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anais do iv performa clavis internacional 2016
os instrumentos de teclado no século XXI e as mudanças de paradigma nas práticas interpretativas
09 a 11 de novembro de 2016 UNESP – Instituto de Artes São Paulo, SP, Brasil
[1]
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP
P438a
Performa Clavis Internacional (4.: 2016: São Paulo)
Anais do IV Performa Clavis Internacional / organização: Nahim Marun Filho, Danieli Verônica Longo Benedetti. - São Paulo : Unesp, Instituto de Artes, 2016.
71 p. : il.
ISBN: 978-85-62309-26-7
1. Performance (Arte). 2. Música - Execução. 3. Cravo (Instrumento musical). 4. Piano. 5. Instrumentos de teclado. I. Marun Filho, Nahim. II. Benedetti, Danieli Verônica Longo. III. Título.
CDD 786
[2]
Ficha Técnica
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (UNESP)
REITOR: Julio Cezar Durigan
VICE-REITOR: Eduardo Kokubun
INSTITUTO DE ARTES – SÃO PAULO
DIRETORA: Valerie Ann Albright
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
CHEFE: Ricardo Lobo Kubala
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
COORDENADOR: Margarete Arroyo
COMISSÃO ORGANIZADORA
Nahim Marun (Presidente) – UNESP
Danieli Longo Benedetti – UNESP
Dorotéa Kerr – UNESP
Edmundo Hora – UNICAMP
Eduardo Monteiro – USP
Lia Tomás - UNESP
COMISSÃO CIENTÍFICA
Alexandre Zamith – UNICAMP
Iracele Vera Lívero – UNESP
Luciana Sayure – USP
Mário Videira - USP
COMISSÃO ARTÍSTICA
Anna Claudia Agazzi
Danieli Longo Benedetti – UNESP
Edmundo Hora – UNICAMP
Fernando Corvisier – USP
FORMATAÇÃO E REVISÃO DOS ANAIS
Andrey Bacovis
APOIO
Programa de Pós-Graduação em Música - UNESP-IA
Departamento de Música - UNESP-IA
Programa de Pós-Graduação em Música - UNICAMP
Programa de Pós-Graduação em Música - USP
Fundação para o Desenvolvimento da UNESP - FUNDUNESP
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
[3]
Apresentação
Apresentamos à comunidade científico-musical os anais do IV Performa Clavis Internacional
2016. Este Simpósio foi idealizado como um projeto colaborativo entre os Programas de
Pos-Graduacao da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade de São Paulo (USP)
e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Seu foco central é a investigação dos
vários aspectos que compõem as Praticas Interpretativas dos instrumentos de teclado. O
Performa Clavis pretende fortalecer todas as linhas de pesquisa deste instrumento,
divulgando e conjugando ideias partilhadas pelos instrumentistas, professores e
pesquisadores de diversas instituições nacionais e internacionais. A programação desta
edição apresentou palestras, mesas redondas, masterclasses, recitais nacionais e
internacionais, bem como seções de comunicações dedicadas aos trabalhos submetidos e
aprovados pelo nosso comitê científico. Foram selecionadas sete comunicações com
temática que abrange aspectos pedagógicos do teclado, a construção do cravo, reflexões
sobre música contemporânea, a música do compositor português João Domingos
Bomtempo, a leitura musical em braile e cuidados físicos para o pianista. A diversidade dos
temas propostos e sua relevância trazem uma importante contribuição para a área de
performance dos instrumentos de teclado.
Sejam todos bem-vindos e aproveitem o conteúdo dos
Anais do IV Performa Clavis Internacional 2016!
Nahim Marun
Presidente do IV Performa Clavis Internacional 2016
[4]
Índice
Ficha Técnica Apresentação Mikrokosmos de Béla Bartók: performance – um caminho para a contemporaneidade Alfeu Rodrigues de Araujo Filho Elementos texturais da “London Pianoforte School” nas sonatas para piano de João Domingos Bomtempo Andrey Costa Bacovis Nahim Marun Filho O cravo industrial. Instrumento histórico versus contemporâneo. Uma abordagem equivocada? Carlo Vinícius Rosa Arruda Edmundo Pacheco Hora O cuidado de si como metodologia para o aprimoramento da performance musical: relato de experiência Daniel Vieira Música mista para piano: relato de um projeto pedagógico Danilo Rossetti Alexandre Zamith de Almeida Quando as mãos tocam as notas: O Sistema Braille como ferramenta de acesso à literatura pianística Fabiana Fator Gouvêa Bonilha Ana Elisa de Campos Lobo O cravo na justaposição do antigo e moderno Patricia Gatti
2 3 5 13 22 32 42 52 62
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[5]
Mikrokosmos de Béla Bartók: performance – um caminho para a
contemporaneidade
Alfeu Rodrigues de Araujo Filho
Universidade Estadual de Maringá – [email protected]
Resumo: Este trabalho apresenta um relato de experiência de ensino em um curso de extensão do
projeto PIN: PIano como INstrumento de INformação, INclusão e INterdisciplinaridade, locado em
uma instituição de ensino superior. A temática aborda o Mikrokosmos de Béla Bartók como
importante metodologia de execução pianística, baseado na multiplicidade de recursos musicais,
técnicos e interpretativos inseridos em cada obra, minimizando a distância entre teoria e prática,
ratificando seu forte caráter pedagógico.
Palavras-chave: Ensino. Piano. Performance. Béla Bartók.
Béla Bartók’s Mikrokosmos: performance – a path to contemporaneity
Abstract: This paper presents a teaching experience of account in a PIN project extension course :
PIan as information tool , inclusion and interdisciplinarity, leased at a higher education institution.
The theme addresses the Mikrokosmos of Béla Bartók as important pianistic implementation
methodology , based on the multiplicity of musical , technical and interpretative resources embedded
in each work, minimizing the distance between theory and practice , confirming its strong
pedagogical.
Keywords: Education. Piano. Performance. Béla Bartók.
Descrição do Projeto - PIN: PIano como INstrumento de INformação,
INclusão e INterdisciplinaridade
O Departamento de música atua intensamente junto às comunidades externa e
interna com projetos de extensão de grande duração. O Projeto PIN tem como fundamentação
teórica a utilização do piano alicerçado nos atuais parâmetros educacionais, valorizando a ações
de caráter coletivo e detectando a importância no desenvolvimento de inúmeras habilidades
como: acompanhamento, improvisação, transposição, leitura à primeira vista, desenvolvimento
básico da técnica instrumental, consciência corporal, leitura da ortografia tradicional e cifras,
entre outras. Desta forma, através dos cursos de extensão pertencentes ao projeto, procura
aplicar na prática as informações teóricas, assim como o desenvolvimento das habilidades
descritas acima com enfoque à formação e educação do indivíduo, reforçando o piano como
importante ferramenta de informação, inclusão e ação interdisciplinar (música; acústica;
história; psicomotricidade; eutonia; educação musical; desenvolvimento social, entre outras).
No primeiro semestre de 2016, o curso de extensão foi elaborado tendo como
temática central o Mikrokosmos de Béla Bartók, cuja importância estará descrita nesta
investigação. Contou com a participação de nove instrumentistas alfabetizados musicalmente e
com conhecimento básico a respeito da execução pianística. Sob a orientação do coordenador,
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[6]
receberam instruções no laboratório de pianos digitais do departamento de música através de
aulas coletivas e individuais, valorizando a importância do trabalho em grupo e recebendo
assistência específica para os problemas pontuais.
Béla Bartók: Mikrokosmos
A terminologia Mikrokosmos descreve um guia de pequenas obras (Mikro) baseado
em uma diversidade de descobertas sem fronteiras, universalismo (Kosmos). Composto entre
1926/1937 representa uma de suas obras mais importantes para o piano cuja origem está
associada na necessidade do compositor obter uma organização pedagógica para a formação de
seu próprio filho, ratificando seu caráter didático, assim como o interesse em criar um método
para piano que pudesse representar as novas ações da música do século XX, mudança de
paradigma. Esta coletânea de 153 pequenas peças está organizada em seis volumes, oferecendo
aprendizado progressivo, abordando importantes habilidades da formação musical. Os quatro
primeiros cadernos apresentam caráter pedagógico, trazendo um apêndice de exercícios
específicos relatados no final de cada volume com objetivo de treinar as principais exigências
técnico-musicais. Os volumes V e VI são concebidos como peças de concerto, caráter artístico,
onde o intérprete deverá empregar as informações apreendidas, transferência de aprendizagem.
A transferência de aprendizagem é a possibilidade de aplicar, em uma nova situação,
conhecimentos, hábitos, métodos, etc., adquiridos em outras circunstâncias. O
indivíduo percebe que uma mesma solução, que permitiu superar as dificuldades de
um determinado problema, serve para vencer as que no momento enfrenta.
(KAPLAN, 1987: 84).
Bartók (1881-1945), através de seu Mikrokosmos, apresenta de forma didática e
gradual recursos como fórmulas de compasso (simples e composto); figuras rítmicas; claves de
sol e de fá, desenvolvendo a leitura das notas pelo processo associativo (paralelismo);
pensamento tonal (armadura de claves); organização modal (relação intervalar); terminologias
de intensidades (p, mp, mf, F, FF); articulações (stacatíssimo, staccato, non-legato, legato,
legatíssimo, tenuto); diversidade de acentuações; conquista das tessituras (conhecimento
geográfico do teclado para o processo de locomoção); dedilhado; frases simétricas e
assimétricas; polirritmia; politonalidade; terminologias de interpretação (dolce, martelatto,
stretto, vigoroso,....); terminologias de andamento (acellerando, rallentando, ritenutto, ...),
ratificando o método como um guia de elementos teóricos no processo de alfabetização,
despertando o interesse dos alunos pela funcionalidade dos recursos musicais.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[7]
Outro importante ingrediente do método está na audição de novos parâmetros
sonoros que não estão relacionados somente aos da música tonal tradicional, ampliando seu
escopo auditivo. Reporta compositores como Bach (1685-1750), Beethoven (1770-1827),
Debussy (1862, 1918), entre outros, assim como um compêndio do estilo pessoal de Bartók e
de muitos aspectos da evolução musical na primeira metade do século XX, contribuindo de
forma expressiva no aprendizado sonoro, estético e técnico das conquistas históricas.
Sala de aula: uma experiência de ensino
A elaboração do referido curso de extensão, sobre o universo do Mikrokosmos de
Béla Bartók, foi traçado dando ênfase em questões como: importância do processo de
alfabetização em busca da autonomia do indivíduo; procedimentos de leitura; desenvolvimento
técnico na obtenção da dissociação muscular; conquista das relações sonoras atrelada ao
treinamento auditivo e corporal; processos de escrita e sua conseqüência na ação da
performance e motivação.
A execução ficou centrada no primeiro volume do Mikrokosmos, respeitando o
nível de conhecimento musical e técnico do grupo, entretanto considerações, olhar analítico e
escutas foram realizados em todos os seis volumes, oferecendo uma visão global desta literatura
pianística.
Como ponto de partida, tendo como meta a valorização na formação do indivíduo,
o grupo foi estimulado a refletir sobre o processo de emancipação e autonomia: conhecimento
que gera liberdade. Os discentes enfatizaram a importância da alfabetização, onde o
aprendizado consciente de uma determinada forma de escrita oferece a experiência da lógica,
do raciocínio e do prazer gerado pela compreensão dos significados. O objetivo estava em
motivar o estudo teórico, evitando que o contato com os elementos musicais fossem apenas
subjetivo e empírico. Tal colocação provocou maior interesse em compreender os processos da
ortografia musical, minimizando a distância entre teoria e prática com base na funcionalidade
da informação, estimulando o olhar analítico e reflexivo sobre o trabalho desenvolvido.
Em um questionário, previamente elaborado pelo orientador, uma das principais
dificuldades dos discentes em relação à execução instrumental estava relacionada ao processo
de leitura musical. Temos, dentro desta problemática, um diferencial qualitativo nas obras do
referido método. Bartók cria, nos dois primeiros volumes, uma seqüência de obras estruturadas
nos pentacordes. Diferente da maioria dos livros de iniciação ao piano, a leitura não está
associada a partir do Dó central, mas um pentacorde acima e abaixo desta referência, criando
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[8]
um raciocínio associativo entre as claves de Sol e de Fá, minimizando a real dificuldade em
relação à clave de Fá. Através do processo imitativo, observando mão direita e esquerda, os
estudantes obtiveram maior facilidade na leitura, reforçando que a imitação é uma etapa
preliminar para o caminho da razão. Vale ressaltar que há mudança de pentacorde, porém, não
há deslocamento das mãos. Como temos cinco notas para cinco dedos, uma vez posicionado, o
aluno pode fixar sua atenção na partitura, desenvolvendo o senso de localização, evitando olhar
para o teclado, péssimo hábito para uma leitura dinâmica.
O tempo que se gasta transportando o olhar da página de música para o teclado e deste
novamente para a peça em estudo, todo o tempo gasto neste duplo percurso, é tempo
roubado à leitura, fatalmente mutilada por inúmeras interrupções, surpresas e hesitações. (...) Valendo-se unicamente da vista, o aluno não desenvolve o “senso de
distância”, não adquire um seguro conhecimento do teclado e, em conseqüência, não
aprende a localizar-se com segurança. (SÁ PEREIRA, 1964: 16).
Neste contexto, realizando a análise do pentacorde utilizado por Bartók para a
descoberta da região geográfica, identificamos que este recurso contribuiu na prática da leitura
à primeira vista que exige contínua ação de antecipação e desenvolvimento da visão
globalizada, em detrimento da específica, incorporando partitura e instrumento.
Na continuidade dos procedimentos do conteúdo programático deste curso de
extensão está o desenvolvimento técnico na obtenção da dissociação muscular, movimento
individual dos cinco dedos. Inicialmente foi estimulada a reflexão sobre as diferenças na
utilização da mão no dia a dia e na ação da execução pianística, chegando ao resultado sobre a
ação de caráter coletivo (movimento de pegar) e a ação individual (execução de cada nota). Tal
compreensão confirmou que esta era uma nova aquisição a ser apreendida pelo cérebro e pelo
corpo, exigindo um processo de extrema observação e consciência. Na transferência deste
raciocínio para o Mikrokosmos de Béla Bartók, identificamos que a inserção dos cinco dedos é
um fator diferencial e qualitativo desta literatura musical, lembrando que os métodos de
iniciação baseados no Dó central não utilizam imediatamente todos os dedos, os mesmos são
inseridos mediante a descoberta da próxima nota, através do movimento ascendente e
descendente. Foi levado em consideração que, no geral, utilizamos as mãos através do reflexo
que é uma resposta invariável a um estímulo definido. Entretanto, a execução pianística exige
a individualidade da articulação dos dedos, estimulando o aprendizado do movimento
voluntário, aquele que reclama a intervenção consciente de quem o realiza.
Sendo um tipo de ação da qual participam as estruturas neurológicas, musculares e
ósseas do indivíduo, podemos dizer que o movimento voluntário é a manifestação
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
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periférica de um processo que tem sua origem e controle no cérebro e no sistema
nervoso central e que obedece a uma necessidade do indivíduo que o realiza. (...) é o
tipo de movimento utilizado no ato da aprendizagem instrumental. (KAPLAN, 1987:
30)
Esta estratégia auxiliou na compreensão dos estudantes por um dos principais
fundamentos da moderna metodologia pianística: a valorização do estudo científico, a lógica.
O estudo baseado na qualidade e não na quantidade de repetição, uma vez que o produto
qualitativo é fruto de uma ação controlada, técnica racional. Segundo Hans Von Bulow (1830-
1894) “três são as coisas de que precisa um pianista: a primeira é técnica, a segunda é Técnica
e a terceira é TÉCNICA” (KAPLAN, 1966: 3). Tal citação não exclui a enorme gama de
procedimentos musicais que implicam o ato da execução, apenas reforça a importância do
“como” fazer, permitindo aos instrumentistas vencer os árduos problemas de execução
presentes nas obras-mestras da literatura pianística.
O próximo item foi desenvolvido através da seguinte pergunta realizada pelo
orientador: qual a sua principal relação com o instrumento musical? Após um longo processo
de discussão, os discentes chegaram à conclusão de que a resposta seria o som. Temos, então,
o novo ponto a ser trabalhado e que está diretamente ligado na conquista das relações sonoras
atreladas ao treinamento auditivo e corporal. O piano é um instrumento que responde de forma
direta e fiel ao contato dos dedos com o teclado. Sendo assim, a percepção, audição, sensação
e leitura corporal são extremamente importantes na procura de uma conexão confortável,
resultando na construção de uma rica e harmoniosa qualidade sonora. O orientador despertou
nos estudantes o estudo direcionado ao próprio corpo, ratificando que o piano é um instrumento
que já está pronto e completo, sendo o instrumentista incompleto, flexível e passível de
mutação. Daí a importante colocação: sendo o som a principal relação entre o instrumentista e
seu instrumento, seu planejamento está associado com o refinamento das percepções sensoriais
e auditivas. Sob o ponto de vista auditivo, as vinte e uma primeiras obras presentes no volume
I não apresentam nenhuma informação sobre dinâmica ou sonoridade, oferecendo ao
instrumentista equilíbrio da articulação dos cinco dedos, procurando a manutenção da mesma
energia. Após este equilíbrio, foi estimulada a exploração de novos recursos de sonoridade.
Bartók confirma este pensamento oferecendo, a partir da vigésima segunda obra, as primeiras
referências de dinâmica baseadas nos extremos: F e p. O aprendizado dos extremos criou
referência para sonoridades intermediárias como mf, pp, crescendo e diminuendo, comprovando
o raciocínio pedagógico na conquista das relações sonoras.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[10]
O processo de criação musical apresenta, ao longo de sua trajetória, tipos
específicos de escritura que caracterizam cada período, construindo a História. Através das
orientações e análise dos textos musicais, o grupo que pertence a este curso de extensão pode
observar que Bartók sofreu forte influência da arte polifônica da J.S.Bach, assim como do
pensamento homofônico e monódico presente nos períodos clássico e romântico, trazendo a
reflexão de que os processos de escrita apresentam uma conseqüência imediata na ação da
performance, como:
a polifonia barroca, através das idéias imitativas, unifica o desenvolvimento entre mão
direita e esquerda, uma vez que não há um plano de hierarquia, mas a participação ativa
de ambas na construção do necessário diálogo;
a organização homofônica exige o preparo de dois planos específicos de sonoridade
correspondentes à linha melódica e à linha harmônica;
a arte monódica requer continuidade e equilíbrio na manutenção do desenho melódico
onde a identidade das mãos desaparece, prevalecendo o resultado sonoro da ideia
central.
Além do desenvolvimento auditivo, todos os três procedimentos exigem olhar
analítico, compreensão estética e técnica apurada para atingir a liberdade que transforma a
interpretação em objeto artístico.
...imaginação é não apenas a mãe do capricho como também serva da vontade criativa.
A função do criador é selecionar os elementos que ele recebe daí, pois a atividade
humana deve impor limites a si mesma. Quanto mais a arte é controlada, limitada,
trabalhada, mas ela é livre. (STRAVINSKY, 1966: 63).
