implícito, não
consciente, isto é, sabemos usar a língua mas não sabemos dizer como
fazemos isso. Aliás, trata-se de um saber que dispensa essa consciência. É
perfeitamente possível falar uma língua sem jamais ter estudado
formalmente a mesma, sem saber o nome ou as funções das unidades
(“verbo”, “morfema”, “frase”, “sujeito”, “predicado”, etc.). Os professores
que guiam seu ensino de língua pela gramática normativa partem da falsa
premissa de que explicitar uma estrutura (Suj + Verbo + Objeto direto) ou
definir uma classe de palavra (“verbo é uma palavra que exprime uma
ação”) fará com que os alunos aprendam a utilizar (melhor) a estrutura ou
o objeto da definição. Ao contrário, o ensino de estruturas não deve ser
metalinguístico, mas EPILINGUÍSTICO, isto é, não o que parte do FALAR
SOBRE A LINGUAGEM, mas do t RABALHO SOBRE A LINGUAGEM,
transformando estruturas, construindo expressões a partir de modelos,
experimentando novas estruturas, modificando sentidos de frases
alterando sua estrutura, etc.
DICAS
Saiba mais sobre o assunto lendo os Parâmetros Curriculares
Nacionais – Língua Portuguesa:
Fonte [2]
Clique aqui para baixar os PCNs para o seu computador:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf [3].
O PAPEL DAS DISCIPLINAS DISCURSIVAS
Falaremos agora do papel de um terceiro modo de conceber a linguagem
que é o discursivo. Já no início do século passado, uma percepção discursiva
da linguagem começa a se contrapor à concepção fundada por Saussure
através justamente dos trabalhos de Mikhail Bakhtin. Conforme temos visto,
para a Análise do Discurso uma língua não pode ser reduzida a mero sistema
formal indiferente às interações sociais concretas. Assim procedendo,
transformamos a linguagem em mero objeto, distanciado dos falantes e a
eles imposto. Encará-la como um sistema de signos abstratos que se
sobrepõe aos indivíduos seja socialmente (como afirma Saussure), seja em
forma de uma estrutura mental (como afirma Chomsky [4]), significa ao
mesmo tempo minimizar o poder da subjetividade e ignorar a dimensão
sócio-interativa da linguagem.
77
OLHANDO DE PERTO
Para a Análise do Discurso, a linguagem está imbricada nas relações
sociais na medida em que acompanha os indivíduos em seus mínimos
atos, nas mais variadas relações que eles contraem cotidianamente e que
constituem sua subjetividade, sua própria consciência.
A visão da linguagem como sistema de signos não dá conta da
natureza complexa do fenômeno linguístico.
Assim, por exemplo, os signos, embora arbitrários do ponto de vista
da relação entre significante e significado, não são arbitrários em relação
aos propósitos dos indivíduos e aos efeitos que estes obtêm ao usá-los.
Com efeito, quando se observa a linguagem do ponto de vista do
discurso, o fenômeno linguístico assume novas dimensões. Percebe-se, por
esse ângulo, por exemplo, o caráter ideológico. As palavras estão carregadas
de valor, umas mais, outras menos, mas todas elas carregam em si, quando
em uso, marcas dos julgamentos pessoais dos que as usam, e estes
julgamentos não são puramente individuais, mas determinados pela
conotação social e histórica que elas assimilaram. Uma palavra seria como
uma arma: em qualquer posição que esteja está sempre apontando para uma
determinada direção.
Há, porém, contextos em que esta ou aquelas palavras devem ou podem
ser ditas. Trata-se do que Michel Foucault (1995) denominou de formações
discursivas. Haveria, portanto, formações discursivas no contexto político,
no contexto jurídico, no contexto acadêmico, e também no contexto escolar.
