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Considerando os conceitos sobre o orientalismo trabalhados na obra “Orientalismo: oOriente como invenção do Ocidente” de Edward Said, levando em conta também as críticasfeitas a esse livro, esse trabalho faz uma análise comparativa entre as ideias conceituais doorientalismo e a clássica obra literária do autor francês Júlio Verne “A Volta ao Mundo emOitenta Dias”. O livro escrito por Verne e publicado em 1873 apresenta ótimos exemplospara trabalhar conceitos como a diferenciação do “eu” e do “outro”, a questão da imposiçãoda superioridade europeia sobre os povos orientais, a chegada da velocidade imposta pelamodernidade no Oriente, o estranhamento cultural entre ocidentais e orientais, o conceito deOriente como antagonismo das características ocidentais, as intervenções políticas praticadaspelos europeus na Ásia, a posição e o olhar que um viajante europeu tinha na época sobre oOriente, entre outras discussões importantes para a compreensão do que chamamos deOrientalismo.
Citation preview
Álvaro Oliveira Marcolino
O Orientalismo em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias
Rio de Janeiro
2014
O ORIENTALISMO EM A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA DIAS
Álvaro Oliveira Marcolino
Instituto de História / CFCH
Bacharelado em História
Orientador: Prof. Dr. Murilo Sebe Bon Meihy
Rio de Janeiro
2014
O ORIENTALISMO EM A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA DIAS
Álvaro Oliveira Marcolino
Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau
de Bacharel.
Aprovada por:
Prof. Dr. Murilo Sebe Bon Meihy - Orientador
Prof. Dr. Gabriel de Carvalho Godoy Castanho
Profa. Dra. Silvia Adriana Barbosa Correia
Rio de Janeiro
2014
RESUMO
MARCOLINO, Álvaro Oliveira. O Orientalismo em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias.
Orientador: Murilo Sebe Bon Meihy. Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2014. Monografia
(Bacharelado em História).
Considerando os conceitos sobre o orientalismo trabalhados na obra “Orientalismo: o
Oriente como invenção do Ocidente” de Edward Said, levando em conta também as críticas
feitas a esse livro, esse trabalho faz uma análise comparativa entre as ideias conceituais do
orientalismo e a clássica obra literária do autor francês Júlio Verne “A Volta ao Mundo em
Oitenta Dias”. O livro escrito por Verne e publicado em 1873 apresenta ótimos exemplos
para trabalhar conceitos como a diferenciação do “eu” e do “outro”, a questão da imposição
da superioridade europeia sobre os povos orientais, a chegada da velocidade imposta pela
modernidade no Oriente, o estranhamento cultural entre ocidentais e orientais, o conceito de
Oriente como antagonismo das características ocidentais, as intervenções políticas praticadas
pelos europeus na Ásia, a posição e o olhar que um viajante europeu tinha na época sobre o
Oriente, entre outras discussões importantes para a compreensão do que chamamos de
Orientalismo.
Palavras-chave: Orientalismo, Júlio Verne, Imperialismo Europeu, Modernidade
ABSTRACT
MARCOLINO, Álvaro Oliveira. O Orientalismo em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias.
Orientador: Murilo Sebe Bon Meihy. Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2014. Monograph (History
Bachelor Degree).
Considering the concepts of Orientalism worked in the book "Orientalism: Western
conceptions of the Orient" by Edward Said, also taking into account the criticisms of this
book, this paper makes a comparative analysis between the conceptual ideas of Orientalism
and the classic literary work of the French author Jules Verne's "Around the World in Eighty
Days." The book written by Verne and published in 1873, features fine examples presents in
the debate of Orientalism, such as the concepts of "self" and "other," the question of the
imposition of European superiority over Oriental populations, the velocity imposed by
modernity in the Orient, cultural estrangement between East and West, the concept of Orient
as an antagonism of the Occident culture, policy interventions practiced by Europeans in Asia,
the point of view of an European traveler in the Orient , among other important discussions
for understanding what we call Orientalism.
Key-words: Orientalism, Jules Verne, European Imperialism, Modernity
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………..1
2 AS BASES CONCEITUAIS DO ORIENTALISMO..........................................................6
3 A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA ORIENTALISMOS........................................17
4 CONCLUSÃO......................................................................................................................31
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................33
1
1 INTRODUÇÃO
O Orientalismo pode ser entendido de diversas maneiras. O modo de observar o
conceito vai depender de onde essa análise ocorre. Uma complexa abordagem do que se pode
pensar como Orientalismo, está descrita na introdução do livro “Orientalismo – O Oriente
como invenção do Ocidente” escrito pelo acadêmico Edward Waldie Said, em 1978. Said,
apesar de nascido e criado em Jerusalém filho de pais árabes católicos, construiu sua carreira
acadêmica na Universidade de Columbia, em Nova York.1 Edward Said trabalha bastante,
tanto em seu livro “Orientalismo”, quanto em outras obras, a ideia de que o Ocidente
construiu o Oriente, trabalhando em diversas oportunidades com textos de artistas como
escritores e poetas, dando igual importância à literatura e às obras acadêmicas, o que é parte
de uma das críticas de autores como Robert Irwin ao livro de Said. Edward Said afirma que o
conjunto de características que definem “Oriente” é uma diferenciação antagônica de
Ocidente. Ou seja, para Said, o “Oriente” nada mais é do que tudo aquilo que não é
“Ocidente”. E o orientalismo é justamente a visão ocidental desse Oriente inventado. Todos
os trabalhos acadêmicos, literários, diplomáticos, que fazem a ponte comunicativa do
Ocidente com o Oriente tratam-se por orientalismo.
O que me proponho a fazer aqui é analisar o pensamento e os argumentos construídos
por Said na obra referenciada anteriormente, levando em conta algumas críticas feitas à obra
de Said, e ainda fazendo uma ponte comparativa com uma obra literária de um autor clássico
da literatura europeia do século XIX. Trata-se de “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” de
Júlio Verne.
Para trabalhar conjuntamente as obras historiográficas e seus conceitos e fazer uma
relação séria e com base metodológica sobre a obra literária de Júlio Verne, recorrerei a
alguns princípios discutidos por Roger Chartier. O primeiro ponto é fazer uma
contextualização do autor e da obra. Pois uma obra literária está marcada pelo tempo em que
foi escrita, pelo lugar ao qual foi escrita, por quem foi escrita e para quem foi escrita. Sem
1 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.523
2
esses princípios de partida podem ocorrer confusões e erros metodológicos de pesquisa.
Chartier diz o seguinte:
“Devemos romper com a atitude espontânea que supõe que todos os textos, todas as
obras, todos os gêneros, foram compostos, publicados, lidos e recebidos segundo os
critérios que caracterizam nossa própria relação com o escrito. Trata-se, portanto, de
identificar histórica e morfologicamente as diferentes modalidades da inscrição e da
transmissão dos discursos e, assim, de reconhecer a pluralidade das operações e dos
atores implicados tanto na produção e publicação de qualquer texto, como nos efeitos
produzidos pelas formas materiais dos discursos sobre a construção de seu sentido.
Trata-se também de considerar o sentido dos textos como o resultado de uma
negociação ou transações entre a invenção literária e os discursos ou práticas do
mundo social que buscam, ao mesmo tempo, os materiais e matrizes da criação
estética e as condições de sua possível compreensão.”2
O historiador Valdeci Rezende Borges, professor da UFG, diz que tomado esses
devidos cuidados metodológicos para se trabalhar com um texto literário, e que como todo
texto literário tem valor de documentação histórica, uma obra de literatura pode ser
considerada como uma representação da realidade de uma determinada época. Por mais que
uma obra seja ficcional, ela pode levantar e sublinhar os debates que eram importantes e
discutidos na época em que foi escrita, ou ainda representar costumes sociais e culturais dessa
determinada época.
“No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser tomada como
uma forma de representação social e histórica, sendo testemunha excepcional de uma
época, pois um produto sociocultural, um fato estético e histórico, que representa as
experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os sentimentos, as criações, os
pensamentos, as práticas, as inquietações, as expectativas, as esperanças, os sonhos e
as questões diversas que movimentam e circulam em cada sociedade e tempo
histórico”3
Partindo desses princípios metodológicos, é importante nesse momento abordar quem
foi esse personagem histórico chamado Júlio Verne, perceber qual a importância de sua
posição de escritor, sobretudo no tempo histórico em que viveu. E perceber a forte conexão do
seu próprio tempo, sua nacionalidade e formação intelectual, para com os temas expostos na
sua obra “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” e a ligação entre esses fatores e seu
2 CHARTIER, Roger. Literatura e História. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, jan/dez. 2000. p.197
3 BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: algumas considerações. Revista Teoria da História,
Goiânia, v. 1, n. 3, jun. 2010. p.98
3
posicionamento a respeito de temas tão presentes em sua época como o Imperialismo Europeu
que tem conexões óbvias e diretas com o conceito de orientalismo que será abordado com
mais detalhes adiante nesse trabalho.
