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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
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a limpeza da casa (algumas considerações sobre a função do fracasso) *
Aline Dias - Mestranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão sobre a função do fracasso, partindo de experiências artísticas que aproximam as esferas da arte e do cotidiano. Neste contexto, o texto problematiza noções de ordem e desordem, apoiando-se no conceito de ‘informe’ de Georges Bataille e em reflexões sobre a função utópica e sua relação entre ‘concretização’ e fracasso. Palavras-chave: fracasso, arte, cotidiano, informe, utopia. Abstract: This article proposes a reflection about the role of failure, from artistic experiences that elates the fields of art and daily life. In this context, the text discusses notions of order and disorder, based on the concept of ‘formless’ by Georges Bataille and also on reflections about the role of utopia and its relationship between 'realization' and failure. Keywords: failure, art, daily-life, formless, utopia.
Minha epígrafe neste texto é uma imagem: o trabalho “self erased
drawing” da artista Mona Hatoumi. Neste trabalho, a artista apresenta um
mecanismo formado por uma superfície contendo areia em que uma pá move-
se circularmente a partir de um eixo central. Ao entrar em movimento, a metade
da pá, ranhurada, desenha linhas circulares na areia enquanto a outra metade,
lisa, apaga o desenho, continuamente.
HATOUM, Mona. “Self Erased Drawing”, 1979, madeira, areia, metal, motor elétrico, 9,5 x 28 x 28 cm.
Reprod. 5,5 x 6,5 cm em papel : p&b. IN: ARCHER, Michael; BRETT, Guy; ZEGHER, Catherine de. Mona
Hatoum. Londres: Phaidon, 2001. p.38.
Esta imagem, que por ora abre o texto, vem acompanhando há algum
tempo meu processo e minhas reflexões. Como um pequeno enigma: o que
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dizer desse movimento contínuo de fazer, desfazer, refazer? É também um
emblema de outras tantas imagens de tarefas desenvolvidas infinitamente, de
empreendimentos fadados ao fracasso, de trabalhos intermináveis. Castelos de
areia, esculturas minuciosas de gelo, a limpeza da casa. Como se esta imagem
pudesse acionar outras imagens e reflexões sobre o sentido do ato e da
experiência, a função da utopia e o papel do fracasso.
Através da observação, concentração e organização de vestígios
cotidianos, minha pesquisa artística se detém nos processos e resíduos de
atividades domésticas. Tarefas simples, banais, solitárias, mas persistentes, a
que nos dedicamos repetidamente: varrer o chão, limpar o piso, o banheiro, os
vidros, lavar as roupas, as louças, tirar o pó que se acumula nos móveis e
objetos. A partir destas atividades – ou de sua não-execução – passo a
desenvolver uma série de trabalhos, abordados na pesquisa de Mestradoii: um
cubo de poeira, uma esfera de pó de feiticeira, uma linha de traças, pequenas
superfícies de pêlos de gatos, vidros com resíduos de óleo de cozinha. iii
Estes trabalhos possuem uma intensa relação com minha experiência
cotidiana através da observação e da ação dentro de casa. Sobretudo, com a
angustiante sensação de impotência diante de processos entrópicos, tendo
como imagem paradigmática a poeira que se forma, insistentemente, a
despeito de qualquer empenho em eliminá-la, como sublinha Bataille no
verbete ‘poeira’ de seu Dicionário Crítico:
Os contadores de estórias não se deram conta que a Bela Adormecida
acordaria coberta com uma grossa camada de poeira; nem pensaram nas
sinistras teias de aranha que se desprenderiam ao primeiro movimento de sua
cabeleira ruiva. Porém, melancólicas camadas de poeira constantemente
invadem habitações e as sujam uniformemente: como se preparassem sótãos
e cômodos velhos para a ocupação iminente de obsessões, fantasmas,
espectros, que o odor decadente da velha poeira nutre e intoxica. (...) Um dia
ou outro, é verdade, a poeira, admitindo sua persistência, vai provavelmente
ganhar vantagem sobre as domésticas, invadindo as imensas ruínas dos
prédios abandonados, dos estaleiros desertos...iv
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O pouco tempo disponível para desempenhar as tarefas domésticas
diante das exigências da vida acelerada de trabalho, estudo e viagens, torna
este fracasso ainda mais evidente. É inquietante perceber indícios da minha
própria ausência. De preguiça, cansaço, passividade, resignação. Nos
alimentos estragando na geladeira, no mofo que se forma nas panelas sujas,
no lixo por recolher, na poeira que se acumula nos objetos, percebo de forma
incisiva minha não-ação e a demanda por meus gestos. É neste ponto,
imprecisamente, que começo a pensar na recuperação do ato e do
compromisso com o presente. E dessas pequenas aflições se desdobram
indagações sobre novas formas de lidar com os fracassos, de esburacar ou,
nos termos de Bloch: transpor a repetição do mesmo e os ideais de perfeição
inautênticos, impostos por um deve ser.v
Para desenvolver esta reflexão, tomo então como referência um trabalho
em particular, silenciosamente desenvolvido em 2006. Este trabalho foi
sintomaticamente intitulado participação invisível. Mais que um título, foi uma
definição feita pela artista e então curadora da exposição, Júlia Amaral, diante
da necessidade de fazer uma ação tão insipiente constar no convite.vi
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DIAS, Aline. “Participação Invisível”, 2006, intervenção. Registro fotográfico realizado por Júlia Amaral.
