"Algo diferente neste verão": a carnavalização e a viralização em gêneros audiovisuais amadores do YouTube

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    e-scrita ISSN 2177-6288

    V. 52014.3Rafael Costa, Jlio Arajo

    e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilpolis, v.5, Nmero 3, set.-dez. 2014

    ALGO DIFERENTE NESSE VERO : A CARNAVALIZAO E A

    VIRALIZAO EM GNEROS AUDIOVISUAIS AMADORES DO

    YOUTUBE

    Rafael Costa1

    Jlio Csar Arajo2

    RESUMO: Considerando a carnavalizao como o nascituro do romance polifnico,apresentamos uma anlise por meio da qual argumentamos que o fenmeno da viralizao noYouTubepode ser explicado luz desse conceito. Os resultados permitem a concluso de quecarnavalizar assumir o status de uma ao colaborativa, orientada pela necessidade deinterao com outrem. Desse ponto de vista, esses gneros emergentes parecem dialogar comuma tradio literria marcada pela polifonia, tal como Bakhtin percebeu em relao aDostoievski.

    Palavras-chave:carnavalizao; gneros; Youtube.

    SOMETHING DIFFERENT IN THIS SUMMER : THE CARNIVALIZATION AND

    VIRALIZATION OF AMATEUR AUDIOVISUAL GENRES FROM YOUTUBE

    ABSTRACT : Considering carnivalization as the unborn polyphonic novel, we present ananalysis in which we argue that the viral phenomenon in YouTubecan be explained in light ofthat concept. The results led to the conclusion that carnivalizing is to assume the status of acollaborative action, guided by the need to interact with others. From this point of view, thoseemerging genres seem to dialogue with a literary tradition remarked by polyphony, as Bakhtinalready saw concerning to Dostoyevsky.

    Keywords:carnivalization; genres; YouTube.

    1Doutorando em Lingustica pela Universidade Federal do Cear. Professor Assistente-A do Instituto de Cultura

    e Arte da Universidade Federal do Cear. CE, [email protected] Ps-doutor em Estudos Lingusticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto do

    Departamento de Letras Vernculas e do Programa de Ps-Graduao em Lingustica da Universidade Federaldo [email protected]

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    INTRODUO

    Todo tipo de linguagem possui um atributo fundador. Seja porque permite o

    estabelecimento da comunicao num dado contexto, seja porque faculta a seus usurios o

    reconhecimento de sua prpria condio humana, num plano mais amplo. Por linguagem,

    entende-se aqui a assuno de todo tipo de semiose como instrumento de produo de

    significados (conforme defendem KRESS, 2010; VAN LEEUWEN, 2005). Essa considerao

    elementar acerca da natureza da linguagem nos encaminha para o entendimento de que, para

    se constituir sujeito, o homem toma para si os atributos inerentes interveno lingustica:

    falar, escrever e manejar outros sistemas significativos no necessariamente baseados na

    oposio entre escrita e oralidade.

    Evidentemente, nenhum indivduo est sozinho nessa empreitada, tampouco poderia

    se considerar artfice isolado de atos criadores, quando se trata dos usos da linguagem. Como

    bem esclarecem alguns analistas de discurso (MAINGUENEAU, 1997; AUTHIER-REVUZ,

    2004), impossvel precisar, em muitos casos, a origem dos ditos, conceitos e ideias correntes

    na sociedade. Eles figuram num espao difuso, inapreensvel muitas vezes, denominado de

    interdiscurso: uma espcie de gatilho da prpria noo de discursividade, que serve de

    condio do dizer, ou melhor, circunscreve as possibilidades desse dizer. Subjacente a essa

    ideia, est a constatao de que estamos atravessados pela presena, ora bem-vinda, ora

    incmoda, de uma memria precedente, manifesta consciente ou inconscientemente.

    Argumentando a favor da linguagem como fato social, Ferdinand de Saussure (2006)

    , reconhecidamente, o estudioso que lana as bases para uma viso mais incisiva acerca da

    relao entre sujeitos e seus Outros. Contudo, ao definir, com preciso cirrgica, o sistema da

    lngua como fenmeno por excelncia da nascente cincia lingustica, sob uma perspectiva

    estrutural, ele acaba, de alguma maneira, limitando as potencialidades do estudo da lngua emuso, em ato. Essa dimenso tem sido reabilitada, com propriedade, por diversas disciplinas do

    campo lingustico, ao longo de mais de um sculo.