Respeitando a natureza do mundo contemporâneo, marcado pela velocidade de
informação e conseqüentes mudanças, Bartók oferece ao estudante diferentes elementos
musicais que possam alimentar o interesse pelo novo, criando um motivo que desperte o prazer
pela procura, aprendizado e mutação. A multiplicidade de recursos musicológicos, técnicos e
intepretativos inseridos em cada micro-obra, atribuem ao Mikrokosmos um grande diferencial
qualitativo. Foi realizada uma análise na primeira peça do volume I cuja extensão é de oito
compassos. Este olhar descreveu tal multiplicidade:
Musicológico: apresenta o pentagrama (organização da escrita musical); compassos
(divisão rítmica); fórmula de compasso (compreensão das figuras rítmicas); claves de
Sol e de Fá (leitura comparativa); figuras rítmicas (semibreve e mínima – proporção);
pausa de mínima (relação entre som e silêncio); pentacorde de Dó (posição geográfica).
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[11]
Técnico: individualidade dos dedos (pentacorde: dissociação muscular); dedilhado
(locomoção e organização); movimento paralelo ascendente e descendente (motricidade
e deslocamento).
Interpretativo: toque legato (como dizer); linha de fraseado (texto musical); indicação
de tempo (velocidade e caráter estético).
Ressaltamos que dentro deste olhar analítico, baseado nas informações oferecidas
pelo Mikrokosmos, os discentes ficaram estimulados pelo novo, procurando o que está por vir,
evitando a fadiga de um estudo calcado em um repertório sem novas expectativas.
Qualquer tipo de aprendizagem – motora, de compreensão de conceitos, etc. – só se
realiza através da atividade do aprendiz, que precisa de motivos para levá-la a cabo.
(...) Incentivar a aprendizagem é colocar o aluno em situações que provoquem no seu
psiquismo as fontes de energia interna – os motivos – que o levarão a estudar com
interesse e prazer. (KAPLAN, 1987: 62-64).
Este estímulo pelo desconhecido provoca uma cadeia contínua de um novo sistema
de respostas. “A formação de um novo ‘sistema’ de respostas a uma dada estimulação impõe
um fato que tem uma relevância considerável no processo de criação de uma nova estrutura
funcional: o fenômeno da aprendizagem”. (KAPLAN, 1987: 42).
Considerações Finais
A escolha do Mikrokosmos de Béla Bartók para o referido curso de extensão
ocorreu, além de sua importância e indiscutível qualidade, em função de trazer para o estudo
inicial de piano as novas ações da música do século XX, uma vez que os outros períodos já
possuíam este acervo como: o pequeno livro de Anna Magdalena Bach, organizado por J. S.
Bach, representando o barroco; as sonatinas de W. A. Mozart (1756-1791) e L.V. Beethoven
(1770-1827), tratando os conceitos do Classicismo, assim como o Álbum para Juventude op.68
de R. Schumann (1810-1856), descrevendo os procedimentos técnicos e interpretativos do
Romantismo.
As ações metodológicas, enfatizando a importância da pesquisa e reflexão na ação
da execução, ratificam a mutação de paradigma na valorização do tratamento da performance
como ciência, equilibrando racionalidade e subjetividade inerente do fazer musical. Bartók, em
sua pesquisa sobre música folclórica, demonstra a importância do olhar científico na descoberta
e disseminação da informação. Há uma citação de Leonardo da Vinci em seu Tratado da Pintura
que diz: “Os que se empenham em práticas sem ciência são como navegantes sem bússola nem
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
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leme, que não sabem jamais, com certeza, para onde se encaminham. (...) A prática deve estar
sempre edificada sobre a boa teoria”. (KAPLAN, 1996: 7).
A apresentação gradativa dos procedimentos musicológicos, além de auxiliar no
processo de alfabetização, ratificando seu caráter pedagógico, representou a aplicação prática
de recursos teóricos, minimizando a distância entre estas ações, valorizando a transferência de
aprendizagem. O pensamento pedagógico, alicerçado no dinamismo e baseado na
multiplicidade de informações, auxiliou na manutenção do prazer, item imprescindível no
processo de formação, evitando a evasão dos discentes no decorrer do curso.
A leitura associativa através dos pentacordes, assim como importantes recursos de
motricidade, coordenação, educação auditiva e técnicas de escritura foram estratégias que
confirmaram a consciência do compositor na formulação do Mikrokosmos, transformando este
em uma referência qualitativa da literatura pianística. Além do mais, tipos específicos de toques,
independência das mãos e dos dedos, exploração de recursos harmônicos, pedalização,
procedimentos de locomoção, ornamentação, entre outros, fundamentam a importância da
mesma no exercício da performance instrumental.
Seu Mikrokosmos abarca uma síntese dos períodos históricos, vide influência dos
compositores anteriores, assim como inúmeros procedimentos da música moderna, oferecendo
aos estudantes um arsenal auditivo, técnico e interpretativo de grande diversidade. Exige
análise, experimentação, observação, reflexão e mutação, componentes que marcam as
mudanças de paradigma nas práticas interpretativas dos instrumentos de teclado no século XXI.
Bibliografia
COELHO, Lauro Machado. Nela vive a alma de seu povo: vida e obra de Béla Bartók. São
Paulo: Algol Editora, 2010.
KAPLAN, José Alberto. Reflexões sobre a técnica pianística. João Pessoa: Imprensa
Universitária, 1966.
---------------------------- O Ensino do Piano – Ponderações sobre a necessidade de um enfoque
científico. Rio Grande do Norte: Imprensa Universitária, 1976.
--------------------------- Teoria da Aprendizagem Pianística – uma abordagem psicológica.
Porto Alegre: Editora Movimento, 1987.
SÁ PEREIRA, Antonio. Ensino Moderno de Piano. São Paulo: Ricordi, 1964.
STRAVINSKY, I. Poética Musical. Trad.: Paulo Horta. Rio de Janeiro: Zaham, 1996.
SUCHOFF, Benjamin. Bartók’Mikrokosmos – Gênesis, Pedagogy and Style. Oxford: The
Scarecrow Press, 2002.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[13]
Elementos texturais da “London Pianoforte School” nas sonatas para piano
de João Domingos Bomtempo
Andrey Costa Bacovis UNESP/FAPEAM – [email protected]
Nahim Marun Filho Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – [email protected]
Resumo: João Domingos Bomtempo foi um compositor e pianista que, apesar de ter nascido em
Portugal, esteve de 1801 a 1820 em Paris, Londres e Lisboa. Este artigo objetiva a apresentação de
elementos texturais da Escola Pianística de Londres nas sonatas deste compositor. Para isso, também foi necessário apresentar uma breve contextualização biográfica de Bomtempo. Realizou-
se pesquisa bibliográfica em livros e artigos que abordam a vida e a obra de Bomtempo. Os
elementos texturais de suas sonatas foram associados à literatura especializada nas práticas
interpretativas, especialmente àquelas que abordam o estilo musical dos compositores da Escola
Pianística de Londres, com os quais Bomtempo teve contato.
Palavras-chave: Bomtempo. Textura Musical. Sonata. Piano.
Textural Elements From The “London Pianoforte School” In João Domingos Bomtempo’s
Piano Sonatas
Abstract: João Domingos Bomtempo was a composer and pianist who, despite being born in
Portugal, was from 1801 to 1820 in Paris, London and Lisbon. This article aims to present textural
elements from the London Pianoforte School in the sonatas of this composer. So, it was also
necessary to give a brief biographical contextualization of Bomtempo. A bibliographic research
was done in books and articles that approach Bomtempo’s life and works. The textural elements of his sonatas were associated with the literature specialized in performance practices, especially
those addressing the musical style of the composers from the London Pianoforte School, with
which Bomtempo had contact.
Keywords: Bomtempo. Musical Texture. Sonata. Piano.
1. Dados biográficos do compositor
João Domingos Bomtempo nasceu em Lisboa no dia 28 de dezembro de 1775,
filho de Mariana da Silva Bomtempo e de Francisco Xavier Bomtempo1, o qual era italiano, e
ocupava o cargo de primeiro oboé na Real Câmara de D. José I. (ALVARENGA, 1993: 83).
Bomtempo estudou música desde criança, muito provavelmente através da orientação paterna,
com quem aprendeu oboé, e também estudou piano e contraponto com os professores do
Seminário da Patriarcal (VIEIRA, 1900: 109).
Em 1789, foi admitido pela Irmandade de Santa Cecília como cantor, e a partir de
1890 participou na execução de missas, ofícios e novenas cantando a parte de soprano,
atividade a qual exerceu até 1795. Neste ano, seu pai veio a falecer, e foi designado para
substituí-lo como primeiro oboé na Real Câmara, onde permaneceu até princípios de 1801
(ALVARENGA, 1993: 84).
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
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Bomtempo se mudou para a Paris em 1801 a fim de triunfar como pianista e
compositor instrumental (BRITO & CYMBRON, 1992: 139). SARRAUTE (1980: XII)
defende que Bomtempo foi a Paris esperando encontrar uma arte nova, a qual adotou
inteiramente, diferente dos demais compositores portugueses, os quais, durante todo o século
XVIII, haviam viajado à Itália para estudar sua arte.
Em 1802, poucos meses após a chegada de Bomtempo em Paris, chegou nesta
cidade Muzio Clementi (1752-1832), que, além de célebre compositor, era empresário, e
possuía em Londres uma fábrica de pianos e uma tipografia especializada em publicações de
material musical. Afim de apresentar melhor a qualidade de seus instrumentos, Clementi
trouxe consigo John Field (1782-1837), pianista muito brilhante e compositor de mérito
reconhecido (SARRAUTE, 1980: XII). O contato com Clementi foi muito importante para a
formação do estilo de Bomtempo. Mesmo se não tiver recebido diretamente lições de
Clementi, Bomtempo soube aproveitar seu exemplo com muita habilidade, como fica evidente
em suas obras (VIEIRA, 1900: 111).
Nesse período, compôs e publicou duas Sonatas e um Fandango Varié para piano
solo, quatro Concertos para piano e uma Sinfonia, sendo muito elogiado pela crítica. Nessa
época, Paris recebia pianistas brilhantes, como Clementi, Field, Kalkbrenner e Dussek.
Mesmo assim, Bomtempo conseguiu se destacar neste ambiente, conforme atesta a crítica
feita pelo Jornal Le Courrier de l’Europe:
Mr. Bomtempo é um artista celebre, e de um raro merecimento. Ninguem tira do
piano sons mais maravilhosos do que elle. Debaixo da sua mão sabia, firme, atrevida
e ligeira, o teclado submisso e docil responde a tudo o que d’elle exige Mr.
Bomtempo. Sua representação pessoal, e a dos professores que elle tinha convocado
para seu concerto, tinha excitado a attenção do Publico, e attrahido a muitidão, mesmo depois do concerto de Mr. Lahoussaie. Mr. Bomtempo excedeu ainda a
expectaçãodos seus ouvintes: nunca os toques do piano resoaram de uma maneira
mais brilhante. O tocar de Mr. Bomtempo é nobre, rapido, cheio de calor, d’alma e
de elegancia... (apud VIEIRA, 1900: 113).
Bomtempo mudou-se para Londres em 1810, forçado por razões de ordem política
e militar (SARRAUTE, 1980: XIII). Nessa época, as tropas de Napoleão estavam em
confronto contra Portugal, e como consequência, os portugueses começaram a ser mal vistos
pelos franceses. Permaneceu em Londres até 1814, onde foi muito bem recebido pela colônia
portuguesa e pelas principais famílias desta cidade, além de estabelecer uma amizade muito
forte com Muzio Clementi (VIEIRA, 1900: 115-6). Na Inglaterra, compôs obras para piano
solo e com orquestra, concertos para piano, obras camerísticas, uma sinfonia, e a cantata
Hymno Lusitano (ALVARENGA, 1993: 85-6).
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[15]
Entre 1814 e 1820, Bomtempo esteve viajando constantemente entre Lisboa, Paris
e Londres em busca de uma estabilidade profissional, mas as circunstâncias não o
favoreceram (BRITO & CYMBRON, 1992: 139). Apesar de continuar compondo em gêneros
instrumentais, as obras de destaque neste período são as cantatas A paz da Europa, O
Annuncio da paz, e a Messe de Requiem “à la mémoire de Camões”, que se tornou sua obra
mais famosa.
Após ser proclamada a Constituição em 1820, Bomtempo retornou
definitivamente para Portugal, onde apresentou algumas de suas obras sacras em cerimônias
que possuiam um caráter mais político que religioso, entre elas, a Missa “em obsequio da
Regeneração Portugueza”2. Transformou-se no músico favorito do governo constitucional,
reunindo em torno de si muitos amantes da música. O ambiente favorável permitiu que, em
1822, Bomtempo criasse a Sociedade Filarmônica, inspirado na Philarmonic Society de
Londres. Além de obras do próprio Bomtempo, o repertório executado pela orquestra
abrangia peças camerísticas de Boccherini, Hummel, Pleyel, entre outros. As sinfonias de
Haydn, Mozart e Bethoven também eram executadas, mas devido ao pouco interesse do
público, tiveram de ser substituídas por aberturas de Rossini (BRITO & CYMBRON, 1992:
140). Este fato mostra a predileção dos portugueses pelo repertório italiano.
Em 1835, foi criado o Conservatório de Música, cujo projeto foi escrito por
Almeida Garret, e Bomtempo foi nomeado diretor (VIEIRA, 1900: 147). A partir daí,
Bomtempo se dedica principalmente às atividades relacionadas ao conservatório,
caracterizando um período de pouca produção compositiva. Em 1836, casou-se com Maria
das Dores Almeida, com quem teve seu único filho no ano seguinte. Faleceu no dia 18 de
agosto de 1842, em Lisboa (ALVARENGA, 1993: 92).
2. Elementos texturais da Escola Pianística de Londres nas sonatas de
Bomtempo
Nicholas TEMPERLEY (1988: 289) utiliza o termo “London Pianoforte School”3
para se referir aos pianistas-compositores envolvidos no mercado musical londrino,
especialmente a Clementi, cuja maneira de tocar, ensinamentos e obras exerceram enorme
influência sobre os outros compositores desta Escola. João Domingos fez várias viagens a
Paris e Londres, e nestes locais manteve contato com os compositores da Escola de Londres.
Antes de apresentarmos os elementos texturais da Escola Pianística de Londres nas sonatas de
Bomtempo, é importante conhecer um pouco do instrumento para o qual foram escritas: o
piano londrino.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[16]
Enquanto atualmente predomina uma certa padronização na escolha de materiais
para a fabricação de pianos, no século XVIII estes instrumentos eram obras de arte bastante
pessoais. Vivia-se em um ambiente de grande experimentalismo no que concerne à utilização
de materiais, mecânica e produção sonora. Apesar das diferenças entre os instrumentos de
diferentes regiões, cidades, ou até mesmo entre os pianos produzidos por um mesmo
fabricante, podemos identificar, aproximadamente entre finais do século XVIII e a primeira
metade do XIX, duas principais escolas de fabricação de pianos: a “Vienense” e a “Londrina”
(OORT, 2000: 73). A partir de aproximadamente 1800, o desenvolvimento do modelo de
piano londrino, cuja principal referência foram os pianos Broadwood, foi amplamente
difundido na França, onde predominavam os pianos Érard e Pleyel (BILSON, 1980: 265).
Uma das principais diferenças entre os pianos vienenses e londrinos está
relacionada à produção sonora: enquanto os primeiros possuíam os martelos conectados
diretamente ao teclado, conforme critérios herdados diretamente da construção do cravo, os
martelos dos pianos londrinos estavam conectados ao corpo do instrumento, os quais eram
colocados em movimento por alavancas fixadas ao teclado, multiplicando assim a velocidade
do martelo (CHIANTORE, 2001: 27). Além disso, os construtores londrinos utilizavam
cordas mais grossas e mais tensionadas, teclas e martelos maiores. Consequentemente, a
complexidade do mecanismo londrino ocasionou nos pianos uma depressão de tecla mais
profunda, menor capacidade de repetir notas, e demandou dos pianistas um toque mais pesado
em comparação ao mecanismo do piano vienense. (ROSENBLUN, 1988: 45).
Diferentemente dos pianos vienenses, cujos abafadores eram eficientes e precisos,
os abafadores dos pianos londrinos não abafavam o som instantaneamente, pois eram
construídos com peças de lã grossa pressionadas levemente sobre as cordas, ocasionando uma
reverberação mais ampla. (ROSENBLUN, 1988: 46). A ineficiência dos abafadores dos
pianos londrinos influenciou os compositores desta Escola a adotar em articulação o legato
como toque básico desde antes de 1800. Logo, as ligaduras presentes nas obras dos
compositores de Viena e de Londres não possuíam a mesma função: enquanto a primeira
priorizava a claridade, articulando pequenos grupos de notas, as ligaduras das obras dos
compositores de Londres abrangiam mais notas. “Se o piano inglês podia falar menos, ele
podia cantar mais que o piano vienense”4 (OORT, 2000: 78). No exemplo 1, podemos
encontrar as referidas ligaduras sobre uma melodia de caráter lírico e cantábile, típica da
Escola de Londres.
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[17]
Ex.1: Bomtempo: Sonata opus 18 n.2, I, comp. 85-90.
Outro aspecto da Escola de Londres que chama a atenção é o uso dos pedais.
Kalkbrenner, em seu Méthode pour apprendre le piano-forte a l'aide du guide-main, relata
que:
Dussek, John Field e J. B. Cramer, os líderes daquela escola a qual Clementi é o
fundador (e Bomtempo possuía contato)5, fazem uso do pedal forte enquanto a
harmonia não altera; Dussek era especialmente relevante neste aspecto, porque ele mantinha os abafadores quase continuamente elevados enquanto tocava em
público6 (apud OORT, 2000: 82).
As marcações de pedais impressas na partitura tinham como objetivo indicar
técnicas de pedais que desviassem da norma padrão, enquanto o uso normal do pedal ficava a
critério do intérprete (OORT, 2000: 82). As únicas sonatas de Bomtempo que apresentam
marcação de pedal são a opus 1 e opus 20: nesta última, no segundo movimento, há indicação
para manter-se o pedal pressionado durante três compassos seguidos, misturando harmonias
de dominante e tônica, e intervalos de segunda menor no baixo, ocasionando assim um desvio
da prática comum (exemplo 2). Interessante notar neste exemplo o símbolo representado por
uma cruz com circunferência, o qual, apesar de alguns compositores usarem como indicação
para descer os abafadores, na Inglaterra e na França é usado para indicar o levantamento dos
abafadores (ROSENBLUM, 1988: 115), e o próprio Bomtempo faz indicações escritas nas
partituras que este símbolo exerce a respectiva função. Outro aspecto a ser levado em
consideração nesta passagem é a possibilidade de Bomtempo ter concebido esta obra para um
piano com pedal dividido por regiões, os quais eram bastante comuns na Inglaterra
(ROSENBLUM, 1988: 42), mas mesmo assim, haveria mistura de sons dissonantes na região
intermediária ou no baixo.