Júlio Verne (em francês Jules Gabriel Verne) nasceu na cidade francesa de Nantes no
ano de 1828 e viveu até 1905. Um de seus maiores sucessos, “A Volta ao Mundo em Oitenta
Dias” foi publicado em 1873, pouco mais de cem anos antes da publicação de “Orientalismo”
de Said. O interessante do ano de publicação da obra de Júlio Verne é o seu contexto
histórico. O livro foi escrito por Verne durante os conturbados acontecimentos da guerra
Franco-Prussiana, que ocorreu entre 1870 e 1871, dentro do contexto da unificação politico-
territorial da Alemanha. Porém o mais interessante a ser destacado para uma abordagem
comparativa entre as duas obras, é o fato do livro de Júlio Verne estar inserido no contexto do
Imperialismo do final do século XIX. Podemos, por meio da narrativa de Verne, observar o
ponto de vista e as opiniões de um letrado francês, muito esclarecido e referenciado por sua
capacidade de pensamento científico, a respeito do Oriente. É interessante sublinhar como um
artista ocidental está enxergando o mundo oriental na ótica do Imperialismo que estava
ocorrendo no período. Esse tipo de análise está bastante presente na obra de Said, que
considera muito importante as contribuições de poetas e escritores a respeito do orientalismo.
“Em primeiro lugar, quase todos os escritores do século XIX (e o mesmo vale para
muitos escritores de períodos anteriores) estavam extraordinariamente conscientes do
fato do império: esse é um tema não muito bem estudado, mas não será preciso muito
tempo para um moderno especialista vitoriano admitir que heróis culturais liberais
como John Stuart Mill, Arnold, Carlyle, Newman, Macaulay, Ruskin, George Eliot e
até Dickens tinham opiniões definidas sobre raça e imperialismo, facilmente
detectáveis em ação nos seus escritos.”4
Cabe destacar também que Júlio Verne quando escreveu “A Volta ao Mundo em
Oitenta Dias” já havia publicado boa parte de suas principais obras, como “Cinco semanas
em um balão”, “Viagem ao Centro da Terra” e “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de modo
que o autor já era reconhecido por esse tipo de literatura de viagem e aventura, e já estava
fomentando o que foi o berço da ficção científica. Isso nos ressalta um aspecto importante da
4 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.43
4
escrita de “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, o de que Verne já possuía um público que lia
suas obras e que ele, portanto, tinha um determinado público para quem escrever que no caso
se caracterizava em sua maior parte por homens brancos europeus.
Edward Said faz uma excelente afirmação sobre quem são os consumidores das obras
escritas pelos orientalistas. Ele destaca que apesar de ter como objeto de estudo o Oriente, os
autores orientalistas não estavam escrevendo para os orientais, e sim para leitores ocidentais
com interesses de conhecer mais esse “outro” mundo, que aparentava ser tão diferente do
mundo ocidental em que viviam.
“O Orientalismo é postulado sobre a exterioridade, isto é, sobre o fato de que o
orientalista, poeta ou erudito, faz o Oriente falar, descreve o Oriente, esclarece os
seus mistérios por e para o Ocidente. Ele nunca está preocupado com o Oriente
exceto como causa primeiro do que diz.”5
Na altura de sua carreira de escritor em que estava escrevendo a obra que é discutida
nesse trabalho, Verne já possuía o que Chartier veio chamar de “função-autor”. Roger
Chartier define a “função-autor” da seguinte forma:
“Paradoxalmente, ironicamente, a dissociação entre o sujeito e o autor, entre o eu e o
nome próprio, torna-se um desejo de identificação como se o indivíduo não pudesse,
ou não quisesse escapar da forma de existência e sobrevivência procurada, prometida
pela função-autor”6
Sabemos, portanto, que se esperava de Júlio Verne um tipo de obra literária similar as
que o autor já tivera publicado anteriormente. E tanto em “A Volta ao Mundo em Oitenta
Dias” quanto em outras obras anteriormente publicadas pelo francês, uma característica em
comum pode ser ressaltada. Verne era um grande estudioso e pesquisava a fundo os assuntos
de seus livros antes de escrevê-lo. Como foi o caso de “Cinco Semanas em um Balão”, obra
que descreve uma viagem de balão à África de uma maneira bem realista, levantando dúvidas
5 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.51 6 CHARTIER, Roger. Literatura e História. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, jan/dez. 2000. p.200
5
na época de se esse livro tratava-se de ficção ou realidade. O fato é que Verne vivia em um
círculo de amigos que se dedicavam à ciência e pode fazer um bom trabalho de pesquisa antes
de escrever a história ficcional. O mesmo pode ser atestado em “A Volta ao Mundo em
Oitenta Dias”, já que ao fazer uma leitura cuidadosa do livro, é possível notar um grande
conhecimento do autor a respeito dos países orientais, o que supõe um contato de Verne com
as obras orientalistas publicadas até a segunda metade do século XIX.
O próprio Edward Said destaca em sua principal obra a importância da relação entre os
autores e a política vivida na época, sobretudo em seus países de origem, para um melhor
entendimento do orientalismo.
“Assim, estudo o Orientalismo como um intercâmbio dinâmico entre autores
individuais e os grandes interesses políticos modelados pelos três grandes impérios –
o britânico, o francês, o americano – em cujo território intelectual e imaginativo a
escrita foi produzida.”7
O historiador Robert Irwin faz duras críticas a Said e em especial a sua obra
“Orientalismo”. Uma das principais críticas de Irwin é justamente a importância que Said deu
a autores que produziram livros literários. Segundo Irwin não deveria ser dada a mesma
atenção a acadêmicos e a poetas e escritores.
“Restringi minha análise de Orientalismo principalmente ao tratamento incorreto que
o autor deu aos orientalistas acadêmicos, pois considero confuso e equivocado reuni-
los todos no mesmo saco com poetas, administradores e exploradores, como se
tivessem muito em comum.”8
Por outro lado, Edward Said defende de forma convicta sua posição de utilizar obras
literárias para melhor compreender o orientalismo. Destaca-se aqui um trecho da introdução
de “Orientalismo” onde Said sai em defesa da sua opção de trabalhar com a literatura.
7 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.43-44 8 IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.347
6
“Muito frequentemente presume-se que a literatura e a cultura sejam politicamente,
mesmo historicamente inocentes; a minha impressão tem sido, com regularidade,
diversa, e o meu estudo do Orientalismo certamente me convenceu (e espero que
convença meus colegas literários) de que a sociedade e a cultura literária só podem
ser compreendidas e estudadas em conjunto.”9
É errônea a crítica feita por Robert Irwin, essa posição pode ser justificada não só com
a citação retirada da obra de Said, mas também com a discussão feita anteriormente com o
auxílio das ideias propostas por Roger Chartier e Valdeci Rezende Borges. Os autores
especialistas na relação entre história e literatura são pontuais em suas ideias, sobretudo
quando afirmam que a literatura é uma forma de representação social e histórica. Outra crítica
ao Irwin é o fato dele não considerar que as publicações literárias, jornalísticas, entre outras,
possuíam e ainda possuem um alcance muito superior às publicações acadêmicas. A partir do
momento que você considera que orientalismo é toda a relação comunicativa do Ocidente
para com o Oriente, e não somente o que o mundo acadêmico ocidental diz a respeito do
Oriente, parece razoável que se deva incluir e dar importância igual a orientalistas que estão
fora da academia.
Sempre é importante ter em mente essas discussões da relação entre a Literatura e a
História quando se vai fazer uma análise de uma obra. Toda obra literária está inserida em um
contexto histórico e todo autor é um personagem histórico que interage com o seu tempo.
Portanto é de extrema relevância discutir os conceitos históricos envolvidos no tema do livro.
9 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.59
7
2 AS BASES CONCEITUAIS DO ORIENTALISMO
Antes de aprofundar a análise a respeito do livro “A Volta ao Mundo em Oitenta
Dias”, irei abordar alguns conceitos discutidos na obra de Edward Said e algumas críticas e
discussões presentes em obras de outros autores. Dessa forma, tentarei contextualizar e
direcionar a discussão de modo que fiquem mais compreensíveis alguns pontos da análise que
irá se desenvolver a seguir.
O Orientalismo pode ser entendido de maneiras diversas. Ele pode ser visto no meio
acadêmico através das opiniões dos estudiosos dentro das universidades ocidentais a respeito
de assuntos orientais, pode ser a visão de um jornalista sobre algo que está acontecendo fora
do mundo ocidental, pode ser ainda uma opinião pessoal de um cidadão ocidental ordinário,
ou ainda uma impressão passada em um livro de um autor ocidental sobre o ambiente vivido
no que é comumente considerado como mundo oriental. Em uma tentativa perigosa de definir
basicamente o significado de orientalismo sem ferir muito suas nuances, é possível dizer que
o orientalismo pode ser entendido como a construção da ideia de Oriente, por parte do
Ocidente. Na introdução de seu livro, Edward Said faz uma breve descrição sobre o conceito
discutido.
