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tg.J!iWPensamento Criminológico VOLUME 1 VOLUME 2 VOLUME 3 VOLUME 4 VOLUME 5 VOLUMf6 VOLUME 7 VOLUME 8 VOLUME 9 VOLUME 10 VOLUME 11 Introdução à A/essandro Baratta Difíceis GanhQs Drogas e Juv1erm.-e "1'OIRi Vera Ma/aguti Punição Georg numinismo a·i!R'·fPensamento Criminológico 12

Alessandro de Giorgi - A Miséria Governada Através do Sistema Penal - Coleção Pensamento Criminológico, vol. 12 (2006)

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tg.J!iWPensamento Criminológico

VOLUME 1

VOLUME 2

VOLUME 3

VOLUME 4

VOLUME 5

VOLUMf6

VOLUME 7

VOLUME 8

VOLUME 9

VOLUME 10

VOLUME 11

Crimino~a Cri1Q~",'1: Introdução à Cri~,_; A/essandro Baratta Difíceis GanhQs ·f_~f;.:<'t;· Drogas e Juv1erm.-e"1'OIRi Vera Ma/aguti B~ti:Sf4.11 Punição e~EstII_.5. Georg

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a·i!R'·fPensamento Criminológico 12

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Coleção Pensamento Crüninológico

Alessandro De Giorgi

A lniséria governada através do sistema penal

Tradução Sérgio Lamarão

~ Instituto Carioca de Criminologia

Editora Revan

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M!Uili'Pensamento Criminológico

Direção Prof. Dr. Nilo Batista

© 2006 Instituto Carioca de Criminologia

Rua Aprazível, 85 Rio de Janeiro - RJ 20241-270 tel. (21)2221-1663 fax (21)2224-3265 [email protected]

Edição e distribuição Editora Revan S.A. Rua Paulo de Frontin, 163 Rio de Janeiro - RJ 20260-010 tel. (21) 2502-7495 fax (21) 2273-6873 [email protected] www.revan.com.br

Projeto gráfico Luiz Fernando Gerhardt Revisão Sylvia Moretzsohn Díagramação lido Nascimento

Giorgi, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Alessandro De Giorgi. - Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. (Pensamento criminológico; v. 12). 128p. Inclui bibliografia ISBN 85-7106-336-2 .1-. Direito penal

SUlnário

Prefácio à edição brasileira ......................................................... 5

Discussão à guisa de prefácio

Cárcere, pôs-fordismo e ciclo de produção da "canalha" Dario Melossi ................................................................... 9

Introdução ................................................................................. 25

1

Regime disciplinar e proletariado fordista .............................. 33

Economia política do controle social ..................................... 33

Nascimento da sociedade industrial e disciplinalTlento do proletariado .......................................... 39

Pena e subsunção real do trabalho ao capital ........................ 43

Encarceramento e desemprego na época fordista ................. 47

O limite da economia política da penalidade fordista .............. 55

Capítulo 2

Excesso pós-fordista e trabalho da multidão .......................... 63

Pôs-fordismo: o regime do excesso ...................................... 63

O excesso negativo ............................................................. 66

O excesso positivo .............................................................. 71

Multidão ............................................................................. 77

Capítulo 3

Governo do excesso e controle da multidão .......................... 83

Da disciplina da carência ao governo do excesso .................. 83

O controle como "não-saber" .............................................. 89

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o controle da multidão ......................... ~ .............................. 92

O risco aprisionado ..................................................... 94 A metrópole punitiva ....... ...... ..... .... ........ ...... ........ ...... 102

A rede imbricada ........................................................ 105

Novas resistências ............................................................ 109

Bibliografia ................................................................................ 115

Prefácio à edição brasileira

Vera Malaguti Batista

Este livro de Alessandro De Giorgi atualiza o conjunto de reflexões que oInstituto Carioca de Criminologia vem publicando ao longo dos últimos dez anos. A Coleção Pensamento Criminológico tem como elo de articula­ção a produção {eórica acerca da questão criminal que se opõe ao grande movimento de criminalização da pobreza, gerado pelo processo de acumu­lação de capital ao longo dos séculos.

Na etapa em que nos encontramos, de capitalismo de barbárie, pode­mos observar a expansão do mercado em todas as direções, mas principal­mente no esfacelamento das redes sociais de proteção coletiva do capitalis-··· mo industrial, do Estado Previdenciário ou Welfare State. No âmbito penal há uma expansão análoga, no sentido de um crescimento sem precedentes da pena de prisão. Como diria LOlc Wacquant, o outrora denominado mun-do livre está sendo encarcerado ...

Alessandro De Giorgi aprofunda esta reflexão crítica acerca do encarceramento em massa da força de trabalho excedente utilizando a eco­nomia política da pena no desemprego pós-fordista. Uma das principais qualidades deste livro é aproximar o marxismo do pensamento de Michel Foucault. Aqui no Brasil ergueu-se uma parede entre essas duas escolas de pensamento; esta parede é, a meu ver, ilusória. Tenho dito que, sem a militância no Partido Comunista Francês1 Foucault não poderia ter efetua­do a reflexão que fez. A partir do marxismo frankfurtiano de Georg Rusche, Foucault mergulha na integração histórica do sistema penal com o disciplinamento do mercado de mão-de-obra.

Foucault investe no corpo como centro nevrálgico do poder, e também do podê'r punitivo. Percebe-se em Vigiar e punir a apropriação da descrição de Rusche acerca dos mecanismos de disciplinamento dos cárceres, suas normas para a regulamentação do cotidiano na direção da constituição dos corpos dóceis. Mais adiante, Foucault vai trabalhar com a idéia de biopoder, este colossal dispositivo de apropriação e disciplinamento dos corpos, que caminha junto ao assujeitamento massivo das almas.

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De Gíorgi aposta nessa crítica materialista da pena: "o fio condutor da economia política da pena é construído pela hipótese geral segundo a qual a evolução das formas de repressão só pode ser entendida se as legitimações ideológicas historicamente atribuídas à pena forem deixadas de lado". Seu trabalho cumpre, então, a função fundamental de desativar o dispositivo do dogma da pena. Existe nos dias de hoje uma polissemia de discursos, uma saturação de informações que conduzem à transformação de toda a con­flitividade social em problema penaL A discursividade vai acompanhando então a pauta da reprodução deste capital de barbárie: a imigração é crimina­lizada, bem como as estratégias de sobrevivência da pobreza em todas as partes do mundo. As políticas criminais de droga, as operações "anti-cor­rupção", as cruzadas contra o crime organizado e a lavagem de dinheiro são nada mais nada menos do que expansão dos territórios de ocupação física e virtual pelo capital financeiro soberano.

O autor avança também na crítica à contradição estrutural da sociedade capitalista, a partir de Marx: o paradoxo entre a idéia da igualdade formal em relação a uma desigualdade fundamental: "o objetivo, coerentemente, é o de reproduzir um proletariado que considere (r sn~rio Como justa retribuição do próprio trabalho e a pena como justa medida dos seus próprios crimes", diz ele acerca da ideologia retributiva-legalista do fordismo.

O trabalho de De Giorgi ultrapassa os limites da economia política da penalidade fordista, quando a pós-industrialização se apresenta como uma explicitação do excesso de mão-de-obra, o regime do excesso. Isto quer dizer que temos que nos livrar das permanências subjetivas, da maneira de pensar o mercado de trabalho e o sistema penal e encarar as transformações a que o capital submete a mão-de-obra, o trabalho da multidão l . O demônlo que o capital vídeo-financeiro persegue é o tempo livre da força de trabalho, num modo de produção quejá descartou completamente as ilusões do pleno emprego. É aí que o dogma da pena e a criminalização da pobreza e dos conflitos sociais, da luta de classes, são discursos estratégicos à reprodu­ção desse capital.

Nessa direção, a análise de De Giorgi aponta para os novos dispositivos dirigidos "à contenção de uma população excedente e de um surplus de

I O conceito de multidão aqui utilizado, na trilha de Negri, abre espaço para uma longa discussão a ser tomada no campo marxista. Pessoalmente, acredito que o conceito não consegue dissociar-se da carga histórico-ideológica positivista da expressão, tal como definido por Gustave Le Bon.