    No entanto, no preciso avanar tanto no tempo, em relao a 19153, para um

    entendimento adequado dessa progressiva entrada em cena das condies e implicaes

    socialmente partilhadas pelos sujeitos das prticas de linguagem. Basta que lancemos um

    3Ano da publicao pstuma de Curso de Lingustica Geral, de Ferdinand de Saussure.

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    olhar para os anos 1920, quando o filsofo russo Mikhail Bakhtin divulgou alguns de seus

    ensaios cuja importncia tem se mostrado capital para reafirmar o valor da linguagem como

    espao constitudo por acordos humanos e trocas socialmente validadas.

    Neste artigo, intentamos lanar um olhar para uma das formulaes de Bakhtin que,

    como diversas outras, demonstra a fertilidade de um pensamento caracterizado pela aguda

    percepo do dinamismo das prticas discursivas humanas. a noo de carnavalizao dos

    gneros discursivos, tratada em Problemas da Potica de Dostoievski (2002 [1929]). Aqui,

    ela ser entendida como pano de fundo para discutirmos aquilo que chamamos de

    viralizaodos gneros, a partir de evidncias flagradas no repositrio de vdeos YouTube.

    Dessa maneira, esperamos apontar a atualidade do pensamento bakhtiniano, esperando, ao

    mesmo tempo, fazer justia a suas formulaes.

    1 FUNDAMENTAO TERICA

    A obra Problemas da Potica de Dostoievski, antes de tudo, uma leitura crtica que

    Bakhtin (2002 [1929]) fez do texto literrio. Sua anlise funda uma abordagem segundo a

    qual h gneros cujas bases esto sob o signo da carnavalizao. Para o filsofo russo, acarnavalizao seria um desvio de estilos que se realiza por meio da subverso de valores e

    normas estabelecidos socialmente. Dessa maneira, um gnero carnavalizado opera como

    amlgama entre o sagrado e o profano, rene a um s tempo o velho e o novo, distancia-se

    das normas criando outras.

    Segundo Bakhtin (2002 [1929]), o equilbrio da tenso entre o velho e o novo o que

    caracteriza o gnero do discurso que preserva em si o que o autor chama de elementos

    imorredouros ou archaicado gnero. Conforme Paulo Bezerra, ao comentar a traduo que

    fez da obra Problemas da Potica de Dostoievski, a etimologia do termo archaicaprocede do

    grego e quer dizer traos caractersticos e distintos dos tempos antigos(p. 106). Ao estender

    esse sentido para explicar o fenmeno da carnavalizao dos gneros do discurso, Bakhtin

    ([1929] 2002, p. 106) defende a ideia de que, ao guardar consigo traos de seu passado, todo

    gnero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. verdade que nele essaarchaica s se conserva graas sua permanente renovao, vale dizer, graas

    atualizao. O gnero sempre e no o mesmo, sempre novo e velho ao mesmotempo. [...] Por isso, no morta a archaicaque se conserva no gnero; ela eternamente

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    viva, ou seja, uma archaicacom capacidade de renovar-se. O gnero vive do presente,mas recorda o seu passado, o seu comeo [...]. precisamente por isto que tem acapacidade de assegurar a unidade e a continuidadedesse desenvolvimento [itlicos doautor].

    Para justificar que Dostoievski criou um novo tipo de romance, marcado pelacarnavalizao, Bakhtin procede a uma anlise diacrnica do gnero romanesco. Ao examinar

    as pginas do Antiguidade Clssica e do Helenismo, o autor se deparou com um conjunto

    muito especial de gneros que se desenvolveram nessas pocas. Ainda que se mostrassem

    distintos entre si, Bakhtin considerou que esses gneros eram cognatos, pois havia aspectos

    que os irmanavam entre si. A esse grupo de gneros, ele denominou campo do srio-cmico.

    A prpria dinmica de seu estudo lhe imps a seguinte questo: em que consistem as

    particularidades caractersticas dos gneros do srio-cmico? (BAKHTIN[1929] 2002, p.