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[18]
Ex.2: Bomtempo: Sonata opus 20, II, comp. 66-8. Podemos ver, no início do compasso 66, o sinal indicando que
o pedal deve ser pressionado, e a indicação para retirá-lo, representada por uma estrela, aparece no compasso 68.
Uma das figuras de acompanhamento mais frequentes nas obras para piano dos
compositores londrinos consistia em manter, na região grave, uma nota repetindo enquanto se
mantém um ponto pedal uma oitava abaixo. Esta sonoridade se tornou um cliché estilístico, e
se chamava “English Drum Bass” (OORT, 2000: 85). Esta figuração é bastante usada por
Bomtempo em suas sonatas, e podemos tomar como exemplo o início do primeiro movimento
da Sonata opus 9 n.1 (exemplo 3).
Ex.3: Bomtempo: Sonata opus 9 n.1, I, comp.1-3.
A ineficiência dos abafadores nos pianos ingleses criou a necessidade de uma
escrita bastante cuidadosa para indicar sons non-legato com precisão. Para isso, poderiam
fazer alternância entre colcheias com ponto de staccato e pausas de colcheia, utilizando até a
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[19]
própria palavra staccato. OORT (2000: 80) denomina este tipo de notação como
“contrarressonante”. No exemplo 4, podemos ver um exemplo da utilização deste efeito.
Ex.4: Bomtempo: Sonata opus 15 n.1, I, comp. 1.
Podemos encontrar nas sonatas de Bomtempo muitos elementos que mostram
virtuosismo, entre eles, passagens rápidas em terças, sextas e oitavas. Estes elementos
demonstram uma direta relação com a obra de Clementi, onde a técnica em si mesmo
representa uma verdadeira preocupação compositiva, e se mostra como um desafio entre
compositor e instrumentista (CHIANTORE, 2001: 144). Bomtempo também faz utilização de
texturas acordais, aspecto que demanda a utilização de técnica de braço (OORT, 2000: 84).
Ex.5: Bomtempo: Sonata opus 20, I, comp. 251-3. Utilização de técnica de terças.
Ex.6: Bomtempo: Sonata opus 20, I, comp. 97-99. Técnica de acordes, oitavas e trêmulos.
3. Considerações Finais
A estadia de Bomtempo na França e na Inglaterra permitiu que ele tivesse contato
pessoal com os compositores da Escola Pianística de Londres e suas respectivas obras. A
partir da literatura consultada, demonstramos como os elementos texturais presentes nas obras
destes compositores se projetaram nas sonatas de Bomtempo. Além do contato com
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[20]
compositores e obras, outro fator determinante dos elementos texturais das sonatas de
Bomtempo foi o piano de fabricação inglesa. O trabalho de comparação entre os elementos
texturais das sonatas de Bomtempo e o dos compositores da Escola de Londres explica muitos
aspectos da escrita pianística do compositor. Pretende-se, com este trabalho, contribuir para
uma maior compreensão do estilo e da trajetória de um compositor ainda pouco estudado na
história da música.
Referências:
- Livro
ALVARENGA, João Pedro d’. João Domingos Bomtempo 1775-1842. Lisboa: Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro, 1993.
BRITO, Manuel Carlos de; CYMBRON, Luísa. História da música portuguesa. Lisboa:
Universidade Aberta, 1992.
CHIANTORE, Luca. Historia de la Técnica Pianística. Madrid: Alianza Editorial, 2001.
ROSENBLUM, Sandra. Performance Practices in Classic Piano Music. Bloomington:
Indiana University Press, 1988.
VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes: Historia e Bibliografia
da Musica em Portugal. Volume 1. Lisboa: Typografia Mattos Moreira e Pinheiro, 1900.
- Capítulo de livro ou verbete assinado em enciclopédia
SARRAUTTE, Jean-Paul. Prefácio. In : BOMTEMPO, João Domingos. Obras para piano.
Edição fac-similada. Coligido por Filipe de Sousa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1980.
- Artigo em Periódico
BILSON, Malcolm. Schubert’s Piano Music and the Pianos of His Time. Studia Musicologica
Academiae Scientiarum Hungaricae, Akadémiai Kiadó, v.22, n.1/4, p.263-271, 1980.
Disponívem em: < http://www.jstor.org/stable/901999>. Acesso em: 22/04/2016.
OORT, Bart Van. Haydn and the English Classical Piano Style. Early Music, Oxford
University Press, v.28, n.1, p.73-84, 2000. Disponível em: <
http://www.jstor.org/stable/3518973>. Acesso em: 20/04/2016.
RINGER, Alexander. Beethoven and the London Pianoforte School. The Musical Quarterly,
Oxford University Press, v.56, n.4, Special Issue Celebrating the Bicentennial of
the Birth of Beethoven, p.742-758, 1970. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/740936>. Acesso em: 06/08/2016.
TEMPERLEY, Nicholas. London And the Piano, 1760-1860. The Musical Times, v.129,
n.1744, p.289-293, 1988. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/964880>. Acesso em:
11/02/2016.
- Partitura publicada
BOMTEMPO, João Domingos. Obras Para Piano. Edição fac-similada. Coligido por Filipe
de Sousa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1980.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[21]
Notas
1 Era normal, entre italianos que emigravam para Portugal, aportuguesar o nome. Logo, o nome original de
Francisco Xavier Bomtempo era Francisco Saverio Buontempo (VIEIRA, 1900: 108). 2 Apesar desta missa ser conhecida por este nome, ALVARENGA (1993: 88) acredita que se trata do Kyrie e
Gloria executado junto com o Te Deum em fá maior, ambas compostas em 1818 em Paris, e revisadas para serem executadas na referida ocasião. 3 Esta expressão foi usada por vários autores, e apesar de se referir à música para piano produzida em Londres
aproximadamente entre finais do século XVIII e primeira metade do XIX, aborda diferentes contextos. O
primeiro autor a utilizá-la foi Alexander RINGER (1970: 744), referindo-se às peculiaridades estilísticas da
música para piano em Londres, fruto das drásticas mudanças musicais promovidas pelo mercado musical da
classe média. 4 If the English piano could speak less, it could sing more than the Viennese Piano. 5 Parêntese nosso. 6 Dussek, John Field and J. B. Cramer, the leaders of that school of which Clementi is the founder, make use of
the forte pedal as long as the harmony does not change; Dussek was especially remarkable for that, because he
kept the dampers almost continuously raised when he played in public.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[22]
O cravo industrial. Instrumento histórico versus contemporâneo. Uma
abordagem equivocada?
Carlo Vinícius Rosa Arruda
UNICAMP - [email protected]
Edmundo Pacheco Hora UNICAMP - [email protected]
Resumo. O reviver do Cravo industrial contribuiu de modo preponderante para o processo de
ressignificação organológica cravística. Seu contraponto ao cravo “réplica histórica” complementa
o procedimento positivo dos paradigmas culturais. Sua abordagem com o novo instrumento implica
empirismo de alguns na divulgação e renovação do repertório cravístico característico de épocas passadas. Pontuar suas semelhanças e diferenças faz-se necessário evidenciando-se a figura de
Wanda Landowska e outros intérpretes que buscaram tal renovação.
Palavras-chave: Cravo industrial. Cravo histórico. Wanda Landowska.
The Industrial Harpsichord. Historical Instrument Versus Contemporary. A Mistaken
Approach?
Abstract. The revival of the "industrial harpsichord” has contributed predominantly to the process
of reframing the harpsichord’s organology. Its counterpoint to the "historical replica" complements
the positive procedure of cultural paradigms. Its approach with the new instrument implies empirism of some on the renewal of the repertoire for harpsichord from passed times. It is necessary to
punctuate their similarities and differences while also highlighting the figure of Wanda Landowska
and other interpreters that searched such renewal.
Keywords: Industrial Harpsichord. Historical Harpsichord. Wanda Landowska.
Com um histórico de pelo menos quinhentos anos, o ano de 2016 está associado ao
ano em que o cravo mais antigo foi encontrado em Siena – Itália (1516)1. Por volta de 18002 o
cravo fora momentaneamente ofuscado pelo piano, instrumento em ascensão na época. Mesmo
em seu ostracismo, o cravo ainda não seria totalmente esquecido3. Também, alguns cravos
foram restaurados e outros foram apresentados em concertos por pianistas que tentaram
reproduzir a música “antiga” de acordo com suas próprias convicções. Para KOTTICK (2003:
405):
Alguns colecionadores começaram a acumular cravos antigos precisamente porque
eram velhos. Alguns foram restaurados, e uns poucos foram apresentados em concertos
por pianistas tentando recriar a música antiga. Com um som fresco, porém antigo, o
instrumento ofereceu também uma opção atrativa para compositores. Pelo fim do século
XIX havia interesse suficiente no cravo para sugerir que poderia ser tempo de
ressuscitá-lo (KOTTICK, 2003: 405)4.
“Ressuscitar” seria um termo fora de contexto, pois em 1882 Louis Tomasini
restaurou o mesmo modelo de Pascal Taskin de 1769 e o emprestou para as firmas Erard e
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[23]
Pleyel com o intuito de servir à pesquisa. Contudo, o que se percebeu foi que a intenção destes
construtores era elaborar e fabricar instrumentos com características distintas visando
diversificação na construção – no mínimo “controversa”. KOTTICK (1992: 49) complementa
que, se “por um lado havia o desejo Romântico por objetos da antiguidade, [...], por outro lado,
havia a busca por artistas contemporâneos – pintores, escultores e escritores, assim como
compositores – para novos efeitos, novas sonoridades”5. Em 1889 os três fabricantes
supracitados apresentaram uma versão “modernizada” do instrumento na Exposition
Universelle Internationale de Paris. Assim, esta exposição marcou o início do desenvolvimento
do cravo industrial, pois poucos anos após a “Exposition”, construtores de países como
Inglaterra (1896), Alemanha (1899), e Estados Unidos (1909) começaram a fabricar
instrumentos.
Como regra geral, tanto o cravo da empresa Erard, quanto da Pleyel possuíam cinco
oitavas inteiras, dois manuais, três jogos de cordas sendo dois uníssonos (8 pés) e um oitavado
(4 pés). Os saltadores eram em madeira. A empresa Erard decidiu manter um dos registros de
8’ com plectro6 de pena, porém, os outros registros eram de couro - material utilizado em todos
os registros do cravo da empresa Pleyel.
Figura 1: Cravo Pleyel apresentado na Exposition Universelle Internationale de Paris em 1889. Disponível em:
<http://acoustics.org/pressroom/httpdocs/147th/kottick.html> Acessado em 28/08/2016.
Ao invés de seis pedais para registração utilizados por Pleyel, Erard, registra de
modo manual, embora, posteriormente à “Exposition”, adotasse o sistema com pedais.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[24]
Figura 2: Cravo Erard apresentado na Exposition Universelle Internationale de Paris em 1889. Disponível em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/76/ClavecinErard1889.jpg> Acessado em 28/08/2016.
Esta invenção modernizada, e ao mesmo tempo, orientada em nostalgia estética, era
interpretada por pianistas e entusiastas ao recriar o repertório característico da época em um
instrumento, que – momentaneamente – creditavam representação ao som do cravo7. Não havia
ainda algum conceito sedimentado sobre instrumentos históricos sendo adaptados para
determinado repertório e a divulgação em palco e em áudio, atribuía mais credibilidade à
sonoridade.
Desenvolvimento e abordagem – Landowska, uma pioneira bem sucedida?
No final do século XIX, Wanda Landowska terminava sua educação musical em
Berlim estudando piano e composição com Heinrich Urban. Embora ela tivesse visto cravos
antigos, os instrumentos com que Landowska se deparou haviam sido negligenciados e não
estavam em condições de serem tocados. Somente quando se mudou para Paris em 1900 que
seu interesse pelo cravo desenvolveu e amadureceu, apesar do repertório setecentista e
oitocentista já preencherem sua imaginação desde quando morava na Polônia. Ao chegar a
Paris, começou uma campanha cujo principal objetivo era, segundo depoimento próprio:
[...] fazê-lo viver novamente, para dá-lo sotaques jubilosos ou patéticos, para evocar a
pureza polifônica, para fazer os teclados acoplados ressoarem, para cantar com tons
remanescentes as cantilenas amorosas, tal era o meu sonho, um sonho múltiplo e vasto
(LANDOWSKA apud LO, 2004: 13). 8
A busca pela decoração ornamentada do instrumento, com o passar do tempo, se
tornava cada vez mais escassa, deixando-o com um aspecto mais simples e menos dispendioso.
O mecanismo do instrumento também foi modificado com aparatos mais “duráveis”, porém
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[25]
totalmente divergente do modelo histórico o qual foi inspirado. Segundo KOTTICK (2003:
407)
Eles achavam que a construção de sua caixa [sonora] era muito fraca, permitindo bastante movimentos, que levariam a instabilidade de afinação. Eles acreditavam que
os saltadores estavam imperfeitamente acasalados às suas guias, assumindo assim que
com os modernos métodos industriais, poderiam encaixar uns aos outros com uma
tolerância de meros milésimos de polegada. Achavam os teclados não satisfatórios,
faltando buchas de feltro para garantirem a ação silenciosa, além do peso suficiente nas
extremidades da tecla para garantir o retorno. Saltadores eram considerados leves
demais, sem a massa necessária para superar “cabides”, assim como a gravidade. O
plectro de pena de corvo era considerado muito delicado e de curta duração. O tampo
harmônico era muito fino para proporcionar estabilidade (KOTTICK, 2003: 407).9
Por achar que certos instrumentos possuíam algumas deficiências Landowska
contatou Gustave Lyon da Pleyel para desenvolver um instrumento para ela. Em 1912 o cravo
Grand Modèle de Concert foi criado. Nestes cravos seus plectros, ao invés de serem de penas
de corvo, eram de pedaços rígidos de couro, necessários para a atuação em um jogo de cordas
mais resistentes, com teclas mais pesadas e móvel em madeira natural. Desta forma o
instrumento ficava cada vez mais parecido com um piano, como ilustra a figura a seguir:
Figura 3: Cravo Grand Modèle de Concert da firma Pleyel. Fonte:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5e/PleyelGrandModeleDeConcert.JPG>. Acessado em
28/08/2016.
Um instrumento que possui características tão distintas dos instrumentos históricos
obviamente não poderia possuir a mesma abordagem que seriam utilizados nos cravos do século
XVIII. Instrumento com esse novo tipo de mecanismo requereu uma nova forma de interpretá-
lo e, diferente de antigamente, desta vez não havia tratados em como “fazer o instrumento
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[26]
falar”, além de técnicas específicas para este tipo de instrumento. No que concerne aos
conceitos de interpretação de Landowska – que ainda se aplicava aos moldes da tradição oral –
documentos representativos de suas aulas são quase inexistentes. Todavia, um dos documentos
encontrados, um caderno de anotações de sua aluna Lilye Karger, durante os anos 1929-1930,
aborda, segundo DYSON (1975: 240), problemas das posições dos dedos perante o teclado:
É bem conhecido que ela insistia que seus pupilos curvassem os dedos em cada uma
das três falanges, e que eles aprendessem a controlar a ponta do dedo
independentemente das outras falanges. Suas instruções básicas sobre toque eram
numeradas em três passos progressivos:
1. Sinta as teclas (mão em posição curvada e todas as cinco pontas dos dedos em
contato com as teclas)
2. Levante os dedos
3. Ataque (KARGER apud DYSON, 1975: 240).10
Ao analisarmos tratados de técnicas pianísticas de diversos autores e intérpretes,
desde o início do século XIX, abordagens são bastantes similares, principalmente no quesito
levantar os dedos e “atacar” – instruções corriqueiras em exercícios do fortalecimento digital.
Uma evidência desta similaridade ainda encontra-se em DYSON (1975: 240) ao afirmar que
“talvez a prescrição mais surpreendente para aqueles não familiarizados com os métodos da
Landowska é a ordem de que todos os exercícios técnicos devem ser praticados tanto no piano
quanto no cravo”11. Esta atitude é totalmente diferente da técnica sugerida em tratados
cravísticos do século XVI ao século XVIII12. Acredita-se que, devido ao excesso dos aparatos
mecânicos incorporados, Landowska desenvolveu a técnica de curvar as três falanges e levantar
os dedos para atacar as teclas, como uma forma aproximada na compensação da rigidez que
este “novo” cravo adquiriu.
Em 1954, o verbete Harpsichord playing escrito por R[obert] D[onington]13
informa que “entre os cravos modernos, os infratores chefes são instrumentos feitos para rigidez
e tensão excessiva numa expectativa bem ilusória de aumentar o volume, mas com a atual
consequência de endurecer o ataque enquanto diminui o sostenuto” (DONINGTON, 1954:
103)14. No mesmo verbete, (p. 104) explica que “um bom ataque [dos dedos] é como uma garra
de águia”15. Curioso notar como as mãos de Landowska apresenta formato um tanto controverso
do que ela propôs aos seus alunos. Realmente suas mãos são curvadas nas três falanges, porém
a região do metacarpo encontra-se crispada, em um formato bem parecido com a sugestão de
Donington, como na figura:
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[27]
Figura 4: Wanda Landowska em seu cravo Grand modele de Concert de Pleyel. Fonte:
<http://67.media.tumblr.com/f76b11aeb50146c1b92f61e5c5da1bf1/tumblr_mg1uq8G4UX1qaxihzo1_1280.jpg>
.Acessado em 29/08/2016.
Aparentemente, esta fôrma digital, ao abordar o teclado, tornou-se de certa forma
uma referência para cravistas ou para melômanos interessados no tema. Fotografias da época e
alguns encartes de long plays evidenciam esta posição da mão ao atacar a tecla. Um exemplo
está na capa do disco de Fernando Valenti:
Figura 5: Posição da mão em forma de garra de águia na capa do long play de Fernando Valenti de 1970. Fonte:
<https://www.amazon.com/gp/product/images/B00AP4TEY4/ref=dp_otherviews_z_0?ie=UTF8&img=0&s=mu
sic>. Acessado em 29/08/2016.
Outra abordagem similar ao instrumento pode ser encontrada em alguns livros de
técnica cravística publicados nas décadas de 1940/1950 como Elementi de tecnica del
clavicembalo o pianoforte de Corradina Mola (1941) ou o livro The harpsihord: An
introduction to the technique style and the historical sources de Eta Harich-Schneider (1954).
No livro de Harich-Schneider tratados históricos de autores do século XVIII ou anteriores são
aplicados de maneira ilustrativa alguns de seus exemplos, porém, muitos deles buscam
enaltecer em seus livros a posição da mão como primeiro passo para o resultado da melhor
sonoridade, divergindo totalmente da posição proposta por Eta Harich- Schneider. A próxima
figura ilustra que apesar da ideia sugerir melhoras, a fôrma da mão ainda é a mesma:
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[28]
Figura 6: Posição da mão de Eta Harich-Schneider ao exemplificar um Trillo de J. Ph. Rameau. Fonte:
HARICH-SCHNEIDER, 1973: S/Página.
