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EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL – DD. EROS GRAU – RELATOR DA ADPF 73
CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação civil sem fins lucrativos
qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP,
inscrita no CNPJ sob nº 04.706.954/0001-75, com sede na Rua Pamplona, 1197, casa
4, São Paulo/SP, por meio de seu programa de justiça Artigo 1º, representada por seu
Diretor Executivo e bastante representante nos termos de seu estatuto social, Dr.
Oscar Vilhena Vieira, brasileiro, casado, advogado inscrito na OAB/SP sob o nº
112.967 (doc.1 e 2), vem respeitosamente à presença de V. Exa., por seus advogados
constituídos (doc. 3), com fundamento no §2º do artigo 6º da Lei 9.882/99
manifestar-se na qualidade de
Amicus Curiae na ADPF 73
ajuizada pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB, tendo por objetivo a
procedência da argüição de descumprimento dos preceitos fundamentais da
dignidade da pessoa humana, do direito à vida e do direito à saúde para que seja
sanado o ato do Poder Público violador dos preceitos fundamentais apontados,
consistente na edição da Lei n° 10.934, de 11.08.2004, sem a vinculação de recursos
mínimos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde, culminando na
omissão do cumprimento do disposto no artigo 77, I do ADCT, pelas razões e
argumentos a seguir expostos.
2
1. DA POSSIBILIDADE DE MANIFESTAÇÃO COMO AMICUS CURIAE
NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL
O instituto do amicus curiae teve sua inserção formal na legislação processual
constitucional com as leis 9.868/99 e 9.882/99, que dispõem sobre o trâmite das
ações declaratórias de inconstitucionalidade e das argüições de descumprimento de
preceito fundamental, respectivamente. Desde a edição de tais leis, inúmeros
memoriais, pareceres, arrazoados e documentos foram admitidos por este Egrégio
Supremo Tribunal Federal e juntados aos processos de controle concentrado de
constitucionalidade.
No que se refere às argüições de descumprimento de preceito fundamental, a lei
dispõe nos seguintes termos:
Art. 6º, Lei 9.882/99: (...)
§1º. Se entender necessário, poderá o relator ouvir as
partes nos processos que ensejaram a argüição,
requisitar informações adicionais, designar perito ou
comissão de peritos para que emita parecer sobre a
questão, ou, ainda, fixar data para declarações, em
audiência pública, de pessoas com experiência e
autoridade na matéria.
§2º. Poderão ser autorizadas, a critério do relator,
sustentação oral e juntada de memoriais, por
requerimento dos interessados no processo.
No entendimento deste Egrégio Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de
manifestação da sociedade civil em tais processos tem o objetivo de democratizar o
controle concentrado de constitucionalidade, oferecendo-se novos elementos para
os julgamentos.
3
É o que se depreende da ementa de julgamento da ADIn 2130-3/SC:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
INTERVENÇÃO PROCESSUAL DO AMICUS
CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI Nº 9.868/99 (ART.
7º, § 2º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA
ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA
DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE
CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE
ADMISSÃO DEFERIDO.
- No estatuto que rege o sistema de controle normativo
abstrato de constitucionalidade, o ordenamento positivo
brasileiro processualizou a figura do amicus curiae (Lei
nº 9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros -
desde que investidos de representatividade adequada -
possam ser admitidos na relação processual, para efeito
de manifestação sobre a questão de direito subjacente à
própria controvérsia constitucional.
- A admissão de terceiro, na condição de amicus
curiae, no processo objetivo de controle normativo
abstrato, qualifica-se como fator de legitimação
social das decisões da Suprema Corte, enquanto
Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio
ao postulado democrático, a abertura do processo de
fiscalização concentrada de constitucionalidade, em
ordem a permitir que nele se realize, sempre sob
uma perspectiva eminentemente pluralística, a
possibilidade de participação formal de entidades e
de instituições que efetivamente representem os
interesses gerais da coletividade ou que expressem
4
os valores essenciais e relevantes de grupos, classes
ou estratos sociais.
Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº
9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora
da intervenção processual do amicus curiae - tem por
precípua finalidade pluralizar o debate
constitucional.” (grifamos)
De fato, com a possibilidade de manifestações da sociedade civil nas ações de
controle concentrado de constitucionalidade, busca-se a representação da pluralidade
e diversidade sociais nas razões e argumentos a serem considerados por este Egrégio
Supremo Tribunal Federal, conferindo, inegavelmente, maior qualidade nas decisões.
Desta forma, diante da previsão legal e da construção jurisprudencial acerca dos
limites da possibilidade de manifestações de organizações da sociedade civil na
qualidade de amicus curiae nas ações de controle concentrado, depreendem-se
alguns aspectos principais, quais sejam: a relevância da matéria discutida, no sentido
de seu impacto sócio-político; a representatividade e legitimidade material dos
postulantes e a pertinência dos argumentos apresentados, cabendo ao Relator do
processo a análise de sua admissibilidade dentro destes parâmetros.
A organização da sociedade civil subscritora deste amicus curiae trabalha com a
promoção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, incluído neste rol o
direito à saúde, de que trata a presente ADPF 73.