    107), o que mostra claramente que Bakhtin seguiu o critrio funcional. Subsequentemente,

    disponibilizamos a Figura 1 para ilustrar nossa compreenso das palavras de Bakhtin.

    Fig. 1 Os gneros do srio-cmico

    Fonte: Autor (ano, p. 62)

    A carnavalizao uma espcie de marca meque irmana todos os gneros que

    compem essa figura, sendo, portanto, a carnavalizao um dos principais eixos

    organizadores do gneros do srio-cmico. Esta caracterstica se triparte para atender

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    heterogeneidade do campo literrio que originou o gnero romanesco. Assim, o aspecto

    carnavalesco, que est no topo da figura, desencadeia um movimento cclico anti-horrio que

    parece determinar as caractersticas destes gneros: um novo tratamento da realidade, o qual

    est baseado na fantasia livre para criar e realizar combinao e transmutao de outros

    gneros e de outros estilos. Pelo que se pode inferir da leitura que fazemos de Bakhtin, todas

    essas caractersticas operam em conjunto, de maneira que as separaes que faremos no

    pargrafo subsequente devem servir unicamente para que se vislumbrem suas tnues e

    entrelaadas fronteiras.

    Em relao ao novo modo de tratar a realidade, Bakhtin ([1929] 2002, p. 108) mostra

    que os gneros do srio-cmico reinterpretam os mitos, os quais so deliberadamente

    atualizados. Para o autor, pela primeira vez, na literatura antiga, o objeto da representaosria (e simultaneamente cmica) dado com os contemporneos vivos e no no passado

    absoluto dos mitos e lendas. Imediatamente correlata primeira, a segunda caracterstica

    destacada porque ela reala a natureza da reinterpretao que esses gneros fazem das lendas

    e mitos. Como informa o autor, o modo como os gneros do campo srio-cmico tratam o

    mito chega a ser cnico-desmascarador4, o que representa, para a poca, uma verdadeira

    reviravolta na histria da imagem literria. A terceira e ltima caracterstica a

    transmutao. De acordo com Bakhtin ([1929] 2002, p. 108), os gneros do campo do srio-cmico transmutam e, por vezes, subvertem outros gneros, como cartas, manuscritos

    encontrados, dilogos relatados, pardias dos gneros elevados, citaes recriadas em

    pardias, etc. Em alguns deles, observa-se a fuso do discurso da prosa e do verso, inserem-se

    dialetos e jarges vivos. Por conta disso, a concluso do estudioso a de que

    esses gneros esto conjugados por uma profunda relao com o folclore carnavalesco.Variando de grau, todos eles esto impregnados de uma cosmoviso carnavalescaespecfica e alguns deles so variantes literrias diretas dos gneros folclrico-carnavalescos orais. A cosmoviso carnavalesca, que penetra totalmente esses gneros,determina-lhes as particularidades fundamentais... (Id., Ibid.).

    No seria anacrnico olharmos para certas prticas discursivas emergentes no meio

    digital, como os vdeos do YouTube, com lentes bakhtinianas. Um vdeo que postado na web

    passa a ser resignificado graas capacidade carnavalizante que os usos da tecnologia

    permitem. A capacidade que tem de renovar-se se d em funo da viralizao que o

    4O fato de esses gneros subverterem os cnones das lendas e mitos, remete-nos, de certo modo, ao queMaingueneau (1997, p. 104) denomina de subverso. Para o linguista francs, no mecanismo da subverso [...]as condies genricas so respeitadas, mas o texto as desqualifica em sua prpria enunciao.

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    acompanha quase sempre. A cada pardia que emerge do vdeo matriz, quem o faz evoca a

    archaicaprimeira da matriz a qual retomada comumente por meio de traos que recordam

    aspectos composicionais, estilsticos e temticos do vdeo original.