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força de trabalho desqualificada; elas prescindem explicitamente da consu­mação de um delito, das características individuais de quem está envolvido nele e de qualquer finalidade reeducativa ou correcional, para orientar-se no sentido da 'estocagem' de categorias inteiras de indivíduos considerados de risco". Ele se vale então da idéia do cárcere atum'ial, a partir das "represen­tações probabilísticas baseadas na produção estatística de classe, simula­cros do real: imigrantes clandestinos, afro-americanos do gueto, tóxÍco­dependentes, desempregados". É o atuariaJismo penal que vai produzir as metrópoles punitivas.

Esta obra é de uma riqueza impressionante para nós que pensamos a questão criminal na periferia do capitalismo, na nossa gigantesca instituição de seqüestro, como vaticinou Raúl Zaffaroni, na sua busca das penas perdi­das. Nós, os indignados, os resistentes a esse gigantesco projeto de assujeitamento aos desígnios do capital, podemos contar com a munição proposta pela presente retlexão, que transformou nossas favelas/prisões em campos de extermínio e tortura, numa escala até então nunca vista. O livro da Alessandro De Giorgi vem aprofundar e substancializar a nossa luta e a nossa clareza acerca das funções reais do sistema penal e dos discursos punitivos nos dias de hoje. Como se fora pouco, o Íivro vem com uma genial interlocução, "discussão à guisa de prefácio", desenvolvida por Dario Melossi, revigorando ainda mais a análise de De Giorgi, atualizando aquela proposta pelo já clássico Cárcere efábrica. Regalai-vos, pois, criminólogos e penalistas críticos brasileiros: esta obra tem novidades!

Rio de Janeiro, setembro de 2005.

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à guisa de prefácio Cárcere, pós-fordismo e ciclo de produção da "canalha"

Dario Melossí

Entre 1968 e 1975, produziu-se uma radical renovação nos estudos de so(;iologia penaL Durante o ano de 1968 foi reeditada nos Estados Unidos a 6bta Punishment and Social Structure. Publicado pela primeira vez em.1939, sóba assinatura conjunta de Georg Rusche e Otto Kirchheimer', Punishment à'iÍd Social Structure foi o primeiro texto em inglês da famosa Escola de Frankfurt, e em particular da sua representação institucional, o Instituto para o Estudo das Ciências Sociais de Frankfurt. A publicação foi praticamente concomitante à complexa e difícil transferência do lnstituto para Nova Iorque, junto à Universidade de Columbia, provocada pelos acontecimentos pré-bé­licos alemães e pela perseguição à sociologia, sobretudo à sociologia marxis­ta praticada em grande parte por intelectuais de origem judaica, que eram os principais protagonistas da produção do Instituto.

Já o ano de 1975 é marcado pela publicação daquela que foi provavel­mente a obra mais conhecida de Michel Foucault, Surveiller et puni? Entre essas duas datas, estende-se o último grande, período de agitações sociais que ocorreram, com intensidade variada, em todos os países mais desenvol­vidos (mas não apenas neles), e que no interior de cada um desses países afetou não somente os principais núcleos da atividade produtiva - afábrica, tal COlfÍO a conhecíamos até então -, mas também todas aquelas instituições

I Sobre os vários acontecimentos que interferiram na atormentada elaboração deste texto, ver a introdução à edição italiana (D. Melossi, "Mercato deI lavoro, disciplina, controllo sociale: una discussione deI testo di Rusche e Kirchheimer", in G. Rusche e O. Kirchheinler, Pena e struttura sociale. Bolonha, II Mulino, 1978) e a introdução à edição francesa (R. Levy e H. Zander, "Introduction", em G. Rusche e O. Kirchheimer, Peine et structure sociale. Paris, Cerf, 1994). (N. do T.: edição brasileira Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, RevanfICC, 2a ed., 2004, tradução e apresentação de Gizlene Neder]. 2 Michel Foucault, Sorveg/iare e punire. Turim, Einaudi, 1977 [N. do T.: edição brasileira Vigiar e pUllir: nascimento da Petrópolis, Vozes, 26u ed., 2002; tradução de Raquel Ramalhete].

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que, à época, foram descritas como "subalternas"3 à fábrica, em particular a instituição carcerária.

O texto de Rusche e Kirchheimer, que na atmosfera imediatamente ante­rior à guerra foi quase ignorado (salvo algumas louváveis exceções, registradas mais no campo da história econômica do que no da criminologi(4

), permitia uma releitura da história da pena numa perspectiva marxista. O texto de Foucault, a apenas sete anos de distância, oferecia a possibilidade não só de dar a sua contribuição àquela interpretação, mas também de ir além dela, ingressando num espaço que escapava dos esquemas mais rígidos da leitura marxista5• Após o trabalho de Foucault, desenvolveu-se uma ampla literatu­ra, sobretudo em língua inglesa, amplamente influenciada pelo reaparecimento das hipóteses de Rusche e Kirchheimer, que procurou checar a veracidade empírica da hipótese de uma relação entre variáveis estruturais fundamen­tais, especialmente as de natureza socioeconômica, e a evolução das institui-

penais6.

Se, portanto, ainda em Donald Cressey, ao o levantamento de campo de uma "sociologia da pena", relacionou um número de obras que podiam ser contadas nos dedos de uma mão ou no máximo de duas 7 , no final do século XXjá dispúnhamos de uma vasta literatura8

• Um filão fundamental dessa sociologia é exatamente aquele que De Giorgi iden.tifica como "econo­mia política da pena", isto é, uma interpretação da história da penalidade na qual o objeto fundamental consiste em !'clacionar as categorias de derivação marxista à reconstrução dos processos de desenvolvimento das principais instituições penais. Ao menos duas são as contribuições centrais do trabalho

3 Dario Melossi, "Istituzioni di controllo sociale e organizzazione capitalistica de! lavoro: alcuni ipotesi di ricerca", in La questione criminale, 2, 1976, pp. 293-317, in primis, naturalmente, aquelas que eram então chamadas de "instituições to­tais", como em E. Goffman, Asylums. Turim, EinaÚdi, 1968 (cd. orig. 1961). 4 Para mas detalhes, ver as introduções citadas na nota l.

5 A minha leitura não concorda aqui com a de D. Garland, Pena e società moderna. Milão, II Saggiatore, 1999 (ed. orig. 1990), capítulos IV ao VII. 6 Sobre esta literatura, remeto à exaustiva seção no texto de De Giorgi que se segue Unfra, Capítulo 1).

7 D. R. Cressey, "Hypothesis in lhe Sociology of Punishment", in Sociology and Social Research, 39, pp. 394-400. 8 Ver, além de D. Garland, Pena e società modema, cit., os ensaios na antologia por mim organizada, The Sociology of Punis/unellt. Aldershot, Ashgate, 1998.

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Giorgi apresenta aqui. A primeira é reconstruir o percurso da econo-política da pena tal como vejo se desenvolvendo até os dias de hoje. A

é procurar fornecer uma contribuição original a esse desenvolvi­!flen,to, estendendo-o do período que De Giorgi chama de "fordista" até o afualmente consagrado como "pós-fordista".

.0 ponto de partida de De Giorgi, de uma perspectiva empírica, é absolu­~arnente macroscópico em termos de história das instituições penais. Desde a primeira metade dos anos 1970, em particular no interior das instituições penais dos Estados Unidos, assistimos a um impressionante crescimento tanto da população penitenciária quanto da parcela da população que é sub­ll1etida, de um modo ou de outro, às diversas autoridades definidas como !'colTecionais". Esse crescimento é de tal monta que a probabilidade de um homem afro-americano terminar sob o controle de uma dessas "autoridades correcionais" no decorrer da sua vida já está se aproximando daquela de se obter "cara" na brincadeira de "cara ou coroa".