A Conectas Direitos Humanos tem como objetivo estatutário promover, apoiar,
monitorar e avaliar projetos em direitos humanos em nível nacional e internacional,
em especial: I– promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da
democracia e de outros valores universais; VI – promoção de direitos estabelecidos,
por meio da prestação de assessoria jurídica gratuita, tendo, inclusive, quando
5
possível e necessário, a capacidade de propor ações representativas
(www.conectas.org).
A participação da Conectas como amicus curie já foi apreciada por este Egrégio
Supremo Tribunal Federal nos autos da ADIn 3268, com o seguinte despacho:
“Admito, na condição de amici curiae, a Conectas
Direitos Humanos e o CDH, eis que se acham
atendidas, na espécie, as condições fixadas no art. 7º,
§2º da Lei n.º 9.868/99. (...) Impõe-se registrar, neste
ponto, que a razão de ser que primordialmente justifica
a intervenção do amicus curiae apóia-se na necessidade
de pluralizar o debate em torno da constitucionalidade
ou não de determinado ato estatal, em ordem a conferir
maior coeficiente de legitimidade democrática ao
julgamento a ser proferido pelo Supremo Tribunal
Federal, em sede de fiscalização normativa abstrata,
consoante pude enfatizar em decisão que proferi, como
Relator, na ADI 2130-MC/SC (DJU 02/02/2001 -
grifamos)
No mesmo sentido se deu a admissão na recentíssima argüição de descumprimento
de preceito fundamental 71, com base no artigo 6º da Lei 9.882/99:
“Junte-se aos autos a petição nº. 2430/2005. Em face
do artigo 6º, §1º, da Lei 9.882, de 3 de dezembro de
1999, admito a manifestação de Conectas Direitos
Humanos, (...) que intervirão no feito na condição de
amici curiae. À autuação para a inclusão dos nomes
dos interessados”. (27/05/2005) (grifamos)
6
2. DO CABIMENTO DA PRESENTE ARQÜIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
A argüição de descumprimento de preceito fundamental está prevista no parágrafo 1º
do artigo 102, nos seguintes termos:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§1º. A argüição de descumprimento de preceito
fundamental decorrente desta Constituição será
apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da
lei.
Referido dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei 9.882 de 03 de
dezembro de 1999, dispondo sobre seu processo e julgamento. A constitucionalidade
da lei editada, no entanto, foi contestada pela ADIn 2231, ainda pendente de
julgamento por este Egrégio Supremo Tribunal Federal.
Não obstante, passada a análise liminar no âmbito de referida ADIn e suspensa a
aplicação em parte do artigo 1º, bem como deferida a liminar para suspender o § 3º
de seu artigo 5º, o restante da legislação permanece em pleno vigor. Assim já
ponderou o Exmo. Ministro Carlos Britto, quando do recentíssimo julgamento da
questão de ordem na ADPF 54:
“(...) tomando em linha de conta o fato de que há
decisões plenárias a prestigiar os desígnios da mesma
lei 9.882/99, que tenho feito? Tenho me rendido ao
princípio constitucional da presunção de validade dos
atos legislativos, de sorte a momentaneamente acatar o
instituto da ADPF tal como positivamente gizado”.
(grifamos)
7
Em seu texto, a Lei 9.882/99 estabelece alguns critérios para admissibilidade da ação
de controle concentrado de constitucionalidade, previstos em seus artigos 1º e 4º, in
verbis:
Art. 1º. A argüição prevista no §1º do artigo 102 da
Constituição Federal será proposta perante o Supremo
Tribunal Federal e terá por objeto evitar ou reparar
lesão a preceito fundamental, resultante de ato do
Poder Público. (grifamos)
Art. 4º. (...)
§1º. Não será admitida argüição de descumprimento de
preceito fundamental quando houver qualquer outro
meio eficaz de sanar a lesividade. (grifamos)
Assim, de acordo com a previsão constitucional e legal, a argüição de
descumprimento de preceito fundamental tem os seguintes requisitos: i) tratar-se de
preceito fundamental; ii) ameaçado por ato do Poder Público; iii) sem outro meio
jurídico eficaz de evitar ou reparar a lesão. A presente ADPF 73 preenche os três
requisitos de admissibilidade, conforme se demonstrará a seguir.
2.1 Do descumprimento de preceito fundamental
O conceito de “preceito fundamental” não foi definido pela Constituição Federal nem
pela legislação específica. Seus contornos estão sendo definidos, portanto, a cada
decisão deste Egrégio Supremo Tribunal Federal e pela doutrina, que cada vez mais
se debruça sobre o tema.
No entanto, existem algumas normas que foram identificadas como fundamentais
pela própria Constituição Federal de 1988, entre elas: os princípios fundamentais
8
contidos nos artigos 1º a 4º, os direitos e as garantias fundamentais constantes dos
artigos 5º a 17 e as chamadas “cláusulas pétreas”, contidas no artigo 60, § 4º. Dentre
estes dispositivos se encontram os direitos sociais.