    2 METODOLOGIA

    Consideramos que se apropriar de uma epistemologia bakhtiniana para o estudo de

    fenmenos de linguagem requer um posicionamento metodolgico capaz de permitir

    vislumbrar a potncia responsiva dos atos de discurso, a recorrncia a uma memria

    discursiva e, no caso especfico de um trabalho que se prope discutir a carnavalizao de

    gneros, a mobilizao criativa de seus sujeitos. Dessa maneira, uma primeira opo ocorre

    no sentido de aceitarmos os preceitos da pesquisa qualitativa, naquilo que ela tem depreocupada com a descrio, com os processos subjacentes aos produtos e tambm com a

    nfase nos significados (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Tambm nos apoiamos nos preceitos da

    Teoria Fundamentada (conforme Fragoso et. al, 2011), que prev a observao do campo

    como procedimento de operacionalizao da pesquisa e a codificao de dados de modo a

    possibilitar a emergncia de categorias e o estabelecimento de motivaes para as aes

    descritas.

    Demarcado esse posicionamento, assumimos como estratgia de construo de dadose anlise, inicialmente, as diretrizes bakhtinianas acerca do estudo dos gneros do discurso

    (2006 [1929]), as quais consistem na considerao do tema, do estilo e da estrutura

    composicional de um discurso como ndices de genericidade. Nesse sentido, tema e estilo so

    discutidos com mais nfase, pois so traos que j nos permitem observar o trnsito e a

    reapropriao de discursos, que, supomos, balizam a carnavalizao como fenmeno

    absortivo de gneros.

    A esse arcabouo, permitimo-nos somar as contribuies da semitica social

    (KRESS, VAN LEEUWEN, 2006 [1996], cuja epistemologia comunga com as formulaes

    bakhtinianas em diversos aspectos, como, por exemplo, a considerao da valorao social

    das prticas discursivas e a importncia das interaes como constituintes dessas prticas.

    Objetivamente, observamos a recorrncia de alguns atributos da metafuno interpessoal, a

    partir dos quais se pode perceber como so constitudas, nos vdeos analisados, as

    representaes dos participantes e eventuais presunes acerca dos interlocutores.

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    Foi luz dessa perspectiva que o corpusdesse trabalho foi constitudo. Os dados,

    portanto, so quatro vdeos retirados do YouTube. Em conjunto, eles formam uma espcie de

    diacronia informal do percurso de um viral5da internet, no caso, aquele surgido a partir da

    publicizao de dois vdeos protagonizados pela transexual brasileira Lusa Marilac e sua

    posterior retomada por outros internautas, em outros vdeos que, de algum modo, referenciam

    elementos dos originais. Naqueles dois vdeos iniciais que constituem uma mesma

    sequncia de aes, porm separada em dois uploads distintos Lusa apresenta, em tom

    bem-humorado e descontrado, momentos de um dia seu na cidade de Madrid, na Espanha.

    De feio amadora6, os vdeos tiveram, desde junho de 2010, cerca de 2,5 milhes de

    exibies no repositrio de vdeos YouTube7, e tornaram Lusa uma figura notria dentre

    muitos internautas e tambm em espaos da mdiaconvencional

    . A escolha por esse viral

    decorre de alguns fatores: a) seu frutfero desenvolvimento ao longo de um ano, o que nos

    permite vislumbrar a possibilidade de analisar um ciclo de vida, abrindo portas para uma

    possvel diacronia em ambiente online; b) a familiaridade dos autores, haja vista termos

    acompanhado, ao longo desse ano, parte da repercusso e dos subprodutos surgidos a partir

    dele; e c) a peculiaridade do jogo pardico/satrico estabelecido a partir do tema e do estilo

    dos vdeos originais, que, a nosso, habilitam esse viral a ser analisado sob o prisma da

    carnavalizao de gneros.

    3 ANLISE DE DADOS

    Essa a vista da minha casa. Do meu apartamento. Eu estou em... Espanha.