Esse fenômeno, que mudou profundamente as frends anteriormente obser­vadas, foi cada vez mais notado por um grande número ele observadores9 ,

~as as razões são muito complexas para serem exploradas exaustivamente. E certo que na época elas não eram esperadas. Uma das conseqüências da crítica radical às instituições totais e em particular às instituições carcerárias que, note-se, OCOlTeram imediatamente al1tes desse aumento impressionante, foi que, ainda no início dos anos 1970, tanto as principais orientações políti­cas nos Estados Unidos e nos outros países desenvolvidos quanto as princi­pais leituras dos fenômenos previam uma obsolescência mais ou menos ve­loz da instituição carcerária, bem como um aumento dos sistemas de contro­le extra-institucionais, "em comunidade", como se costumava dizer.

Assim, Andrew Scull pôde intitular um importante trabalho de sua lavra, lançado em 1977, de Decarceration; Ivan Jankovic e eu pudemos escrever, no mesmo ano, sobre a probation como a forma penal do futuro, enquanto o

9 Entre outros, ver N. Christie, Il business penitenziario. La via occidentale al Gulag. Milão, Eleuthera, 1998 (ed. orig. 1993); M. Tonry, Malign Neglect: Race, Crime and Punishment. Nova Iorque, Oxford University Press, 1995; M. Mauer, Race to lncarcerate. Nova Iorque, The New Press, 1999; Lore Wacquant, Parola d'ordine: tolleranza zero. La trasformazione dello stato penale nella società neoliberale. Milão, Feltrinelli, 2000 (ed. orig. 1999), e o mesmo De Giorgi. Zero Tolleranza. Strategie e pratiche della societá di cOlltrollo. Roma, DeriveApprodi, 2000. Ver também o número especial da revista Punishment and Society dedicado ao tema "Mass Imprisonment in the United States" (2001).

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reconhecido criminólogo - absolutamente não marxista - AI Blumstein es­creveu sobre uma substancial "estabilidade" nas taxas de encarceramento, remetendo-a a explicações funcionalístas, de inspiração durkheimiana lO

• E no entanto, o que já estava em curso naqueles anos era, ao contrário, o mais notável aumento da população de detentos na história moderna das institui­ções penitenciárias, que com toda razão poderia ser comparado ao "grande internamento" sobre o qual Michel Foucault escreveu em História da loucu­ra na Idade Clássica, a propósito da França do século XVIl ll . Mais uma vez nos Estados Unidos, mas não apenas lá, depois da suspensão devida a uma decisão da Corte Suprema entre 1972 e 1976, ocorreu uma retomada firme na cominação e na condenação à pena capital, primeiro de modo mais ou menos simbólico e em surdina, depois de maneira cada vez mais maciça até atingir o número de 98 condenações executadas em 1999. É bem verdade que esse movimento foi caracterizado desse modo tão ostensivo somente nos Estados Unidos. Para os países europeus, verificou-se um certo aumen­to nas taxas de encarceramento, mas nem de longe comparável ao 110rte­americano, nem generalizado a todos os países (e com exceções bastante relevantes, como a Alemanha c a Itália até o início dos anos 1990).

Os primeiros autores que procuraram dar conta desse fenômeno retoma­ram alguns dos elementos desenvolvidos por aqueles que, alguns anos antes, tinham diagnosticado um aumento da probation, e os usaram para explicar o que estava acontecendo nas prisões. Talvez a contribuição mais importante nesse sentido tenha sido a de Stanley Cohen, que escreveu sobre a tendência do sistema correcional de "widening the lU!!" - "ampliar a rede" -, e também sobre a nova lógica penitenciária vista enquanto uma lógica de "warehousing", i.e., de "armazenamento" dos detentosl 2

Mas procedamos com ordem, ainda que de forma extremamente sintéti­ca, ao percorrermos as etapas desta "economia política da pena". Segundo a

10 A. SeuIl, Decarceration. New Brunswiek (NJ), Rutgers University Press, 1977; r. Jankovic, "Labor Market and Imprisonment", in Crime and Social Justice, 8, 1977, pp. 17-31; Dario Melossi, "Strategies of Social ControI in Capitalism: A comment on reeent work", in Contemporary Crises, 4, 1980, pp. 381-402; A. Blumstein e J. Cohen, "A Theory of the Stabilíty of Punishment", in Joumal of Criminal Law and Criminology, 64, 1973, pp. 198-207. II Michel Foucault, Storia della follia nell' età classica. Milão, Rizzoli, 1963 (ed. orig. 1961). (N. do T.: edição brasileira História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 1989, tradução de José Teixeira Coelho NettoJ. 12 S. Cohen, Visions Social Controlo Cambridge, Polity Press, ·1985.

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ótica que poderemos chamar de "neo-marxista", que procurei desenvolver na seção que me foi confiada de Cárcere e fábrica 13, era possível aplicar a grade interpretativa marxista clássica - derivada sobretudo do Livro Primei­ro de O capital, centrada sobre a gênese do modo de produção capitalista e na qual se destaca o conceito de "acumulação primitiva"I4 - à história da instituição penitenciária. Essa instituição foi, de fato, criada contemporanea­mente aos processos de acumulação primitiva ou original, nos lugares onde teve início o modo de produção capitalista, numa conexão não casual e weberiana com os locais onde o protestantismo se revestiu das suas formas mais radicais.

O cárcere tivera como antepassado a "casa de trabalho", espécie de ma­nufatura reservada às massas que, expulsas dos campos, afluíram para as cidades, dando lugar a fenômenos que preocupavam as elites mercantis (e proto-capitalistas) da época: banditismo, mendicância, pequenos furtos e, last but not [east, recusa a trabalhar nas condições impostas por essas elites. A casa de trabalho um "proto-cárcere" que seria depois tomado como modelo da forma moderna do cárcere no período iluminista, isto é, quando oconeu a verdadeira "invenção penitenci:iria" não parecia ser outra coisa senão uma instituição de adestramento forçado das massas ao modo de pro­dução capitalista; afinal, para elas, esse modo de produção era uma absoluta novidade (e nesse sentido, a casa de trabalho era uma instituição "subalter­na" à fábrica).

Não por acaso, Cárcere e fábrica encerrava essa reconstrução ao final histórico desse movimento originário, por volta da primeira metade do sécu­lo XIX. Tratava-se, todavia, de uma leitura que, assim como no caso das outras leituras "revisionistas", permitia reconstruir a história do cárcere da perspectiva da crise da fábrica tradicional que se estava verificando naqueles anos, e portanto da perspectiva da crise da relação entre cárcere e fábrica. Do mesmo modo que, naquele momento, era possível desnaturalizar a fábri­ca como ela era então conhecida, e vê-Ia inscrita no interior de uma parábola que estava conhecendo o seu êxito final, era lógico aplicar esse mesmo modo de pensar a uma instituição como a carceráría que fora criada - como mal

13 Dario Melossi, "Carcere e lavoro in Europa e in Italia nel periodo della formazione deI modo di produzione capitalista", in Dario Melossi e Massimo Pavarini, Carcere efabbrica. Bolonha, n Mulino, 1977 [N. do T.: edição brasileira Cárcere efábrica. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2006, tradução de Sérgio Lamarão). 14 Karl Marx, II capitale, vol. I. Roma, Riuniti, 1964 (ed. orig. 1867) [N. do T.: edição brasileira O capital: critica da economia politica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970-71,74. 6v.].

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tínhamos descoberto! - juntamente com a fábrica. Por conseguinte, parecia lógico que ela seguisse o seu destino. (Note-se, porém, que, como bem havia esclarecido Bentham, na sua "Introdução" a um Panopticon que, nes­se meio tempo, Foucault havia tomado famoso, o cárcere não era senão a mais "completa" das instituições que "têm por finalidade manter muitas pes­soas sob vigílância"l5, dos cárceres aos hospitais psiquiátricos, das manufa­turas aos hospitais tout court, das escolas aos quartéis). Daí a hipótese, elaborada sob diversas formas por vários autores, de que, assim como a fábrica tomava-se cada vez mais social e se difundia para fora de muros bem marcados - o início da transição ao pós-fordismo -, o cárcere teria seguido esse mesmo percurso.