O próprio Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 já
estabelece que o Estado Democrático constituído pelos representantes do povo será
“... destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista
e sem preconceitos...” (grifamos)
No artigo 6º, a Constituição Federal estabelece quais são estes direitos sociais
definidos como valores supremos da nossa sociedade, entre os quais está inserido o
direito à saúde:
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma da
Constituição. (grifamos)
Ademais, o direito fundamental à saúde é hoje visto como condição essencial para o
cumprimento do postulado da dignidade da pessoa humana, bem como está
intrinsecamente ligado ao direito à própria vida, direitos fundamentais expressamente
previstos em nossa Constituição. De fato, dispõe o artigo 1º da CF/88, ao elencar os
fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
9
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: (...)
III – a dignidade da pessoa humana; (...)
Do mesmo modo, o direito à vida está assegurado no artigo 5º, caput da Constituição
Federal, inserido no Título II que versa sobre os direitos e as garantias fundamentais:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e
à propriedade, nos seguintes termos: (grifamos)
Assim, os direitos à saúde, à dignidade da pessoa humana e à vida configuram, sem
sombra de dúvida, preceitos fundamentais a serem protegidos pelo instituto da
argüição de descumprimento, vez que essenciais ao exercício de todos os demais
direitos.
2.2 Do ato do poder público violador do preceito fundamental
Nos termos do §1º do artigo 102 da Constituição Federal e de acordo com a Lei
9.882/99, a argüição de descumprimento de preceito fundamental tem como missão
evitar ou reparar lesão a preceito fundamental causada por ato do Poder Público.
Trata-se, portanto, de ação de defesa do cidadão e da ordem jurídica constitucional
dos atos lesivos emanados pelo Poder Público, concebido de forma ampla e irrestrita
pela lei específica e pela Constituição. Assim, esclarece Nelson Nery Jr.:
“(...) Esse ato do Poder Público pode ser normativo ou
administrativo, comissivo ou omissivo. Todos esses
10
ficam sujeitos à fiscalização por meio da argüição de
descumprimento de preceito constitucional
fundamental.” (in Código de Processo Civil
Comentado, 2001, p. 1444).
No mesmo sentido, é o entendimento de André Ramos Tavares, ao esclarecer a
extensão da expressão “Poder Público” para fim de aplicação da argüição de
descumprimento de preceito fundamental:
“... Assim, os Poderes Executivo, Legislativo ou
Judiciário, de quaisquer dos níveis federativos, restam
absorvidos pela expressão. (...) Realmente, não se pode
deixar de admitir a sindicabilidade dos atos estatais
sob o pretexto de serem discricionários.
Discricionariedade não se confunde com
arbitrariedade. Ademais, a Administração deve
perseguir sempre a melhor das alternativas para o
interesse público. Por fim, frise-se que a argüição está
vocacionada com exclusividade para os preceitos
constitucionais fundamentais, sendo absolutamente
absurdo imaginar que um ato viole normas desse porte
e possa, ainda assim, restar ileso” (in Tratado da
argüição de preceito fundamental, 2001, p. 209)
Desta forma, todo e qualquer ato do Poder Público, seja emanado do Poder
Executivo, do Legislativo ou mesmo do Judiciário, que lesione preceito fundamental
pode ser argüido perante este Supremo Tribunal Federal.
No caso dos autos, o ato do Poder Público que descumpre os preceitos fundamentais
apontados está consubstanciado na elaboração da Lei 10.934/04, que dispõe sobre as
diretrizes para elaboração da lei orçamentária de 2005, sem a necessária vinculação
11
dos recursos mínimos estabelecidos pela Constituição Federal para aplicação em
ações e serviços públicos de saúde. Referida omissão é resultado conjunto do veto
presidencial aposto sobre o § 3º do artigo 59 do Projeto de Lei nº 3 de 2004-CN, bem
como da manutenção do veto pelo Congresso Nacional.
Ao regular o processo legislativo, a Constituição Federal de 1988 prevê a
possibilidade de veto a projeto de lei elaborado nas casas legislativas e levado à
apreciação do Presidente da República para sanção (art.66, CF).
A Prof.ª Carmem Lúcia Antunes Rocha assim dispõe acerca deste instituto:
“O veto é o ato formal e expresso pelo qual o titular
do poder executivo nega a sua aquiescência ao projeto
de lei submetido à sua apreciação, após a manifestação
e decisão sobre ele tomada pelo poder legislativo,
impedindo, em princípio, a sua transformação em
norma do sistema jurídico. Recusando a sanção o
titular do poder executivo - que é co-participe da
formação da lei - obstrui o processo legislativo e
impede, em princípio, o surgimento da lei. Dizemos em
princípio porque o veto é submetido, acompanhado de
sua justificativa e razões ao poder legislativo, que
sobre ele se manifesta, em votação, podendo inaceitá-
lo. Nesta hipótese prevalece a deliberação legislativa e
o projeto converte-se em lei, lei sem sanção. No Direito
Constitucional positivo brasileiro, o veto do poder
executivo (ou, no caso da Constituição Imperial, do
poder moderador) aos projetos de lei tem sido presença
constante. Significa, pois, que a lei, no Brasil, tem sido
tradicionalmente e salvo exceções expressas previstas
no próprio texto constitucional, resultado da vontade
12
compósita dos órgãos do legislativo e do executivo.”