“O orientalismo é um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e
epistemológica feita entre "o Oriente" e (a maior parte do tempo) "o Ocidente". Desse
modo, uma enorme massa de escritores, entre os quais estão poetas, romancistas,
filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, aceitou a
distinção básica entre Oriente e Ocidente como o ponto de partida para elaboradas
teorias, épicos, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente,
dos seus povos, costumes, "mente", destino e assim por diante”10
Trata-se por Orientalismo acadêmico, falando a grosso modo, todos os estudos feitos
por cientistas inseridos em uma cultura classificada por ocidental, que tem por objeto de
pesquisa, assuntos que estão fora desse centro ocidental. Ou seja, estudiosos ocidentais que
10
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.29
8
estudam a cultura, sociedade, política, entre outros diversos aspectos da cultura rotulada, pelo
próprio Ocidente, de cultura oriental. Talvez toda a ideia de Orientalismo tenha, atualmente,
se estendido de apenas visões de acadêmicos ocidentais sobre o Oriente, para uma visão mais
geral de todo o mundo ocidental para com o mundo oriental. Edward Said expressa bem sua
opinião sobre a visão acadêmica do assunto no seguinte trecho:
“Ficará claro para o leitor (e ainda mais claro ao longo de muitas páginas que
seguem) que por orientalismo eu entendo diversas coisas, todas elas, na minha
opinião, interdependentes. A designação mais prontamente aceita para o orientalismo
é acadêmica, e, com efeito, essa etiqueta ainda é adequada em algumas instituições
acadêmicas. Qualquer um que dê aulas, escreva ou pesquise sobre o Oriente e isso é
válido seja a pessoa antropóloga, socióloga, historiadora ou filóloga -, nos aspectos
específico ou geral, é um orientalista, e aquilo que ele ou ela faz é orientalismo.”11
Porém, apesar do conceito de Orientalismo ter os acadêmicos como principal foco,
existem outros tipos de abordagem orientalista. Em uma passagem de seu livro, Said ilustra de
que modo o Orientalismo pode ser manejado do ponto de vista político, se envolvendo com a
área diplomática, por exemplo:
“O que quero mostrar é que o orientalismo deriva de uma proximidade particular que
se deu entre a Inglaterra e a França e o Oriente, que até o início do século passado
significara apenas a Índia e as terras bíblicas. A partir do início do século XIX até o
final da Segunda Guerra, a França e a Inglaterra dominaram o Oriente e o
orientalismo; desde a Segunda Guerra os Estados Unidos têm dominado o Oriente, e
o abordam do mesmo modo que a França e a Inglaterra o fizeram outrora. Dessa
proximidade, cuja dinâmica é enormemente produtiva, mesmo que sempre demonstre
a força comparativamente maior do Ocidente (britânico, francês ou americano), vem
o grande corpo de textos que eu chamo de orientalistas.”12
A base do pensamento para se entender o princípio dessa ideia de Orientalismo, está
presente na aparentemente simples questão de "o que é Oriente?" Qual o significado dessa
palavra para nós, que vivemos no hemisfério ocidental? A resposta mais esclarecedora para
essa pergunta pode ser: tudo o que não é ocidental. Se uma determinada cultura, uma
sociedade, um país, uma maneira de agir em um ambiente social, não está enquadrada nos
11
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.28 12
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.30-31
9
moldes construídos por uma cultura formada com base na cultura européia, isso é classificado
de oriental. Para entender melhor é só pensar em exemplos. Obviamente, a cultura ocidental é
majoritariamente eurocêntrica, portanto, tem como base de importância os costumes e a
cultura européia, logo, os países europeus são os definidores do modelo. Outros países que
consideramos ocidentais são os países do continente americano, que foram colonizados por
europeus. Os europeus e seus descendentes, e após a segunda metade do século XX, os norte-
americanos; estiveram no poder político, militar e econômico dessa região desde sua
conquista, reprimindo os aspectos das culturas dos povos nativos e de outros povos imigrantes
como os africanos e asiáticos, fazendo com que a cultura europeia fosse mais valorizada e
utilizada como modelo cultural nas Américas.
Portanto, dessa forma, é possível observar um quadro mais claro do que é o Oriente
para o ocidental. Nada mais é do que sua própria distinção. O que não é ocidental, é oriental.
Assim, pode-se chegar à uma conclusão interessante e que pouco é pensada ou discutida. O
Oriente; nesse caso não como espaço físico ou social, mas como a caracterização e o sentindo
da palavra, seria uma construção ocidental. A palavra Oriente não faz tanto sentido para as
pessoas e mesmo para os estudiosos que trabalham nos países taxados de orientais. Todo o
conceito de país oriental foi criado por uma sociedade eurocêntrica. O que uma cultura de
uma ilha da Indonésia tem em comum com a cultura hindu e o que essas duas culturas tem em
comum com a cultura árabe, não possuí mais pontos em comum entre elas do que entre uma
delas e a cultura europeia. A iniciativa de juntar toda a enorme pluralidade cultural existente
nessas partes do mundo que não a Europa e a América e colocá-las todas em um mesmo bloco
conceitual chamado de Oriente, é uma iniciativa ocidental que visa a diferenciação da sua
própria cultura com as “outras” culturas.
“Relacionado a essa tradição acadêmica, cujos destinos, transmigrações,
especializações e transmissões são em parte o tema deste estudo, está um sentido mais
geral para o orientalismo. O orientalismo é um estilo de pensamento baseado em uma
distinção ontológica e epistemológica feita entre "o Oriente" e (a maior parte do
tempo) "o Ocidente"”.13
13
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.28-29
10
Outra visão para entender o orientalismo não está tão conectada com a área acadêmica,
podendo dessa forma se estender em outras direções, como por exemplo, a área da diplomacia
ou do jornalismo. Trata-se de uma orientação para o sentido de orientalismo que está mais
conectada nas relações entre o Ocidente e o Oriente, estando contidas nas diferentes maneiras
que podem ser feitas essas comunicações com o Oriente. Said utiliza um termo bastante
interessante para compreender essa relação. Ele diz que nessa visão de orientalismo, o
Ocidente “negocia” com o Oriente. E isso pode se desdobrar em diferentes formas de
negociação.
“Neste ponto eu chego ao terceiro sentido do orientalismo, que é algo mais histórica
e materialmente definido que qualquer dos outros dois. Tomando o final do século
XVIII como um ponto de partida muito grosseiramente definido, o orientalismo pode
ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente
- negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre
ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo como
um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente.”14
Neste momento é inevitável discutir a relação entre o conceito de orientalismo e a
sequência de acontecimentos que levou ao, como ficou comumente conhecido, Imperialismo
Europeu. É nesse período da história humana o qual podemos observar o orientalismo ganhar
uma forma mais sólida. Não somente o orientalismo no âmbito das universidades e de estudos
promovidos por ocidentais, mas principalmente a ação do imperialismo próximo ao conceito
de negociação do Ocidente com o Oriente. Desde exemplos mais sutis como artigos de jornais
europeus dissertando a respeito de algum problema ocorrendo em um país oriental, como a
ação de um orientalismo mais direto, com uma política imperialista, justificando uma visão
completamente eurocêntrica de que os Europeus eram de alguma forma superiores aos povos
orientais, e por essa razão teriam direito de invadir, colonizar, explorar economicamente e
governar determinada região fora das fronteiras da potência europeia em ação.
É interessante notar aqui a construção de uma ideia de superioridade dos europeus em
relação aos orientais. Durante o Imperialismo Europeu no século XIX, uma das principais
justificativas do domínio europeu no Oriente era justamente essa superioridade racial e
14
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.29
11
cultural. Segundo os europeus, os orientais não possuíam a capacidade de fazer uma
administração política e econômica com a mesma qualidade do povo europeu e que os
europeus seriam politicamente mais avançados do que os orientais, justificando uma
intervenção política do Ocidente no Oriente. O político britânico Arthur James Balfour, que
atuou no final do século XIX e início do século XX, afirmava que os europeus,
diferentemente dos povos orientais, tinham a capacidade do autogoverno, o que justificava o
Imperialismo Europeu no Oriente. Said explica como funcionava a lógica pensada por Balfour
utilizando como exemplo a relação Inglaterra-Egito.
“A Inglaterra conhece o Egito; o Egito é o que a Inglaterra conhece; a Inglaterra
sabe que o Egito não pode ter autogoverno; a Inglaterra confirma esse conhecimento
ocupando o Egito; para os egípcios, o Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora
governa; a ocupação estrangeira torna-se, portanto, “a própria base” da civilização
egípcia contemporânea; o Egito requer, até insistentemente, a ocupação britânica”15
Ainda segundo o raciocínio de Balfour ele continua sua justificativa da seguinte
forma:
“Quando reduzido à sua forma mais simples, o argumento era claro, era preciso, era
fácil de compreender. Há ocidentais, e há orientais. Os primeiros dominam; os
últimos devem ser dominados, o que geralmente significa ter suas terras ocupadas,
seus assuntos internos rigidamente controlados, seu sangue e seu tesouro colocados à
disposição de uma ou outra potência ocidental.”16
O problema da lógica de Balfour é que ele parte do princípio de que os povos
orientais não possuem capacidade de fazer um autogoverno, o que é uma premissa extraída da
monopolização da ideia de Oriente, que foi construída pelo Ocidente. O historiador Robert
Irwin fala de um monopólio, por parte do Ocidente, sobre a representação do Oriente, o que
demonstra esse sentimento de superioridade que o ocidental afirmava sobre o oriental,
sobretudo durante os anos marcados pelo Imperialismo.