fogos-de-artificio-050.jpg; fogos-de-artificio-051.jpg; fogos-de-artificio-055.jpg. 03 fot. dig. 300 dpi. RGB.
Formato JPEG, 2006. Acesso em: 07 fev. 2008.
Participação invisível tratava, simplesmente, de limpar a casa. Ajudar a
dona da casa a fazer a faxina para receber os convidados na abertura da
exposição. Algumas coisas, aparentemente mínimas ou banais, são
importantes na proposta como, por exemplo, a probabilidade de que o trabalho,
mesmo depois de pronto, não fosse visto. Embora estivesse por todo o espaço.
A impossibilidade de o trabalho ficar pronto, pois a limpeza da casa é uma
tarefa que dificilmente podemos dar por definitivamente terminada. E que,
mesmo assim, durasse muito pouco, pois na medida em que os convidados
começassem a chegar e a utilizar o espaço, a sujeira fosse fazendo todo o
trabalho da limpeza desaparecer. O trabalho também envolvia uma noção de
afeto, ajudando a Julia, que é minha amiga, numa tarefa ingrata como costuma
ser uma faxina.
Aproximando-a do território artístico, esta experiência está relacionada a
questões de minha pesquisa como a noção de pouco, de uma materialidade
intermitente, de problematizar a visibilidade da obra e lidar com a própria
atenção e com seu revés, a decepção. Possui uma relação com o próprio
cotidiano e a intenção de dissipar-se, de embaralhar e misturar estas duas
esferas de ação: arte e vida.
A partir deste caráter inapreensível de participação invisível e sua
dissolução na experiência cotidiana, esta experiência pode ser relacionada ao
conceito de inframince, de Marcel Duchamp sobre espaços e experiências
infinitesimais e relações sutis. Para o artista, a indeterminação e a imprecisão
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são fundamentais na arte, como rejeição a uma concepção de positividade e
suficiência do sentido.vii
Em sua primeira nota sobre o inframince, Duchamp coloca que o
inframince é um possível. A possibilidade de tubos de tinta virarem um Seurat
seria, segundo Duchamp, a ‘explicação’ concreta do possível como inframince.
Para o artista, o possível implica o devir, pois a passagem de um a outro tem
lugar no inframinceviii. Inframince se refere ao intervalo, ao que escapa,
encontrando ressonância nas reflexões sobre a imagem imperfeita e a
insuficiência do sentido.
De forma similar, a noção de informe, desenvolvida por Georges Bataille,
não se refere a uma deformação ou ausência de forma, mas a este espaço
lacunar entre uma forma e outra, na inconstância e mutabilidade.ix No texto,
Para não ficar de mãos vazias, Edson de Sousa retoma a relação entre utopia
e o conceito de informex, ressaltando que a utopia seria manter o amanhã com
informe, em sua condição de provisoriedade, instabilidade, suspensão.xi
A assimilação do negativo, da falta, da incompletude, do inacabado e do
lacunar, implicados nos conceitos de informe e de inframince, podem ser
retomados para abordar o texto utópico, na contra-corrente de uma visão
projetista e prescritiva que é característica do senso comum.