(in Constituição e Constitucionalidade, Editora Lê,
1991, p. 172/173)
Desse modo, a Lei 10.934/04, objeto da presente ADPF, é resultado da vontade
conjunta dos órgãos do legislativo e do executivo. O veto aposto sobre o § 3º do
artigo 59 do Projeto de Lei nº 3 de 2004 – CN, bem como sua manutenção pelo
Congresso Nacional resultou na edição de uma lei de diretrizes orçamentárias para o
ano de 2005, que não faz qualquer menção à vinculação de recursos mínimos a
serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde.
O dispositivo vetado trazia a seguinte redação:
Art. 59.
(...)
§ 3º. Na execução orçamentária de 2005, a aplicação
mínima em ações e serviços públicos de saúde será
equivalente ao maior valor entre o efetivamente
empenhado e o mínimo previsto para aplicação em
2004 nessas ações e serviços, corrigido pela variação
nominal do PIB em 2004 em relação ao de 2003.”
Referido dispositivo visava ao cumprimento do disposto no art. 77 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, com redação dada pela Emenda
Constitucional nº 29/00, que tem por finalidade última a alocação de recursos
públicos mínimos para assegurar a população seu direito fundamental à saúde, sendo
que a não previsão legislativa desse piso implica em clara violação a preceito
constitucional fundamental.
Com isso a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO para o exercício de 2005
dispõe de forma absolutamente genérica acerca dos recursos a serem incluídos
13
no orçamento da União para gastos com saúde, impossibilitando o cumprimento
do disposto na Constituição Federal.
A redação do artigo em vigência é a seguinte:
Art. 59. O orçamento da União incluirá os recursos
necessários ao atendimento: (...)
II - da aplicação mínima em ações e serviços públicos
de saúde, em cumprimento ao disposto na Emenda
Constitucional no 29, de 13 de setembro de 2000.
(...)
§ 2o Para os efeitos do inciso II do caput, consideram-
se como ações e serviços públicos de saúde a totalidade
das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os
encargos previdenciários da União, os serviços da
dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada
com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza, ressalvada disposição em contrário que vier a
ser estabelecida pela lei complementar a que se refere o
art. 198, § 3o da Constituição.
§ 3o (VETADO)
Ademais, cumpre salientar que o dispositivo vetado encontrava-se em perfeita
consonância com o entendimento dado pelo Tribunal de Contas da União, quanto à
base de cálculo imposta pela alínea b, do inciso I do art. 77 do ADCT.
Em sessão de 06/03/2002, entendeu o Plenário do TCU1 que a expressão “valor
apurado no ano anterior” deveria ser compreendida como o valor efetivamente
empenhado no ano anterior em ações e serviços públicos de saúde, para efeito de
definição do valor mínimo a ser despendido no exercício subseqüente.
1 Decisão 143/2002- TCU - Plenário
14
2.3 Da subsidiaridade
A Lei 9.882/99, em seu art. 4º, §1º, impõe que somente será admitida a argüição de
descumprimento de preceito fundamental se não houver outro meio eficaz para sanar
a lesividade. Não há dúvidas de que a presente argüição de descumprimento de
preceito fundamental é o único instrumento eficaz para sanar a lesão aos preceitos
violados, uma vez que a omissão configurada na elaboração da Lei 10.934/04 não
poderia ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, de constitucionalidade ou
de inconstitucionalidade por omissão.
De fato, conforme entendimento deste Supremo Tribunal, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias é lei com efeitos concretos e não pode ser questionada pela via da
ADIn. É o que se depreende do voto do Exmo. Min. Carlos Veloso proferido por
ocasião do julgamento da ADI 2.484:
“(...) No que toca às leis com efeitos concretos, assim
atos administrativos em sentido material, a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no
sentido de não admitir o seu controle em abstrato. É
dizer, o Supremo Tribunal Federal não admite a ação
direta de inconstitucionalidade que tenha por objeto
leis com efeitos concretos.”
Não sendo, portanto, cabível as demais ações diretas de controle concentrado de
constitucionalidade, há de se entender possível a utilização da ADPF, conforme já
decidido pelo Exmo. Min. Celso de Mello, ao analisar o cabimento da ADPF 45,
transcrita na inicial desta argüição.
Desse modo, temos que a argüição de descumprimento de preceito fundamental
é o único meio eficaz para sanar a violação aos direitos à saúde, à dignidade da
pessoa humana e à vida, decorrentes de ato do Poder Público que se omitiu em
15
concretizar política pública constitucionalmente prevista para assegurar
referidos direitos fundamentais.
Assim, resta evidente o cabimento da presente Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 73, que deverá ser admitida por este Egrégio Supremo
Tribunal Federal e julgada procedente para que sejam sanadas as violações aos
preceitos fundamentais aqui descritos.