As formações discursivas são espaços no âmbito de uma área social,
econômica, geográfica ou linguística de uma sociedade e época que definem
as regras anônimas e históricas das condições de exercício da função
enunciativa. Elas não são estanques, se interpenetrando constantemente
devido às práticas discursivas dos indivíduos, que inserem seu falar em
diversas formações discursivas e levam elementos discursivos de uma para
outra. Por outro lado, as formações discursivas impõem que os falantes
inscritos formatem seu falar em gêneros do discurso (cf. Tópico 2, Aula 2). O
discurso pedagógico, por exemplo, supõe gêneros tais como a aula, o livro
didático, a redação ou trabalho escolar e o individuo que dele pretenda
participar deve aprender a usá-los e incorporar os papéis que eles exigem. No
caso do ensino superior, aliás, tais gêneros são ao mesmo tempo o
instrumento e o objeto de trabalho de tal prática discursiva.
As formações discursivas também não são estanques do ponto de vista
de que são determinadas historicamente, isto é, estão em constante
mudança, que não é “evolução”, mas resultado da interação dialética entre o
falante e o contexto social, o que foi denominado por Michel Pêcheux (1990)
de condições de produção do discurso. A historicidade do fenômeno
linguístico, entenda-se bem, não está aqui relacionada ao aspecto meramente
físico, superficial, das palavras, mas com a própria dinâmica das relações
78
sociais. Ora, enquanto fenômeno inerentemente social, a linguagem reflete e
refrata as disputas sociais. O valor ideológico dos signos, por exemplo, são
sempre disputados nas formações discursivas em que eles acontecem.
VERSÃO TEXTUAL
Em síntese, na perspectiva discursiva, a linguagem é focalizada
como uma prática social intrinsecamente relacionada com todas as
demais práticas sociais. Talvez a única que acompanha todas as
atividades humanas seja como trocas lingüísticas concretas, seja como
materialidade do pensamento.
No tocante ao ensino, se o professor reconhece que a situação
discursiva que ele enfrenta e constrói cotidianamente é uma relação de
poder, ele tem melhores condições de trabalhar para equilibrar as
correlações de força dentro da sala de aula. Perceberá que a escola tem
de ser útil ao aluno e essa utilidade deve ser calcada sobre a própria
utilidade da linguagem na vida extra-escolar.
Antes de prosseguir assista a mais um trecho de “Entre os muros da
escola”. Verifique que a relação professor aluno ultrapassa a simples
transmissão de conhecimento entre quem detém e quem não detém o saber:
http://www.youtube.com/v/ltyRqP3h-eA&hl=pt_BR&fs=1&
Os alunos do extrato fílmico que você acabou de ver demonstram
surpreendente capacidade de argumentação. Embora em desvantagem por
ocupar uma posição hierárquica inferior, Khoumbá se vale das palavras para
resistir à autoridade do professor e fazer prevalecer seu desejo de não querer
ler. É claro, trata-se de uma ficção. Muitas vezes, no entanto, quando essa
capacidade argumentativa ocorre de fato, o professor tende a encará-la com
antipatia. Mas é preciso ver que deve caber à escola justamente simular
situações interativas que desenvolvam o poder argumentativo, persuasivo,
retórico, etc., a fim de fomentar habilidades multidiscursivas necessárias ao
dia-a-dia.
QUANTOS DE NÓS NÃO NOS EXPRESSAMOS GRAMATICALMENTE COM PERFEIÇÃO, MAS SOMOS FRANCAMENTE DESAJEITADOS EM CERTAS SITUAÇÕES DISCURSIVAS?
Compreendendo que os signos linguísticos têm o seu valor e
interpretação definidos respectivamente pelo seu uso e pelo julgamento
social da comunidade discursiva, e tendo consciência de que um texto nunca
tem uma só leitura, o professor não abusará da autoridade de determinar
uma leitura única e unilateral de um texto. Esta deve ser consensual e cabe a
ele, no máximo, tentar convencer os alunos da justeza de sua leitura.
Entendendo que todo texto é produzido para obter determinados fins,
compreenderá que não cabe às aulas de português apenas o estudo dos nexos
linguístico de frases ou textos, mas TAMBÉM a pesquisa dos propósitos
explícitos e implícitos do autor através das estratégias discursivas utilizadas.