Participação invisível, por sua condição imaterial, contingente e
circunstancial (e, assim, escorregadia a uma apreensão inequívoca), possui
uma estreita relação com a noção de relato, referenciando o conceito de
narração e experiência de Walter Benjaminxii, na medida em que sua existência
toma forma através de espaços como este: do texto, da fala, da narração. Um
espaço que assume a impossibilidade de anular as lacunas, de abarcar inteira
e positivamente a experiência, mas que propõe um outro viés: o esforço por
dizer aquilo que escapa, sem obliterar a falta, tentando ampliar e redimensionar
o vivido através da narrativa. Para Benjamin, a experiência deve comportar
uma dimensão de compartilhamento, através da narração, daquilo que é vivido
circunscritamente pelo sujeito.
Fredric Jameson, em Utopia, Modernismo e Morte – capítulo do livro As
Sementes do Tempoxiii, também insiste sobre a dimensão narrativa do
pensamento utópico. Através da análise do livro de Platonov, Jameson procura
evidenciar o caráter interpretativo do texto utópico, tendo como eixo a ironia.
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Jameson afirma que, diferentemente dos textos tradicionais, que pretendem
resolver ou eliminar o negativo, a utopia não elimina tensões e contradições,
mas ao contrário, as exacerbera. O autor também chama atenção para os
aspectos formais próprios de cada narrativa como elementos que a integram.
Mudar a forma de narrar, é mudar também a narrativa. Para Jameson, o
devaneio pode ser bem-sucedido como uma narrativa, não por conseguir
evadir-se ou enganar o principio de realidade, mas sim, por embater-se com
ele.xiv
Para Jameson, a vocação da utopia é o fracasso, sublinhando que seu
valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno
das nossas mentesxv. A utopia parte da insatisfação com o presente e, segundo
o autor, o texto utópico nos dá a lição do que não podemos imaginar, não pela
imagem perfeita, concreta, mas pelos buracos do texto, pela nossa própria
incapacidade de ver além dos limites da época e da ideologia. Ainda assinala a
importância do esforço para começar imaginar utopia e não para realizar o
projeto, compreendendo o processo utópico como um tipo de desejo de
desejar, um aprendizado do desejo, invenção do desejo e que, portanto, inclui
o problema da representação.
Ainda seguindo o pensamento de Jameson, podemos afirmar que a
narrativa utópica desafia suas próprias imagens, produz um novo material que
torna impossível reconhecer ou aceitar as velhas imagens. Não se trata de
materializar um projeto, mas do próprio processo narrativo, com a inerente
dificuldade de conceituação, formulação e representação da utopia. As utopias
possuem assim um caráter não-prescritivo e uma dimensão de fracasso, na
medida em que sua função não está na projeção e concretização de ideais,
mas numa função crítica, política.
A utopia, enquanto esperança ativa, para Ernst Bloch – um dos
principais estudiosos da função utópica – está relacionada a uma intenção
voltada para a possibilidade do que ainda não veio a ser. Dessa forma, exclui a
concepção de um mundo pronto, acabado, cujo futuro é previsível e inevitável.
De forma oposta, a utopia aposta no que Bloch chama de um futuro autêntico,
compreendido como um processo aberto, contínuo, inconcluso, e não mera
contemplação. Pensar significa transporxvi alerta Bloch, portanto, a função
utópica está relacionada à crítica do presente e ao desejo de transformações.
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O conceito de novo, afirma Bloch, encontra resistência nas concepções de um
mundo ordenado previamente, fechado e imobilizado naquilo que está
instituído pela ideologia dominante.xvii
A utopia é uma ficção, mas que não se configura como uma concepção
ociosa do perfeito, para usar os termos de Jamesonxviii. É função da utopia
esburacar os falsos ideais, romper e des-naturalizar as formas instituídas,
recusando a aceitação passiva de sonhos e rotinas impostas. O ideal, alerta
Bloch, com seu acento na perfeição, seu modo de exigir, de dever, possui
como negatividade a ilusão, a abstração e a falsificação do ideal. Mesmo
quando se restringe a uma imagem, o ideal possui um fim, que é da perfeição.
A função utópica, afirma Bloch, não traz a eclosão do ideal, mas sua correção.
O autor também alerta que a aproximação infinita deste ideal é facilmente
transformada em mera contemplação. O ideal se configura como impotente na
medida em que está pronto, imobilizado, em concordância com o mundo. Ao
mesmo tempo, que no ideal ressoa uma resposta ao insuficiente, à imperfeição
da vida, a função utópica se embate com este estar-pronto.