3. O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
Mesmo antes da promulgação da Constituição de 1988, o direito à saúde já havia
sido reconhecido como direito fundamental. Com a constituição da Organização
Mundial da Saúde em 1946, a saúde deixou de ser conceituada por seu aspecto
negativo, qual seja, a ausência de enfermidades. Assim, passou a ser entendida como
“um estado de completo bem-estar físico, mental e social” e “gozar do melhor
estado de saúde que é possível atingir” passou a “constituir um dos direitos
fundamentais de todo o ser humano”. 2
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, seguindo o conceito
estabelecido, aborda a saúde em seu artigo 25, relacionando-a diretamente ao estado
de bem-estar do homem:
Artigo 25. I) Todo o homem tem direito a um padrão de
vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,
2 Constituição da Organização Mundial da Saúde – disponível em www.who.int, acessado em 04.07.05.
16
e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu
controle. (grifamos)
Outros instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos também
abordaram o tema, dentre os quais podemos destacar o Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.
Dispõe o artigo 12 do referido Pacto:
Art. 12 –
1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o
direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado
nível de saúde física e mental.
2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto
deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno
exercício desse direito, incluirão as medidas que se
façam necessárias para assegurar:
a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade
infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças.
b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do
trabalho e do meio ambiente.
c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas,
endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta
contra essas doenças.
d) A criação de condições que assegurem a todos
assistência médica e serviços médicos em caso de
enfermidade.
17
No Brasil, o direito à saúde foi elevado à categoria de direito fundamental com a
promulgação da Constituição Federal de 1988. De fato, as constituições anteriores
pouco diziam acerca do tema3.
A Constituição do Império de 1824 previa a inviolabilidade dos direitos civis e
políticos, porém nada dispôs acerca dos direitos sociais, sendo garantido apenas o
“socorro público”. A Constituição da República de 1891 não fez qualquer menção ao
direito à saúde no texto constitucional.
A Constituição de 1934 foi a primeira a vislumbrar preocupações de caráter sanitário,
conferindo à União e aos Estados competência concorrente para “cuidar da saúde e
assistência pública”, bem como para adotar medidas de “higiene social”. As
Constituições de 1937 e de 1946 apenas conferiram à União competência para
legislar acerca da proteção à saúde, sem, no entanto, aprofundar o tema.
Por fim, a Constituição da República de 1967 estabeleceu genericamente
competência para a União estabelecer planos nacionais de saúde.
3 - Constituição Política do Império do Brazil de 1824 – “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXXI. A Constituição tambem garante os soccorros publicos.” - Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 – sem dispositivo relacionado à saúde. - Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 – “Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: II - cuidar da saúde e assistência públicas;” e “Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis; g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais.” - Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 – “Art 16 - Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias: XXVII - normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança.” - Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 – “Art 5º - Compete à União: XV - legislar sobre: b) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; e de regime penitenciário;” - Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 – “Art 8º - Compete à União: XIV - estabelecer planos nacionais de educação e de saúde;”
18
Assim, foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a primeira a
reconhecer expressamente a saúde como um direito de todos e dever do Estado.
Nesse sentido, dispõe a CF/88 em seu artigo 196:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação. (grifamos)
Assim, o direito constitucional pátrio positivou o conceito de saúde desenvolvido no
âmbito internacional, uma vez que prevê ações e serviços destinados a sua promoção,
proteção e recuperação, deixando para trás o aspecto meramente medicinal da saúde.
Com isso, o Estado brasileiro se comprometeu a promover a saúde, não apenas
como prevenção da doença (proteção) ou mediante um processo curativo
(recuperação), posterior à ocorrência da enfermidade.
Visando à promoção da saúde, a Carta Magna estabeleceu um sistema único que
seguirá as diretrizes estabelecidas pelo art. 198 que, entre outras coisas, prevê a
necessidade de atendimento integral, nos seguintes termos:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde
integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo
com as seguintes diretrizes: (...)
II - atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais.
19
Do mesmo modo, para assegurar o bom funcionamento do Sistema Único de Saúde
estabelecido, a Constituição estabelece o modo pelo qual ele será financiado:
Art. 198. (...)
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos
termos do art. 195, com recursos do orçamento da
seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
§2º. A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços
públicos de saúde recursos mínimos derivados da
aplicação de percentuais calculados sobre:
I – no caso da União, na forma definida nos termos da
lei complementar prevista no § 3º; (...)
Assim, o financiamento das ações e serviços públicos de saúde pelo Sistema Único
de Saúde - SUS depende da aplicação de recursos financeiros mínimos pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme dispõe o § 2º do art. 198 da CF/88.
Especificamente em relação aos recursos financeiros da União, objeto da presente
ADPF, deve-se aplicar ainda o disposto no artigo 77, I, b do Ato de Disposições
Constitucionais Provisórias, uma vez que a lei complementar prevista pelo § 3º do
art. 198 não foi editada. Dispõe referido dispositivo do ADCT:
Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos
mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de
saúde serão equivalentes:
I – No caso da União:
b) do ano 2001 ao 2004, o valor apurado no ano
anterior, corrigido pela variação nominal do Produto
Interno Bruto – PIB;
20
O dispositivo excluído do Projeto de Lei nº 3, de 2004-CN, objeto da presente
ADPF, visava justamente assegurar a aplicação de valores mínimos
constitucionalmente estabelecidos para as ações e serviços públicos de saúde, com
vistas à efetivação do direito fundamental à saúde.
A ausência de dispositivo de lei que disponha sobre os recursos públicos
mínimos para aplicação em saúde viola direito fundamental, na medida em que
impossibilita os meios para sua efetivação, esvaziando o sentido do direito
previsto pela Constituição.