Portanto, não era tanto a pena pecuniária, como havia predito Kirchheimer, que se colocaria como substituta do cárcere na época contemporânea, mas sim as várias formas de controle extra-institucional que haviam surgido, já há várias décadas, nos países de língua inglesa, e que pareciam se multipli­car, sobretudo quando escrevíamos Cárcere e fábrica. A "crítica do cárce­re", que emanava das revoltas generalizadas em todo o Ocidente (mas não apenas nele), seja da literatura "revisionista", parecia colher, portanto, uma ori­entação tendencial do próprio capitalismo em organizar-se não mais sob a for­ma-fábrica e sob a forma-cárcere subalterna, mas sim através deformas de controle "em comunidade", como então se dizia, in pri11lis, as várias formas de probation, ou "confiança na prova", como a lei de 1975 traduziu em italiano. Tal desenvolvimento parecia estar bem de acordo com um outro fenômeno que se desenhava cada vez mais claramente naqueles anos e que está na base do texto de Andrew ScuU, isto é, a "crise fiscal do Estado", no sentido em que já haviam explicado Habermas e O'Connor16

• De acordo com essa visão, o Estado parecia não estar mais em condições de "núÍnter juntas" as funções que garantiam, ao mesmo tempo, a legitimação e a acumulação, ou seja, aquilo que depois passou à História como a "crise do Welfare State".

Porém, as coisas não caminharam exatamente desse jeito, pelo menos nos Estados Unidos, em virtude do fenômeno, como já recordamos no iní-

15 Jeremy Bentham, Panopticoll, ovvero la casa d'ispezione. Veneza, Marsilio, 1983 (ed. orig. 1787). [N. do T.: edição brasileira O panóptico, Belo Horizonte, Autêntica, 2000, tradução de Tomaz Tadeo da Silva]. 16 J. Habermas, Legitimation Crisis. Boston, Beacon Press, 1975 [N. do T.: edição brasileira A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, tradução de Vamireh Chacon]; J. O' Connor, La crisiflscale delto stato. Turim, Einaudi, 1977 (ed. orig. 1?73).

14

do acentuado aumento da população carcerária que começou exatamen­naquele período. Para dizer a verdade - e isso dever ser sublinhado -, a

~ ... ~ ... ,- que' via na probatioll a forma de intervenção penal tendencialmente rredominante revelou-se exata do ponto de vista da proporção relativa às intervenções correcionais. Com efeito, o aumento do número de pessoas em liberdade submetidas a controle foi amplamente superior, também nos Esta­dos Unidos, ao número daquelas sob controle dentro das prisões. A veloci­dade com que as várias formas de controle em liberdade aumentaram tam­bém na Europa superou, sem dúvida, o aumento das detenções, dramático nos EUA, e bem mais discreto nos países europeus.

Porém, o que não estava previsto era o aumento excepcional, ainda que em virtude da grave crise fiscal dos anos 1970 e 1980, do compromisso com o setor penal, de tal forma que Lorc Wacquant pôde descrever as trans­formações ocorridas naqueles anos como uma verdadeira passagem do "Es­tado social" para o "Estado penal"l7. O aumento nas formas de probatiol1 ocorria, pois, juntamente com um aumento dramático, nos Estados Unidos, das outras penais mais e com um aumento da no seu interior. Assim, quanto mais prisões, mais severos eram os regimes detentivos e mais se lançava mão da pena capital.

Nas páginas que se seguem, Alessandro De Giorgi avança num terreno ainda amplamente inexplorado, em língua italiana e em outras línguas, ten­tando verificar a possibilidade de a "economia política da pena" dar conta deste último período, disso que aconteceu a partir daquelas transformações que comumente são localizadas nos primeiros anos da década de 1970 e que ele reúne sob o termo de "pós-fordismo". Certamente sem estar fazendo justiça à sua complexidade, para a qual remetemos o leitor às páginas do livro propriamente dito, parece-me que a tese que De Giorgi apresenta pode ser resumida na idéia de que, numa situação de expulsão permanente e estrutural da força de trabalho do processo produtivo e, ao mesmo tempo, de pro­funda transformação do modo pelo qual a força de trabalho vem sendo cons­tituída na fase atuaI-, a "subalternidade" das principais instituições de con­trole social em relação à fábrica está de algÍJm modo perdida e se teria torna­do obsoleta. O ensinamento disciplinar não tem mais sentido na sociedade pós-industrial/pós-fordista porque não há mais ensinamento a propor; por isso, as instituições que foram criadas na modernidade com esse objetivo perdem progressivamente a razão de ser. Resta apenas aquilo que Cohen

Lo"is Wacquant, Parola d'ordine: tolleranza zero, cito

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chamou de warehousing, o "annazenamento" de sujeitos que não são mais úteis e que, portanto, podem ser administrados apenas através da incapacitation, da Ilcutralizazzione ["neutralização"], como se diz em italianol8•

Essa afirmação é tanto mais verdadeira se considerarmos que aquilo que, por um lado, é "excesso" de força de trabalho - com relação aos estratos sociais expulsos da produção -, é, ao mesmo tempo, "excesso" de força produtiva em relação ao tipo de força de trabalho que se tomou cada vez mais central ao processo produtivo numa época na qual a profecia marxista dos Grundrisse, de uma força de trabalho que vai desenvolver a função de general intellect do capitaP9, parece enfim ter encontrado concretização. Uma vez que a realidade atual do modo de produção vê como central a esse processo um reservatório de capacidades intelectuais que excedem continu­amente as possibilidades de exploração, controle e contenção da parte da razão capitalista, qualquer forma de "disciplinamento", mesmo que do tipo mais refinado, perde toda a razão de ser (se vocês me perdoem o nada casual jogo de palavras).

A tese é fascinante, mas, parece-me, não completamente convincente. E isso ocorre por múltiplas razões, algumas das quais podem provavelmente ser resumidas na sua excessiva tendencialidade, no seu deslocamento talvez para muito além do calor da (futura) observação, correndo o risco de perder contato com o que podemos observar hoje, à nossa volta. Não é possível, nas poucas páginas de um prefácio, confrontar completamente a riqueza da análise de De Giorgi, menos ainda de um ponto de vista crítico. Oferecere­mos apenas alguns temas de discussão.

Começamos olhando à nossa volta. Até alguns meses antes do 11 de setembro de 200po, quem vagasse pelas ruas principais das metrópoles do centro do Império - para usar uma metáfora que recentemente reencontrou um uso intenso21

- ou seja, Nova Iorque, Londres, as principais cidades da Califórnia, teria visto em muitas vitrinas nas quais o Império orgulhosamente

18 T. Bandini, U. Gani, M. LMarugo e A. Verde, Crimillologia. Milão, Giuffre, 1999, pp. 651-757.

19 Karl Marx, Lineamenti fondamentali delta critica deli 'economia política. Flo­rença, La Nuova Italia, 1970 (ed. orig. 1857-1858). Ver sobretudo pp. 400-403.

• 20 Nesse momento já era mais do que claro, para quem quisesse ver, que estava ocorrendo uma recessão de uma certa consistência nos Estados Unidos. 21 M. Hardt e A. Negri, Impero. Milão, Rizzoli, 2002 (ed. 2000) [N. do T.: edição brasileira Império. Rio de Janeiro, 2001, tradução de Berilo Vargas].

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~Q'stentava suas mercadorias o cartaz "help wanted", "precisa-se de empre­:~~~âo". E a essa distraída observação corresponde o fato de que nestes mes­,'ffios centros do Império a taxa de desemprego caíra quase aos seus mínimos 'hÚ;tóricos e isso por um período de tempo bastante longo, capaz até de 'colocar em dúvida, aos estudiosos dos ciclos econômÍcos, o primado da década de 1960 como os anos de maior prosperidade do capitalismo recente. É claro que aqueles cartazes de "help wantecf' nutrem um processo de de­senvolvimento e de ocupação que foi definido, com um bruto mas eficaz neologismo, de "macdonaldização"22.