15
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.65 16
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.68
12
“O Ocidente possui um monopólio sobre como o Oriente pode ser representado. As
representações do Oriente portam invariavelmente implicações da superioridade
ocidental ou mesmo, com muita frequência, afirmações categóricas dessa
superioridade”17
Apesar de grande crítico da obra de Said, Robert Irwin concorda em alguns momentos
com ideias presentes em “Orientalismo”. A ideia dessa posição de superioridade do europeu
em relação aos orientais (ou não-europeus) é um dos pontos em comum nas obras dos dois
autores. Os dois autores também concordam sobre o papel do conhecimento para explicar a
ideia de superioridade e o domínio dos europeus quando estes interviram politicamente na
África e na Ásia. Eles afirmam que só foi possível exercer esse domínio sobre outros povos
pela quantidade de conhecimento acumulado pelos europeus sobre essas diferentes nações. E
boa parte desse conhecimento acumulado foram os manuscritos guardados e transcritos
durante a Idade Média nas grandes bibliotecas europeias. Said diz que: “Em primeiro lugar,
na Europa havia uma imensa literatura sobre o Oriente herdada do passado europeu.”18
e
que:
“Ter esse conhecimento de tal objeto é dominá-lo, ter autoridade sobre ele. E a
autoridade nesse ponto significa que ‘nós’ devemos negar autonomia a ‘ele’ – o país
oriental – porque o conhecemos e ele existe, num certo sentido, assim como o
conhecemos.”19
Robert Irwin dá um exemplo de como funcionava o pensamento de alguns europeus a
respeito dessa suposta superioridade justificados pelo conhecimento, com a declaração do
lorde Macaulay, que era um estadista e letrado do século XIX. Segundo Irwin Macaulay
“alegava ter conversado com orientalistas, sem jamais ter ‘encontrado um entre eles que
pudesse negar que uma única prateleira de uma boa biblioteca europeia equivalia a toda a
literatura natural da Índia e da Arábia.’”.20
17
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.10 18
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.76 19
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.63 20
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.191
13
De fato tinha-se essa impressão de que a literatura e as obras orientais não tivessem
tanto valor quanto as obras ocidentais durante meados do século XIX, porém é preciso
ressaltar que muitos estudos linguísticos estavam em progresso, e não eram tantas obras
orientais que já haviam sido traduzidas para os idiomas europeus. Conhecia-se
proporcionalmente muito menos das obras orientais em comparação às obras ocidentais.
E também é interessante destacar a presença dos povos africanos na concepção de
Oriente montada pela ideia eurocêntrica de Oriente, mesmo que geograficamente a África
estivesse na mesma faixa latitudinal da Europa, de acordo com a concepção geográfica
eurocêntrica. Todo esse sentimento de superioridade europeu foi construído através dos anos,
que pode ser repensada em um contexto de pouco mais de uma dezena de séculos atrás,
quando na mesma região da Europa existia o conceito de bárbaros, que era usado para
classificar os povos que não tinham origem romana, portanto eram diferentes dos verdadeiros
“europeus”. Toda essa bagagem de diferenciação do outro, vai sendo construída através de
séculos de História e reflete, de certa forma, no orientalismo durante o contexto do
Imperialismo Europeu. Said constrói a seguinte ideia a partir do conhecimento desse
eurocentrismo:
“E, ainda assim, devemos perguntar-nos repetidamente se o que importa no
orientalismo é o grupo geral de idéias atropelando a massa de material - o qual, não
se pode negar, está permeado de doutrinas de superioridade européia, vários tipos de
racismo, imperialismo e afins, visões dogmáticas do "oriental" como um tipo de
abstração ideal e inalterável - ou o trabalho muito mais variado produzido por quase
incontáveis escritores individuais, que podem ser tomados como exemplos individuais
de autores tratando do Oriente.”21
É importante notar o quão presente está esse eurocentrismo e, principalmente, o
orientalismo na obra de autores europeus do século XIX. Eles deixam claro em suas obras que
estão conscientes do que está acontecendo no mundo, por mais que em grande parte das
vezes, eles não demonstrem uma opinião fortemente formada sobre o assunto (o que não é o
caso de Júlio Verne, que demonstra um enorme e técnico conhecimento a respeito do assunto
ao qual se propôs a abordar), é possível observar qual era a visão desses autores sobre o
21
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.35
14
mundo oriental. Em uma passagem, Verne destaca a impressão de pertencimento da Índia
como terras inglesas.
“- Ora bem – disse Fix -, se o ladrão tomou este caminho e este navio, deve entrar em
seus planos desembarcar em Suez, a fim de alcançar por uma outra via as possessões
holandesas ou francesas da Ásia. Há de saber muito bem que não estaria em
segurança na Índia, que é terra inglesa”22
O mesmo pode ser identificado no seguinte trecho: “Quanto a ver a cidade [Suez,
Egito], nem mesmo pensava nisso, porque era daquela raça de ingleses que fazem visitar
pelos criados os países que atravessam”23
Antes de avançarmos para a análise mais específica da obra de Júlio Verne, é
importante discutir algumas críticas que foram feitas à obra “Orientalismo” de Edward Said,
após sua publicação. É importante essa discussão, pois este trabalho privilegia os conceitos de
Said presentes em sua obra e por mais que não concorde com boa parte das críticas feitas à
obra dele, sobretudo quando se trata das passagens presentes no livro “Pelo Amor ao Saber:
os orientalistas e seus inimigos”, de Robert Irwin, é importante dar espaço para mostrar outras
opiniões a respeito dos conceitos que são utilizados nesse trabalho.
Além da já discutida crítica de Irwin a Said a respeito da utilização de autores de
textos literários no mesmo patamar de acadêmicos que já foi discutida anteriormente, Irwin
levanta uma análise sugerindo que Said pecou na seleção das obras analisadas em
“Orientalismo”. De fato é pouco notada a presença de orientalistas alemães na obra de Said,
este que preferiu adotar uma estratégia de destacar autores ingleses e franceses visto que os
maiores impérios do século XIX eram comandados por essas duas potências econômicas e
políticas europeias. Outra crítica no âmbito da seleção de autores que Said analisou está no
fato, destaca Robert Irwin, do autor de “Orientalismo” ter deixado de fora estudiosos de
renome de países orientais. “Contudo, caso se leiam os ensaios antiorientalistas dos
22
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.41
23 VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.47
15
escritores árabes, Anouar Abdel-Malek, A. L. Tibawi e Abdallah Laroui (...), torna-se
evidente que Said não poderia ter escrito Orientalismo sem recorrer a esses precursores.”24
Na introdução de “Pelo Amor ao Saber”, Irwin faz uma crítica um pouco mais pesada
sobre o assunto.
“Muito do que é decididamente de importância central para a história do
orientalismo foi discretamente excluído por ele, ao passo que todo tipo de material
irrelevante foi invocado para apoiar uma acusação à integridade e ao valor de
determinados estudiosos. Uma sensação é a de que se é forçado a discutir não o que
realmente aconteceu no passado, mas o que Said e seus partidários acham que
deveria ter acontecido.25
Irwin também acusa Said de generalizar demais o assunto e cometer erros factuais e de
mesmo sendo informado sobre esses erros, Said não corrigir os pontos duvidosos de seu livro
nas edições subsequentes. Robert Irwin chega a fazer a seguinte e polêmica afirmação.
“Orientalismo dá a impressão de um livro escrito às pressas. É repetitivo e contém muitos
erros factuais.”26
.
Apesar de fazer um bom trabalho analisando temporalmente o Orientalismo
diferenciando suas análises de acordo com as determinadas épocas da humanidade, e de ter de
fato boas críticas à obra de Said, Robert Irwin faz acusações gravíssimas a Edward Said, que
podem ser interpretadas de forma pessoal. Em muitos momentos considero exageradas e
desrespeitosas algumas críticas e acusações feitas pelo autor de “Pelo Amor ao Saber”,
revelando certa rivalidade acadêmica entre os dois. Irwin chega ao ponto de publicar em seu
capítulo exclusivo às críticas ao livro de Said a seguinte passagem:
“Contudo, é um escândalo e um desdouro para a qualidade da vida intelectual na
Grã-Bretanha em décadas recentes que os argumentos de Said sobre o orientalismo
24
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.340 25
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.10 26
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006., p.329
16
tenha chegado a ser levados a sério. Obviamente, considero impossível acreditar que
seu livro tenha sido escrito de boa-fé.”27
Irwin destoa do tom utilizado no resto de seu livro e adota um tom irônico no trecho a
seguir.
“No todo, porém, as qualidades positivas de Orientalismo são de um bom romance,
Ele é emocionante, está repleto de vilões sinistros, bem como de um número bastante
menor de mocinhos, e o quadro que ele apresenta do mundo provém de uma rica
imaginação, mas em sua essência é ficcional.” 28
Ao ler o teor dessas críticas que não condizem com um trabalho acadêmico de grande
tiragem e divulgação como é o de Robert Irwin, é perceptível do quão polêmico pode ser o
tema do Orientalismo. Apesar de algumas críticas positivas e sensatas, como a exclusão dos
orientalistas alemães, o tom generalista da obra e erros factuais e de referências (erros aos
quais todo acadêmico está exposto a cometer), o tom irônico e agressivo de Irwin em alguns
momentos me faz questionar até que ponto suas outras críticas são bem fundamentadas, e
duvidar da validade de suas acusações.