Em março de 2012 o cravo Grand modèle de Concert de Pleyel completou 100
anos. A associação Clavecin en France promoveu uma journée intitulada “Cravos de ontem e
hoje em Saint-Leu”16, em duas cidades17, com conferências, concertos e oficinas, sobre a
transição do cravo industrial para os historicamente copiados – principalmente os de Pleyel –
uma vez que Landowska lecionou no conservatório de Saint-Leu-la-Foret. No mês seguinte, o
cravista Skip Sempé apresentou um concerto-palestra na Library of Congress em Washington
– Estados Unidos em um Grand modèle de Concert. Evidenciou sobre o instrumento e suas
caraterísticas em comparação ao instrumento de cópia histórica e sobre o acervo de Landowska.
Dele, algumas partituras com anotações de dedilhados próprios sobreviveram. Segundo
SEMPÉ:
Algumas das coisas que eu encontrei [...] nesta categoria de repertório e itens raros, eis
aqui uma cópia completa da obra The Bells de William Byrd no qual Landowska editou
todo seu dedilhado, qual mão toca o que... e o que você encontra destes dedilhados é
um tipo de super legato, o que é realmente necessário em um cravo Pleyel porque o som dura eternamente a não ser que você mantenha a tecla levantada. Quando você
suspende a tecla não soa absolutamente mais nada. Então isso é umas das razões a qual
ela fez tantas substituições de dedos (SEMPÉ: 2012).18
Apesar da técnica aplicada, além do instrumento possuir similaridades com o piano,
este tipo de associação “a tecla não soa absolutamente mais nada” se assemelha bastante ao
órgão, pois ao piano ainda há o pedal de ressonância que prolonga sua sonoridade após levantar
os dedos da tecla. Outras similaridades com o órgão, destacam-se: a utilização de mais um ou
dois teclados e diversos registros para contrastar passagens orquestrais em tutti e solo. Em
depoimento de sua assistente Denise Restout (1905-2004) Landowska queria:
[...] apresentar toda a música composta para cravo dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Então ela precisava de um instrumento que pudesse fazer justiça para a música que
necessitava de mais mudanças de cores e música que fosse mais orquestral em caráter.
Por exemplo, ela estudou o Concerti Grossi de Vivaldi. Então ela estudou a transcrição
de Bach dos instrumentos para o cravo. Bach pretendia mostrar que no cravo você pode
tocar passagens orquestrais e pode tocar passagens solo. Assim sendo você precisa de
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[29]
registração diferente. Você precisa de variedade de registros e cor (RESTOUT apud.
HANEY, 1974: 18)19.
Landowska, por sua vez, compara a utilização dos registros do cravo como
semelhantes aos de um órgão e seus alcances sonoros quase orquestrais. “Como no órgão, o
cravo possui registros os quais os dão riqueza e versatilidade... No cravo, assim como no órgão,
os registros são os dispositivos os quais o intérprete pode obter em uma única tecla a mesma
nota a partir de uma a quatro oitavas diferentes” (LANDOWSKA apud ELSTE, 2014: 16)20.
Esta informação desmistifica a linha de pensamento antes crida em que associavam-se o cravo
industrial – feito por fábricas de pianos e utilizando de materiais advindos do piano – ao
conceito: “a busca da sonoridade do piano era o ideal da época. Principalmente por causa do
volume” (JANK, 2015)21.
Sobre a dualidade cravo industrial versus cravo cópia histórica, Kottick (1992: 51)
profetiza, afirmando:
Eles foram construídos por um período de quase setenta e cinco anos e há uma
considerável literatura da música do século XX escrita expressamente para eles. Museus
os estão colecionando como objetos premiados (ou pelo menos com a expectativa de
que eles irão se tornar), e (posso ousar dizer?) pode ainda chegar o dia em que
construtores farão cópias deles (KOTTICK, 1992: 51).22
Atualmente, no Conservatoire National Supérieur de Musique et Danse de Paris
existe a cadeira especializada em música contemporânea para cravo e sua interpretação é
realizada em cravos industriais. No Brasil, embora não tenhamos cadeira regular de música
contemporânea para Cravo, há uma efervescente quantidade de obras, compostas desde o início
do século XX, por compositores representativos nacionais.
O retorno do cravo às salas de concerto – durante o século XIX e início do século
XX, por mais distanciados que foram dos instrumentos que hoje são comumente tocados –
catalisou a curiosidade de construtores e melômanos ao estudarem e recriarem os instrumentos
de cópias históricas. Graças a estes interesses hoje podemos conhecer e identificar instrumentos
dos séculos XVI, XVII e XVIII e suas nacionalidades. De sua parte, o retorno do cravo
industrial é de grande valia para a música contemporânea. Também, uma consciência por parte
dos compositores na elaboração idiomática é requerida para que saibam para qual tipo de
instrumento estão escrevendo. Escrever para o cravo industrial ou cópia histórica pensando em
técnicas composicionais para piano, é inadequado e pode ser tão confuso quanto alguém pensar
que física e educação física se trata da mesma coisa.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[30]
Referências
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Ed. 5, vol. 4, pp. 102-110, Nova Iorque: Saint Martin Press, 1954.
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methods. In: Early Music. vol. 3 nº3, pp. 240-242, Oxford: Oxford University Press, 1975.
ELSTE, Martin. From Landowska to Leonhardt, from pleyel to Skowronek: historicizing the
Harpsichord, from stringed organ to mechanical lute. In: Early Music. vol XLII/1 fev. 2014,
pp. 13-22, Oxford: Oxford University Press, 2014.
FORD, Karinn. The pedal clavichord and the pedal harpsichord. In: The Galpin Society Journal,
vol. 50, pp. 161-179. Oxford: Galpin Society Journal, 1997.
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HARICH-SCHNEIDER, Eta. The Harpsichord: An introduction to the technique style and the
historical sources. Ed. 2. Kassel: Bärenreiter, 1973.
JANK, Helena. O que pude aprender com os instrumentos. Palestra apresentada na XII Semana
do Cravo da Universidade Federal do Rio de Janeiro no dia 06/10/2015.
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KOTTICK, Edward L. A history of the harpsichord. Bloomington: Indiana University Press,
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______. The harpsichord’s owner guide: A manual for buyers and owners. Chapel Hill: North
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SEMPÉ, Skip. Bach and Landowska legacy. Palestra apresentada na Library of Congress em
Washington – Estados Unidos em 14/04/2012.
Notas
1 De acordo com Karinn Ford (1997: 172) o cravo italiano mais antigo existente o qual a autenticidade é
incontestável, foi construído por Vicentius em 1515-1516. 2 De acordo com Edward Kottick (2003: 394) o instrumento de ação suspensa (saltadores) de G. Borghetti possui
data de 1844 – portanto, o mais recente na prática de construção, delimitando a finalização da manufatura cravística
– embora a literatura especializada admita que o último registro seria um “modelo” Kirkman datado de 1800 – ou,
1809 na contagem de Carl Engel na Inglaterra (2003: 405). 3 Nas cidades provincianas da península ibérica, Escandinávia, e algumas áreas da Europa Central, o uso doméstico
e ensino de música ainda era ministrado nestes instrumentos, até mesmo na utilização de baixo contínuo em Óperas
e Oratórios. 4 Some collectors began to accumulate antique harpsichords precisely because they were old. Some were restored,
and a few were played in concerts by pianists trying to recreate earlier music. By the end of the 19th century there
was enough interest in the harpsichord to suggest that it might be time to resurrect it. 5 On one hand, there was the Romantic desire for objects of antiquity. On the other hand, there was the search by
contemporary artists – painters, sculptors and writers, as well as composers – for new effects, new sounds. 6 Unha ou palheta acoplada em uma lingueta, que quando acionada, atinge a corda, fazendo-a soar. 7 Este tipo de referência estaria intimamente associado à pouca representação do instrumento histórico nesta época,
além do mais, o que poderia ter garantido o sucesso do cravo de volta às salas de concerto não seria apenas a
curiosa historicidade por trás do instrumento, mas provavelmente a grande divulgação que houve pela novidade
da época: o registro pelas gravadoras de discos (KIPNIS, 2007: 367).
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[31]
8 To make it live again, to give it jubilant or pathetic accents, to evoke polyphonic purity, to make the coupled
keyboards resound, to sing with lingering tones the amorous cantilenas, such was my dream, a multiple and vast
dream. 9 They thought the case construction was too weak, allowed too much movement, and led to tuning instability.
They believed jacks were imperfectly mated to they guides and assumed that with modern industrial methods they
could fit one to the other with tolerances of a mere few thousandths of an inch. They found keyboards
unsatisfactory, lacking the felt bushings they thought necessary to ensure silent operation, and without sufficient
weight at the key tails to ensure their return. Jacks were considered too light, without the mass needed to overcome
“hangers” as well as gravity. Bird quill plectra were considered too delicate and short lived. Soundboards were
too thin for proper stability and needed more ribbing to ensure. 10 It is well-known that she insisted that her pupils bent the fingers at each of the three joints, and that they learnt
to control the tip of the finger independently of the other joints. 11 Perhaps the most surprising injuction to those not familiar with Landowska’s methods is th command that all
technical exercises should be practised on the piano as well as on the harpsichord. 12 Ressalve-se aqui que Tratados do final do século XVIII, especialmente na França, admitam seus mesmos exercícios para ambos os instrumentos (cravo, fortepiano), e o que se destaca aqui refere-se à técnica de
golpeamento das teclas, atitude não utilizada à época. 13 Grove’s Dictionary of music and musicians. Fifth edition. 14 Among modern harpsichords the chief offenders are instrumemts designed for excessive rigidity and tension in
quite illusory expectation of increasing volume, but with the actual consequence of harshening the attack hile
diminishing the sostenuto. 15 A good attack is like an eagle’s claw. 16 Clavecin d’hier et d’aujourd’hui en passant par Saint-Leu. 17 Saint-Maur-des-Fosses e Saint-Leu-la-Fôret. 18 Some of the thing I’ve found [...] in this category of repertoire and rare items, here is a full copy of The Bells of
William Byrd in which Landowska has edited it all of her fingerings, which hand plays what... And what you find from these fingerings is a kind of super legato, which is really necessary on a Pleyel harpsichord because the
sound last[s] forever unless you let the key up. When you release the key there’s absolutely nothing left. So this is
one of the reasons why she made so many subtitute fingerings. 19 [...] present all the music composed for the harpsichord from the 16th, 17th, and 18th century. So she needed
an instrument that could do justice to music that needed more color changes and music that was more orchestral
in character. For instance, she studied the Concerti Grossi of Vivaldi. Then she studied the Bach transcription of
them for the harpsichord. Bach meant to show that on the harpsichord you can play orchestral passages and you
can play solo passages. Therefore you need different registration. You need variety of registers and color. 20 Like the organ, the Harpsichord possesses ‘registers’ which give it richness and versatility... On on (sic.) the
harpsichord, as well as the organ, the registers are the devices by which the player can obtain on each single key
the same note as from one to four differents octaves. 21 JANK, Helena. Palestra apresentada na XII Semana do Cravo da Universidade Federal do Rio de Janeiro intitulada “O que pude aprender com os instrumentos” no dia 06/10/2015. 22 They were built for a period of almost seventy-five years, and there is sizeable literature of the twentieth century
music written expressly for them, Museums are collecting them as prized objects (or at least with the expectation
that they will become so), and (dare I say it?) the day may yet come when builders will make copies of them.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[32]
O cuidado de si como metodologia para o aprimoramento
da performance musical: relato de experiência
Daniel Vieira UFBA – [email protected]
Resumo: O presente texto é um relato de experiência em que o princípio do cuidado de si foi
utilizado como metodologia para o aprimoramento da performance musical. O autor relata a aplicação dessa metodologia na sua prática musical em que envolvia a obra A Prole do Bebê no. 2
de Villa-Lobos. O contexto de pesquisa artística é mencionado. O cuidado de si como metodologia
indutora de reflexão permitiu que a prática musical permanecesse em primeiro plano da linha
metodológica de pesquisa, mostrando-se pertinente à necessidade natural da área de práticas
interpretativas.
Palavras-chave: Cuidado de si. Performance musical. Filosofia da Performance. Relato de
experiência.
The Self-Care As A Methodology For Improvement The Musical Performance: Experience
Report
Abstract: This text is an experience report where the principle of self-care was used as
methodology for the improvement of musical performance. The author describes the application
on this methodology in your musical practice involving the work A Prole do Bebê no. 2, by Villa-
Lobos. The context of artistic research is mentioned. The self-care as an inducer methodology of
reflection allowed the musical practice remains in the forefront of methodological research line,
being relevant to the natural need of the area of performance practice.
Keywords: Self-Care. Musical Performance. Philosophy of Performance. Experience Report.
Introdução
A prática musical rege o meu trabalho como músico e como pesquisador ao
iniciar o relato dessa experiência. O presente trabalho1 está integrado ao processo de prática
de performance relacionado à minha interpretação da obra A Prole do Bebê no. 2 de Villa-
Lobos no seu “fazer performance”.
Visto que apresentei A Prole do Bebê no. 2 em recital acadêmico há algum tempo
e, desde então, fui incitado a manter essa obra em meu repertório e a desenvolver alguma
atividade de pesquisa que envolvesse tal prática, admiti a possibilidade de questionar e
procurar por uma excelência como performer, de maneira que minhas questões de pesquisa
indagaram os seguintes aspectos: Como eu poderia me tornar um expert performer dessa
obra? Como valorizar a obra através da excelência do meu trabalho? Muitas seriam as
possibilidades para responder essas questões, quer de maneira empírica, como de maneira
teórica. Se as questões buscavam meios para externar o valor da obra durante a minha
performance musical, então, primeiro tacitamente e depois fundamentado num
posicionamento estético, eu passei a acreditar que o encantamento durante o ato da
performance, como concepção para o momento da música, seria o cerne da sistematização
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[33]
envolvida como produção do constructo resultante da reflexão envolvida no próprio pesquisar
(ver VIEIRA, 2011), de modo que uma ruptura de paradigma estaria envolvida. A pesquisa
necessitaria assumir um viés artístico.
Entre os conceitos para o ato de performance e o trabalho envolvido para que tal
momento acontecesse, amparei-me em COESSENS (2011) que considera a possibilidade e a
necessidade da performance musical apreender especialidades artísticas, exigindo um “re-
tornar público”, ou seja, uma reconstituição por meio de práticas e técnicas impressas e
incorporadas que tornam-se hábitos especializados caracterizados pela expressão de aparência
tácita: “saber-como”, que sempre é resgatado em momentos de situações específicas. Essa
autora também valoriza a atividade do “re-tornar público” como um hábito adquirido
considerando teorias filosóficas, que em meio à sociedade, essa atitude passaria a ser
caracterizadora do próprio ato de performance. Tomando para mim essa reflexão, eu poderia
encontrar o valor da minha atividade como intérprete dessas peças em meio a outras teorias de
natureza filosófica de igual maneira, caracterizando o meu trabalho como uma atividade de
pesquisa artística, assim como COESSENS et al. (2009) a conceituam, balizada por uma
metodologia filosófica bastante consistente: o princípio do cuidado de si que foi apresentado e
discorrido por Michel FOUCAULT (2010) no curso A Hermenêutica do Sujeito no Collège
de France de 1981-1982, foi “descoberto” e considerado válido como recurso metodológico.
De uma filosofia para uma metodologia
Em poucas palavras a ideia de hermenêutica do sujeito é estabelecida a partir das
preleções do cuidado de si. O cuidado de si conduz a uma subjetivação da alma do sujeito que
busca por um movimento de ascese. Entenda-se subjetivação da alma como a possibilidade de
realização física de uma sistematização de reflexões cabíveis que levam a consciência de si. A
ascese caracteriza-se pela possibilidade de aprimoramento que visa um domínio sobre si para
depois ampliar-se sobre os outros dentro do grupo a que se pertence. Essa constituição de si
não ocorre sem a participação do outro, tampouco ocorre sem o conhecimento consciente da
sua própria origem valorizado como a priori, sendo fundamental a apropriação dessa
condição de forma que essa compleição é dada com a possibilidade de exercícios de
escrita/escuta e leitura de si, a partir do outro desdobrado sobre si para consigo.
FOUCAULT (2010), DERRIDA (2010), LÉVINAS (2000) e BLOOM (2002),
que foram os autores que me acompanharam no caminho do cuidado de si, além da própria
música e fazer musical, estão ligados cada qual a sua atuação no cenário das humanidades à
constituição do pensamento pós-moderno que desembocou na abertura da primeira década dos
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[34]
anos 2000. O desvio aqui tomado foi oblíquo. De certo modo, a questão da constituição de si
por meio do cuidado de si é relacionada à preocupação de que nunca o interesse da estética da
existência, como um aspecto do cuidado de si, propõe a cada um cuidar apenas de seu mundo
pessoal sem o vínculo com as alteridades. Mesmo que o seu relacionamento, nessa linha pós-
moderna de condução da reflexão, seja realizado por meio da linguagem de interação entre os
alteres envolvidos, a constituição é empírica, isto é, um movimento de ascese é proveniente
desse inter-relacionamento. Foucault e Lévinas, nesse ponto, a meu ver, aludem ao fato de
que a humanidade por sua natureza é prática, e essa prática na narrativa deste trabalho foi
vivenciada e tem sido relatada.
Assim, o interesse pela trajetória empírica de uma “provável amostra”, os
registros dessa, em música, visaria o refinamento da ação músico-instrumental levando a
efeito uma gama de ações que se tornaram necessárias. A manutenção de registros de
atividades envolvidas na prática musical da obra representaria o lugar de retorno do eu e de
geração de reflexão. Nesses registros – hupomnêmata – seriam válidos os seguintes
procedimentos:
1. O condicionamento de um arquivo sobre os aspectos históricos que envolvem a obra;
2. A manutenção de um arquivo contendo ideias sobre a concepção artística da obra -
Criação de imagens, metáforas e ideais estéticos;
3. Construir condições filosóficas para uma genealogia inversa da performance;
4. A manutenção de um arquivo com gravações de outros intérpretes da obra
selecionada;
5. A variabilidade da escolha da origem num movimento de descontinuidade
condicionando a ação de produção da minha própria tradição;
6. Registro audiovisual da prática musical;
7. Os registros da preparação para os recitais;
8. Uma seção de parresia;
9. A criação de um grupo virtual de cuidado da performance.
Com essa gama de procedimentos, todos envolvendo e valorizando a prática
musical, e visando a minha constituição como intérprete, creio poder ter acertado num meio
totalmente humano, para adquirir uma postura ético-estética diante da performance musical
das obras aqui tomadas. Os conceitos e teorias construídos foram todos em prol da minha
constituição como sujeito da prática musical e, nesse momento, autor desse trabalho.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[35]
Parto agora para a abertura dos meus hupomnêmata, dos meus registros de leitura e escrita de
si, que serviram como fonte para a minha reflexão para constituição como sujeito-individuo
neste trabalho.
Ideias, metáforas e imagens: uma história pouco contada
As primeiras lembranças que tenho das peças aqui mencionadas são vinculadas a
performances de outros pianistas em concursos de piano em que essas peças foram
executadas. Outra lembrança de origem foi o contato com a gravação realizada pelo pianista
canadense Marc-André Hamelin e depois, outra gravação pela pianista brasileira Sônia
Rubinsky. A projeção dos variados efeitos pianísticos e musicais foram memoradas e, de certa
forma, induziram-me ao desejo de estudar e apresentar essa obra como um todo.