    Roqueta Del Mare. ... Lindo. No ? Foi dizendo tais palavras8, que a transexual brasileira

    Lusa Marilac comeou sua jornada rumo popularidade nos meios digitais (e eventualmente

    fora deles) e tambm, pode-se dizer, criou mais um exemplar de produo audiovisual

    amadora que tem mobilizado reinterpretaes de diversos usurios da internet, ao longo de

    cerca de um ano. Ela consiste em dois vdeos (LUISA CASAa, 2010; LUISA CASAb, 2010)

    5Viral refere-se ao atributo de alguns discursos, sobretudo na internet, de se propagarem de maneira intensa eem geral gil, tal qual uma endemia. Diz-se de vdeos, textos, msicas e outros arranjos semiticos que partilhamdessa capacidade. A analogia biolgica que funda essa categoria comum a outro termo comum na internet(ealgo prximo de um sinnimo para viral), meme (DAWKINS, 1976), uma unidade de sentido capaz de sereplicar, como um gene nos organismos vivos.6 Isto , aquele que se caracteriza pelo pauperismo tcnico (ausncia de domnio aparente em tcnicas deenquadramento, iluminao, edio etc.) e tambm pela abertura participao do pblico. Tais categorias soapresentadas por Felinto (2005) na caracterizao dos spoofs, ou seja, das pardias amadoras online.7 Dados obtidos a partir da contagem de visualizaes de cada um dos vdeos (que esto disponveis emhttp://youtu.be/ikzC29rV75A e http://youtu.be/M--nNVQvSzo), realizada em 25 de julho de 2011.8No vdeo intitulado luisa casa roqueta.028, disponvel em http://youtu.be/M--nNVQvSzo.

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    nos quais, com uma cmera amadora, a transexual registra momentos de um dia seu na cidade

    de Madrid, Espanha. Ela mesma responsvel pelos registros que faz de si, primeiramente no

    parapeito de uma sacada de um edifcio, e em seguida numa piscina, localizada nessa mesma

    sacada.

    Nesses vdeos, que ela diz ter feito para amigos para mostrar que no estava na

    pior (LUISA CASAb, 2010) e que decidiu fazer algo diferente nesse vero (LUISA

    CASAb, 2010), Lusa realiza aes como mostrar a rea circunvizinha ao prdio (onde diz

    viver), tomar um drink e tambm mergulhar na piscina. Os dois vdeos, que seguem uma

    sequncia de aes (o vdeo 028 o primeiro, e o 029vem em seguida), so finalizados

    com um clique, da prpria Lusa, no boto da cmera fotogrfica, demarcando o fim da

    gravao.

    Fig. 2 Lusa Marilac em cena de um vdeo no YouTube

    Fonte: YouTube

    Se a carnavalizao no almeja, prioritariamente, a consecuo de efeitos

    verossmeis, estando mais vinculada ao exerccio da fantasia livre, ento compreensvel que

    as releituras dos vdeos originais lancem mo de artifcios que os desqualificariam como

    produes crveis ou verdadeiras, mas que servem adequadamente s ambies do

    discurso carnavalizado a fantasia livre, a liberdade transmutadora, e o registro que se

    pretende cmico, em dada medida.

    No apenas nos exemplos analisados, mas em diversos outros, o atributo at certo

    ponto desmoralizador da produo audiovisual amadora emerge como trao capaz de

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    reafirmar um posicionamento que se pode considerar poltico, em alguma medida. Poltico no

    sentido de demarcar um lugar de fala em que permitido subverter os efeitos de sentido

    originalmente pretendidos por uma dada enunciao, em direo quilo que Bakhtin chama de

    cosmoviso carnavalesca isto , sustentada pela permisso da brincadeira, da troca ou

    assuno de papis, da imitao jocosa, da ressignificao transgressora de papis sociais

    normatizados durante o restante do ano (quando no Carnaval).

    A esse respeito, vejamos como ocorre a apario do participante representado

    (aquele que de fato aparece, segundo Kress, 2010) no vdeo OSAMA MARILAC9,

    protagonizado pelo humorista brasileiro Marcelo Adnet. Na figura abaixo, observamos o

    humorista mimetizando sem de fato almejar uma reproduo exata a cena em que Lusa

    encontra-se na piscina e relata seus planos para aquele dia de vero. Nota-se que ele ostentaelementos cnicos ausentes dos originais, tais como a toalha na cabea que passa por

    turbante e a barba falsa. So elementos a concorrer para um disfarce do terrorista Osama

    Bin Laden possivelmente fora de contexto, numa enunciao que se pretendesse documental

    ou no nos exigisse a suspenso da descrena , mas compreensveis, numa lgica regida pela

    cosmoviso carnavalesca.