79
Veja no video abaixo como o RAPPER Gabriel O Pensador retrata, do
ponto de vista dos alunos, o que estes pensam da escola atual:
http://www.youtube.com/embed/BD4MMZJWpYU
No caso do ensino da escrita, esse profissional deverá atinar que muitas
vezes a habilidade para discorrer sobre determinado assunto é questão de
saber as regras da prática discursiva em questão. O discurso científico, por
exemplo, exige muitas vezes a omissão das marcas enunciativas de primeira
e segunda pessoas, o emprego de tempos verbais específicos, mecanismos
próprios de referências a outros textos, etc.
A consciência resultante de uma ótica discursiva torna o profissional de
Letras apto a discutir as questões sociais que envolvem a linguagem, porque
estas só são possíveis de serem formulada enquanto questões graças ao
discurso.
Vejamos, por exemplo, o caso dos recentes avanços da tele-
informatização da sociedade contemporânea. Caso nos atenhamos à
dimensão meramente linguístico-gramatical da linguagem, esse assunto não
nos interessa. Afinal, na comunicação através da Internet, o sistema da
língua permanece invariável, mudando apenas o “meio de transmissão” e o
“modo de execução”.
Fonte [6]
Do ponto de vista discursivo, ao contrário, muita coisa muda na
linguagem quando nos dispomos a exercer a interação linguística através
desses meios. Em primeiro lugar, novos gêneros discursivos são criados e
consequentemente novas competências, que transcendem o simples domínio
do código linguístico, são exigidas. Tais gêneros, impensáveis até pouco
tempo atrás, tornam possível:
A comunicação escrita em tempo real (é o caso do chat);
A possibilidade de um retorno quase imediato de uma composição epistolar (é o caso do e-mail);
A discussão por escrito em que se pode ler separadamente e solitariamente a intervenção de cada membro do grupo (fórum ou grupo de discussão), tudo isso podendo ser feito simultaneamente.
Uma aula a que os alunos podem “assistir” a quilômetros de distância do lugar de produção, ler e reler a aula, fazer e entregar as tarefas, tudo sem sair de casa.
80
Os diálogos se virtualizam, isto é, perdem a corporalidade que têm
normalmente na fala face-à-face e mesmo na conversação telefônica, de
modo que eu posso conversar com alguém horas sem que ela tenha acesso a
minha configuração física, à minha aparência, a meu estado de espírito
denunciado por minha voz, meu rosto, minha compleição corporal.
Fonte [7]
Por outro lado, uma vez que a Internet conjugou a transmissão de dados
verbais com a comunicação através de imagens em movimento ou não, ela
inventou uma nova forma de leitura. Ela criou uma leitura
MULTISSEMIÓTICA (REFERE-SE AO QUE CONJUGA DIFERENTES FORMAS
DE LINGUAGEM: ESCRITA, ORAL, PICTÓRICA (IMAGEM), CINESTÉSICA
(IMAGEM EM MOVIMENTO), ETC.) , em que, ao mesmo tempo em que se lê,
se vê a imagem relacionada em movimento e, se quisermos, podemos escutar
essa mesma mensagem lida por um locutor. Por outro lado, diferentemente
da televisão, que nos enquadra em um sistema de passividade, que não
possibilita interatividade, podemos, se quisermos, interferir na notícia,
questionar o jornalista e verificar, sem sair do lugar, outras versões do
acontecimento. Podemos ainda enviar a notícia para amigos, especialistas,
para um grupo de discussão, confrontá-la cuidadosamente com outras fontes
de informação. Além disso, a notícia deixa de ser estanque na medida em que
ocorre uma desmaterialização de seu suporte. Ou seja, não há mais o papel
que imobiliza a notícia e que a faz durar 24 horas. Pela Internet é como se
lêssemos um jornal que se atualiza a cada momento acompanhando a
evolução dos acontecimentos.
Ser capaz de pensar sobre questões como essas deve ser parte da
competência do professor e ser igualmente objeto de trabalho e ensino em
sala de aula.