Outros autores também levantaram críticas a Said, como é o caso de Rodrigo Karmy
Bolton e de outro autor ao qual Rodrigo recorre em seu artigo “Para uma Desconstrução da
Crítica ao Orientalismo”, Abdel-Malek. Eles fazem uma crítica importante para a análise
desse trabalho. Bolton destaca passagens da obra de Abdel-Malek “Orientalismo em Crise”
para reforçar sua teoria de que é preciso diferenciar o Orientalismo que era praticado no
século XIX, por exemplo, do Orientalismo praticado nos dias atuais. Segundo os autores a
Guerra Fria modificou o modo como o Ocidente olha para o Oriente e como o Oriente encara
essa negociação. Apesar de Said tratar do tema no último capítulo do seu livro, ele não
aprofundou tanto essa análise quanto Abdel-Malek. Eles chamam essa mudança na forma de
se fazer Orientalismo de Neo-Orientalismo, já que durante esse período existia tipos diversos
de se fazer essa negociação com o Oriente e estudá-lo. A maneira como o orientalismo era
27
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.359 28
Idem.
17
praticado pelo bloco socialista ocidental divergia da maneira como o bloco capitalista
ocidental praticava o orientalismo.
“As investigações de Abdel-Malek situam um problema essencial, que é o da
transformação de um ‘orientalismo tradicional’ em um ‘neo-orientalismo’ a partir de
uma situação histórica específica: “Mas o renascimento das nações e povos da Ásia,
África e América Latina desde o final do século XIX, a aceleração muito rápida deste
processo por causa das vitórias dos movimentos de libertação nacional no mundo
antigo colonial, e também o aparecimento do grupo de Estados socialistas e a
diferenciação posterior de ‘duas Europas’ abalaram até os alicerces da construção
de orientalismo tradicional.”29
Portanto com essa colocação posta na mesa, devemos encarar a análise comparativa do
livro “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” com os conceitos de Orientalismo que cabem ao
século XIX, e não podemos assumir que essa análise explique muito sobre os momentos
atuais e esperar que a forma como a obra é analisada possa ser definitiva para entender o
mundo contemporâneo. O Orientalismo mudou sua forma de negociar de acordo com o tempo
histórico, e devemos ter esse cuidado metodológico de aplicar os conceitos orientalistas que
funcionam em determinada época para analisar obras dessa determinada época.
29
BOLTON, Rodrigo Karmy. Para una deconstrucción de la crítica al orientalismo. Revista Hoja de Ruta,
Santiago, n. 18, jul. 2008. p.1
18
3 A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA ORIENTALISMOS
Discutido os principais conceitos e críticas a respeito do Orientalismo cabe agora
aprofundar a análise comparativa da obra “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”. Ao narrar
uma viagem ao redor do mundo, os personagens aos quais Júlio Verne dá vida, Fíleas Fogg
(Phileas Fogg, no original), um pontual cavalheiro inglês, e João Fura-Vidas (no original,
Jean Passepartout), seu criado francês, vão descrevendo e dando suas opiniões sobre os países
os quais vão passando, como Egito, Índia, China e Japão, demonstrado todas as opiniões as
quais o autor possuía a respeito das populações orientais, assim como as impressões sobre
suas diferentes culturas, e ainda as cidades e sociedades, ou mesmo a respeito das paisagens.
E não só impressões estritamente sobre as sociedades orientais eram descritas no livro.
Em “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, Júlio Verne faz um trabalho interessante ao
descrever como funcionava as relações, principalmente do governo britânico, com suas áreas
de influência, destacando seu conhecimento sobre a política que era praticada durante o
período do imperialismo europeu. Durante as descrições da política praticada no Império
Britânico, Júlio Verne mostra que, apesar de possuir uma opinião distinta a respeito do
assunto, as autoridades políticas europeias, assim como o próprio governo, se viam em um
patamar superior ao das populações orientais. Isso destaca a ideia apresentada por Edward
Said da visão ocidental de que o oriental seria o “outro”, um “outro” inferior ao europeu, e por
esse motivo poderia dominar politica e economicamente esses países, e se achar no direito de
impor sua cultura a fim de sobrepor alguns costumes que eram estranhos aos costumes
europeus.
“Desde 1756 – época em que foi fundado o primeiro estabelecimento inglês no local
hoje ocupado pela cidade de Madrasta – até ao ano em que estalou a grande
insurreição dos sipaios, a célebre Companhia das Índias exerceu domínio onipotente.
Ia pouco a pouco agregando a si mesma as diversas províncias, compradas aos rajás
a troco das rendas que ela mal pagava ou não pagava. Nomeava o seu governador-
geral e todos os empregados civis ou militares. Presentemente, já não existe a
Companhia, e as possessões inglesas da Índia estão sob a imediata dependência da
Coroa”30
30
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.60-61
19
Verne continua seu raciocínio, agora destacando as influências culturais que a Índia
sofreu após a chegada e o controle da sua política por parte do governo britânico.
“Por isto, os costumes, as divisões etnográficas da península tendem a modificar-se
de dia para dia. Antigamente, viajava-se por todos os velhos meios de transportes: a
pé, a cavalo, em carroça, em palanquim, às costas de homens e em carrinho de mão.
Presentemente, navios a vapor percorrem o Indo e o Ganges a grande velocidade, e
uma estrada de ferro, que atravessa a Índia em toda a sua extensão, ramificando-se
no seu trajeto, põe Bombaim a três dias apenas de Calcutá.”31
Pode-se fazer uma ponte com a ideia de modernidade discutida por Marshall Berman
em “Tudo o que é Sólido se Desmancha no Ar” argumentando que os impérios europeus, ao
praticarem o que discutimos por orientalismo, trouxeram uma modernidade ocidental para
dentro das sociedades orientais, acelerando seus padrões de vida, e consequentemente
afetando na continuidade de uma cultura construída durante séculos. A velocidade da
modernidade é indubitavelmente uma característica marcante para uma modificação súbita e
radical na vida de toda a população em contato com os grandes avanços tecnológicos durante
o final do século XIX. E é justamente a respeito da chegada dessa modernidade que gira o
enredo de “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”. Com a ampliação das malhas ferroviárias,
principalmente nos Estados Unidos e o advento dos navios a vapor, as distâncias diminuíram,
e a velocidade passou a estar mais presente na sociedade ocidental e nas sociedades orientais
em contato com o Ocidente. Um clássico trecho da obra de Verne ilustra perfeitamente esse
contexto.
“- Não sei – volveu Stuart. Mas, afinal, o mundo é grande.
- Era, em outros tempos... – observou a meia voz Fíleas Fogg. (...)
- Como, em outros tempos! Porventura a terra diminuiu?
- Decerto – respondeu Gauthier Ralph. Sou da opinião do senhor Fogg. A terra
diminuiu, porque pode ser percorrida dez vezes mais depressa do que há cem anos. E
é o que, no caso de que nos ocupamos, tornará mais rápida as pesquisas. (...)
- É preciso confessar, senhor Ralph, que achou maneira curiosa de dizer que a terra
diminuiu. Então, hoje pode fazer-se a volta ao mundo em três meses...
- Em oitenta dias apenas – emendou Fogg”32
31
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.61 32
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.24-25
20
Nota-se nessa passagem, a presença de vários elementos que chamam a atenção. Um
deles é a ideia de globalização, por mais que esse termo ainda não fosse utilizado na época.
Está também presente na obra de Júlio Verne, a consciência de que existe um fenômeno que
baseado nos avanços dos transportes, o mundo estava ficando “menor”, e de certa forma, as
distâncias estavam diminuindo, como pode ser observado na obra “A Era das Revoluções” de
Eric Hobsbawn.
Uma localização ao qual Fogg e Fura-Vidas passam durante a viagem tem papel
especial na questão da “diminuição das distâncias”. Trata-se do Canal de Suez. Após a criação
desse canal, o Mar Mediterrâneo passou a ter uma conexão com o Mar Vermelho e a partir
daí, não se fez mais necessária a navegação margeando todo o litoral africano, o que
economizava cerca de um mês ou mais de viagem até o Oceano Índico. A construção do
Canal de Suez foi amplamente responsável por conectar o que os europeus chamavam até
então de “dois mundos”, as comunicações entre Ocidente e Oriente se intensificaram,
juntamente com a presença do ocidental em terras orientais, o que acelerou em larga escala a
negociação orientalista entre Ocidente e Oriente.
“De Lesseps e seu canal destruíram finalmente a distância do Oriente, a sua
intimidade enclausurada, longe do Ocidente, o seu exotismo permanente, Assim como
uma barreira de terra podia ser transmutada numa artéria líquida, assim também o
Oriente foi transubstanciado, passando de uma hostilidade resistente a uma parceria
obsequiosa e submissa. Após De Lesseps, ninguém podia falar do Oriente como se
pertencesse a outro mundo, estritamente falando. Havia apenas o ‘nosso’ mundo,
‘um’ mundo unido porque o Canal de Suez frustrara aqueles últimos provincianos que
ainda acreditavam na diferença entre os mundos. A partir de então, a noção de
‘oriental’ é administrativa ou executiva, e está subordinada a fatores demográficos,
econômicos e sociológicos.”33
Outro fator curioso a respeito do roteiro organizado por Fíleas Fogg, é que seria
possível dar a volta ao mundo passando quase que exclusivamente por territórios
europeizados. A volta ao mundo era possível e para concluí-la, só era necessário quase que
somente dois idiomas: inglês e francês. Fogg passa pela França e Egito (territórios do Império
33
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.140
21
Francês), Índia e Hong-Kong (territórios do Império Britânico), uma passagem pelo Japão, e
após isso, os Estados Unidos; antes de voltar à Inglaterra. Cabe ressaltar a ausência da
América Latina e da África Subsaariana nesse conceito de mundo colonial ao qual Júlio
Verne faz referência.