    A isso, acresa-se a performance corporal de Adnet, que emula os trejeitos de

    Marilac, de uma maneira que no se distancia das brincadeiras carnavalescas em que homens

    fantasiam serem mulheres. A Figura 3, a seguir, mostra o participante representado do vdeo

    OSAMA MARILAC, o humorista Marcelo Adnet. Em termos de estrutura composicional,

    embora a mise-en-scnedos originais seja evocada por meio de elementos como a piscina e

    o copo de bebida ao mesmo tempo transgressora, na medida em que se permite apelar a

    referncias intertextuais capazes de gerar efeitos cmicos, no caso, a aluso figura do

    terrorista Osama Bin Laden, que poca do vdeo havia sido dado como morto, aps uma

    operao da marinha norte-americana. Num contexto carnavalesco, o tratamento de temascomo a morte ou o terrorismo parece ignorar as fronteiras do bom ou do mau gosto, tornando

    tal tipo de aluso aceitvel. Isso pode ser comprovado a partir de uma checagem rpida nas

    representaes dos participantes interativos que se manifestam por meio de comentrios ao

    vdeo10. Eles, em boa parte, demonstram se divertir com a imitao, por meio de sinais

    grficos do internets(como as risadas simbolizadas por KKKKKKKKKKKKKK).

    9Disponvel em http://youtu.be/xRjx6RlRqzc.10Tal abertura participao corrobora a caracterizao do amadorismo feita por Felinto (2005).

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    Fig. 3 Osama Marilac

    Fonte: YouTube

    Outro elemento irmanador da carnavalizao, no contexto dos dados observados, o

    registro amadorstico, intencional ou no. No vdeo OSAMA MARILAC, ele se manifesta

    em alguns ndices, tais como a manuteno de um nico plano para captao de imagens e a

    interferncia, logo ao incio, de uma voz off que diz -Gravando!, deixando escapar o

    bastidor da enunciao o que seria considerado uma falha tcnica num contexto de produo

    audiovisual profissional.

    Prosseguindo no entendimento de que as estratgias intertextuais so mais um

    elemento a corroborar a orientao carnavalizada de tais tipos de enunciao, chegamos a

    outro vdeo, intitulado Chica Luza Marilac (a pardia que parou tudo)11. Nesse vdeo,

    possvel observar, mais uma vez, a manuteno dos elementos cnicos que demarcam a

    temtica do vdeo: a piscina e um copo de bebida. O ttulo da produo, assim como o vdeo

    OSAMA MARILAC, nos ancora referncia prvia dos vdeos originais, a partir da meno

    ao sobrenome Marilac. O participante representado tambm um homem que se utiliza de

    trejeitos femininos surge dentro de uma piscina plstica, de tamanho reduzido, e ali recita um

    texto, adaptado de um dos vdeos originais de Lusa Marilac, no qual fala que decidiu ficar em

    casa, na sua piscina, curtindo esse vero maravilhoso da Bahia, aqui em Salvador, na boca

    do rio. O deslocamento espacial, propositalmente anunciado, um trao que, como j

    destacado, orienta-se pela lgica de que a mimetizao, em contexto carnavalesco, pautada

    na fantasia livre, isto , na flexibilidade para a insero de elementos estilsticos e

    composicionais ausentes de um enunciado original.

    11Disponvel em http://youtu.be/oWhJZxiRXVI.

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    Na releitura da fala de Marilac, notam-se comutaes de expresses e vocbulos,

    reforando esse entendimento da existncia de um espao (re)criador no ato de parodiar, mas

    que no descaracterizam por completo a estrutura composicional ainda mais levando-se em

    conta que elementos salientes do original, como a piscina, so mantidos, ainda que com

    adaptaes.

    Mais uma vez, a execuo pode ser considerada amadora: a iluminao varivel, a

    captao ocorre em um nico plano, a caracterizao do participante representado

    incompleta e desleixada. Assim, a pardia no almeja ocupar um lugar mais profissional que

    os originais; ela assim o faz, em nossa opinio, como uma estratgia de comunicabilidade

    anloga quela utilizada pelos originais, provavelmente como uma pista para que os

    espectadores-usurios possam dar-se conta da relao que os irmana.