Isso quer dizer que a oferta de trabalho certamente não se dirige para o tipo de emprego perdido nos anos 1970 e 1980 - trabalhos relativamente bem pagos, estáveis, sindicalizados, em grande parte masculinos, com bene­fícios generosos de tipo assistencial (pensões e assistência médica) e cen­trais ao processo produtivo -, mas sim para um novo tipo de emprego, muitas vezes part-time, flexível, com pouca ou nenhlJma proteção, em gran­de parte feminino e "marginal" ao percurso produtivo. Isso tanto é verdade que uma das teses mais sérias propostas no interior da academia criminológica norte-americana para explicar o inegável decréscimo da criminalidade na segunda metade dos anos 1990 - tese alternativa ao estardalhaço feito a propósito da "tolerância zero", tão característica da Nova Iorque de Rudolph Giuliani e que foi reproduzida de modo mais ou menos análogo em quase todas as outras grandes cidades norte-americanas no mesmo período!23 -baseava-se exatamente no fato de que aqueles anos assistiram a uma oferta sustentada de trabalho que se dirigia para os estratos sociais marginais, jo­vens e em geral "étnicos de cor", que tinham sido os protagonistas, alguns anos antes, de um inusitado aumento de violência, ligado às batalhas pelo controle do crack entre as várias gangues24

Isso, em outras e breves palavras, que acontece entre os anos 1970 e 1990, pode ser interpretado também como fase "cíclica", e em particular como a fase descendente de um "ciclo longo" da economia, aquele tipo de ciclo que é acompanhado por transformações muito profundas do modo de produção capitalista em termos de setores económicos de ponta, tecnologias,

22 G. Ritzer, Ilmondo alla McDollalds. Bolonha, II Mulino, 1997 (ed. orig. 1993) .

23 A. De Giorgi, Zero Tolleranza. Strategie e pratiche della società di controlto, cit.

24 A. Blul1lstein e R. Rosenfeld, "Explaining Recent Trends in U.S. Homicide Rates", in The Journal ofCriminal LaIV a/Ul Críminology, 88, 1998, pp. 1175-1216 (ver, sobretudo, pp. 1210-121 R. "Crime Decline", in Context (no prelo).

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transformações SOCiaIS conexas etc. 25 . O que De Giorgi chama de "pós­fordísmo" poderia também corresponder a uma fase cíclica da economia, mais do que ao tipo de transformação "tópica" que parece transparecer das suas palavras e da literatura na qual se inspira. Isso teria também conseqüên­cias relevantes do ponto de vista das "estratégias do controle social", se é que estamos nos referindo ao controle social de tipo formal e penal em par­ticular, como me parece ser o caso de De Giorgi.

Mas avancemos na ordcm cronológica. Na passagem dos anos 1960 para os 1970 desenvolve-se um embate duríssimo em muitos países, em particular nos Estados Unidos, que envolve o conjunto da "fábrica social", como se dizia então. No que concerne aos EUA, devemos recordar a situa­ção de insubordinação geral, aguda e contemporânea que afetava não tanto e não somente as fábricas (como ocorria, cada vez mais, na Europa), mas também as minorias étnicas, os estudantes, o Exército, os jovens em geral, as mulheres. A "criminalidade" - que em alguns dos seus aspectos especial­mente preocupantes para a classe média chamado street crime) havia au­mentado sensivelmente no correr dos anos 1960 -- foi icada por conta da referida insubordinação. A começar pelo primeiro mandato presidencial de Richard Nixon, o martelamento da propaganda esteve na ordem do dia, asse­melhando-se bastante àquilo a que fomos submetidos na Itália antes das últimas eleições: o crime não é outra coisa senão a "ponta do iceberg" de uma insubordinação e de uma falta de controle de "certos" estratos sociais (nos quais, num códice não tão críptico, deviam ser reconhecidas as mino­rias de cor, nos Estados Unidos, e os imigrados, na Itália) que colocam em risco a ordem social e em relação aos quais é necessário tomar providências para restaurar o bom tempo passado, que corre o risco de ir-se embora para sempre se não houver uma intervenção imediata.

A repetição deste refrão por cerea de 20, 25 anos, conduziu a um tre­mendo aumento da penalidade, a que já nos referimos acima (nos Estados Unidos; na Itália, conforme se verá, por causa de algumas contradições de certa importância neste campo, no interior da coligação conservadora que

25 Para a aplicação desta abordagem ao tema da exclusão pcnal, ver Dario Melossi, "Punishment and Social Action: Changing Vocabularies 01' Punitive Motive Within a Politicai Business Cycle", in Current Perspectives 0/1 Social Theory, 6, 1985, pp. 169-197; C. Vanneste, Les Chiffres des Prisolls. Paris: L'Harmattan, 2001. As con­tribuições de Hobsbawm, Kalecki, Kondratieff e Schumpeter encontram-se entre as mais conhecidas que podem ser remetidas, ainda que de modos diversos, a essa perspectiva.

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~;~~'ceu. as eleições). Mas não foi só isso. Ela contribuiu também, ainda que s.xrpbohcamente, para um processo de disciplinamento social geral, que foi acompanhado por uma profunda reestruturação da economia. Vale recordar que nos cerca de 20 anos da "virada", de 1973 aos primeiros anos da década de 1990, o salário médio horário do trabalhador norte-amcricano foi reduzi­do em aproximadamente 20%, e o motivo pelo qual a l·cnda das famílias permaneceu basicamente a mesma foi a cntrada maciça e sem precedentes das mulheres no mundo do trabalho assalariad021i •

,Ao mesmo tempo, os estratos mais fortes da classe operária foram ex­plllsos do processo produtivo e, por conseguinte, perderam a centralidade de que desfrutavL~m no passado. Essa centralidade foi transferida para a força de trabalho mtelectual que se tornou crucial no interior do novo pro­c~sso produt~vo "guiado" pela informática, mas que é mínima do ponto de :1sta.ocupaclOnaJ, ao passo que a maior parte dos empregos teve luaar no mtenor dos "serviços" que eram oferecidos às margens desta junta Pl~duti­va central e que, em grande medida, nada tinha a ver com um "tcrciário avançado". isso sim, da oferta no mercado de todas atI Vl­

dades que anteriormente eram desenvolvidas, em grande parte, por meio do tra~alho doméstico não pago (que agora as mulheres executam, cada vez mats, també/:t fora de casa), pelos serviços de restauração veloz, aqueles ao encargo dos Jovens e dos velhos em toda uma série de serviços de entreteni­mento - em resumo, exatamente a "macdonaldização".

ES,ta~nos seguros de que é possível afirmar, com relação especialmente a estes ultulloS estratos sociais, que não existe mais "projeto de disciplinamento" por~ue eles não constituem categorias "centrais" ao processo produtivo, no sentido de que I~O executam aquelas funções do "general intelect", em que

26 W. C. Peterson, The Silcnt Depressioll: The Fafe of lhe Americall Drcal11. Nova Iorque, Norton, 1994; J. B. Schor, The Overworked American. Nova Iorque, Basic Books 1991' Da" MI' "G 'M' , ,tIO C OSSt, azctte 01 oraltty and Social Whip: Punishment, i~gemony and lhe Case 01' the USA, 1970-1992", in Social & Legal Studies, 2, .93, pp. 259-279 (pode-se notar, en passant, como este é o "segredo" do extraor-

dmár" 'I d "-. ~o lllve e partlclpaçao 110 mercado de trabalho nos Estados Unidos que hOJe e apresentado como um modelo a ser atingido pela economia italiana!). Esse também é o motivo pelo qual, no último ensaio citado, eu propus relacionar as taxas ~e encarceramento na Itália com o nível da "performancc" requerida à classe ~perána em seu conjunto n~ma determinada fase, ao invés de remetê-Ias apenas a taxa de desemprego, como a literatura da "economia política da pena" geralmen­te procede.