A violação sistemática ao direito da saúde, perpetrada pelos atos do Poder Público
que excluem seus meios de efetivação, transforma referido direito fundamental em
mera norma programática, sem efetividade.
No entanto, conforme já ponderou este Egrégio Supremo Tribunal Federal, o direito
fundamental à saúde deve ser integralmente respeitado pelo Poder Público, que
deverá assegurar todos os meios necessários para sua realização prática, sob pena de
transformá-lo em promessa constitucional inconseqüente.
Esse entendimento pode ser ilustrado pelo seguinte acórdão, proferido por ocasião do
julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 271.286:
PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA
DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS -
DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER
CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF,
ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) -
RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O
DIREITO À SAÚDE REPRESENTA
21
CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL
INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. –
O direito público subjetivo à saúde representa
prerrogativa jurídica indisponível assegurada à
generalidade das pessoas pela própria Constituição
da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade
deve velar, de maneira responsável, o Poder Público,
a quem incumbe formular - e implementar -
políticas sociais e econômicas idôneas que visem a
garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores
do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O
direito à saúde - além de qualificar-se como direito
fundamental que assiste a todas as pessoas -
representa conseqüência constitucional indissociável
do direito à vida.
O Poder Público, qualquer que seja a esfera
institucional de sua atuação no plano da organização
federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao
problema da saúde da população, sob pena de incidir,
ainda que por censurável omissão, em grave
comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA
PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-
LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL
INCONSEQÜENTE.
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da
Carta Política - que tem por destinatários todos os entes
políticos que compõem, no plano institucional, a
22
organização federativa do Estado brasileiro - não pode
converter-se em promessa constitucional
inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando
justas expectativas nele depositadas pela coletividade,
substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu
impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria
Lei Fundamental do Estado.
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS
A PESSOAS CARENTES.
O reconhecimento judicial da validade jurídica de
programas de distribuição gratuita de medicamentos a
pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus
HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da
Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e
representa, na concreção do seu alcance, um gesto
reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das
pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada
possuem, a não ser a consciência de sua própria
humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes
do STF. (RE 271.286 AgR/RS. Rel. Min. Celso de
Mello - 19.09.00 – grifo nosso)
Assim, o próprio Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, já apontou a
forma pela qual deve ser entendido o direito à saúde, inclusive em relação à sua
primazia frente aos demais direitos e interesses.
É neste contexto que deverá ser analisada a presente ADPF 73.
23
4. DO DESCUMPRIMENTO DO PRECEITO FUNDAMENTAL DO
DIREITO À SAÚDE QUANTO AOS RECURSOS MÍNIMOS
CONSTITUCIONALMENTE ESTABELECIDOS PARA APLICAÇÃO
EM AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
A Constituição Federal de 1988, por meio do disposto nos parágrafos §§ 2º e 3º do
art. 198, bem como do art. 77 do ADCT, acrescidos pela Emenda Constitucional
29/00, para assegurar o direito à saúde para a população brasileira determinou
recursos mínimos a serem aplicados pelos entes federativos em ações e serviços
públicos de saúde.
De acordo com o disposto no artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, o valor mínimo a ser aplicado pela União nas ações e serviços públicos
de saúde deve corresponder ao valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação
nominal do Produto Interno Bruto – PIB.
Conforme dados do Ministério da Saúde, divulgados em relatório intitulado “A
Vinculação Constitucional de Recursos para Ações e Serviços Públicos de Saúde –
EC nº 29/2000” (ANEXO 1), a União aplicou em ações e serviços públicos de
saúde valores inferiores ao previsto pela Constituição Federal.
O PIB e a Despesa do MS – 2000 a 2003
Ano Despesa MS com
saúde (EC 29)
em R$ milhões
Variação da
Despesa MS com
saúde (EC 29)
PIB nominal
em R$
milhões
Variação
do PIB
Nominal
2000 20.351 10,89% 1.101.255 13,08%
2001 22.474 10,43% 1.198.736 8,85%
2002 24.737 10,07% 1.346.028 12,29%
2003 27.181 9,88% 1.556.182 15,61%
24
A variação nominal do PIB no ano anterior deve ser a base de cálculo para
aferição dos gastos mínimos a serem realizados em ações e serviços públicos de
saúde.
Conforme se observa na tabela acima, entre 2001 e 2002 a variação do PIB
nominal foi de 12,29%. A variação das despesas do Ministério da Saúde entre
2002 e 2003 foi de 9,88%. Desse modo, no ano de 2003, as despesas
empenhadas pela União em ações e serviços de saúde ficou muito aquém do
mínimo estabelecido pela Constituição Federal.
Esta também foi a conclusão do parecer prévio conclusivo do Tribunal de Contas
da União referentes ao exercício de 2003, apresentado na inicial da presente
ADPF.
Aplicando-se o mesmo raciocínio para os anos anteriores, e de acordo com os
dados apontados na tabela acima, podemos verificar que a variação das despesas
empenhadas pelo Ministério da Saúde nas ações e serviços públicos de saúde
delimitadas pela EC 29, não atingiram a variação nominal do PIB em nenhum
dos anos analisados.