    A inclinao cnico-desmascaradora de que fala Bakhtin, ao buscar balizar a

    compreenso da carnavalizao, evidencia-se a partir da adeso a um tema comum por parte

    dos vdeos, qual seja, uma recriao da mise-en-scneretratada por Lusa Marilac, e tambm

    pelos traos de estilo e estrutura que os permeiam, concorrendo para satirizar a situao e/ou a

    personagem originais. So exemplos daquilo que Maingueneau (1997) chamaria de

    subverso, isto , um certo respeito s condies genricas, mas que so desqualificadas na

    enunciao.

    Mais do que isso, porm, o posicionamento cnico-desmascarador pode ser atribudo

    percepo que os espectadores-usurios do YouTube desenvolveram acerca dos vdeos

    originais. Se observarmos os comentrios feitos por alguns participantes interativos a esses

    vdeos, veremos que l j se esboa uma postura jocosa, e em alguns casos assumidamente

    agressiva (lembrando-nos que o humor faz tnue fronteira com o que considerado ofensa ou

    mau gosto), em relao ao que mostrado. So recorrentes comentrios sobre o uso

    incorreto do portugus por parte de Lusa Marilac (bons drink), sua aparncia tocando em

    questes sobre a visibilidade de minorias como os transexuais e seus modos de se portar, ao

    longo do vdeo, j sugerem, numa construo colaborativa, aquele posicionamento

    transgressivo. Exemplos disso so os seguintes comentrios:

    Isso mesmo, aproveita traveco. Aproveita enquanto os donos da casa foram aoshopping. S espero que vc j tenha limpado a casa.

    Corre!! A Patroa Chegou!!!

    Bom, agora vou tomar meus bons drink...rsrssss Porran!

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    e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilpolis, v.5, Nmero 3, set.-dez. 2014

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    Os vdeos-pardia, de alguma maneira, juntam-se a esses comentrios, por

    partilharem semelhante vis desconstrutor. Fazem isso, contudo, valendo-se de uma mimese

    da mise-en-scneoriginal, permitindo que a ingressem outros elementos que concorrem paraa carnavalizao, como a comutao de objetos de cena e de trechos do discurso falado, de

    forma a criar efeitos de sentido absurdos ou cmicos.

    CONCLUSO

    A anlise aqui esboada nos encaminha, assim, para o entendimento de que o tema

    dos vdeos concorre para irman-los num fluxo absolutamente carnavalizado. No entanto, a

    carnavalizao ocorre justamente pelos traos de estilo e composio exibidos pelos vdeos-

    pardia esses sim, capazes de iluminar e sugerir aspectos cmicos das produes originais.

    So adaptaes da estrutura composicional mudana do texto original, incluso de

    elementos cnicos e referncias de outras esferas discursivas alm da individualizao

    proporcionada pelaperformancedo principal participante representado em cada vdeo.

    Mesmo levando-se em conta os percalos de transpor uma reflexo forjada no

    contexto da obra literria de Dostoievski para gneros emergentes da internet, acreditamos

    que a carnavalizao pode nos servir como uma lente pela qual se pode olhar agrupamentos

    de gneros que partilham do amadorismo e de valores associveis a uma cosmoviso

    carnavalesca (como o humor e a transgresso). Carnavalizar nos parece, nesse contexto,

    assumir o status de uma ao coletiva, colaborativa, orientada pela necessidade de interao

    com outrem12. E, desse ponto de vista, esses gneros emergentes parecem dialogar com uma

    tradio literria marcada pela polifonia, tal como Bakhtin percebeu em relao a

    Dostoievski.

    12A esse respeito, ver Adami (2009) e seu trabalho de levantamento dos vdeos-resposta produzidos por usuriosdo YouTube.

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    LUSA CASA roqueta.029. 1 vdeo (1 minuto), son., color. Disponvel em. Acesso em 10 out. 2014.

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    OSAMA MARILAC. 1 vdeo (49 segundos), son., color. Disponvel em. Acesso em 10 out. 2014.

    SAUSURRE, Ferdinand de. Curso de Lingustica Geral. So Paulo: Cultrix, 2006.

    VAN LEEUWEN, T.Introducing Social Semiotics. Londres, Nova Iorque: Routledge, 2005.

    Recebido em 21/10/2014.

    Aceito em 21/11/2014.