É importante destacar a escolha das nacionalidades escolhidas para os personagens de
“A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”. Não foi a toa que Júlio Verne escolhe um inglês e um
francês para darem a volta ao mundo. Naquele momento da história da Europa, França e
Inglaterra representavam as duas maiores potências imperialistas no mundo. E também duas
das nações onde mais estava sendo discutidas as questões sobre o Oriente e produzindo
estudos orientalistas, acadêmicos ou não. Não faltavam exemplos de relatos sobre o Oriente
feitos por ingleses e franceses. Em “Orientalismo”, Edward Said quando está discutindo as
peregrinações europeias pelo Oriente descreve dois diferentes exemplos do europeu lidar com
o ambiente oriental, justamente os olhares de um inglês e um francês viajando pelo Oriente.
Sobre o ponto de vista inglês, Said diz o seguinte:
“O que era o Oriente para o viajante individual no século XIX? Considere-se
primeiro as diferenças entre um inglês e um francês. Para o primeiro, o Oriente era a
Índia, claro, uma possessão britânica real; passar pelo Oriente Próximo era,
portanto, passar a caminho de uma colônia de grande importância. Já então o espaço
disponível para o jogo imaginativo era limitado pelas realidades da administração,
legalidade territorial e poder executivo.”34
De fato, Filias Fogg, o personagem inglês típico, demonstra na obra de Júlio Verne
uma grande segurança do caminho em que está fazendo. Tanto que Fileas nem desembarca
para conhecer a cidade de Suez, ele está apenas no meio do caminho para chegar a uma
possessão inglesa. Já Fura-Vidas, o francês, é mais curioso e está mais atento para as
características exóticas do Oriente e suas diversas culturas. Como é demonstrado na cena em
que Fura-Vidas entra em um pagode na Índia, local onde não era permitida a entrada de
estrangeiros, e também demonstra ter um ideal bem imaginativo do Oriente, esperando ver
faquires e cobras dentro de cestos. Edward Said faz as seguintes observações sobre a visão
geral de um viajante francês passando e observando o Oriente.
34
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.235-236
22
“Em contraste, o peregrino francês estava imbuído de um senso de perda aguda no
Oriente. Ele chegava a um lugar em que a França, ao contrário da Grã-Bretanha,
não tinha presença soberana. (...) Consequentemente, os peregrinos franceses de
Volney em diante planejavam e projetavam, imaginavam, ruminavam sobre lugares
que estavam principalmente nas suas mentes; talvez até europeu, no Oriente, que
supunham, é claro, seria por eles orquestrado.”35
Said ainda destaca a procura de uma realidade exótica no olhar do peregrino francês,
como pode ser notado no trecho a seguir: “Ao contrário de Volney e Napoleão, os peregrinos
franceses do século XIX procuravam antes uma realidade exótica, mas atraente, do que uma
realidade científica.”36
Em outro trecho da obra de Júlio Verne, Fileas Fogg faz um possível roteiro de
viagem, o qual ele usa apenas navios a vapor e trens como meio de transporte. Destacam-se
nesse roteiro, duas linhas férreas. A primeira delas é a que liga Bombaim a Calcutá, na Índia,
o que demonstra o grande poderio das empresas férreas inglesas, e fez com que uma boa parte
do caminho que era percorrido contornando o subcontinente indiano fosse encurtada.
“A maior parte dos passageiros embarcados em Brindes tinha a Índia por destino.
Uns dirigiam-se a Bombaim, outros a Calcutá, mas via Bombaim, porque, depois que
uma linha férrea atravessa em toda a sua largura a península indiana, deixa de ser
necessário dobrar a ponta do Ceilão”37
A segunda, e a mais importante, a linha que liga São Francisco a Nova Iorque. A
possibilidade de atravessar todo o território dos Estados Unidos de trem, além de encurtar
uma volta ao mundo, foi estrategicamente importante para a economia norte-americana, como
pode ser visto no texto de Luíz Estevan Fernandes e Marcus Vinícius de Morais.
“As estradas de ferro, mola central dessa industrialização, passaram por um forte
surto de crescimento na década de 1850, criando as primeiras grandes companhias
ferroviárias do país. Essa febre da locomotiva diminuía distâncias entre centros de
35
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.236 36
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.237 37
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.53
23
matéria-prima e indústria, ligava o país de costa a costa por meio de cinco ferrovias
intercontinentais, criava novos padrões de tempo e hábitos de trabalho e acelerava o
crescimento demográfico do Oeste. Na virada do século, os Estados Unidos possuíam
cerca de um terço de todas as vias férreas do mundo, algo em torno de 320 mil
quilômetros de trilhos de aço.”38
O historiador Eric Hobsbawn em seu clássico livro “A Era do Capital” destaca o papel
fundamental do desenvolvimento do transporte ferroviário para a ideia de modernidade na
segunda metade do século XIX. O autor recorre exatamente ao romance de Júlio Verne “A
Volta ao Mundo em Oitenta Dias” para exemplificar a aceleração do desenvolvimento dos
transportes do mundo, assim como a ideia de diminuição das distâncias devido a maior
rapidez dos meios de transporte.
“A verdadeira transformação deu-se em terra – através das estradas de ferro, e assim
mesmo não pelo aumento da velocidade tecnicamente possível das locomotivas, mas
pela extraordinária extensão da construção de linhas de estradas de ferro.”39
Para melhor afirmação de sua ideia, Hobsbawn faz uma comparação entre a viagem de
Fogg em Oitenta Dias, que seria possível pela presença das estradas de ferro e os avanços da
modernidade em 1872, e uma hipotética viagem de volta ao mundo no ano de 1848, vinte e
quatro anos antes. A conclusão de Hobsbawn é a de que sem a combinação do ferro e do
carvão, os dois maiores símbolos da industrialização dessa época que fora combinada nas
estradas de ferro40
, uma viagem de volta ao mundo demoraria quase um ano inteiro para ser
completada.
“Quanto teria durado esta viagem a Phileas Fogg em 1848? Ela teria de ter sido feita
quase que inteiramente por via marítima, pois nenhuma estrada de ferro atravessava
nenhum continente, e nem mesmo existiam no resto do mundo exceto nos Estados
Unidos, onde elas não avançavam terra a dentro mais de 200 milhas. (...) Podemos
dificilmente imaginar uma circunavegação por volta de 1848 que, contando com a
maior sorte possível, fosse feita em muito menos que 11 meses, ou seja, quatro vezes
mais do que Phileas Fogg, sem contar o tempo despedido em portos.”41
38
FERNANDES, L. E. O.; MORAIS, M. V. Os EUA no século XIX: os tempos modernos e os magnatas da
indústria. São Paulo: Contexto, 2007. p.151 39
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital. São Paulo, 2007. p.68 40
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital. São Paulo, 2007. p.57 41
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital. São Paulo, 2007. p.67-68
24
Júlio Verne demonstra um grande conhecimento a respeito de alguns fatos geográficos
e de organização política presentes nos lugares e ambientes aos quais passam seus
personagens. Isso o diferencia da visão popular do Ocidente. É claro que as populações
eurocêntricas do período não tinham tanto conhecimento sobre os aspectos culturais, políticos
e geográficos das terras dominadas pelas potências europeias. O que não deixa de validar a
utilização das obras de Verne para uma análise de um pensamento histórico do Orientalismo.
Esse fato faz com que possamos visitar as obras de Júlio Verne a fim de compreender o
pensamento de grandes pensadores da época. “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” pode ser
analisado contendo o olhar do que chamei anteriormente de Orientalismo Acadêmico. O
conhecimento produzido e demonstrado por Verne se aproxima muito mais dos produtos
academistas do que de uma literatura mais geral com impressões básicas.
“Ninguém ignora que a Índia – grande triângulo caído com a base voltada para o
norte e o vértice para o sul – compreende superfície de três milhões e seiscentos mil
quilômetros quadrados, sobre a qual se acha espalhada população de cento e oitenta
milhões de habitantes. O governo britânico exerce domínio verdadeiro sobre certa
porção do imenso país. Tem um governador-geral em Calcutá, governadores em
Madrasta, Bombaim e Bengala e um vice-governador em Angra”42
Apesar do grande conhecimento científico apresentado por Verne e o caráter de
pesquisa feito pelo autor, podemos identificar algumas características de conhecimento
popular entre as personagens. Estes, por vezes, demonstram impressões do Oriente como
parte de uma invenção ocidental que se inicia nas descrições fantásticas e alegóricas dos
relatos de viagem de Marco Polo. Algumas falas de personagens remetem a toda aquela
fantasia escrita por Marco Polo, sobretudo sobre a Índia. É claro que diversas adaptações
existiram com mais de quinhentos anos de diferença entre os dois tempos, mas alguns
detalhes como as descrições do lado selvagem oriental, no sentido da natureza, sobretudo os
animais; além das construções arquitetônicas que diferem e muito da arquitetura europeia.
Pode-se dizer que o Oriente passou a existir a partir do momento em que existiu uma ideia de
Ocidente. E sem dúvidas, Marco Polo foi importante nesse processo.