Com a responsabilidade de apresentar um recital em que incluiria A Prole do
Bebê no. 2 integral, a sistemática de trabalho utilizada no preparo foi um tanto quanto
dispersa, isto é, o ato empírico antecedeu ao ato reflexivo. Nesse processo, várias foram as
etapas, diversas as informações adquiridas e o estudo diário, com os seus altos e baixos
naturais, constantes.
As questões de cunho histórico relacionadas à Prole do Bebê foram resolvidas,
quase sempre, apoiadas nas ideias desenvolvidas por TARASTI (1995) mencionando que do
ponto de vista do repertório pianístico essa obra é “reservada” para especialistas, mesmo
entendendo que a gama expressiva da Prole do Bebê no. 2 está a par da mesma presente em
Rudepoema. O autor sinaliza que Villa-Lobos é por muitas vezes mais original que folclórico
e também denota seus aspectos de ordem intertextual que percebo como de natureza
dialógica.
As questões de natureza analítica, numa generalização, procurei pensar como
PASCOAL (2005). O seu estudo sobre as estratégias composicionais de textura que Villa-
Lobos utiliza nas Prole(s) do Bebê articula a ideia de agrupamento de eventos como entidades
inteligíveis.
Como decorrência desse processo, meu relacionamento com as partituras e com as
dificuldades de realização, num primeiro momento foram consideradas como uma interação
de intuição informada. As informações absorvidas dos trabalhos específicos mencionados
facilitaram a minha compreensão acerca de elementos como tempo (“timing”), dinâmica e
caráter, de maneira que tais aspectos, por vezes, parecem-me naturais, mesmo intuitivos.
A história relatada por GUÉRIOS (2003) permitiu considerar a obra A Prole do
Bebê no. 2 como representante de um gênero surrealista em música levou-me à criação de
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[36]
imagens metafóricas, de entorno e contexto, que poderiam facilitar a compreensão dessas
peças como obra de arte no momento de performance. Para citar dois exemplos, a percepção
da condição surrealista e humana na peça O boisinho de chumbo fundamenta-se na condição
figurativa do tango que é indicado, inclusive por TARASTI (1995), justificável a partir de
GARAMUÑO (2009) em diálogo com a obra O boi no telhado de Milhaud. A proposta
transfigura a imagem do homem latino (brasileiro ou argentino – índios, mestiços ou urbanos)
num tango deformado em sua sensualidade oriunda da terra como imagens alucinadas –
surreais. Já na peça O lobosinho de vidro o nome do compositor é evocado na finalização da
série que representaria algo superior em sua produção [ver TARASTI (1995), SOUZA LIMA
(1976), KIEFER (1986) entre outros] – Lobos no diminutivo: Lobosinho. Qual seria a
homenagem do homem ao próprio homem refletida no vidro que o título da peça evoca como
um caleidoscópio (que se utiliza de um enquadre combinando vidro quebrado e espelhos) se
não algo puramente surreal? Num arranjo surrealista, afinal, quão exótico não seria considerar
o surrealismo nessa ambientação? E disso, salta-me à mente a frase atribuída ao pintor
Salvador Dali a respeito da perfeição: “Não se preocupe com a perfeição – você nunca irá
consegui-la”.
Audição de Gravações
Nesse processo de performance musical, como um ato descontínuo, admiti que a
audição de gravações dessa obra também poderia ser uma atividade que auxiliaria na
constituição pretendida. Foram as seguintes gravações realizadas pelos seguintes pianistas:
1. José Echaniz (~ 1957);
2. Aline van Barentzen (~1957);
3. Anna Stella Schic (1978);
4. Marc-André Hamelin (1999);
5. Sonia Rubinsky (2005);
6. Sérgio Monteiro (2007);
7. Fabiane de Castro2 (2007).
Dessa atividade, considerada como um exercício de apreciação, a partir de
comentários discorridos e organizados em quadros comparativos (ver VIEIRA, 2012; VIEIRA
e CARVALHO, 2013) é possível perceber a mudança de gosto e de abordagem pianística em
pelo menos três gerações distintas de intérpretes da obra do compositor brasileiro – como
possibilidade de gerar influência de concepção para a performance dessas peças. Outro fator a
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[37]
favor dessa consideração é a variada nacionalidade e gênero dos pianistas selecionados para
apreciação.
Para o cuidado de si: o movimento de olhar para si
Os a priori
Adentrando nas atividades do universo do cuidado de si, os registros de
performance foram considerados como a priori históricos, isso implicando que foram tratados
por mim como fatos que impunham regularidade a possíveis enunciados. Esses registros
enunciados foram submetidos a três pianistas apreciadores a fim de obter feedback para
posterior reflexão efetiva. Se por um lado as informações fornecidas por esses pianistas
podem levar a uma perspectiva dispersa, por outro atraem a percepção do êthos envolvido, já
que cada um é um diferente, e nesse sentido, a diferença convergindo para mim na ideia de
constituição a atividade mantém-se como preponderante. Disso, o mais notável das indicações
dos pianistas que apreciaram os registros é que todos perceberam a depuração de meu
trabalho ao longo do tempo (4 anos). Outro aspecto, talvez mais tácito, mas muito válido no
concernente à interpretação de uma obra, foi que os três apreciadores reconhecem a
“formatividade das obras realizadas” (ABDO, 2000).
Outra atividade considerada como a priori, foi o hábito de registrar produtos da
prática como momentos de performance – denominadas como as “autoprovas” ou os
“pequenos momentos de performance”. O foco principal dessas pequenas provas foi, de fato,
a performance pública. Serviam como meio de estimular ou apreender aspectos de natureza
crítica para a performance, corroborando com a profundidade da ideia de influência, oriunda
de BLOOM (2002), que parafraseei: ‘a crítica a uma performance só pode ser uma outra
performance’. A propósito, essas “pequenas performances”, de natureza crítica, permitiram a
formação de um corpo referencial de performances minhas, focalizadas para um momento – o
momento do recital – que, se consideradas como meios de obliteração da tradição para a
constituição da minha influência, formam a minha tradição como um momento de reencontro.
A tradição se é minha não pode ser do outro, forma-se a partir do outro e em mim
gera influência que, por meio da atividade de autoprovas, as “pequenas performances”,
condiciona o movimento de influência a ser absorvido por mim, para mim mesmo. Tal
influência alastra a sua angústia, pois o que era meu, nessa conversão, transforma-se em
outro, e no agora da performance deixa-me sozinho. O passado necessita estar presente no
presente, porém, sua evocação não é translucida e a origem torna-se o risco. O risco da
performance abarca a necessidade de decidir no momento, e apenas no momento, qual a
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origem a ser resgatada. Se elas são fundamentais, impulsionaram a realização do recital, se
estão no passado, necessitam ser evocadas no presente do recital. Essa realidade, a realidade
do a priori, é em parte, o risco da performance.
A Parrésia
Outra atividade vinculada ao cuidado de si é a parrésia, que significa o falar a
verdade, a busca pelo dizer verdadeiro. Percebo que dentro da área a ideia de dizer a verdade
como assim é concebida, precisa ser muito mais articulada. Os momentos em que se pretende
falar a verdade precisam ser melhor construídos, e as “egocidades” precisam, urgentemente,
ser deixadas de lado, a fim de que todos possam usufruir dessa verdade. Contudo, a grande
dificuldade torna-se, ironicamente, a própria verdade.
Qual verdade? Como é essa verdade? A verdade converte-se daquilo que se
observa na vida do parresiasta (aquele que exerce a parrésia), da sua fala, de modo que
permita o acesso à verdade aquele que lhe procurar com esse objetivo.
Durante a realização dessa atividade, uma seção de aula individual e particular
com a possibilidade de gravação para posterior reflexão foi utilizada, fui constantemente
instigado e fiquei bastante incomodado. Por vezes parecia-me que o contexto não estava
sendo levado em consideração. Porém, posteriores observações e por decisão de prognóstico
levaram a repensar sobre o que eu desejava com essa atividade. A exposição a essa
possibilidade de abordagem e a busca por uma fala verdadeira levaram-me impreterivelmente
à reflexão da própria prática, tornando-se parte do cuidado de si empreendido por mim em
minha constituição. Decidi que o mencionado pelo parresiasta seria a verdade para mim,
naquele momento. Tal decisão expandiu a possibilidade em constituição individual minha e
conduziu-me para a estética da existência.
A criação de um grupo de estudo: “Grupo de cuidado da performance”
A ideia da criação de um grupo cujo interesse fosse à colaboração para minha
atividade como performer e intérprete da obra foi decorrente do estudo e do entendimento de
que para me constituir-me como músico-pianista seria impossível sozinho. A observação do
outro atuaria em mim no sentido de tornar possível a condição de saberes de uma tradição e o
relacionamento a partir dessa tradição. Esse grupo, além de traduzir para mim uma
possibilidade de tradição a partir do meu próprio ato, serviria como meio de incluir-me dentro
de um meio social de pianistas, talvez aspirantes, como eu, de sua constituição como
conhecedores do fazer musical.
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[39]
A ideia para a formação desse grupo foi a possibilidade de escrita de si. O meio
instrumental seria somente o relato escrito, ou seja, a carta. Disso, talvez houvesse alguma
dificuldade metodológica, mas menciono que se essa ocorreu, de igual maneira foi
contornada, por meio da tecnologia de e-mails e disponibilidade de internet. A carta tem a
função de exposição: eu expondo-me a mim e ao outro, e o outro da mesma forma, expondo a
si e, nesse caso, a mim.
Se uma das minhas pretensões com a criação desse grupo era obter uma visão
geral da tradição de execução e performance, afirmo que essa expectativa poderia ter sido
muito mais ampla. Em geral, noto que os comentários proferidos partem da experiência vivida
por cada um dos integrantes. Envolvem aspectos de seus interesses ou preocupações. Sugerem
generalidades, mas são decorrentes de suas próprias vidas e suas expectativas a partir de si. O
que minha performance lhes comunicou não dependeu tanto das minhas ideias, apesar delas
serem consideradas por ambos, mas prioritariamente suas experiências, passadas foram mais
valorizadas nesse sentido de apreciação.
Para uma conclusão
A prática de registrar de si para si, a prática de escrever de si para si, a prática de
ler do outro para si, como possibilidades de registro e de memória apresentam-se como
possibilidades real de interioridade. Os hupomnêmata possuem o objetivo de fazer com que a
memória que estava fragmentada seja reagrupada e transmitida por meio da relação para
consigo como tão adequada possa se caracterizar.
O valor desse ato caracterizado não estaria na força da meditação contida no ato
reflexivo da própria lembrança de si? A meditação não coliga para si a perspectiva de uma
determinada situação para a conjunção e da ponderação do próprio êthos denotado no ato a ser
memorado? A preocupação e o interesse nesse relato possuiu um caráter constitutivo de si
como sujeito da performance.
As implicações deste trabalho como pesquisa artística e aprimoramento do sujeito
converteram-se no aprimoramento da performance que fora a motivadora do próprio ato da
pesquisa. Talvez alguém indique uma condição tautológica nesse processo. Porém, menciono
como não há performance e interpretação musical se não houver a ação de um individuo
realizador, pois ao buscar o aprimoramento do ato estético, o seu sujeito, como agente
realizador, necessitará aprimorar-se e vice-e-versa. A própria música torna o músico. Ao
tornar-me meu árbitro no ato performático como ato estético, a responsabilidade para com o
outro passou a ser uma necessidade para com outras atividades da mesma natureza, sugerindo
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a realidade da estética da existência. A magnitude da projeção dessa atividade em outros
momentos de performance da mesma maneira concebidos como ato estético manteve viva a
sua natureza performática em mim como seu sujeito.
Qual a conclusão tirada a partir de toda a atividade realizada com esse trabalho?
É possível notar que o desejo de tornar-se um melhor pianista, um músico que
interage com os seus pares e com a obra que se propõe a interpretar dentro do ambiente de
pesquisa artística acadêmica levou à necessidade de uma metodologia que se interessasse na
realidade plausível do ato interpretativo como condição humana percebida na filosofia do
cuidado de si da Hermenêutica do Sujeito. Da reflexão denotada a partir das tecnologias de si
um movimento de ascese foi atingido, com o respaldo de feedback recebido a partir do olhar
do outro e com isso o início de um processo de aprimoramento como músico, como interprete
e como pianista.
Tal atividade permitiu que a prática musical sempre estivesse e permanecesse em
primeiro plano na linha metodológica de pesquisa, mostrando-se pertinente à necessidade
natural da área de práticas interpretativas. Como projeções dessa metodologia indico a
possiblidade de intenções voltadas para a pedagogia da performance de nível superior, bem
como a de constituição de uma teoria da performance a partir do relacionamento múltiplo que
é possível com a valorização da tecnologia e interesse metodológico.
Referências Bibliográficas
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Belo Horizonte, v.1, 2000. p. 16-24.
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colaboradora para o preparo para uma performance: um estudo de caso. In: XXIII Congresso
da ANPPOM. 2013. Anais. Natal: 2013.
Notas
1 O presente trabalho é uma versão condensada e resumida da tese de doutorado apresentada por VIEIRA, 2012. 2 José Echaniz (1905-1969). Foi Professor na Eastman School of Music – University of Rochester a partir de 1944. Foi um dos primeiros a fazer gravações elétricas, no começo da décade de 1950, pela Columbia. Ver:
http://dedica.la/artist/jose+echaniz/biography. Acesso em 12/04/2012.
Aline Isabelle van Barentzen (1897-1981). Foi uma das primeiras artistas a gravar para o His Master’s Voice
(HMV). Ela foi a pianista que estreou a obra em Paris em 1926.
Anna Stella Schic (1925-2009). Foi amiga particular do compositor. A gravação ouvida é parte de um projeto
que envolvia a gravação integral da obra para piano de Villa-Lobos no ano de 1978.
Marc-André Hamelin (1961). Pianista Canadense.
Sonia Rubinsky (1957). Gravou a obra completa de Villa-Lobos para piano pela Naxos. Sérgio Monteiro (1974). Surgiu como uma nova figura no cenário internacional em setembro de 2003 ao receber
o primeiro prêmio no Segundo Concurso Internacional de Piano Martha Argerich. A gravação ouvida é de 2007.
Fabiane de Castro. Brasileira que vivia na Holanda na época da gravação, em 2007.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[42]
Música mista para piano: relato de um projeto pedagógico
Danilo Rossetti IA-UNICAMP - [email protected]
Alexandre Zamith de Almeida IA-UNICAMP - [email protected]
Resumo: O presente trabalho apresenta um relato sobre o projeto Música Mista para Piano,
desenvolvido junto aos alunos de piano da Universidade Estadual de Campinas. Tem como objetivos
promover o contato de pianistas em formação com repertório de compositores atuais envolvendo
piano e meios eletroacústicos, prevendo resultados artísticos e pedagógicos. Por fim, ressalta a
relevância por proporcionar aos alunos envolvidos práticas com gestos musicais, meios de produção sonora e formas de interações musicais não contemplados pelos repertórios tradicionais. Palavras-chave: Piano. Música eletroacústica mista. Pedagogia. Técnica instrumental. Interpretação. Live Electronic Music for Piano: Description of a Pedagogical Project Abstract: This article presents a description of the Live Electronic Music for Piano project, developed with the piano students of the University of Campinas. It has as objectives to promote the
contact of several piano undergraduate students with the live electronics repertoire written for this
instrument by contemporary composers, providing artistic and pedagogical results. Lastly, it
emphasizes the relevancy of providing to the involved students practices with musical gestures,
means of sound production and musical interaction manners not contemplated by the traditional
repertoire. Keywords: Piano. Live electroacoustic music. Pedagogy. Instrumental technique. Interpretation.
1. Apresentação, descrição do projeto e contextualização da discussão
Neste trabalho apresentaremos um relato sobre o projeto Música Mista para Piano,
desenvolvido no âmbito do Instituto de Artes da UNICAMP, sob a coordenação do doutorando
Danilo Rossetti e do Prof. Alexandre Zamith de Almeida, e tendo como participantes quatro
alunos do curso de Bacharelado em Piano de diferentes anos. Trata-se de um projeto artístico-
pedagógico, produto de um projeto maior, de título "Conexões entre o piano e as práticas
musicais atuais: implicações performativas", coordenado também pelo Prof. Alexandre Zamith
de Almeida e financiado pela FAEPEX (Fundação de Amparo ao Ensino, à Pesquisa e à
Extensão) da UNICAMP.
O projeto "Conexões entre o piano e as práticas musicais atuais: implicações
performativas" tem como objeto privilegiado as atribuições do pianista contemporâneo em
práticas musicais atuais, mais especificamente as vinculadas à denominada música mista. Se
fundamenta no reconhecimento de que, se a emergência da produção musical por meio de
recursos eletroacústicos estimulou inicialmente um vislumbramento diante da possibilidade de
se eliminar da transmissão musical as contingências e interferências da performance humana,
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[43]
muitos dos últimos desenvolvimentos tecnológicos em música buscam justamente reafirmá-la
como fundamentalmente performativa, por meio do desenvolvimento de ferramentas que
favoreçam o controle e o processamento sonoros em tempo real e de interfaces que salientem
sobretudo o aspecto gestual na realização musical.
Dentro deste projeto maior, o projeto Música Mista para Piano pode ser definido
como um projeto artístico-pedagógico que busca promover o contato de alunos de graduação
com o repertório selecionado. Seu interesse não passa apenas pelo produto artístico em si, mas
também pelo processo de preparo das performances, o qual oportuniza aos alunos contato com
repertório e demandas não contemplados pelos conteúdos programáticos tradicionais. A música
mista, de maneira geral, exige do músico instrumentista a capacidade de ouvir, reagir e interagir
com os sons eletroacústicos a fim de se construir uma trama sonora que envolve os sons
instrumentais e os sons eletroacústicos. Esta interação pode ser encarada como uma extensão
ou amplificação das capacidades do instrumento ou mesmo, do ponto de vista do intérprete,
como uma “modalidade” de música de câmara.
A música mista surge no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 como
decorrência da utilização de equipamentos de estúdios de rádio para experimentos musicais.
Estes experimentos eram realizados a partir tanto da edição, transformação e montagem de
gravações sonoras - como é o caso da música concreta desenvolvida inicialmente por Pierre
Schaeffer no Estúdio de Paris - como da síntese e modulação de sons através de diferentes
técnicas, como foi o caso da música eletrônica alemã praticada no Estúdio de Colônia, dirigido
nesta época por Herbert Eimert (MENEZES, 1991: 19-33). Em 1952 é dado o passo no sentido
de promover a junção dos sons produzidos em estúdio com sons instrumentais, como é o caso
da composição Musica su due dimensioni de Bruno Maderna, para flauta, pratos e fita
magnética. O piano adentra o repertório da música mista com a composição Kontakte (1958 -
60) de Karlheinz Stockhausen, para piano, percussão e sons eletrônicos.