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I

os conceitos de capital variável e capital fixo "entraram em colapso", por assim dizer, em conjunto. Mas se cada vez faz menos sentido a distinção entre capital fixo e capital variável, entre trabalho "produ~ivo" e trabalho "improdutivo" - visto que, no final das contas, aqueles que mventam n~vos algoritmos para o software continuam a ter necessidade de quem cozmhe seus hambúrgueres, lave suas camisas e lhes garanta um certo relaxamento à noite, diante de um aparelho de televisão ou em qualquer outro local - se, em suma, é o mesmo "processo de vida real"27 que constitui a base da repro­dução capitalista, como podemos afirmar que o emprego "pós-fordista" é aquele emprego que não necessita mais de um aparato "suba1tern~" a u~a "fábrica social" em vias de desaparecimento, e que, por consegmnte, nao requereria mais estratégias de "disciplinamento"?

Na minha opinião, o enorme processo de encarceramento que se verifi­cou nos Estados Unidos nas "décadas da crise" - para citarHobsbawm

28-

deveria ser reconsiderado a partir deste ponto de vista, ainda que não haja nenhuma dúvida de que, no seu interior, tenhai11 convivido e ainda convivam tendências de tipo meramente "detentivo-neutralizante" e tendências, ao con­trário, de tipo "autoritário-ressocializante". As segundas, na minha opinião, estão mais presentes exatamcnte em virtude da superação da fase mais nítida de reestruturação da economia, nos anoS 1970 e 1980, e de retomada no período posterior, no qual o tema da re-emissão de nova força d~ trabalho n.o interior de uma nova fase de desenvolvimento se impôs com maIOr peso. EIS que nos anos 1990 começam a reaparecer preocupações que são apresenta­das com todas as letras, como "neo-paternalístas", como nos trabalhos de La~rence Mead29; eis também que na segunda metade de 2000, pela primei­ra vez desde 1972, registrou-se uma diminuição na população de preso's30 (e o uso da pena capital torna-se, novamente, matéria de discussão entre as elites norte-americanas). EsSéS acenos de uma inversão de tendência na es­fera do controle social pareceriam responder, segundo a leitura de longo

27 Karl Marx, Lineamenti fondamentali della critica deli 'economia política, cit.,

p.403. 28 Eric Hobsbawm, Il secolo breve. Milão, Rizzoli, 1995 (ed. orig. 1994). [N. do. T.: edição brasileira A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, tradução de Marcos Santarrita). Vale destacar que também para o aumento nas taxas de encarceramento o ano da virada é 1972. 29 L. Mead (ed.), The New Paternalismo Washington D. c., Brookings Institution

PJ:~ss, 1997. 30 U. S. Department of Justice. Bureau of Justice Statistics, Prisoners in 2000.

20

"çiclo das hipóteses de Rusche e Kirchheimer que aqui são propostas, à in­;y~rsão ocorrida por volta da metade dos anos 1990 no campo das relações socioeconômicas, em direção a uma nova fase ascendente.

O que pretendo afirmar, em outras palavras, é que o cárcere parece per­durar obstinadamente como uma espécie de grande portão de ingresso ao contrato social, ou mesmo como introdução à forma de trabalho subordina­do. É um pouco COlHO se a descoberta dos comerciantes holandeses (e de outros similares), no inÍCio do século XVII - isto é, a descoberta de que eles podiam "utilmente" "pôr para trabalhar", juntamente com os seus capitais, os pobres, os mendigos, os vagabundos, os Iadrõezinhos, os rebeldes que o processo de racionalização da agricultura estava expulsando dos campos -continuasse a se reproduzir junto com a "colonização" capitalista de "novos territórios", territórios que podiam estar dentro de uma jurisdição política e soeml específica. Um exemplo dessa situação é o deslocamento dos negros americanos do sul para o norte dos Estados Unidos entre o primeiro pós­guerra e os anos 1950, ou a entrada em massa no mercado de trabalho das mulheres, especialmente as de cor, dos anos 1970 em diante. Vale notar que as taxas de encarceramento feminino nos Estados Unidos, embora ainda bastante baixa em termos absolutos, aumentaram de modo sensivelmente maior do que para os homens.

Há também as situações externas, como é o caso da imigração africana, asiática, latino-americana e do Leste europeu para a América do Norte e a União Européia. É como se, nas "margens" do desenvolvimento, o processo de "acumulação primitiva" continuasse incessantemente no seu percurso de "colonização" de "mundos" "outros"31. Se considerarmos, por exemplo, no nosso pequeno mundo "italiano", o modo pelo qual o fenômeno da imigração fez reviver, em certo sentido, a instituição carcerária - que no Centro-Norte e com respeito a "usuários" específicos, como os menores de idade, está literalmente se "especializando" na direção dos estrangeiros -, compreende­se então como "a crise do cárcere" dos anos 1960 e 1970, as suas aparente­mente manifestas obsolescência e antiguidade estão ligadas a um "público" particular que vinha sendo concebido como "além" do cárcere. A situação mudou de forma dramática a partir dos primeiros anos da década de 1990, quando teve início um processo de imigração de alguma relevância (também

.. 31 J. Habermas, Teoria dei agire comunicativo, vaI. 2. Bolonha, II Mulino, 1986 (ed. orig. 1981), pp. 951-1088 [N. do T.: edição brasileira Agir comunicativo e razão destrancendentalizada. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002, tradução de Lúcia Aragão].

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por causa naturalmente de mecanismos jurídicos particulares como os da permissão de estadia, mas é dos efeitos sociais que aqui nos ocupamos e não da sua legitimação jurídica).

Parece-me difícil, em suma, ignorar o caráter "cíclico" que tão bem des­creve, embora não explique, esses fenômenos, também no que diz a uma "filosofia da história" diversa, organizada em torno de uma sucessão de transformações "tópicas". Em certos níveis de "poder", adquiridos pela for­ça de trabalho - poder que ao mesmo tempo é de tipo político-tecnológico­sindical no interior da esfera mais diretamente produtiva e de tipo político­político, no seu exterior -, o trabalho se torna um limite ao desenvolvimento capitalista, determinando portanto uma "crise" dentro da qual ocorre tanto uma "reorientação" produtiva, em direção a um modo de produção que se livre da hipoteca do poder do trabalho, quanto um notável redimensionamento também do poder político da classe operária. Ao mesmo tempo instrumento e sinal de tais processos de reestruturação, emerge uma nova classe ria, ou novos setores da classe operária, exatamente como se dizia no bojo da do desenvolvimento quer esse desenvolvimento se dirija para o mercado de trabalho "interno" Uovens, mulheres, ex-trabalhadores agrícolas, ex-pequenos proprietários e empresá­rios), quer para o "externo" (países há pouco, e de vários modos, incorpora­dos por um deseiwolvímento capitalista mais direto e dinâmico).

Esses novos segmentos sociais vão constituir uma "classe operária em formação"32, e em formação pelo menos em dois sentidos: porque se está inserindo no interior de processos de trabalho correspondentes a projetas empresariais novos ou renovados (macdonaldização, transformações indus­triais, "novo mercado"); e porque não tem nenhum sentido de si enquanto tal (os clássicos teriam dito que lhes "falta consciência de classe"). É destino comum desses setores da "classe operária em formação" serem normalmen­te descritos - pelo ressentimento das "velhas" categorias operárias, ajudadas nisso por vários tipos de agitadores e por comentaristas "autorizados", que se encarregam de racionalizar este ponto de vista - como "excremento", "classe perigosa", subproletariado, underclass, para usar um termo norte­americano recente.

32 Sobre o caso italiano atual, ver a minha "Introdução", em Dario Melossi (org.), Multicllltllralismo e sicurezza in Emilia-Romagna: Seconda parte. Quaderno n. 21-ab dei "Progetto Città Sicure". Bolonha, Regione Emilia-Romagna, 2001 (cittasí[email protected]).