Do desejo de conservar a casa limpa, é preciso pensar no ideal de
limpeza e assepsia próprio de uma sociedade cientificista que produz e
abomina o resíduo, o lixo, o excesso, o inútil. Desorientando o ideal esterilizado
que despreza e mascara a sujeira, devemos pensar sobre as atividades de
limpar, recolher e organizar restos, marcas e imagens domésticas. E pensar
que a pesquisa e narração sobre estas questões possam, de alguma forma,
abrir fissuras em hierarquias postiças entre arte e cotidiano, em padrões
instituídos, encontrar espaço para contestar a forma como as coisas devem
ser.
As atividades domésticas de onde parte esta reflexão também levantam
questões sobre a automatização das ações, a repetição alienante dos gestos –
como na música de Chico Buarque: todo dia ela faz tudo sempre igualxix. Como
a tarefa sisífica, apontada por Bataille, de combater a poeira, e por extensão, a
desordem. Como fazer com estas atividades escapem do jugo terrível do
cansaço, do esforço sem sentido? Como produzir diferença na repetição?
Como arrancar as tarefas da casa deste estatuto inferior, marginalizado? Como
derrubar as falsas imagens de perfeição? Como desmascarar os mecanismos
de subordinação?
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Dessa forma é que proponho pensar o trabalho com os vestígios
cotidianos: como um desejo a ser derrubado e, paradoxalmente, a ser re-
construído; como um desejo que move a ação e, sobretudo, a criação de novas
formas. Um desejo que procura reinventar sentido para as atividades mais
rotineiras e, assim, tentar salvá-las da burocratização do cotidiano,xx
contornando o imperativo de servir passivamente a desejos impostos. E sem
perder de vista, deve-se ressaltar, o perigo de criar bandeiras de ferro, como
descreve o escritor Platonov: imóveis, que não se movem com o vento.xxi
Bataille, que critica duramente o desejo de ordenar o mundo, de dar uma
forma estável a tudo, aproxima o trabalho das faxineiras ao mais positivista dos
cientistas: Quando as arrumadeiras e empregadas domésticas se armam a
cada manhã com grandes espanadores ou mesmo com um aspirador de pó,
elas talvez não estejam completamente desavisadas de que estão
contribuindo, passo a passo, tanto quanto o mais positivista dos cientistas, em
dispensar esse fantasma injurioso que a limpeza e a lógica abominam. xxii
Para Bataille, o fracasso está associado ao desejo de transgressão, ao
risco do desconhecido, a experiência do não-saber. Fracassar como risco,
como procura de formas novas. Com o conceito de informe, o autor que des-
classificar, desorientar a exigência de que cada coisa tenha a sua forma.xxiii Ele
sustenta ainda que todo o saber nos condiciona ao que conhecemos,
afirmando os pressupostos dogmáticos deram limites indevidos a experiência:
aquele que já sabe não pode ir além de um horizonte conhecido.xxiv Como
podemos nos apropriar do que nos ultrapassa? Como derrubar tudo aquilo que
limita o possível? Ele diz: Para ir ao limite do homem é necessário, a um certo
ponto, não mais suportar, mas forçar o destinoxxv.
Bataille ainda permite uma aproximação com algumas questões do ideal
e da utopia quando destaca o processo interminável e inseguro que caracteriza
a experiência: não posso crer no extremo atingido, porque nunca permaneço
lá.(...) só posso, suponho, atingir o extremo na repetição, no fato de que nunca
estou e estarei seguro de tê-lo atingido.xxvi E aborda a dificuldade metodológica
da experiência, que serve-se do projeto para, no entanto, ultrapassá-lo: o
princípio da experiência é sair através de um projeto do domínio do projeto.xxvii
A experiência é o contrário do projeto: atinjo a experiência ao contrário do
projeto que eu tinha de tê-laxxviii.
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Entre o trabalho de recolher e organizar os restos e a paralisia da
ordenação, deve-se pensar também no que diz Estamiraxxix: conservar as
coisas é proteger e existe diferença entre resto e descuido, chamando atenção,
segundo Edson de Sousa, para a função do olhar de recuperar o estatuto
daquilo que foi rejeitado e eliminado.xxx E assim, problematizar as significações
instituídas da mecanização dos gestos e do valor do novo, excluindo a
possibilidade de afeto no cuidar das coisas, consertar, manter, reparar.