Uma visão discursiva da realidade da linguagem, ao levar em conta
fatores vitais como a subjetividade, a história e a heterogeneidade, a ordem
social, a VIDA DA LÍNGUA, como diz Bakhtin, torna o lidar com a mesma um
fazer que não se restringe à órbita do instrumental. Ou seja, ensinar a língua
não deve se restringir a adestrar o aluno na manipulação das estruturas
gramaticais, como se ensina um trabalhador a manejar uma máquina ou
uma ferramenta. Doutro modo, um ensino assentado numa perspectiva
81
discursiva deverá tornar o aluno capaz de opinar sobre as questões
linguageiras, mundanas e prosaicas do cotidiano discursivo, como os
estrangeirismos, as gírias, os preconceitos linguísticos, os deslizes
semânticos das autoridades, a nova feição midiática da gramática
tradicional, a reforma ortográfica, o português das novelas, o racismo verbal,
as manipulações discursivas efetuadas pelos meios de comunicação, a
política linguística para os índios, o problema do letramento e da
alfabetização, problemas de interpretação das leis, etc., questões que
envolvem a linguagem e que precisam ser pensadas como fatos da
discursividade.
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Elaborar em equipe de no máximo 3 alunos uma aula de 50 minutos
sobre uma das três atividades discursivas abaixo:
- postar num grupo do Facebook um texto explicando qual a diferença
entre as tecnologias de transmissão de dados bluetooth e wi-fi;
- publicar num blog um texto de utilidade pública explicando as
vantagens e desvantagens do livro digital em relação ao livro comum;
- responder, em uma lista de discussão, a seguinte pergunta: alguém
sabe me explicar as vantagens da tecnologia blue ray em relação ao DVD?
Obs.: as atividades devem solicitar que os alunos pesquisem
previamente sobre os assuntos em questão, inclusive sobre os mecanismos
midiáticos implicados.
FÓRUM
ERRO DE PORTUGUÊS NÃO EXISTE! [8] - escritor e linguista
denuncia o preconceito linguístico e considera absurdo dizer que os
brasileiros não sabem português:
Leia no link acima entrevista com o linguista Marcos Bagno,
publicada na Revista Educação, n. 26, e discuta com o tutor e seus colegas
o tema “erro de português”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Finalizamos assim nosso curso, lembrando que se tratou apenas de
uma introdução à disciplina em que, para cada tópico abordado, abre-se
um universo imenso de estudos e pesquisas que o aluno pode desbravar. A
Análise do Discurso é uma disciplina nova entre os estudos da linguagem,
portanto, ainda com uma enorme quantidade de problemas a resolver.
Mas o campo está aberto e não faz sentido negá-lo por questões
corporativas, metodológicas ou de purismo científico. Esperamos que o
aluno tenha ficado motivado a se aprofundar cada vez mais no fascinante
mundo da discursividade.
82
REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”.
Trad. de Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. In: CADERNOS DE
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS 19, p. 25-42, jun./dez. 1990.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ESTÉTICA DA
CRIAÇÃO VERBAL. 2a. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1997.
“Heterogeneidade(s) enunciativa(s)” in CADERNOS DE ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS 19 AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. UNICAMP. São
Paulo, 1990.
BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV). MARXISMO E FILOSOFIA DA
LINGUAGEM. Hucitec. São Paulo, 1988.
BENVENISTE, Émile. “O homem na língua”, in PROBLEMAS DE
LINGÜÍSTICA GERAL. Pontes/Unicamp, Campinas, 1988.
BORDIEU, Pierre. A ECONOMIA DAS TROCAS SIMBÓLICAS.
Perspectiva. Perspectiva, 1987.
COSTA, Nelson Barros da. “O primado da prática: uma quarta época
para a Análise do Discurso”. In PRÁTICAS DISCURSIVAS:
EXERCÍCIOS ANALÍTICOS. Pontes. Campinas, 2005.
COSTA, Nelson Barros da. Música Popular, Linguagem e Sociedade:
analisando o discurso literomusical brasileiro. Appris. Curitiba, 2012.