Desta forma, restou devidamente caracterizado o descumprimento ao limite
mínimo estabelecido no art. 77, inciso I, alínea b, do ADCT, o que importa em
flagrante descumprimento do preceito fundamental do direito à saúde pelo Poder
Público.
Este descumprimento reiterado do financiamento mínimo exigido pela
Constituição é elemento determinador na situação de sucateamento da saúde
pública no Brasil, que está longe de efetivar uma assistência à saúde digna para
todos os brasileiros.
25
5. SUCATEAMENTO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE: AS
CONSEQÜÊNCIAS DO DESCUMPRIMENTO DOS VALORES
MÍNIMOS ESTABELECIDOS PELA CONSTITUIÇÃO
Conforme estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE4, a
população brasileira no ano de 2005 é de 183.989.851 milhões de habitantes. A
Constituição Federal de 1988 garante a todas as pessoas residentes no Brasil o
direito à saúde, mediante o acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação, visando assegurar a existência
digna, um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito.
A assistência à saúde no Brasil é prestada por meio do Sistema Único de Saúde –
SUS, sistema de natureza pública que tem seus serviços administrados pelos
governos federal, estaduais e municipais, sendo que em locais onde há falta de
serviços públicos, o SUS pode realizar a contratação de serviços de hospitais ou
laboratórios particulares, sendo os serviços pagos mediante o repasse de verbas
públicas.
Estatísticas de saúde elaborados pelo IBGE, divulgadas na pesquisa Assistência
Médico-Sanitária – 2002 (ANEXO 2), revelam que o Brasil possui 65.343
estabelecimentos de saúde, sendo 38.347 estabelecimentos públicos e 26.996
privados, dos quais 8.675 são vinculados ao Sistema Único de Saúde – SUS.
Estabelecimentos de saúde por natureza – Brasil, 2002
59%28%
13%
públicos privados privados - SUS
4 Disponível no site www.ibge.gov.br, consultado em 28.06.2005.
26
Nos estabelecimentos de saúde que possibilitam a internação, segundo a mesma
pesquisa, existem 471.171 leitos disponíveis, sendo 146.319 em estabelecimentos
públicos e 324.852 em estabelecimentos privados, dos quais 269.028 vinculados
ao SUS.
Leitos para internação em estabelecimentos de saúde por natureza – Brasil, 2002
31%12%
57%
públicos privados privados - SUS
A Organização Mundial de Saúde - OMS não estabelece taxas ideais de número
de leitos por habitantes a serem cumpridas por seus países-membros. No entanto,
informe elaborado por referida organização sobre a saúde no mundo em 2000,
revela que o Brasil ocupa a vergonhosa 125ª posição entre os 191 países
membros da OMS, no que diz respeito à qualidade da saúde pública
(ANEXO 3).
Este atestado de má qualidade da saúde pública brasileira tem diversos motivos.
De acordo com os Indicadores e Dados Básicos para a saúde – IDB-20045, em
2003 o Brasil contava com 254.886 médicos atuando em todo o sistema de saúde.
Este número representa uma média de 1,42 médico para cada 1.000 habitantes, ou
142 médicos a cada 100.000 habitantes.
5 Os Indicadores e Dados Básicos para a Saúde (IDB) são produto da ação integrada das instituições responsáveis pelos principais sistemas de informação de base nacional utilizados, sendo elas: Ministério da Saúde, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Ministério da Previdência Social. Os indicadores estão disponíveis para consulta na Internet: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2004/matriz.htm#recur – consultado em 06.07.05.
27
No ano 2000, o Brasil possuía 127 médicos por 100.000 habitantes6, e este
número colocava o país em 13º lugar no ranking de médicos por habitantes
entre os países da América Latina e Caribe - um verdadeiro vexame se
levarmos em consideração que o Brasil possui um PIB quase 50 vezes maior
que o do Uruguai7, por exemplo, que ocupa o segundo lugar no ranking.
Médicos por cada 100.000 habitantes: América Latina e Caribe, 20008
530
370
268
236
216
186
170
167
152
141
140
130
125
116
110
110
93
93
86
83
25
18
8
127
Cuba
Uruguai
Argentina
Venezuela
R. Dominicana
México
Equador
Panamá
Bahamas
Costa Rica
Jamaica
Bolívia
Brasil
Barbados
Colombia
Paraguai
Chile
Guatemala
Peru
Nicaragua
Honduras
Suriname
Guiana
Haiti
6 Fonte: Universidad de Los Trabajadores de América Latino - www.utal.org 7 Conforme valores obtidos para o ano de 2003 disponíveis na página da internet: www.ipib.com.br – acessado em 13.07.05 8 Foram omitidos alguns países listados após a 13ª posição.
28
O Brasil, em comparação com outros países, investe muito pouco em saúde. De
acordo com tabelas divulgadas pelo Ministério da Saúde em relatório anexo, nos
anos de 2000 a 2003, o Brasil gastou cerca de R$ 174 bilhões de reais com
assistência à saúde, sendo a União o ente federativo que arcou com a maior parte
das despesas.
Despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde, em R$ milhões –
Brasil, 2000-2003
Federal Estadual Municipal TOTAL
Ano Despesa % do
PIB
Despesa % do
PIB
Despesa % do
PIB
Despesa %
PIB
2000 20.351 1,85 6.313 0,57 7.404 0,67 34.069 3,09
2001 22.474 1,87 8.270 0,69 9.269 0,77 40.013 3,24
2002 24.737 1,84 10.309 0,77 11.759 0,87 46.805 3,48
2003 27.181 1,75 12.224 0,79 14.219 0,91 53.624 3,45
Em 2001, o Brasil gastou o equivalente a 3,2% do PIB em saúde pública.
Vejamos a comparação com outros países da América Latina, também disponível
no relatório do Ministério da Saúde anexo:
Gasto Público com Saúde em 2001 (% do PIB) – Países da América Latina
6,2
5,1
3,7 3,6 3,5 3,2 3,12,7
2,3
0
1
2
3
4
5
6
7
Cuba Argentina Venezuela Colômbia Bolívia Brasil Chile México Equador
29
A situação fica ainda mais crítica se compararmos os gastos públicos com saúde
realizados pelo Brasil, com os gastos realizados nesta área pelos países do G79.
De fato, o PIB do Brasil no ano 200110 o colocava na posição de décima
economia mundial, razão pela qual seus gastos em saúde pública em relação
ao PIB deve ser equiparado ao de países de economia equivalente, não aos de
países da América Latina, que possuem um PIB bem inferior ao do Brasil.
Gasto Público com Saúde em 2001 (% do PIB) – Brasil e Países do G7
8,17,3
6,76,3 6,2 6,2 6,2
3,2
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Alemanha França Canadá Itália Inglaterra Japão EUA Brasil
Além disso, outros indicadores apontam para o descumprimento do direito
fundamental à saúde no Brasil.
A Organização Mundial de Saúde recomenda, para uma boa assistência
farmacêutica básica, por exemplo, um investimento de R$ 6 a R$ 8 por
habitante/ano. O Brasil, conforme dados do Conselho Regional de Medicina de
Minas Gerais11, há cinco anos, investe cerca de R$ 2 por habitante para abastecer
as unidades básicas de saúde.
9 Conforme tabela do relatório do Ministério da Saúde anexo. 10 Disponível em www.ipib.com.br – acessado em 13.07.05 11 Disponível em www.crememg.org.br – consultado em 01.07.05.
30
Pesquisa acerca da qualidade do serviço de saúde, realizada pelo Ministério da
Saúde12 com os usuários do SUS, revela que as filas nas emergências dos
hospitais, o longo tempo de espera para a realização de exames e cirurgias e a
incapacidade das unidades de saúde de acolherem os pacientes são queixas
freqüentes entre os usuários do sistema único de saúde.
Estudos realizados pelo Conselho Nacional de Medicina13 criticam o longo tempo
de espera para internação: em média 6,2 dias; maior do que o próprio período de
internação, estimado em 5,7 dias.
A pesquisa ainda indica que, nos hospitais públicos, em média 69.088 pessoas
ficam por dia na espera de internação, mais do que o número de pacientes
que conseguem ser internado diariamente, em média 59.432!
Dados como os ora apontados servem para ilustrar as conseqüências da não
aplicação dos recursos mínimos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988
em ações e serviços públicos de saúde, importando em flagrante desrespeito aos
preceitos fundamentais do direito à saúde e da dignidade da pessoa humana, a
serem sanados por este Egrégio Supremo Tribunal Federal. Nos dizeres do Exmo.
Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC 70.389, de 2001:
“É preciso enfatizar – e enfatizar com veemência, Sr.
Presidente – que este Supremo Tribunal Federal tem um
compromisso histórico com a preservação dos valores
fundamentais que protegem a dignidade da pessoa
humana. O Estado não pode prescindir na sua atuação
institucional da necessária observância de um dado
axiológico cuja essencialidade se revela inafastável e que
se exterioriza na preponderância do valor ético
12 Disponível em www.saude.gov.br – consultado em 13.07.05. 13 Conselho Nacional de Medicina – www.conselho.saude.gov.br – consultado em 01.07.05.
31
fundamental do Homem. Esse dado axiológico essencial,
que encontra sua expressão jurídica na proclamação
formal dos direitos fundamentais da pessoa humana, não
pode ser ignorado pelo Estado no desempenho das
atribuições político-jurídicas que lhe competem”.
5. PEDIDO
Ante o exposto, requerem:
a) seja a presente manifestação da Conectas Direitos Humanos admitida na
qualidade de amicus curiae na ADPF 73, nos termos do artigo 6º, § 2º, da
Lei nº 9.882/99;
b) caso negado o item anterior, requerem que estes argumentos e documentos
sejam recebidos como memoriais;
c) que Vossas Excelências julguem procedente a presente argüição de
descumprimento de preceito fundamental 73.
Protestam pela juntada aos autos da ADPF 73 dos documentos anexos a este
amicus curiae e pela possibilidade de sustentação oral.
São Paulo, 14 de julho de 2005.
Oscar Vilhena Vieira Eloísa Machado de Almeida
Diretor CONECTAS OAB/SP 201.790
Marcela Vieira
OAB/SP 136.738-E