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Essas descrições se baseiam, naturalmente, também em "fatos reais" visto que o processo de desenvolvimento capitalista ocorre geralmente ck modo um tanto anárquico e irracional, e o deslocamento dos futuros operá­rios do campo para as cidades não é nem automático nem indolor, provocan­do fenômenos de inserção de alguns dos novos que chegam no interior dos mercados do chamado "ilícito" (que, por outro lado, faz parte daquele mer-cado "efetuaJ", no interior do qual também se necessita de mão-de-obra, como ocorre hoje na Itália com a droga e a prostituição), e igualmente de rejeição e de hostilidade da parte dos estratos sociais, também operários, precedentes. Por conseguinte, o excremento, a classe perigosa, a 11l1derclass será encerrada (e "cultivada") no interior de um sistema carcerário que, reencontrando seus próprios hóspedes preferidos de sempre - ex-campone­ses que se dirigem à cidade, mesmo que a sua cor, a sua língua ou a sua religião sejam agora diferentes -, se sentirá renascer, reconhecendo nos no­vos recém-chegados os próprios "eternos hóspedes", por assim dizer a linfa vital da qual o sistema se nutre (não obstante a ingenuidade ocasional de um ou outro que, tomando ao ela letra a forma do tentou

são, llesse meio tempo, hóspedes por assim dizer "inespera­dos", mas isso acabou não dando certo!). Porém, como já acontecera no passado com aqueles velhos operários (e os seus pais e os seus avós), que agora maldizem a "incivilidade" dos recém-chegados, assim também estes ~Itimos crescerão juntamente com o tipo de desenvolvimento em que foram Imersos e encontrarão, de acordo com formas solidárias e organizativas, o modo de considerar a si mesmos, e a outros como eles, não mais como excremento mas como seres humanos, e daí a pouco também como seres humanos dotados de um celta poder.

Como dizia uma palavra de ordem que circulava entre(;s trabalhadores da província de Reggio Emilia, há cerca de um século atrás, "unidos somos tudo/divididos somos canalha"33. Para que tal modo de pensar se torne um modo de pensar largamente compartilhado, isso depende não somente do esforço infatigável de organizadores e ativistas, mas também, e naturalmen­te, dos acontecimentos registrados no desenvolvimento das forças produti­vas (muito embora as duas coisas não possam ser separadas uma da outra). O fato é que, quando isso acontecer, e la canaille não for mais a canalha, este será também o momento em que novamente o cárcere será visto como

33 Material recolhido por ocasião da celebração do centenário da Câmara do Trabalho de Reggio Emilia (2001).

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um resíduo arcaico do passado e serão previstas novas "alternativas" puniti­vas, "correcionais" e "reeducativas"; ao mesmo tempo, em algum canto do mundo, as primeiras patrulhas em busca de Uma nova "canalha" estarão começando a apressar-se, num incansável movimento, em direção aos con­fins do contrato social/império.

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Introdução

Paris, 1676.

Não obstante numerosas providências, todo o restante dos mendigos continuou a viver em plena liberdade em toda Paris e nos subúrbios; eles chegavam ali provenientes de todas as províncias do reino e de todos os países da Europa. O seu número crescia dia após dia, até sc constituírem como um povo independente, que não conhecia nem lei, nem religião, nem autoridade, nem polícia; a crueldade, a baixeza, a libertinagem era tudo que i-einava entre,eles. No dia 13, uma missa solene ao Espírito Santo foi cantada na igreja da Pitié e no dia 14 a reclusão dos Pobres foi levada a bom termo sem nenhuma perturbação.

Naquele dia toda Paris mudou ele aspecto, tendo a maior parte dos mendigos se retirado para as províncias, e os mais espertos pensando em encontrar sustento com as suas próprias forças. Houve, indubitavelmente, um ato da proteção divina sobre esta grande iniciativa, porque não se poderia jamais acreditar que se chegaria a um resultado tão feliz com tão pouco esforço I .

Nova Iorque, 1997.

Grafites e outros sinais da desordem estavam por toda parte. Durante os anos 1970 e boa parte dos anos 1980, não havia um único vagão do metrô da cidade que não estivesse completamente coberto daquilo que alguns, Í,mpropriamente, definiam como uma forma de arte urbana, os grafites. As ~stações do metrô transformavam-se em bidonvilles para os llOmeless, e a esmola alTogante crescia, exacerbando um clima de medo. Assim, mal você colocava os pés em Manhattan, dava de cara com o estandarte não oficial da cidade de Nova Iorque: a epidemia dos lavadores de carros. Bem-vindo a Nova Iorque. Estes tipos tinham sempre nas mãos um trapo sujo, e empor-

Ic.L'Hôpital Général, opúsculo anônimo de 1676, citado por Michel Foucault in Storia dellafoWa nell'età classica, trad. it. Milão, Rizzoli, 1998, pp. 459-460. (N. "dq .T.: edição brasileira História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 1989, tradução de José Teixeira Coelho Netto].

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calhariam o vidro do teu carro com algum líquido imundo, para depois pedir dinheiro. Quem andasse pela Quinta Avenida, pela área dos negócios da alta moda e dos edifícios chiques, esbarrava por toda parte com ambulantes não autorizados e mendigos. Se voltasse ao metrô, deparava com artistas equilibristas que se comportavam como vândalos, exigindo que os passageiros lhes dessem dinheiro. Mendigos em todos os Nos trilhos, cidades de papelão serviam de moradia aos homeless. Dominava a sensação de uma cidade permissiva, de uma sociedade que autorizava coisas que não teriam sido permitidas anos antes2

A primeira impressão que se pode ter ao se ler os textos reproduzidos acima é que pouca coisa mudou nos três séculos que separam a Paris do Hôpital Gélléral da Nova Iorque da Zero Tolerance. O autor anônimo do opúsculo do século XVII e o ex-chefe de polícia de Nova Iorque, que foi o principal artífice das estratégias da Zero Tolerance, parecem se inspirar na mesma filosofia: idêntico é o desprezo pór aquela pobreza extrema que, de modo desabusado, ousa mostrar-se, contaminando o ambiente metropolitano; idêntico o entrelaçamento entre motivos morais e alusões idêntica a hostilidade contra tudo aquilo que perturba o quieto e ordenado fluir da vida produtiva citadina, defendendo-a da infecção do não-trabalho, do parasitismo econômico, do nomadismo urbano; idêntica, sobretudo, a implícita equação entre marginalidade social e criminalidade, entre classes pobres e classes perigosas. Todavia, a uma observação mais atenta, esta impressão se revela completamente inexata.

O opúsculo anônimo se coloca historicamente no limiar da transição de um regime de poder, que Michel FoucauJt define como "soberano", para um modelo de controle de tipo "disciplinar". Diante do espetáculo da mendicância, ta pobreza e da dissolução moral oferecido pelos pobres na Europa entre os séculos XVII e XVIII, as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa, de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva, de recuperação, disciplinamento e normalização dos diferentes. É aqui que se inicia a era do "grande internamento". Pobres, vagabundos, prostitutas, alcoólatras e criminosos de toda espécie não são mais dilacerados, colocados na roda, aniquilados simbolicamente através da destruição teatral dos seus corpos.

2 W. J. Bratton. "Crime is Down in NJ3w York City: Blame the Police", in N. Dennis (cd.), Zero Tolerance. Policing a Free Society. Londres, Institute of Economic Affairs, 1997, pp. 33-34.

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De forma muito mais discreta, silenciosa e eficaz, eles são encerrados. ;Eles cOl1~eç.am a ser internados porque se compreende que eles são passíveis de ~onstrtUlr uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem f01Ja1', plasmar, transformar em sujeitos úteis, isto é, emforça de trabalho. Do "direito de morte" ao "poder sobre a vida", da neutralização violénta de indivíduos "infames" à regulaçüo produtiva das populações que habitam o ;~erritório urbano, é isso que, com vigor religioso, o autor anônimo do opúsculo m:voca, ao mesmo tempo que anuncia precisamente o <n;~,jÍ!l:J'l1C16fKt{~",la lTiupr:Ji'irit?tf[3.