DUCROT, Oswald. “Esboço de uma teoria polifônica da enunciação”.
In: O DIZER E O DITO. Pontes. Campinas / São Paulo, 1987.
FARACO, Carlos Alberto. “Zellig Harris: 50 anos depois”. REVISTA
LETRAS, n. 61, especial. UFPR. Curitiba. 2003
FOUCAULT, Michel. ARQUEOLOGIA DO SABER. Forense
Universitária. Rio de Janeiro, 1995.
FOUCAULT, Michel. A ORDEM DO DISCURSO. Loyola. São Paulo,
2001.
GENETTE, Gerard. PALIMPSESTOS - LA LITERATURA EN SEGUNDO
GRADO. Taurus. Madrid: 1989.
GENOUVRIER, Émile e PEYTARD, Jean. LINGÜÍSTICA APLICADA AO
ENSINO DO PORTUGUÊS. Almedina. Coimbra, 1974.
SOARES, Magda. LINGUAGEM E ESCOLA: UMA PERSPECTIVA
SOCIAL. Ática. São Paulo, 1986.
HOUAISS, Antonio. DICIONÁRIO ELETRÔNICO DA LÍNGUA
PORTUGUESA. Objetiva. São Paulo, 2001.
83
MACAMBIRA, José Rebouças. A ESTRUTURA MORFO-SINTÁTICA DO
PORTUGUÊS. Pioneira. Fortaleza: 1974.
MAINGUENEAU, Dominique. ANÁLISE DE TEXTOS DE
COMUNICAÇÃO. Cortez. São Paulo, 2001.
MAINGUENEAU, Dominique. NOVAS TENDÊNCIAS EM ANÁLISE DO
DISCURSO. Unicamp / Pontes. Campinas, 1989.
MAINGUENEAU, Dominique. “A PROPÓSITO DO ETHOS”. IN
MOTTA, ANA RAQUEL; SALGADO, LUCIANA (ORGS.). ETHOS
DISCURSIVO. Contexto. São Paulo, 2008.
MAINGUENEAU, Dominique. O CONTEXTO DA OBRA LITERÁRIA.
Martins Fontes. São Paulo. 1995.
MAINGUENEAU, Dominique. TERMOS-CHAVE DA ANÁLISE DE
DISCURSO. UFMG. Belo. Horizonte, 2000.
MAINGUENEAU, Dominique; CHARAUDEAU, Patrick. DICIONARIO
DE ANALISE DO DISCURSO. Contexto. São Paulo, 2006.
MUSSALIN, Fernanda. “A Análise do discurso”. In MUSSALIN, F.;
BENTES, Anna Christina. INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA 2 – domínios
e fronteiras. Cortez. São Paulo, 2001.
ORLANDI, Eni P. A LINGUAGEM E SEU FUNCIONAMENTO. Pontes.
Campinas, 1987.
PÊCHEUX, Michel. "A Análise de Discurso: três épocas (1983)". In:
GADET, F.; HAK, T. (orgs.). POR UMA ANÁLISE AUTOMÁTICA DO
DISCURSO - uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Unicamp.
Campinas, 1990.
PIÉGAY-GROS, Nathalie. INTRODUCTION À L'INTERTEXTUALITÉ.
Dunod. Paris, 1996.
POSSENTI, Sirio. APRESENTAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO.
Glota. São José do Rio Preto, 1990.
FONTES DAS IMAGENS
1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer2. http://1.bp.blogspot.com/-FvY0mwK4IfY/UJlYphfjSSI/AAAAAAAAACs/zvxIqY18kjc/s1600/PCN.gif3. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf 4. http://pt.wikipedia.org/wiki/Noam_Chomsky5. http://www.adobe.com/go/getflashplayer6. http://www.cria-minha.blogger.com.br/2009_09_01_archive.html7. http://alva2005.blogs.sapo.pt/arquivo/internet01.jpg8. http://www.supertextos.com/texto/Erro_De_Portugu%C3%8As_N%C3%83o_Existe/2117
Responsável: Professor Nelson Barros da Costa
Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual
84