42
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.60
25
No livro “As Viagens de Marco Polo”, Marco Polo faz a seguinte descrição de uma
província indiana:
“Kangigu é uma província bem ao leste, subordinada a um rei; as pessoas são
idolatram; tem sua própria linguagem; e possuem a supremacia do grande khan, elas
pagam a ele um tributo anual. O rei é tão luxuoso que tem 300 esposas, sempre que
escuta falar de uma linda mulher no país ele a pega para ele. As pessoas tem muito
ouro e especiarias preciosas; mas sendo longe do mar, as riquezas não trazem um
grande valor. Eles tem muitos elefantes e bestas de variados tipos. Todos os homens e
mulheres pintam seus corpos, as cores sendo trabalhadas com desenhos de leões,
dragões e águias.”43
Após observarmos uma citação de Marco Polo mostrando o quão diferentes e exóticas
eram as sociedades orientais indianas, com seus animais e costumes contrários aos ocidentais,
podemos sublinhar um pequeno trecho da obra de Verne e ver que todo esse imaginário
ocidental a respeito do Oriente visto em Polo, que soa de modo muito fantasioso, é visto,
ainda que com menor intensidade, no imaginário ocidental do século XIX. Fura-Vidas faz
uma pergunta a respeito da Índia para o policial britânico Fix e recebe uma resposta muito
ilustrada.
“- E é interessante a Índia?
- Muito! Veem-se mesquitas, minaretes, templos, faquires, pagodes, tigres, serpentes,
bailarinas! Mas é de se esperar que tenha tempo de visitar a terra. “44
Em outra passagem, Júlio Verne faz uma descrição da paisagem local vista do trem
que vai de Bombaim até Calcutá, quase que com a mesma intensidade das descrições de
Marco Polo. Destacando todas as plantas e animais excêntricos que existem na região, em tom
de clara admiração.
“A locomotiva desenrolava o seu penacho de fumo sobre plantações de algodão, de
café, de noz-moscada, de cravo e de pimenta. O vapor subia em espiral à volta de
grupos de palmeiras, por entre os quais apareciam pitorescos bangalôs e alguns
mosteiros abandonados, de templos maravilhosos, profusamente ornamentados, ao
gosto da arquitetura indiana. Depois, desdobravam-se a perder de vista terrenos
43
POLO, Marco. As Viagens de Marco Polo. Harvard, 2005p.170 44
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.56
26
extensíssimos, juncais onde não faltavam nem as serpentes nem os tigres, espantados
pelos silvos da locomotiva, e, finalmente, densas florestas, sulcadas pelo traçado da
estrada, mas ainda povoadas pelos elefantes que viam, com olhos melancólicos,
passar o comboio, agitando ao vento a sua cabeleira de fumo.”45
Apesar da impressão fantasiosa da Índia estar presente tanto na obra de Marco Polo,
quanto na obra de Júlio Verne, no livro de Verne existe um grande fator que diferencia a
impressão que um viajante tem das cidades indianas. Com o Imperialismo, um grande
contingente de cidadãos de diversas partes do mundo se estabeleceu em cidades estratégicas
dos grandes impérios. E na Índia não foi diferente, atraídos pelo comércio e a possibilidade de
enriquecer, podiam-se ver pessoas das mais diferentes nacionalidades ocupando um território
que originalmente pertencia às populações indianas.
“Quanto a Fura-Vidas, perambulou, segundo o costume, por entre a população de
somalis, de banianos, de parses, de judeus, de árabes, de europeus, de que se
compunham os vinte mil habitantes de Áden. Admirou as fortificações que fazem desta
cidade o Gibraltar do mar das Índias.”46
É claro, contudo, que as populações orientais não se deixavam levar completamente
com o domínio ocidental, e o choque de culturas e costumes gerou muitas fagulhas nessa
relação espinhosa entre “um” e o “outro”, o ocidental e o oriental. Para evitar conflitos
desnecessários, era praticada por parte dos governos imperialistas uma política para proteger
algumas práticas culturais dos povos locais, desde que não ofendessem os bons modos e a
civilidade a qual acreditavam os governadores ocidentais. Para os governos imperialistas não
era interessante manter as populações locais em uma situação insustentavelmente
desagradável para elas. Uma revolta popular contra os governos das potências ocidentais era
tudo o que os europeus queriam evitar, para que não prejudicassem todos os avanços
políticos, e principalmente, econômicos que haviam feito nas regiões dominadas.
“[Fura-Vidas] Ignorava duas coisas: que a entrada de certos pagodes é formalmente
interdita aos cristãos e que os próprios crentes não podem entrar sem deixarem os
calçados à porta. Devemos ainda notar que, em virtude de razões de boa política, o
governo inglês, respeitando e fazendo respeitar até nos seus mais insignificantes
45
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.68-69 46
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.58
27
pormenores a religião do país, pune severamente todo aquele que lhe ofende as
práticas”47
Durante os anos em que a Coroa Britânica administrou politicamente a Índia, o termo
orientalista foi empregado de outra maneira no subcontinente. Administradores e pensadores
que viviam na então colônia britânica e que defendiam que a Índia deveria ser governada,
pelos ingleses, mas de acordo com os costumes indianos, eram chamados de orientalistas. E
esses “orientalistas” não ficaram somente no campo das ideias, como tiveram a oportunidade
de colocá-las em prática. Robert Irwin levanta a informação que “De 1777 até
aproximadamente 1830, ‘orientalistas’ dominaram o governo da Índia”48
.
Contudo, ainda em “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, Júlio Verne desmente essa
opinião de que o governo inglês fazia de tudo para conservar os costumes e a cultura do povo
indiano. Fica claro, que o governo respeitava somente até o momento em que se sentia ferido
quando os costumes indianos atingiam em cheio em sentido oposto os costumes e as crenças
de cidadania ocidental. E isso é algo que podemos ver até hoje. Temos exemplos diários nos
noticiários de “escândalos” ocorridos em algum país oriental por motivo de algum antigo
costume que fere as tradições ocidentais. Verne ilustra isso no seguinte parágrafo.
“Era nesta província que Feringhea, o chefe dos tuques, rei dos estranguladores,
exercia o seu domínio. Estes assassinos, formando associação misteriosa,
estrangulavam, em honra da deusa da morte, vítimas de todas as idades, sem nunca
derramarem sangue. Houve tempo em que não se podia revolver nenhum ponto do
solo daquele país sem que se encontrasse um cadáver. O governo inglês conseguira,
em notável proporção, impedir os assassínios, mas a temível associação ainda existia
e continuava a funcionar”49
Nessa passagem que Júlio Verne começa a se mostrar inserido no contexto ocidental.
Apesar de o autor ser altamente esclarecido e muito conhecedor das diversas culturas
existentes ao redor do globo, ele critica algumas práticas religiosas de culturas orientais. E
essa é ainda uma discussão muito atual, a qual a esmagadora maioria ocidental condena essas
práticas, classificando-as como desumanas. Esta é, sem dúvidas, uma das questões mais
47
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.64 48
IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2006., p.190 49
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p. 69
28
delicadas em todo o pensamento humano, e provavelmente a questão mais difícil de ser
resolvida quanto ao embate e o conflito entre Ocidente e Oriente, dentro do conceito do
Orientalismo.
Sobre a posição de Júlio Verne dentro desse assunto, é interessante destacar uma
pequena passagem que está presente no prefácio da edição de 2003 do livro “Orientalismo” de
Edward Said. Ele diz: “Os textos precisam ser lidos como textos produzidos no domínio
histórico e que nele vivem, sob uma variedade de modos profanos”50
.
Certamente o momento mais marcante da obra para uma análise com o olhar do
conceito de Orientalismo de Edward Said, é quando os viajantes Fíleas Fogg e João Fura-
Vidas se deparam com um ritual religioso chamado sutty, enquanto atravessavam uma floresta
indiana no lombo de um elefante. O sutty é um ritual que consiste no sacrifício voluntário da
viúva após a morte de seu marido. Na obra de Verne existe um trecho o qual um personagem
que foi criado na Índia, está viajando com os aventureiros pela floresta indiana e conta uma de
suas lembranças, que apesar de ser apenas parte de um livro de ficção, ocorreram situações
parecidas na realidade.
“Tanto é assim que, há alguns anos, residindo eu em Bombaim, vi jovem viúva pedir
ao governador autorização para ser queimada viva com o corpo do marido. Como
bem deve imaginar, o governador recusou a autorização. Então, a viúva deixou a
cidade, refugiou-se nos domínios de um rajá independente e ali consumou o
sacrifício”51
Porém, em alguns momentos o sacrifício deixa de ter o caráter voluntário e torna-se
forçado, o que é o caso o qual ocorria na história de Verne. Inconformado, Fíleas Fogg se
pergunta como o governo inglês não havia impedido esse tipo de ritual que seria, para ele,
desumano; e o viajante inglês recebe uma interessante resposta.
50
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.26 51
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.83
29
“ – Como – replicou Fogg, sem que na voz revelasse a menor emoção -, estes
costumes bárbaros subsistem na Índia e os ingleses não os puderam destruir?
- Na maior parte da Índia – explicou Franscisco Cromarty – já tais sacrifícios não se
fazem, porém, nós não temos nenhuma influência nestes países selvagens,
principalmente no território do Bundelcunde. Toda a vertente setentrional dos
Víndias é teatro de assassínios e de devastações incessantes. ”52
Com esse choque cultural em vista, Fileas Fogg decide se envolver no ritual e salvar a
viúva que “era jovem e clara como uma europeia”53
. O europeu Fíleas, utilizando a visão de
que a humanidade e a civilidade de sua cultura seria superior a daquela determinada cultura
do interior da Índia, que praticava rituais de sacrifício, se viu na obrigação de interromper o
ritual religioso e evitar que a mulher fosse sacrificada. Isto, que para ele, seria um grave ato
de brutalidade. A questão que proponho, já trabalhando no campo das possibilidades, é de que
será que a personagem teria a mesma postura caso a mulher a ser sacrificada não fosse
aparentemente europeia? Talvez a situação se transcorresse naturalmente caso a vítima fizesse
parte do grupo do “outro”, e não parte do grupo o qual Fíleas Fogg faz parte.