Uma das principais questões relativas à composição, à performance e à análise da
música mista diz respeito ao tempo, principal variável que coordena a interação entre o
intérprete do instrumento e o intérprete da parte eletroacústica. A princípio existem duas
possibilidades temporais considerando os sons eletroacústicos na música mista: o tempo
diferido, em que os sons eletroacústicos são compostos previamente em estúdio e, para a
performance, são gravados em suporte digital, e o tempo real, em que os tratamentos
eletroacústicos são aplicados ao som dos instrumentos que são captados e transformados ao
vivo durante a performance (GALLO DIAS, 2014: 41-68). A junção destas duas possibilidades
temporais também é possível numa única composição. Neste sentido, o desafio do intérprete
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[44]
instrumental é o de saber se localizar e operar dentro deste sistema complexo a fim de que como
resultado desta interação emerja uma sonoridade esteticamente relevante.
Dentro do projeto abordado há obras destas duas categorias com as partes
eletroacústicas ocorrendo em tempo diferido e em tempo real. O projeto se iniciou com algumas
exposições teóricas sobre a música mista, ilustrando as questões mencionadas para os alunos
de piano. Concomitantemente, tratamos de coletar junto a alguns compositores obras mistas
para piano que fossem ao mesmo tempo efetivas e acessíveis às condições técnico-
instrumentais de alunos de graduação. Atualmente, cinco composições integram as
apresentações deste projeto: Ressonâncias (2015) de Jônatas Manzolli, Anteprólogo (2016) de
Bruno Ishisaki, Memorial do granito (2015) de Rodolfo Valente, Miroirs III (2014) de Felipe
Merker Castellani e Poussières cosmiques (2015) de Danilo Rossetti. Dentre estas peças, as três
primeiras se encaixam na categoria de tempo diferido e as duas últimas na de tempo real, sendo
que as peças de Manzolli e Castellani também integram vídeo à performance musical.
2. Características das obras trabalhadas
Antes de abordarmos individualmente algumas características das obras
trabalhadas no projeto, gostaríamos de tecer alguns comentários epistemológicos a respeito da
composição eletroacústica mista. O trabalho do compositor dentro deste âmbito consiste em
criar redes e interações entre os universos instrumental e eletroacústico, o que pode se dar, por
exemplo, em relação a correspondências frequenciais (em termos das alturas perceptíveis) ou
em relações temporais através de equivalências, continuidades ou descontinuidades entre o
tempo métrico da partitura e o tempo cronométrico dos sons eletroacústicos. Destas relações é
produzida a forma sonora perceptível que é apreendida pelo(s) ouvintes(s).
Nesse sentido, a forma não se configura como algo definido a priori mas sim como
algo construído durante os processos de composição e interpretação da obra, sendo variável
dentro de alguns aspectos em relação a cada performance. Assim, como referência teórica para
este processo de criação musical, podemos mencionar o conceito de enação cunhado por
Francisco Varela, o fazer emergir, ou seja, dar condições para que uma forma ou interação
possa emergir. A forma se dá a partir da interação entre subconjuntos ou estruturas internas, ou
seja, a partir da topologia dos organismos ou objetos, configurando-se como o resultado
perceptivo de um processo complexo originado pela concatenação de suas múltiplas redes
interiores. Esta teorização implica na negação de um mundo definido a priori, pois em
processos emergentes não existe nada preconcebido. Neste modelo, o todo perceptível não pode
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[45]
ser decomposto na totalidade de suas partes, pois há também um processo de amplificação de
informação através das inter-relações constituídas entre as partes (VARELA, 1994: 71-98).
A enação supõe a geração da forma (no nosso caso, a forma musical) a partir de
sistemas abertos em que suas microestruturas se conectam em múltiplas redes interiores
organizadas num esquema espaço-temporal. A música mista em tempo real se aproxima de um
modelo formal calcado na enação, na medida em que os sons do piano são captados ao vivo
durante a performance, e são transformados eletroacusticamente. O pianista, desta forma, tem
a possibilidade de interferir a todo momento nos sons eletroacústicos produzidos, através de
variações de intensidades, durações, ressonâncias do pedal, etc, pois características da
morfologia do som instrumental definem o resultado morfológico do som eletroacústico. Num
segundo momento, estas duas morfologias podem se fundir num único timbre (através de
diferentes processos) ou também apresentarem características contrastantes, sendo percebidas
como estruturas separadas. A seguir, abordaremos as principais características das composições
trabalhadas dentro deste projeto.
Ressonâncias (2015) de Jônatas Manzolli (Ca. 9’) é uma obra para piano, sons
eletrônicos e vídeo que tem como inspiração um poema escrito pelo próprio compositor. O
poema é inicialmente exibido no vídeo, sendo sua imagem desconstruída, deformada e
combinada com diferentes tons e formas em azul e vermelho durante a performance. Acordes
arpejados que abrangem uma grande área da tessitura do piano são combinados a trechos
modais e repetições de alturas iteradas. O tempo é predominantemente lento, bastante alargado.
Os sons eletroacústicos são contínuos, fundamentalmente baseados no processo de time
stretching em que sons de base são dilatados e/ou congelados indefinidamente, podendo manter
a altura do som inicial ou sofrer transposições. A intenção do compositor nesta obra não é de
produzir fusão entre os sons eletroacústicos e os sons do piano, mas sim demarcar uma
separação entre eles.
Anteprologo (2016) de Bruno Ishisaki é uma obra em que os sons eletroacústicos
foram trabalhados em tempo diferido e são disparados em momentos exatos ao longo da
execução da peça, com a possibilidade de os disparos serem efetuados pelo próprio pianista por
meio de pedal MIDI. A interação entre os dois meios se dá principalmente em termos de
frequências e complementaridade espectral. No âmbito pianístico são explorados harmônicos
produzidos a partir da ressonância de determinadas cordas através da vibração por simpatia e
glissandi com âmbitos diferentes de altura e de duração. É uma obra de duração relativamente
curta, com cerca de 3’30’’.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[46]
Memorial do granito (2015) de Rodolfo Valente é também uma obra em que os
sons eletroacústicos foram compostos em tempo diferido e são disparados ao longo da
performance, entretanto apresentando uma duração bem maior, com cerca de 11’. Segundo o
compositor, esta obra aborda a dualidade entre os elementos “terra” e “ar” de forma dialética e
não-narrativa, através da presença “sólida” de gestos instrumentais contrapostos a sons
eletroacústicos fluidos e incorpóreos. De modo geral os gestos pianísticos são bastante
demarcados e contrastantes em relação à tessitura, intensidade, ritmo, andamento e
expressividade, apresentando técnicas tradicionais de execução além de momentos percussivos
realizados na harpa do piano. Os sons eletroacústicos são em geral bastante sutis quando
combinados à execução instrumental tradicional. Por outro lado, tornam-se mais destacados
nos trechos em que o pianista explora o interior de seu instrumento.
Miroirs III de Felipe Merker Castellani, para dispositivo misto de improvisação
(piano, sons eletroacústicos e vídeo) tem uma duração sugerida de 8’. Na partitura do piano o
compositor se utiliza de uma notação proporcional para o tempo de execução dos eventos, além
de várias técnicas estendidas que são realizadas na harpa do piano tais como o abafamento de
cordas e sua preparação com objetos, percussão no interior do instrumento, harmônicos, golpes
nas cordas com as mãos ou baquetas, clusters, além do gesto de tocar as cordas individualmente
com as unhas. Os tratamentos eletroacústicos são realizados em tempo real por meio de
transformações do som captado do piano, não havendo nenhum som eletroacústico composto
previamente. O principal tratamento eletroacústico utilizado é a granulação, realizada de duas
maneiras, podendo ser combinada a um delay (grain delay) ou aplicada a pequenos trechos da
execução que são constantemente armazenados em buffers1 (grain buffer) e posteriormente
reproduzidos.
Poussières cosmiques (2015) de Danilo Rossetti é uma obra em que os sons do
piano são transformados em tempo real através de diferentes modulações na escala
microtemporal do som, apresentando uma duração de 7’. Há uma busca por uma convergência
entre a escrita pianística e os processos eletroacústicos utilizados, tendo como referência a ideia
de morfologia sonora. Há momentos em que uma sonoridade granular predomina: trilos e notas
rápidas em diferentes tessituras do piano são combinados à síntese granular e à descorrelação
microtemporal fazendo emergir sons transitórios de diferentes densidades. Há outros momentos
em que se privilegia a harmonia e o contraponto. Neles, arpejos e acordes do piano são
combinados ao processo eletroacústico da modulação em anel, privilegiando a percepção dos
regimes de sustentação do som.
Performa Clavis Internacional – 2016 - São Paulo
[47]
3. Demandas técnicas e interpretativas
A prática da música mista propõe ao pianista em formação demandas que excedem
as práticas pianísticas tradicionais nas quais são treinados. Tais demandas envolvem, em geral,
(1) novos gestos, (2) novas formas de produção sonora, (3) novas interações musicais.
Novos gestos
Na Tese Gesture Interaction in Music for instruments and electroacoustic sounds
(2010), Petra BACHRATÁ salienta que há dois tipos de gestos em música: o gesto físico e o
gesto musical. Destaca ainda que, embora ambos envolvam movimento, eles o fazem de
maneiras distintas. Enquanto o gesto físico se relaciona a ações físicas do instrumentista,
relacionadas ao ato de produção sonora e perceptíveis à nossa visão, o gesto musical pode ser
um movimento não-físico, não-visual, tal como o movimento de um som, sua trajetória de
energia. No âmbito da performance instrumental, o gesto musical é correlato ao direcionamento
de energia e ao dinamismo conferidos às figuras musicais, ou seja, à realização concreta no
continuum temporal destas figuras as quais, quando registradas por meio de notação tradicional,
o são de maneira sumariamente descontínua.
Ao abordar um repertório contemporâneo, o pianista em formação geralmente se
confronta com situações pouco familiares em relação a ambas as categorias de gestos. Acerca
dos gestos físicos, das ações de produção sonora, ele se vê exigido a realizar ações inusitadas
que exploram aspectos tais como descontinuidades, alternâncias extremas de registros, modos
de ataque variados, texturas complexas. Citamos como exemplo o trecho abaixo, da peça
Anteprólogo de Bruno Ishisaki, contemplada neste projeto, e sua exploração de alternâncias
rápidas de registro.
Fig. 1: Anteprólogo, de Bruno Ishisaki. Comp-16-19.
No âmbito dos gestos musicais, há o desafio de construir performances efetivas a
partir de um discurso musical em boa parte alheio a demandas tradicionais e fundamentadas
Performa Clavis Internacional – 2016 - São Paulo
[48]
em aspectos como condução melódica, construção fraseológica, proporcionalidade de
intensidades sonoras entre materiais melódicos e de acompanhamento, pedalização em
concordância com as progressões harmônicas, e assim por diante. Entretanto, os gestos a serem
construídos na performance de repertório contemporâneo se fundamentam em materiais de
outra ordem, já que não há mais a garantia da ocorrência de melodias, períodos fraseológicos,
progressões e cadências harmônicas funcionais, como pode ser observado na peça Memorial
do Granito, de Rodolfo Valente.
Fig. 2: Memorial do Granito, de Rodolfo Valente. Comp.35-41.
Novas formas de produção sonora
Este item diz respeito sobretudo às chamadas técnicas estendidas, as quais foram
potencializadas a partir do descompasso entre a crescente demanda por novas possibilidades
sonoras da música nova e a constância do instrumental tradicional. Foi necessária a insatisfação
diante do estado estacionário na evolução dos instrumentos, já cristalizados na segunda metade
do século XX, para que estes fossem revistos como universos ainda pouco explorados,
revelando potencialidades por meio da renovação ou ampliação das técnicas (técnicas
estendidas) e da alteração de seu comportamento sonoro (preparação de instrumentos).
Em termos de performance, essas novas possibilidades exigem do pianista em
formação a dedicação exploratória a formas de produção sonora que desconsiderem a interface
física do piano – o teclado – e avancem diretamente ao corpo sonoro do instrumento: suas
cordas e seus materiais de ressonância. De fato, trata-se de uma prática que propõe desafios,
em primeiro lugar por não ser contemplada pelos conteúdos de formação e aprimoramento
técnico-instrumental aplicados à formação de pianistas, em segundo por exigir do
instrumentista a familiaridade com partes do instrumento que – ao contrário do teclado – não
são padronizadas, e variam de acordo com modelos e construtores.
Performa Clavis Internacional – 2016 - São Paulo
[49]
Fig. 3: Poussières Cosqmiques, de Danilo Rossetti.
Novas interações musicais
O gesto musical na música mista, salienta BACHRATÁ, pode ser compreendido a
partir da percepção da interação entre instrumentos musicais e meios eletroacústicos
(BACHRATÁ, 2010: 52). Neste sentido, sendo seus resultados oriundos na interação entre
agentes, a prática da música mista seria equivalente à prática camerística. Entretanto, há
aspectos que distinguem fundamentalmente as duas práticas e que impõem ao instrumentista
em formação demandas específicas.
O primeiro aspecto é a partitura, elemento importante ao pianista na compreensão
e construção de interações e sincronias. Diferente da partitura camerística tradicional, que
apresenta todas as partes instrumentais de maneira absolutamente compreensível ao pianista,
as partituras de música mista são em geral mais detalhadas na parte instrumental do que na
eletroacústica, a qual em boa parte se vale de notações gráficas. Há, portanto, a necessidade de
que o pianista desenvolva uma memorização da parte eletroacústica de maneira sensível e
concreta, e não mais se respalde em mecanismos de apreensão fundamentados em uma leitura
tradicional.
O segundo aspecto é a fixidez temporal da parte eletroacústica, nos casos em que é
fixada em suporte. Nestes casos, a parte eletroacústica – ainda que possa ser muito efetiva na
promoção de um tempo musical fluido – apresenta uma inflexibilidade na distribuição dos
eventos no tempo com a qual o pianista terá que lidar, já que o tape é impassível às variações
agógicas do instrumentista. Este é o caso da peça Memorial do Granito, de Rodolfo Valente,
que requer do pianista uma memória auditiva precisa do tape para que a interação seja efetiva
(ver Fig. 2).
Já nos casos de música mista com interações em tempo real, nos quais tratamentos
eletroacústicos são aplicados aos sons instrumentais captados e transformados ao longo da
performance, o instrumentista passa a interagir com um agente cujas ações não apenas se
somam às suas, mas sobretudo alteram seus resultados. Com isso, as resultantes sonoras não
Performa Clavis Internacional – 2016 - São Paulo
[50]
mais dependem apenas das ações físicas do instrumentista, que é portanto impelido a reajustar
suas expectativas tradicionalmente estabelecidas entre seus gestos físicos e as resultantes
sonoras.
Isso promove uma positiva instabilidade de performance, que abre ao
instrumentista a possibilidade de novos comportamentos musicais e, em última instância, o
conduz a ambientes performativos deliberadamente instáveis nos quais o próprio conceito
tradicional de composição ou obra musical se desvanece. Neste sentido, podemos entender
contextos musicais vinculados a meios digitais manipuláveis em tempo real como
potencializadores de ambientes interativos dinâmicos nos quais seus agentes estão amplamente
disponíveis ao instável e no qual o espírito de improvisação, de colaboração e de
experimentalismo se manifesta com evidência. Exemplo efetivo é Miroirs III, de Felipe
Castellani, série de peças experimental e aberta a ponto de ser definida pelo próprio compositor
como Dispositivo misto para improvisação.
Fig. 4: Miroirs III, de Felipe Castellani.
5. Considerações finais: Implicações e relevâncias pedagógicas
As implicações e relevâncias pedagógicas do projeto abordado neste trabalho se
fundamentam na própria adoção de um repertório que amplia os meios e recursos daquele
tradicionalmente acatado nos currículos de cursos de formação em instrumento, propõe a
aquisição de novos vocabulários musicais, demanda novas estratégias de estudo em todas as
instâncias do preparo da performance (leitura, solução de aspectos técnicos, construção de
gestos musicais, pedalização, escuta e estratégias de interação) e instiga o pianista em formação
a uma postura mais exploratória diante de seu próprio instrumento que envolve inclusive a
pesquisa por recursos de produção sonora não previstos – porém possíveis – no instrumento.
Reconhecemos também sua relevância ao proporcionar aos alunos desenvolvimentos em um
Performa Clavis Internacional – 2016 - São Paulo
[51]
contexto musical mais despojado de restrições que são históricas na área da performance
musical.
Como salienta Stan GODLOVICH, em Musical performance: a philosophical
study (1998), as comunidades de performance não adotam rapidamente inovações radicais no
projeto dos instrumentos, no repertório, nos procedimentos de avaliação, nos métodos
pedagógicos, ou nos fundamentos técnicos. Para o autor, existe extrema relutância em exceder
ao modelo tradicional de performance, fundamentado em deliberada resistência a radicais
inovações e renovações de recursos e meios (GODLOVITCH: 1998, 71). Diante disso, a
oportunidade de contato de pianistas em formação com repertórios atuais, sobretudo os que
envolvem novos recursos de produção sonora, propõe novos horizontes de desenvolvimento e
atuação musicais bastante promissores, porém não contemplados pelas práticas e conteúdos
pedagógicos tradicionais.
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GODLOVITCH, Stan. Musical performance: a philosophical study. London: Routledge, 1998.
Notas
1 Região de memória temporária utilizada para a escrita e leitura de dados em ambiente digital.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[52]
Quando as mãos tocam as notas: O Sistema Braille como ferramenta de
acesso à literatura pianística
Fabiana Fator Gouvêa Bonilha Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) – [email protected]
Ana Elisa de Campos Lobo Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) – [email protected]
Resumo: O código de leitura e escrita musical em Braille, também denominado musicografia
Braille, é um sistema tátil utilizado por pessoas cegas para a representação de partituras. Para
garantir uma educação musical inclusiva, cabe aos professores de piano desenvolver estratégias de ensino que envolvam aspectos táteis e auditivos para a apropriação da técnica e da linguagem
musical. Este trabalho visa investigar, por meio da análise de transcrições de obras pianísticas em
Braille, os parâmetros que norteiam o acesso de alunos cegos à literatura para piano.
Palavras-chave: Literatura pianística. Musicografia Braille. Deficiência visual. Educação musical
inclusiva
When the hands touch notes: Braille system as a tool for pianistic literature
Abstract: The Braille code that allows reading and writing music notations, called Braille Music,
is a tactile system used by blind people to represent music scores. In order to ensure an inclusive
musical education, it is recommended to the piano teachers to develop teaching strategies
including tactile and auditory aspects to allow the comprehension of the technique and the musical
language. This work aims to investigate, through the analysis of transcriptions of piano scores in
Braille, the parameters that guide the access of the blind students to the pianistic literature.
Keywords: Pianistic literature. Braille music. Visual impairment. Inclusive musical education
1. Introdução
O código de leitura e escrita musical em Braille, também denominado
musicografia Braille, é um sistema tátil utilizado por pessoas cegas para a representação de
partituras. Embora seu uso seja voltado a um público específico, debruçar-se sobre o estudo
desse código amplia a compreensão sobre diferentes formas de representação das peças
musicais, bem como leva ao entendimento de que há diferentes meios pelos quais os
indivíduos podem se apropriar delas.