O desejo que tudo esteja inteiro, completo, limpo, ordenado, sempre
fracassa. As coisas se estragam, ficam manchadas, marcadas, envelhecidas,
perdidas. A instabilidade nos deixa inseguros, mas a simples percepção de que
existe possibilidade de mudar os móveis de lugar, de que coisas acontecem
sem que possamos prever ou controlar, me conforta. Antes de tentar retomar o
que possa haver de positivo em fracassar, penso se é preciso achar respostas
definitivas, se o fracasso precisa ‘servir’ para alguma coisa, tendo em vista o
excesso de sentido imposto pelo desejo tecnicista de que tudo sirva para
alguma coisa. Ou citando Bataille: Odeio / esta vida de instrumento, / busco
uma rachadura, / a minha rachadura, / para ser quebrado.xxxi
Também penso na improvável proposição duchampiana de criar um
aparelho para registrar, colecionar e transformar todos os pequenos excessos
e desperdícios de energia, como o excesso de pressão em um interruptor, o
crescimento do cabelo e das unhas, movimentos impulsivos de medo, os
gestos demonstrativos das mãos, roncos, bocejos.xxxii
Do fracasso, penso que sua ‘lição’ é a importância do ato e do processo,
em contrapartida ao resultado. Prestar atenção na sujeira se acumulando me
confronta com minha não-ação, com a tristeza que caracteriza toda
passividade. E me coloca em contato com a demanda do gesto, o resultado
sempre adiado, a impossibilidade de conservar, estabilizar ou paralisar o
mundo, tentando lidar com o caráter a um só tempo contínuo e provisório da
tarefa.
Da mesma forma que Jameson destaca a importância da narrativa, da
forma como ela se constrói e do embate com a formulação deste ‘narrar’,
cercado de fracasso, ambigüidade e indeterminação, Dandounxxxiii aposta na
utopia como desejo e não como simples concretização de ideais ou narrativas.
O autor destaca a possibilidade de não tomar a utopia em relação com real,
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mas contra o real, impregnada de crítica, do desejo de transposição de que fala
Bloch.
A partir do fracasso, pensar numa espécie de licença para o novo, para
o erro. Finalizo, então, o presente texto com duas citações, a primeira de
Valéry:
Tudo é desordem e qualquer reação contra a desordem é da mesma
espécie que ela. É porque essa desordem é, aliás, a condição de sua
fecundidade: ela contém a promessa, já que essa fecundidade depende mais
do inesperado que do esperado, e mais do que ignoramos, do que e por que
ignoramos, que daquilo que sabemos.xxxiv
E a segunda de Hilda Hilst, que escreve: E hoje, repetindo Bataille: /
"Sinto-me livre para fracassar”xxxv
* O presente artigo é uma versão modificada do texto homônimo, originalmente desenvolvido para a disciplina “A imagem imperfeita: utopia, arte e psicanálise”, ministrada no segundo semestre de 2007 pelo Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. i Mona Hatoum, artista libanesa, nascida em 1952. Seu trabalho aborda questões como vulnerabilidade, opressão e resistência e é desenvolvido em diversas mídias como vídeo, performance e instalações, envolvendo objetos, luz, som e estruturas mecânicas. ii A pesquisa de Mestrado, intitulada “marcas e restos – concentração e organização de vestígios” vem sendo desenvolvida desde abril de 2007, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Vieira da Cunha. iii Esta descrição refere-se a alguns trabalhos por mim desenvolvidos entre 2005 e 2008, intitulados, respectivamente: “cubo de poeira”, “pó de feiticeira (para carlos asp)”, “traças”, “petit (pêlos)” e “óleos”. iv BATAILLE, Georges et al... Encyclopedia Acephalica IN: Documents of avant-garde. Londres: Atlas Press, 1995. p.42-43. Tradução de minha autoria. v BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança I. Rio de Janeiro: UERJ; Contraponto, 2005. vi Intitulada fogos de artifício, a exposição/festa/sessão de slides foi realizada na Rua Sotero José Farias, n.106, bairro Rio Tavares, em Florianópolis, residência de Júlia Amaral e integrava o projeto espaço contramão. Esta iniciativa consiste, resumidamente, em realizar exposições em espaços residenciais, com curadoria e