Podemos observar nesse caso, o viajante Fíleas Fogg fazendo o papel de um agente
modernizador diante de uma comunidade não modernizada e “selvagem”. Fogg estaria ali
cumprindo seu papel como um letrado ocidental, que tem consciência de costumes
humanistas, e que possuí em si a figura da civilidade chegando para interromper os costumes
bárbaros e violentos de uma civilização atrasada. Portanto está presente nesse momento a
concepção do europeu modernizador, que por ter uma cultura e uma noção de civilização
superior, teria o direito e o dever de interferir nas práticas culturais de outra sociedade, caso
considerasse necessária tal intervenção.
A Sra. Aouda, a mulher a qual Fogg resgata era:
52
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.82 53
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.81
30
“... uma indiana de singular beleza, filha de ricos negociantes de Bombaim. Recebera
nesta cidade educação inteiramente inglesa e, pelas maneiras e pela instrução,
qualquer a julgaria europeia. Chamava-se Aouda”54
A Sra. Aouda desempenha o papel de um exemplo de modelo modernizado. Uma
jovem indiana que criada nas bases da educação e cultura europeia, tornou-se uma jovem
esclarecida e ocidentalizada. Um exemplo de que o que deveria ser feito a respeito era uma
ocidentalização, e consequentemente uma europeização de culturas orientais. Aouda serve de
ilustração para mostrar que é possível esse modelo de modernização com as populações
orientais.
Os praticantes do ritual podem ser encaixados em um papel de “passiveis de
modernização”, já que eles ainda não possuíam o conhecimento da cultura europeia. E é bom
sublinhar que eles em nenhum momento são descritos como pessoas más. São descritos como
pessoas as quais ainda não possuem o esclarecimento, a cultura e os costumes ocidentais, mas
possuem potencial para tal.
Esse estranhamento que uma cultura tem por outra pode ser explicada pelo
desdobramento do efeito da diferenciação entre o “eu” e o “outro”. A partir do momento que
você cria dois grupos, um grupo ao qual você atribuí todas as características em comum
presente em você e seus semelhantes, e no outro grupo pessoas que são unidas pela ausência
dessas características que sua cultura valoriza, você cria um cenário em que esse
estranhamento faz com que exista o julgamento de superioridade de uma cultura em relação à
outra. Said explica bem essa situação no trecho a seguir.
“É perfeitamente possível argumentar que alguns objetos distintivos são criados pela
mente, e que esses objetos, embora pareçam ter existência objetiva, possuem apenas
uma realidade ficcional. Um grupo de pessoas vivendo em alguns acres de terra
estabelecerá fronteiras entre a sua terra e seus arredores imediatos e o território
mais além, a que dão o nome de ‘a terra dos bárbaros’. Em outras palavras, essa
prática universal de designar mentalmente um lugar familiar, que é ‘o nosso’, e um
54
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.86
31
espaço não familiar além do ‘nosso’, que é ‘o deles’, é um modo de fazer distinções
geográficas que pode ser inteiramente arbritário”55
O problema funciona em ciclos. O europeu, já convencido de sua superioridade
através da diferenciação do “outro”, vê com um olhar eurocêntrico práticas que não são
convencionais para sua cultura e utiliza esses exemplos para apontar a estranheza e a bizarrice
de aspectos de outras culturas como forma de justificar sua autoafirmação de superioridade
cultural.
“Ali esse novo Oriente figura (...) como a confirmação das leis da especialização
zoológica formuladas por Buffon. Ou serve de (...) [contraste gritante com os hpabitos
das nações europeias] no qual as ‘bizarres jouissances’ [prazeres bizarros] dos
orientais servem para acentuar a sobriedade e a racionalidade dos hábitos
ocidentais.”56
O fato de o europeu estar constantemente se deparando e apontando esse
estranhamento em alguns costumes orientais, pode ser explicado pelo fato desse europeu estar
sempre observando de fora da situação, sem envolvimento. O trabalho de estranhar é bem
simples, basta observar situações desconhecidas por ele com a visão eurocêntrica, assistir a
uma prática cultural diversa com o olhar de julgamento de sua própria cultura e não tentar
buscar compreender a lógica de raciocínio que está presente nessa cultura diferente da sua.
Said explica que:
“O Oriente é observado, porque o seu comportamento quase (mas nunca totalmente)
ofensivo nasce de um reservatório de infinita peculiaridade; o europeu, cuja
sensibilidade viaja pelo Orienta, é um observador, jamais envolvido, sempre
distanciado, sempre pronto para novos exemplos do que a Description de l’Égypte
chamava ‘bizarre jouissance’ [prazer bizarro]. O Oriente torna-se um quadro vivo de
estranheza.”57
55
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.91 56
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.132 57
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.154
32
Volto a destacar também, que a posição de Júlio Verne, não era de que toda a cultura
oriental devesse ser ocidentalizada. O próprio autor deixa clara a admiração por alguns grupos
indianos. O que ele pensa é que alguns costumes seriam até então, muito bárbaros e violentos,
e que somente esses costumes deveriam ser extintos, ou substituídos por outros. Em outros
momentos, Verne se coloca do lado dos povos orientais, se perguntando como seria para eles
verem todos esses aspectos da modernidade europeia chegando a suas terras.
“Mas com que olhos deviam olhar para tais divindades aquela Índia, agora já
britanizada, quando algum barco a vapor passava, silvando e agitando as sagradas
águas do Ganges, espantando as gaivotas que adejavam sobre a sua superfície, as
tartarugas que pulavam nas suas margens e os devotos deitados ao longo das suas
praias!”58
A riqueza de detalhes e de bons exemplos para ilustrar a negociação entre Ocidente e
Oriente durante o século XIX presente na obra de Júlio Verne é notória. Verne demonstra
estar atento a características que poderiam passar despercebidas por outros escritores, como é
o exemplo das nacionalidades dos dois principais personagens do romance, um inglês e um
francês. O autor cria uma sequência de situações que permite explorar análises de diferentes
conceitos dentro do Orientalismo, tornando seu livro uma boa referência para o estudo desse
assunto além de ser uma grande obra literária, o que qualifica ainda mais o trabalho do já tão
renomado escritor francês.
58
VERNE, Júlio. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. São Paulo: Hemus, 1996. p.98
33
4 CONCLUSÃO
Após a discussão a respeito do Orientalismo baseado nas questões levantadas por
Edward Said em sua obra “Orientalismo”, e estudar esse fenômeno no olhar de um escritor do
século XIX, é fácil a percepção da importância do tema para fazer uma abordagem de
assuntos que envolvam qualquer relação entre Ocidente e Oriente, sobretudo o Imperialismo
Europeu. “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” é uma obra rica em detalhes e exemplos de
como o Orientalismo funciona na prática.
O século XIX é um tempo histórico vasto de informações e de situações que atraem
um estudo mais aprofundado a respeito das relações entre Ocidente e Oriente, e
consequentemente todas as fagulhas que poderiam surgir desse embate entre dois mundos
considerados diferentes. Mundos esses, que só podem ser considerados distintos e como que
não fizessem parte de um mesmo conjunto, por motivo de uma construção humana. A ideia de
diferenciar o “eu” do “outro”, ou seja, distanciar e separar uma população que é categorizada
como sendo diferente é um embate político e social que está em ebulição no período do
Imperialismo e que está muito presente na atualidade.
É importante notar o poder que um discurso de superioridade possui, sobretudo
quando este está repleto de informações sobre o que o primeiro considera o “outro”. Apesar
desse estudo discutir especificamente a questão do orientalismo e a negociação entre Ocidente
e Oriente durante o século XIX, ainda vemos nos tempos atuais a repetição de discursos de
superioridade muito parecidos com os que eram disseminados há dois séculos. A
diferenciação que o ser humano costuma fazer entre “eu” e o “outro” já nos trouxe muitos
problemas e situações de extrema gravidade e costuma acarretar na opressão injustificável de
uma parcela da população mundial em outra.
Sem um conhecimento, mesmo que básico, sobre as diferentes idéias e posições a
respeito do que ficou conhecido por orientalismo, dificilmente pode-se chegar à produção de
34
um conhecimento completo e sólido sobre assuntos polêmicos e capazes de gerar uma gama
enorme de diferentes opiniões, como é o caso do próprio Imperialismo Europeu. É de grande
importância utilizar essa discussão para nortear a direção de outras discussões que possam vir
a surgir quando um historiador, ou outro cientista social for estudar essas relações entre os
dois hemisférios, e até mesmo ter esses conceitos e essas discussões em mente quando for
estudar movimentos sociais que estimulam a diferenciação do “outro”. E se ater aos cuidados
de não ignorar a visão eurocêntrica que os europeus compartilhavam no período e que grande
parte do mundo ocidental valoriza até hoje, além de também estar alerta para não cair nas
mesmas armadilhas que uma visão eurocêntrica ou americanizada pode nos levar.
35
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