Além disso, atentar-se à realidade das pessoas com deficiência visual como
estudantes de piano e como músicos remete a um referencial inclusivo acerca da educação. A
Educação Inclusiva pressupõe uma equiparação de condições e de oportunidades para que
todos os alunos frequentem ambientes regulares, e não especiais, de ensino. A escola
inclusiva consiste em uma escola para todos, na qual “se reconhecem as diferenças dos alunos
diante do processo educativo e se busca a participação e o progresso de todos, adotando novas
práticas pedagógicas” (ROPOLI et al., 2010).
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[53]
Este pressuposto é cabível também ao contexto da Educação Musical, em que se
preconiza o oferecimento de meios igualitários de acesso ao conhecimento.
Notadamente o professor de piano necessita estar consciente da pluralidade das
características inerentes aos seus alunos, e, por conseguinte, deve se instrumentalizar para
atender suas demandas e conhecer os recursos de que eles necessitam.
Em meio a essa diversidade, encontram-se as pessoas com deficiência visual,
público para o qual a música tende a ter um papel preponderante. Não existe uma correlação
direta entre o desenvolvimento da capacidade auditiva das pessoas cegas e a inclinação para a
Música. O interesse por uma determinada atividade decorre de motivações internas e de
fatores ambientais que influenciam diretamente nessa escolha. Entretanto, há que se
considerar a existência de muitos músicos cegos que, ao longo da história, se destacaram em
sua atuação.
Diante dessa realidade, educadores musicais necessitam conhecer o referencial
perceptivo das pessoas cegas, levando-o em consideração durante sua prática.
Especificamente aos professores de piano cabe desenvolver estratégias de ensino do
instrumento que envolvam aspectos táteis e auditivos que facilitem a apropriação da técnica e
da linguagem musical (POWER; MCCORMACK, 2012).
Nota-se a importância de que seja oferecido a todo aluno com deficiência visual a
oportunidade de contato com a leitura e escrita em Braille, sobretudo em relação à música
erudita, em que o estudo sistemático das obras pressupõe o contato com suas partituras. Neste
artigo, haverá uma abordagem sobre os princípios básicos da Musicografia Braille, e, em
seguida o estabelecimento de alguns fundamentos metodológicos que visam compreender os
processos cognitivos utilizados por pessoas cegas durante a leitura de obras para piano.
A seguir serão detalhados alguns fundamentos da Musicografia Braille, a fim de
se possibilitar uma melhor compreensão de sua estrutura.
2. Fundamentos da Musicografia Braille
O sistema de escrita em relevo conhecido como Braille, em homenagem a seu
idealizador, Louis Braille, é universalmente adotado por pessoas cegas para ler e escrever
textos. Este sistema é composto por um conjunto de caracteres formados a partir da
combinação de seis pontos em relevo. O espaço composto por esses seis pontos, denominado
cela Braille, é apresentado na Figura 1. Os pontos dentro da cela Braille são numerados de 1 a
6 (1 a 3 do lado esquerdo, 4 a 6 do lado direito, numerados de cima para baixo). Cada caracter
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[54]
em Braille é composto por uma das 63 combinações possíveis destes pontos em relevo
(MEC/SEESP, 2006).
Figura 1: Cela Braille.
A Musicografia Braille é o sistema universal adotado por pessoas cegas para ler e
escrever música, e é baseado nos mesmos 63 caracteres do sistema Braille. Ela constitui-se de
uma adequação realizada por Louis Braille ao campo da Música. Por ser ele mesmo organista
de capela, Louis Braille dedicou parte de seu trabalho à concepção do código de leitura
musical (MEC/SEESP, 2004).
No caso da Musicografia, é notória a necessidade de se combinar dois ou mais
caracteres para a formação de um símbolo, dada a quantidade de símbolos necessários para
representar todos os elementos de uma partitura. Cada caracter Braille é então considerado
tanto isoladamente quanto em contexto, na junção com outros caracteres. Se se tomar, por
exemplo, o caracter formado pelos pontos 1-2-6, ter-se-á que:
Isoladamente ele representa Bemol;
Antes do caracter 1-3 ele representa barra final;
Antes do caracter 1-2-3, ele representa fermata;
Antes do caracter 3-4-5, ele representa divisão em vozes.
A princípio, pode parecer complexa a identificação contextual dos símbolos
Braille, mas no uso cotidiano da leitura essa se torna fluente e parte imprescindível da
compreensão das peças. A escrita musical em Braille constitui uma sequência linear e
horizontal de caracteres, não havendo a bidimensionalidade presente na escrita convencional,
em que as alturas são representadas na pauta.
A Figura 2 apresenta os caracteres básicos da musicografia Braille. Esses
caracteres básicos representam num mesmo símbolo tanto as notas (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá,
Si, representados nos pontos 1, 2, 4 e 5) quanto seus valores (representados nos pontos 3 e 6).
Note que cada símbolo de notas e pausas representam dois valores, sendo um maior (por
exemplo, semibreve) e outro menor (por exemplo, semicolcheia). O contexto dentro da
música Braille indicará se deverá ser utilizado o maior ou o menor valor do símbolo. Uma
cela Braille em branco representa a barra de compasso, e o ponto de aumento é representado
pelo ponto 3, colocado imediatamente após a nota ou a pausa.
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[55]
Figura 2: Símbolos básicos da musicografia Braille.
Em Braille, as alturas das notas são representadas por meio de sinais de oitava,
colocados imediatamente antes dos símbolos representativos das notas. As oitavas são
numeradas da primeira à sétima, começando pela mais grave do piano normal de sete oitavas.
Cada oitava vai de Dó a Si, sendo que a quarta oitava começa no Dó central do piano. Os
sinais de oitava são representados somente pelos pontos 4, 5 e 6. A Figura 3 apresenta os
símbolos das 7 oitavas do piano, seguidas de um Dó semínima.
Figura 3: Símbolos das sete oitavas do piano.
A primeira nota de uma peça ou parágrafo deve ser precedida pelo sinal de oitava.
Para as demais notas, aplicam-se as seguintes regras a cada par de notas consecutivas:
a) Se as duas notas formam um intervalo de segunda ou terceira ascendente ou
descendente, a segunda delas não leva o sinal de oitava;
b) Se as duas notas formam um intervalo de quarta ou quinta ascendente ou
descendente, a segunda delas só leva o sinal de oitava se pertencer a oitava
diferente da primeira nota;
c) Caso as duas notas formem um intervalo de sexta ou maior, a segunda nota
deve sempre levar o sinal de oitava.
Apesar de existirem símbolos para a representação das diferentes claves de Sol,
Fá e Dó, eles não são necessários para a codificação da peça musical, devido à utilização do
sinal de oitava.
A Figura 4 apresenta os símbolos dos acidentes ou alterações. Os símbolos de
sustenido, bemol e bequadro são colocados antes das notas, intervalos ou outros
elementosqueos alteram, podendo separar-se das notas por no máximo, um sinal de oitava.
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[56]
Figura 4: Sinais de sustenido, bemol e bequadro.
Toda partitura em Braille começa pela armadura de clave seguida pela indicação
de compasso. A armadura de clave indica o número de acidentes, mas não as notas que eles
afetam. Assim, por exemplo, uma peça em Fá Maior indicará na partitura em tinta um bemol
na posição Si na pauta. Já uma partitura em Braille indicará somente um bemol. Quando o
número de acidentes (bemóis ou sustenidos) for de um a três, aparecerão de um a três
símbolos em sequência. Para número de acidentes maior do que três (quatro a sete bemóis ou
sustenidos), aparecerá o sinal de número seguido do número e do sinal do acidente (bemol ou
sustenido). A indicação de compasso aparece após a armadura da clave, separada ou não por
um espaço em branco. A indicação de compasso consiste no sinal Braille para número (pontos
3-4-5-6), seguido por dois sinais de número, sendo que o primeiro deles ocupa a parte
superior da cela Braille (pontos 1-2-4-5) e o segundo ocupa a parte inferior da cela Braille
(pontos 2-3-5-6). A Figura 5 apresenta duas indicações de compasso com dois números: 4 por
4 e 12 por 8.
Figura 5: Fórmulas de compasso com dois números: 4 por 4 e 12 por 8.
A Figura 6 apresenta dois exemplos de armadura de clave e indicação de
compasso. O primeiro indica um sustenido e compasso três por quatro, com um espaço em
branco entre eles. O segundo indica quatro bemóis e compasso quatro por quatro, sem espaço
em branco entre eles.
Figura 6: Exemplos de armadura de clave e fórmula de compasso.
No caso de instrumentos de teclado, como o piano, a partitura Braille deve
intercalar a parte da mão direita com a parte da mão esquerda. Normalmente as transcrições
apresentam um pequeno número de compassos da mão direita, seguidos pelo mesmo número
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[57]
de compassos da mão esquerda. A Figura 7 apresenta os sinais de mão direita e mão esquerda
da partitura em Braille.
Figura 7: Sinais de mão direita e mão esquerda.
Devido à unidimensionalidade do Braille, a representação de acordes também não
pode ser vertical, como na partitura em tinta. Os acordes em Braille são representados a partir
da nota superior (mão direita) ou inferior (mão esquerda), seguidos dos sinais representativos
dos intervalos harmônicos que o constituem. A Figura 8 apresenta os sinais dos intervalos
harmônicos de segunda a oitava.
Figura 8: Sinais de intervalos harmônicos.
As características inerentes à musicografia Braille impõem aos músicos cegos
determinados desafios em relação à leitura musical, os quais foram sistematizados por
Bonilha (2010). Entre eles, encontra-se o reconhecimento de padrões (como desenhos
rítmicos e melódicos, assim como configurações harmônicas) que não encontram em Braille
uma representação tão direta quanto na escrita convencional. Outro desafio se refere à leitura
de partes simultâneas (trechos polifônicos ou partes de ambas as mãos), já que não há uma
correspondência espacial entre elas. O músico cego não pode ler e executar uma peça
simultaneamente com ambas as mãos, devendo necessariamente memorizar cada uma das
partes separadamente antes de executá-las. Isto implica que ele assimile pequenos trechos e já
os tenha memorizado, ao invés de ler toda a peça, como costumam fazer os músicos videntes.
Além disso, visando ao uso corrente da musicografia Braille, o aluno necessita ter domínio de
alguns conceitos de teoria musical, que o façam interpretar a codificação em Braille de modo
adequado.
Ao se analisarem transcrições de obras em Braille, o presente trabalho tem como
referencial esses desafios, buscando compreender o processo cognitivo realizado pelas
pessoas cegas quanto ao acesso às obras. A seguir, serão explicitados os procedimentos
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[58]
adotados para análise destas transcrições a partir de um exemplo concreto, identificando-se os
fundamentos metodológicos deste estudo.
3. Metodologia
O presente trabalho visa investigar, por meio da análise de transcrições de obras
pianísticas em Braille, os parâmetros que norteiam o acesso de alunos cegos à literatura para
piano. Na presente pesquisa, ora em andamento, busca-se considerar a transcrição em Braille
de obras pertencentes a diferentes estilos musicais, para se compreender o alcance do acesso
de alunos cegos a partituras para piano.
Neste artigo, será apresentado um pequeno trecho musical, composto pelos quatro
primeiros compassos da Invenção a Duas Vozes Número 4 de Johann Sebastian Bach
(BACH, 2008), e será analisado o processo de assimilação deste trecho por parte do leitor
com deficiência visual. Serão destacados alguns aspectos que se caracterizam como
peculiaridades da musicografia Braille, que a diferenciam do código convencional.
A Figura 9 apresenta a partitura desses quatro compassos com as duas pautas
(mão direita e mão esquerda), na versão em tinta. A Figura 10 apresenta a mesma partitura
transcrita em Braille, com as marcações de alguns sinais especiais, como sustenidos e bemóis,
sinais de oitava, fórmula de compasso e indicação de mão direita e mão esquerda. Este trecho
foi digitado manualmente no software MusiBraille, programa desenvolvido com a finalidade
de transcrição e edição de partituras (NCE/UFRJ, 2002).
Figura 9: Quatro primeiros compassos da Invenção No. 4 em tinta.
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[59]
Figura 10: Quatro primeiros compassos da Invenção No. 4 em Braille.
1. Identificação da tonalidade
Na escrita em tinta, as notas afetadas pelos acidentes na clave são explicitamente
marcadas. Em Braille, por sua vez, marca-se a quantidade de acidentes da clave, sem
explicitar quais notas eles afetam. Isto requer que o leitor conheça a ordem dos sustenidos e
dos bemóis, a fim de inferir quais notas têm os acidentes fixos. Nesse caso, há o sinal de
bemol antes da fórmula de compasso, cabendo ao leitor saber que ele se refere ao Si.
Nota-se que o domínio da leitura musical em Braille propicia ao leitor a
oportunidade de conhecer aspectos musicais, como a formação das tonalidades, de modo a
não apenas ler a informação na partitura, mas também compreender seu significado. A
identificação de que se tem aqui uma peça em Ré menor auxiliará o leitor na assimilação e na
memorização desta.
2. Leitura da melodia
O tema desta Invenção está escrito nos dois primeiros compassos, em
semicolcheias, grafadas em Braille com o uso dos pontos 3 e 6, acrescidos a cada nota. O
símbolo representativo das semicolcheias é igual aos símbolos das semibreves, cabendo ao
leitor compreender que, neste contexto rítmico, dada a fórmula 3 por 8 e a quantidade de
notas presentes em cada compasso, trata-se de semicolcheias.
3. Aplicação dos sinais de oitava
Necessariamente, a primeira nota de uma peça é sempre imediatamente precedida
pelo sinal de oitava. Neste caso, a primeira nota aparece na quarta oitava, cujo sinal se
representa com o ponto 5. Nem todas as notas levam sinais de oitava, pois existem regras que
determinam a sua colocação, de acordo com os intervalos melódicos do trecho. Em graus
conjuntos, por exemplo, não é necessário colocar sinal de oitava nas notas que se seguem à
primeira, ainda que se mude de oitava. Isto acontece aqui no trecho ascendente entre o Ré e o
Si. Note que, se não fosse colocado sinal de oitava no Dó sustenido subsequente, entender-se-
ia que este continuaria o trecho ascendente em graus conjuntos. Por isso, ainda que este Dó
permaneça na mesma oitava, faz-se necessário colocar o sinal, caracterizando-o como uma
nota descendente.
Dado que em Braille não se faz uso de claves e não se posicionam as notas na
pauta, o tema desta peça aparece na mão esquerda grafado exatamente da mesma forma como
na mão direita, exceto pelo fato de que as notas encontram-se na terceira oitava, grafada com
os pontos 4, 5 e 6.
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[60]
4. Leitura de partes simultâneas
O leitor de uma peça em Braille não pode, naturalmente, tocar as duas mãos juntas
e lê-las simultaneamente. Ele deve ler cada parte separada, memorizá-la e depois estabelecer a
correspondência entre ambas. Além disso, nota-se que na partitura em Braille não existe uma
relação espacial entre as partes, mostrando-se em que ponto elas caem juntas.
Neste caso, o leitor deve a partir da leitura de cada parte, inferir como juntá-las.
Nesta Invenção, por exemplo, identificando-se as pausas que denotam compasso de espera na
mão esquerda, o leitor deve saber que nesta mão o tema se inicia no terceiro compasso.
5. Referencial auditivo
Na leitura em Braille, o uso do referencial auditivo é muito importante como algo
complementar à leitura, mas não como substituto desta. Em relação à compreensão desta
peça, é relevante que o executante conheça a sua característica polifônica e identifique o tema
principal. Exercícios de solfejo deste tema fora do instrumento também parecem úteis à sua
compreensão e assimilação.
4. Considerações finais
O presente estudo remete ao acesso das pessoas com deficiência visual à literatura
pianística e, por conseguinte, à atuação acadêmica e profissional desse público como
instrumentistas. Preconiza-se que, mediante uma equiparação de condições na formação
musical destas pessoas, elas possam vir a atuar com as mesmas oportunidades em relação aos
demais indivíduos.
Entende-se que, por meio da leitura autônoma das obras, o acesso a elas possa ser
integral e não parcial. Quando os indivíduos cegos apenas ouvem gravações das obras para
executá-las a partir desta audição, ou quando dependem de alguém que dite seu conteúdo, o
acesso às peças é parcial e limitado. Assim, cabe o desenvolvimento de recursos que
permitam ao instrumentista poder, ele mesmo, se apropriar de uma partitura com autonomia.
A Musicografia Braille, como ferramenta de acesso, parece ser o meio mais
adequado para esta apropriação integral das obras, visto ser um código já consolidado e
universalmente utilizado para uso de pessoas cegas. Pressupõe-se então que não seja
necessária a criação de um outro código de leitura e escrita para cegos, mas, sim, a concepção
de métodos e estratégias que facilitem o aprendizado da notação musical em Braille, como
código já convencionado e existente.
Além disso, analisar a transcrição de obras pianísticas em Braille abre caminhos
para uma reflexão sobre os processos cognitivos envolvidos na assimilação das obras, e sobre
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[61]
o quanto estes processos interferem na construção da performance por parte do executante.
Ao ser apto a realizar a análise musical da obra a partir de sua leitura, compreende-se que o
executante possui maiores condições de interpretá-la de uma forma mais coerente com
aspectos estilísticos e idiomáticos do instrumento.
O Braille, como ferramenta de acesso, possibilita às pessoas cegas que elas
desenvolvam habilidades ligadas à análise e compreensão musical. Pela leitura em Braille,
elas não apenas reproduzem o que está na partitura, mas depreendem seu conteúdo a partir do
entendimento da linguagem inerente a ela.
A abordagem da questão referenciada no presente artigo não é relevante apenas
para a população de pianistas cegos, mas possibilita o avanço do conhecimento em relação ao
acesso de todos às obras pianísticas, a partir de suas múltiplas formas de leitura.
Referências
BACH, J. S. Invenção a duas vozes número 4, 2008. Partitura. Disponível em:
<http://www.mutopiaproject.org/ftp/BachJS/BWV775/bach-invention-04/bach-invention-04-
a4.pdf>. Acesso em: 21 set. 2016.
BONILHA, F. F. G. Do toque ao som: O Ensino da Musicografia Braille como um caminho
para a Educação Musical Inclusiva. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas,
2010.
MEC/SEESP. Novo Manual Internacional de Musicografia Braille. Brasília: Ministério de
Educação e Cultura, Secretaria de Educação Especial, 2004.
MEC/SEESP. Grafia Braille para a Língua Portuguesa. 2. ed. Brasília: Ministério de
Educação e Cultura, Secretaria de Educação Especial, 2006.
NCE/UFRJ. Projeto MusiBraille. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em:
<http://intervox.nce.ufrj.br/musibraille/>. Acesso em: 19 set. 2016
POWER, A.; MCCORMACK, D. Piano pedagogy with a student who is blind: An Australian
case. International Journal of Music Education, v. 30, n. 4, p. 341-353, 2012.