participação ativa do dono da casa na produção e proposição do formato da mostra. vii DUCHAMP, Marcel. Notas. Madri, Tecnos, 1989. São exemplos de situações inframince: a diferença entre dois objetos produzidos em série e saídos do mesmo molde; o calor de um assento recém desocupado. viii DUCHAMP. Op. Cit. p. 20. Tradução de minha autoria. No original: Le possible est/ um infra mince - / La possibilité de plusieurs / tubes de couleur de / devenir um Seurat est / “l’explication” concrête / du possible comme infra / mince. Le possible impliquant / le devenir – le passage de / l’um à l’autre a lieu / dans l’infra mince. ix BATAILLE, Georges. Dicionário Crítico. IN: Documentos. Caracas: Monte Ávila, 1969. p.145. x SOUSA, Edson Luiz André de. Para não ficar de mãos vazias. Encontro: Revista de Psicologia, UNIA, Santo André, SP, jul-dez 2003, 8 (8), p.01-04. xi SOUSA, 2007. Op.Cit. p. 34. xii A necessidade de conservar a incompletude e não mascarar as fissuras, também está relacionada ao modelo de narração apontado por Benjamin, que afirma: metade da arte narrativa está em evitar explicações. A narração é avessa à informação, na medida em que renuncia a preocupação de explicar tudo, evitando que os acontecimentos sejam encerrados em uma única versão daquilo que foi. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas - I. São Paulo: Brasiliense, 1987. xiii JAMESON, Fredric. Utopia, Modernismo e Morte . IN: As Sementes do Tempo. São Paulo: Ática, 1994. xiv Ibidem, p. 84. xv Ibidem, p.85. xvi BLOCH, Op.Cit. p.14. xvii BLOCH, Op.Cit. p.39.
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xviii JAMESON, Op.Cit. p.109. xix Referência à música: Cotidiano, de 1971, de Chico Buarque. IN: BUARQUE, Chico. Construção. Rio de Janeiro: PolyGram, 1993. 1 disco compacto (32min45s): digital estéreo. 836013-2 xx O termo burocratização do amanhã é utilizado por SOUSA, Edson Luiz André de. Uma Invenção da Utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007. p.31, remetendo ao texto A Função do Amanhã de Hélio Fervenza (FERVENZA, Hélio. O + é o deserto. Editora Escrituras, São Paulo, 2003.) xxi JAMESON, Op.Cit. p.106. xxii BATAILLE, 1995. Op.Cit. p.42-43. Tradução de minha autoria. xxiii BATAILLE, 1969. Op.Cit. p.145. xxiv BATAILLE, Georges. A Experiência Interior. São Paulo: Ática, 1992. p.11. xxv Ibidem. p.46. xxvi Ibidem. p. 48-49. xxvii Ibidem. p. 53. xxviii Ibidem. p. 61. xxix Referência ao filme de Marcos Prado, Estamira, de 2006, sobre a mulher que dá título ao filme. Estamira possui 63 anos, esquizofrênica, catadora de lixo no Rio de Janeiro. Este filme me foi apresentado pelo belo ensaio de Edson de Sousa Função: Estamira. SOUSA, Edson Luiz André de. Função: Estamira. Estudos de Psicanálise, n.30, ago 2007, Circulo Brasileiro de Psicanálise, Salvador. p. 51-56. xxx SOUSA, Edson Luiz André de. Função: Estamira. Op.Cit. xxxi BATAILLE, Georges. A Experiência Interior. Op.Cit. p.63. xxxii DUCHAMP. Op.Cit. p.155. xxxiii DADOUN, Roger. Utopie: l’emouvante rationalité de l’inconscient. IN: BARBANTI, Roberto (org). L’art au XX siècle et l’utopie. Paris: L’Harmattan, 2000. xxxiv VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. p.192. xxxv HILST, Hilda. Disponível no site oficial da escritora: http://www.hildahilst.cjb.net/. Acessado em 6 de janeiro de 2008.
Referências:
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Phaidon, 2001.
BATAILLE, Georges et al... Encyclopedia Acephalica IN: Documents of avant-garde.
Londres: Atlas Press, 1995.
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SOUSA, Edson Luiz André de. Uma Invenção da Utopia. São Paulo: Lumme Editor,
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VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. Currículo resumido:
Aline Dias é artista e Mestranda em Poéticas Visuais pelo PPGAV-UFRGS.
Graduada em Artes Plásticas pelo CEART-UDESC, atuou na Ação Cultural do
Museu Victor Meirelles, entre 2004 e 2007. Participou do Rumos Visuais, Itaú
Cultural, Projeto Trajetórias, Fundação Joaquim Nabuco e Projéteis,
FUNARTE, entre outros. Vive e trabalha entre Florianópolis e Porto Alegre.