ROPOLI, E. A. et al. A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar: A Escola
Comum Inclusiva. Brasília; Fortaleza: Ministério de Educação e Cultura, Secretaria de
Educação Especial, Universidade Federal do Ceará, 2010.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[62]
O cravo na justaposição do antigo e moderno
Patricia Gatti
UNICAMP – [email protected]
Resumo: Esta comunicação busca traçar uma reflexão sobre o cravo e o cravista da atualidade por
caminhos para além da prática histórica. O ponto de partida desta reflexão está localizado na abordagem musical da admirável cravista do começo do século XX, a polonesa Wanda Landowska
(1879-1959) e o seu cravo moderno Pleyel. Nesse percurso de eventos observa-se que o som
peculiar do cravo tem atraído músicos de gêneros muito diferentes ao cultivo de novas práticas
interpretativas.
Palavras-chave: Cravo moderno. Wanda Landowska. Práticas interpretativas.
The harpsichord in the juxtaposition of old and modern
Abstract: This article aims to reflect upon the harpsichord and harpsichordist of today through
ways beyond historical practice. The starting point for the reflection is the musical approach of the
admirable harpsichordist from the beginning of the twentieth century, the polish Wanda Landowska (1879-1959) and her modern Pleyel harpsichord. In this course of events one can
observe the peculiar sound of harpsichord has attracted musicians from many different genres to
the growth of new performing practices.
Keywords: Modern harpsichord. Wanda Landowska. Performing practices.
Especialmente em meados do XX instaura-se um momento em que o passado
musical começa a ser revisitado buscando-se uma diversidade de instrumentos esquecidos
pela cultura musical, os quais voltam a fazer parte da experiência musical europeia do século
XX. Nessa perspectiva de abordagem musical histórica, diferentes sonoridades são propostas,
vindas de: uso de cordas de tripa, flautas de madeiras, emissão vocal despojada do vibrato,
modelos de instrumentos de teclado históricos, entre inúmeras proposições de discursos
musicais e retóricos – princípios de execução, regras e codificações. Dentre esses
instrumentos figura o “cravo”, exigido segundo o paradigma dos modelos históricos
“originais”, além de cópias ou réplicas. Dentre os grandes impulsionadores desse ideal sonoro
e de interpretação foram o Concentus Musicus de Viena fundado em 1953, por Nikolaus
Harnoncourt (n. 1929),1 e o trabalho desempenhado pelo Leonhardt Baroque Ensemble, de
1954, sucedido pelo Leonhardt Consort (1955), sob a direção do cravista holandês Gustav
Leonhardt (1928-2012). A partir da comunhão destes dois grupos, surgiu por volta dos anos
de 1967, a gravação da versão integral das Cantatas de J.S. Bach (1685-1750), pelo selo
Telefunken, da série intitulada Das Alte Werk, tornando-se uma referência às práticas
interpretativas históricas (HORA, 2004: 23). O cravo vem se conectar a música e se vinculou
fortemente a um projeto de recuperação de um passado musical. A preocupação com a
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[63]
preservação e restauração de elementos culturais e o desejo de buscar culturas perdidas e as
antigas tradições são as características dessa nova mentalidade, interessada pela
documentação como garantias do passado, empenhando-se no resgate e na valorização da
produção artística, conforme argumenta Harnoncourt:
Nós fugimos, isto é, tentamos refugiar-nos no passado [...]. Então, o chamado
“homem culto” tenta salvar e trazer ao presente a parcela da herança cultural e
musical dos últimos mil anos, que, pela primeira vez, tem a oportunidade de
observar de forma abrangente. (HARNONCOURT, 1988, p. 26).
Tratava-se de resgatar as composições esquecidas, pré-românticas, interpretadas
com instrumentos de época. Nesse contexto, Ralph Kirkpatrick (1911-1984), cravista
americano com formação europeia, é uma das referências no desenvolvimento de estudos em
manuscritos, e organiza e edita obras de J. S. Bach, além de publicar em 1953 as obras
completas de Domenico Scarlatti (1685-1757). A partir de referenciais em tratados, textos
teóricos, manuscritos musicais, etc, introduz-se um novo vocabulário musical na intenção da
prática interpretativa do cravo, aliado às escolhas por modelos reconstruídos de instrumentos
históricos de acordo com estilo de interpretação.
Contudo, a narrativa histórica do cravo, no decurso do seu reavivamento, no final
do sec. XIX e início do XX, não foi por essa via. O que se destaca como um marco da
retomada do cravo é a data de 1912, quando um instrumento é construído na oficina Pleyel,
Wolff, & Cie, de Paris, com a supervisão da pianista polonesa Wanda Landowska (1879-
1959), uma das referências no impulsionamento do cravo no século XX. O modelo de cravo
de Landowska – Grand Modèle de Concert – foi desenvolvido com dois manuais, as suas
teclas com maiores dimensões semelhantes ao piano (Figura 1) e, na tentativa de aumentar o
volume, as cordas foram fixadas sob uma estrutura metálica (cepo de bronze) mais pesada,
acionadas por saltadores com resistentes plectros de couro e adicionou-se o registro 16´ no
teclado inferior.
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[64]
Figura 1: Wanda Landowska e o cravo Pleyel. Fonte: Disponível em:
<http://www.wikiwand.com/fr/Grand_mod%C3%A8le_de_concert_(clavecin)>. Acesso em: 09/09/2016.
Ainda fora implementado um duplo mecanismo diferenciado de “pinos” para
ajuste da afinação, e um mecanismo controlador para troca de registros e acoplamento por
meio de sete pedais. Aparentemente, o Pleyel era o único a favorecer um sistema de afinação
projetado para permitir um ajuste fino, no qual cada corda é controlada por um pino duplo. O
referido instrumento Pleyel, citado frequentemente como tendo sido elaborado com modernos
mecanismos para a época, transpunha experiências advindas da construção de pianos e
preservava pouquíssimas características de um cravo do século XVIII (LATCHAM, 2006). É
com a sonoridade e particularidades desse instrumento que se dá o grande renascimento da
música barroca durante por quase meio século. O precioso repertório de François Couperin,
Jean-Philippe Rameau, D. Scarlatti, Georg F. Handel e J. S. Bach, entre outros, por essa via
continuou o seu legado e pode ser compartilhado para as futuras gerações. Landowska
divulgou e difundiu o cravo em inúmeras gravações iniciadas a partir de 1923, e foi a primeira
instrumentista, a gravar as Variações Goldberg de J.S. Bach (BWV 988) ao cravo, em 1931,
pela HMV, em Paris. Era uma artista visionária que se interessava no repertório barroco,
especialmente na obra de J. S. Bach, e por obras de compositores franceses, dando início às
práticas com o cravo desde 1903, possivelmente o marco da sua primeira apresentação
pública. Desempenhou grande atividade musical e realizou concertos por toda a Europa e
América do Norte, onde fixou residência a partir de 1941, em Lakeville, Connecticut.
Também na área do ensino, Landowska esteve à frente da primeira classe europeia de cravo,
na Hoschule für Musik, de Berlim, entre 1912 a 1919, e, posteriormente, em 1925,
Performa Clavis Internacional – 2016 – São Paulo
[65]
estabeleceu-se como professora na Escola de Música Antiga em Saint-Leu-La Forêt (França),
formando gerações de cravistas (STEVENSON, 2011).
Ainda que Landowska tenha conhecido instrumentos históricos – e teria tocado
em cravos inspirados no modelo francês Taskin inicialmente desenvolvidos pela Pleyel –
optou por adequar e recriar um instrumento num novo modelo híbrido com o piano,
ajustando-o a certas lacunas sonoras que sob o ponto de vista da época faziam sentido para
sua audiência e que abriu diálogos com os compositores do seu tempo. Fomentou diversos
compositores de sua geração que escreveram obras modernas para o cravo. Dentre os vários
autores podem ser citados: Ferruccio Benvenuto Busoni (1866-1924), provavelmente o
primeiro a escrever para o cravo no sec. XX; Ottorino Respighi (1879-1936); Richard Strauss
(1864-1949); Manuel de Falla (1876-1946) destacando-se o seu “Concerto para cravo e 5
instrumentos” e o “Concerto Campestre” de Francis Poulenc (1899-1963), dedicados a ela.
Além de, Igor Stravinsky (1882-1971), na sua segunda fase de criação neobarroca, se voltou
para as formas, gêneros e estilos da primeira metade do século XVIII e inova, ao propor em
1951 o cravo no recitativo da ópera The Rake´s Progress, III ato (Graveyard Scene). De certa
forma, as preferências de alguns compositores de meados do século XX refletiram a
continuidade da escrita para o cravo modernizado, com a manutenção do uso abundante de
trocas de registrações e mudanças tímbricas (LINDORFF, 1982). Destacam-se neste período
marcos da composição moderna para cravo, a peça Continuum (1968) do compositor húngaro
György Ligeti (1923-2006) e HPSCHD (1967) de John Cage (1912-1992), e no Brasil os
compositores: Claúdio Santoro (1919-1989), com a peça Mutationem I (1968), para cravo e
fita magnética; Ernst Widmer (1927- 1990), Audiocomplemento para Siegfried Lenz, para
flauta, oboé, quarteto de cordas e cravo (1951); Almeida Prado (1943-2010), Mapa Rítmico
(1975); Willly Corrêa de Oliveira (1938), as peças Claviharpsicravocembalochord (1974) e
Concerto para cravo e orquestra de cordas (1975). E mais recentemente constam obras de
Edmundo Villani-Cortes (n. 1930), Edino Krieger (n. 1928), José Eduardo Gramani (1944-
1988), Ernani Aguiar (n. 1950), Liduino Pitombeiras (n. 1962) e Ricardo Matsuda (n. 1965),
dentre outros.
No contra-argumento aos princípios musicais e construtivos industriais, a “nova”
vertente de mentalidade histórica de meados do século XX, vem negar o cravo de Landowska
e os demais modelos concebidos no período do seu ressurgimento. Consideram esses
instrumentos, desde o reavivamento a partir do início do século XX, como “erro” ou artefato
“moderno” (relativos ao presente) nos seus padrões de construção, assim como as técnicas de
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[66]
execução consideradas “modernas” e sem critérios. Todavia, há que se considerar que esse
movimento de revitalização impulsionado por Wanda Landowska reacendeu o cravo na
história pelo viés do ideário da modernidade industrial, trazendo elementos dos cravos
sobreviventes históricos, recriando-os e modificando-os em relação aos construídos no século
XVIII, favorecendo a sua disseminação observada na ampliação de inúmeras oficinas de
construção de cravos, principalmente em Paris, Londres e Boston. Além disso, o cravo com
seu som peculiar, atraiu músicos de gêneros muito diferentes. Outra cravista a ser mencionada
é a americana Sylvia Marlowe (1908-1981) que encorajou o uso do cravo em composições
modernas, preocupando-se em dar uma identidade contemporânea ao instrumento. Em 1939,
gravou o álbum “From Bach to Boogie Woogie”, General Records, G13, 1939. 78 RPM, e
durante a década de 1940 realizou inúmeras gravações no estilo Boogie Woogie, em seu cravo
Pleyel (WOOD, p. 113). Nessa compreensão e a partir desse contexto difundiu-se a
sonoridade do cravo em universos musicais inusitados até então, para o instrumento, e
especialmente na década de 1960 propiciou-se uma abertura do cravo para novas audiências
principalmente com o Rock. 2
Nessa perspectiva pensar a utilização do cravo e de outros instrumentos históricos
fora das experiências da música histórica, não representa uma ruptura completa com o ideário
historicamente informado, mas compreende-se ampliar e estender a linha de temporalidade,
bem como entender que migrações estilísticas acontecem naturalmente para outros campos de
musicalidade, sustentado principalmente pela identidade sonora própria do instrumento.
Desse modo o cravo pode servir como uma ponte do século XVIII e XXI.
Uma tendência bem atual, referida pela expressão Modern Harpsichord, na
prática sintetiza as polaridades passado/presente e de certa forma vem alinhavar o decurso
dessa história de rupturas e continuidades que o cravo se consolidou em consonância com
essa nova via de discurso. Esse movimento Modern Harpsichord formado por intérpretes,
compositores, instituições de ensino, associações, concebe e legitima os vários modelos de
cravos e suas variantes ao longo da história, sobretudo o modelo Pleyel, propondo repertórios
modernos, contemporâneos e populares na prática cravística, como também o uso de
dispositivos eletrônicos de amplificação e parcerias instrumentais diversificadas. Contudo, tal
movimento não deixa de legitimar as práticas historicamente orientadas, reconhecidas como
HIP (Historical Interpretation Practice), que não reduz apenas ao uso de instrumentos de
época, mas envolve antes de tudo o intérprete, suas intenções, concepções e competências
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artísticas que foram buscadas em outras fontes de conhecimento, como os documentos
escritos: partituras originais, tratados musicais de época, etc.
Além disso, nessa perspectiva de modernidade também sugere e incorpora
positivamente o cravo em outros padrões estilísticos. A título de exemplo, cabe lembrar que o
tradicional centro de ensino de cravo, Conservatorium van Amsterdam, incluiu o curso
denominado Master of Music in Modern Harpsichord seguindo nova tendência, que redefine
o cravo na atualidade.3
Nesta mesma condução de ideias também podem ser citadas, a associação
Procembalo (Itália) e a organização Aliénor Harpsichord Music for Today and Tomorrow
(USA) 4 exemplos atuais que demonstram tentativas de vincular os recursos expressivos do
instrumento a novas sonoridades, pretendendo fazer interpretações musicais, bem como
fomentar novos compositores para cravo em amplo espectro de gêneros e estilos. Nesta linha,
Will CRUTCHFIELD (1988: 19-26) já comentava que as abordagens doutrinárias e
conservadoras das práticas musicais têm perdido terreno para modos mais flexíveis de
realização.5 Essa nova vertente parece apontar para um discurso musical desvinculado de uma
escuta musical convencional, rumo a sonoridades diferenciadas combinando-se aos
instrumentos contemporâneos, que enriquece o potencial criativo e exploratório do cravista
atual.
Na atualidade, no cenário internacional emergiu um novo entendimento que
aponta a necessidade de depreender parâmetros estéticos e estilísticos antigos e atuais. Nessa
perspectiva tem despontado cravistas com mudanças de atitude e fortemente favoráveis aos
princípios da prática histórica estendendo-se aos cravos do período do seu reavivamento,
quando se trata de apresentações de música moderna escrita para estes tipos de cravos, além
da flexibilização aos demais gêneros musicais. Um exemplo a considerar é o cravista
contemporâneo Christopher D. Lewis (n. 1957), natural do país de Gales, atualmente
residente em São Francisco, na América do Norte é jovem artista da gravadora Naxos Records
e tornou como sua missão a de compartilhar a versatilidade do cravo moderno e a música
escrita para o instrumento (Figura 2):
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Figura 2: Christopher Lewis e o cravo Pleyel, em Boston, MA, 2009. Fonte: Disponível
em:<http://www.christopherlewis.net/revival-harpsichords.html>. Acesso em: 10/09/2016.
Sob tais critérios é válido primeiramente se familiarizar com o modelo de cravo
em referenciais da sua estrutura, recursos técnicos, acústicos, concepções estéticas que o
circundaram nos diferentes momentos históricos relativos ao instrumento.
Outro exemplo atual é o jovem cravista iraniano/americano Mahan Esfahani (n.
1984) que traz um programa eclético em seu CD Time Present And Time Past, de 2015, junto
da orquestra Concerto Köln, lançado pela gravadora Archiv Produktion (Figura 3). Neste CD
Esfahani apresenta uma fusão de música barroca com o minimalismo, enfatizando suas
semelhanças, e tocando todas as peças em instrumento de época, incluindo obras de
Steve Reich (n. 1936) e Henryk Górecki (1933-2010), nunca realizado anteriormente.
Figura 3: Capa do CD Time Present And Time Past, de Mahan Esfahani. Fonte: Disponível
em:<http://www.deutschegrammophon.com/en/cat/4794481>.Acesso em: 10/09/2016.
Diante das perspectivas apresentadas esta reflexão vem encorajar cravistas da
atualidade a uma revisão da imagem convencionada e construída de um cravo no sentido de
legítimo e representante exclusivo da música barroca, que representa o gosto das altas classes
eruditas, ou ligado à interpretação historicamente informada (HIP). Mas, ao compartilhar a
ideia de pluralidade de diálogos com os cravos – em sonoridades que detiveram sentido em
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tempos e lugares distintos, além da viabilidade de recuperar e legitimar cravos adormecidos e
relegados, e o cultivo de suas práticas e experimentalismos – permitem-se novas vias e
concepções de linguagens artísticas para o instrumento e para os cravistas da
contemporaneidade.
Referências
CRUTCHFIELD, Will. Fashion, conviction and performance style in an Age of revivals. In:
Authenticity and early music: A Symposium. Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 19-26.
HARNOUNCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988.
HORA, Edmundo. As obras de Froberger no contexto da Afinação Mesotônica. Tese
(Doutorado em Música) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2004.
LATCHAM, Michael. Don Quixote and Wanda Landowska: bells and Pleyels. In: Early
Music (February 2006) Vol.34 (1), Oxford University Press, p. 95-110.
LINDORFF. Joyce Z. Contemporary harpsichord music: issues for composers and
performers. New York: Musical Arts Division, The Juilliard School, UMI, 1982.
STEVENSON, Joseph. Wanda Landowska. Disponível em:
<http://www.allmusic.com/artist/wanda-landowska-q3567>. Acesso em: 17/02/2011.
WOOD, Jessica. Keys to the Past: Building Harpsichords and Feeling History in the Postwar
United States (Duke University, 2010). Disponível em:<http://hdl.handle.net/10161/2456>.
Acesso em: 2/09/2011.
Notas
1 Nascido na Alemanha desenvolveu seus estudos na Áustria. Celista, gambista e regente, foi um dos grandes
impulsionadores das novas condutas e conhecimentos de linguagens musicais integrantes do chamado
movimento de “música antiga”. 2 A presente comunicação, originada da pesquisa de doutorado realizada discorre entre outros temas sobre o
cravo no Rock, ver: GATTI, Patricia. Cravo Caboclo: uma reflexão sobre o cravo e a sua abordagem na música
brasileira popular – dois estudos de caso. Tese (Doutorado em Música) - Instituto de Artes, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2014. 3 O programa do referido curso encontra-se disponibilizado no site oficial. Disponível em: <http://www.ahk.nl/en/conservatorium/study-programmes/master/master-classical-music/keyboard-
instruments/modern-harpsichord/>. Acesso em: 09/09/2016. 4 Procembalo, ligada a Associazione clavicembalistica Bolognese, Itália, promove a música para repertório do
cravo moderno, através de festivais, publicações e concertos. Disponível em:< http://www.procembalo.org>.
Acesso em: 20/04/2011. A Aliénor organização sediada nos Estados Unidos da América (Carolina do Norte),
atualmente é dirigida pela cravista Elaine Funaro, realiza competição quadrianual de composições inéditas para
cravo e para intérpretes, promove concertos e divulga publicações. Disponível em:<http://www.harpsichord-
now.org/index.html>. Acesso em: 20/04/2011. 5 CRUTCHFIELD (1988, p.19-26).