~cuJa.!1c.lo-~~_ el~t~é?<!~ci pIína do~()rpo e_ regll1ação dosgcupos humanos,

Qa~iOPOlí~ica organiz~ um poder-efica~ sob:e a. vi.drt,- ~gn.lpa um c~~~Tu~to--de tecnologIaS de govell10 que contrapoem a dlsslpaçao e ao esbanjamento (dos corpos, das energias, dos recursos, mas também do poder) uma gestão racional das forças produtivas:

a adequaçuo da acumulação dos homens à do capital, a articulação do elos grupos humanos com a das produtivas e a repartição diferencial do lucro se tornaram possíveis em parte devido ao exercício do biopoder, em suas formas e com os proeedimentos os mais variados. O investimento do corpo vivo, a sua valorização e a gestão distributiva das suas forças foram, naquele momento, indispensáveis 4.

:InIllig!JJ-ª.:!i~, assim, modelo de controle social disciplinar que carac­tenzará toda a fase de expansão da sociedade industrial, até o seu apogeu, du.ran~e o período do capitalismo fordistgSerá, de fato, no decorrer da pnmeIra metade do século XX que o projeto de uma perfeita articulação e.nt~e disciplina dos corpos e governo das populações se completará, mate­nahzando-se no regime econômico da fábrica, no modelo social do Welfare -State e no paradigma penal do cárcere "correcional".

Zero Tolerance e as práticas de discurso que a acompanham já se situam num contexto radicalmente mudado, marcado pela crise e pelo progressivo

3"Poder-se-ia dizer que o velho direito de fazer morrer ou deixar viver foi substituído porum poder de fazer viver ou de rejeitar a mortc"(Michel Foucault, La volOl/là di 'dapere, tr~d. it. Milão, Feltrinelli, 1997, p. 122) [N. do T.: edição brasileira História

a sexualzdade 1: vontade de saber. São Paulo, Graal, 1977, tradução de.María Thereza da Costa Albuquerque e 1. A. Guilhon Albuquerque]. 4 Idem, p. 125.

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abandono do grande projeto disciplinar da modernidade capitalista. Aqui, as tecnologias do disciplinamento não são mais um instrumento eficaz de controle e governo da dissipação e do desperdício da força de trabalho (talvez porque dissipação e desperdício não existam mais)~ Pobres, desempregados, mendi­gos, nômades e migrantes representam certamente as novas classes perigosas, "os condenados da metrópole", contra quem se mobilizam os dispositivos de controleS, mas agora são_empregada'Lestmtégij!)tçliferenteS nesse confrontÕd Trata-se, antes de tudo, de i.nc!~!ShlflJL~ª-:-lg~?~.~C:12ªDi:los..das~~çlª~.se~)ªQQ[im'jlL Esta taF~[a é, de fato, bastante simRI-º3i numa metrópole produtiva, na qual a contínua precarização do trabalho, o emprego - que se toma cada vez mais flexível, Íncel10 e transitório -, e a constante Supe11JOsição entre econornia "legal" e economias submersas, informais e também ilegais, determinam uma progressi va solda entre trabalho e não-trabalho e entre classes laboriosas e classes perigosas, a ponto de tomar qualquer distinção praticamente impossível. Trata­Sj;;,~12ºj~.,_de.rneutralizar a "periculosidade" das classes perigosas através de técnicas de ]'irevenção do risco, que se articulam principalmente sob as formas de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária]

Se voltarmos o olhar às tecnologias de controle que emergem no ocaso do século XX e anunciam a aurora do século XXI, podemos certamente falar de um segund.º_grªndgjJ!t~l~lgm~nJP.De um internamento urbano, que tem a forma do gueto, de um internamento penal, que tem a forma do cárcere, e de um internamento global, que assume a forma das inumeráveis "zonas de espera", disseminadas pelos confins internos do Impéri06

• Porém, diferen­temente do internamento do qual nos fala Foucault, a sua reedição atuaI não parece cultivar nenhuma utopia de tipo disciplinar. O novo int~J:llamento se configura mais do que qualquer outra coisa comofl!!na tentativa d~dcl'mir

lum espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou imaterial em ! torno das populações que são "excedentes;";') seja a nível global, seja a nível metropolitano, em relação ao sistema de Produção vigente.

5 S. Palidda, Polizia pos/moderna. Etnografia dei IlUOVO controlto sociale. Milão, Feltrínellí,2000. 6 M. Hardt e A. Negri, Impero. 1l I1UOVO ordine della globalizzione, trad. iL Milão, Rizzoli, 2002 [N. do T.: edição brasileira Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, tradução de Berilo Vargas]. Pensamos aqui, obviamente, nos processos de controle implementados em relação aos migrantes. Sobre esse tema, ver particularmente S. Mezzadra e A. Petrillo (org.), ] confilli delta Lavoro, cittadinanw. Roma, Manifestolibri, 2000.

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Aqui se detennina, por conseguinte, uma nítida separação entre biopolítica disciplinaridade, na qual a primeira se expressa, paradoxalmente, através negação da segunda. Resta a instalação biopolítica de um poder entendido

'mais como regulação de populações produtivas, como controle dos fluxos da força de trabalho global num espaço tornado imperial, e menos como aquela "anatomo-política do corpo" da qual nos fala Foucault, aquele "fazer yiver" produtivo que integra, ao nível dos indivíduos singulares, a regulação das populações no seu conjunto.

Também têrn menos espaço aquelas tecnologias de :·;ujeit(ficação que perseguiam o objetivo de transformar os indivíduos por meio de um controle 'individualizado. Em outras palavras, filão se trata mais de "fazer viver ou repelir a morte", mas talvez de "fazer ~ver através do repelir a morte~Este "n:~p~lir a morte", imposto a uma parte da força de trabalho global, parece constituir-se hoje no pressuposto para "fazer viver" a produtividade social conjunta do capitalismo pós-fordista. Falamos aqui de uma morte que se concretiza na violência institucional dos dispositivos de controle que sustentar11 o domínio capitalista, de uma morte que incide sobre a existência afetiva, social e econômíca dos indivíduos e que se apresenta como limitação das exp~ct~tivas s.ubjetiv~ls, como e~ropriação de p~ssibilidades, como negação do dll'elto de CIrcular hvremente.,Antes e ainda 111aIS do que da morte biológica, falamos da morte como experiencia biográfica da força de trabalho con- \ temporânea, que se materializa na biografia dos migrantes que morrem nos I confins da fortaleza européia, na tentativa de exercitar um "direito de fuga" ( nega~o7, nas biografias dos dois milhões de prisioneiros encerrados no gulag .amencano ou nas daqueles para quem ohorizonte de vida tende a coincidiri Gom a fronteira de um gueto.

. Michel Foucault reconstruiu a genealo..gia de um poder disciplinar que se inscreve na formação do modo de produção capitalista e que se estende até à época da sociedade industrial fordista. A disci plinaridade pode ser compreendida ,ap~nas a partir da constituição da produção industrial, do seu nascimento ao seu ~~,S1ínio. Por sua vez, o desenvolvimento do capitalismo industrial não pode ser s~ncebido se prescindim10s das estratégias de produção de subjetividade e de .força de trabalho que se concretizam nas técnicas disciplinares. Mas aquilo que

-~--------------------------------------------·'7 Sobre "direito de fuga" (entendido, também, significativamente, como exercício de uma "crítica prática" da divisão internacional do trabalho), ver S. Mezzadra, "Migrazioni", in A. Zanini e U, Fadini Corg.), Lessico postfordista. Dizionario di idee della fIlutazionc. Mijão, Feltrinelli, 2001, pp. 206-211; e S. Mezzadra, Diritto di fuga. ciUadinallza. Verona, Ombreeorte, 2001.

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temos hoje diante de nós é precisamente a superação do modelo capitalista fordista para o qual aquelas tecnologias foram por tanto tempo destinadas8•

~ercebemos sinais inequívocos desta superação. Dispomos de descrições, análises e definições que, sobretudo nos últimos dez anos, foram condensadas numa já extensa literatura9

• O termo "pós-fordismo" - em uso tanto na lin­guagem sociológica, política e econômica, quanto no léxico comum - indica­nos saltos de paradigma e transições radicais, que reescrevem a fundo a nossa experiência da contemporaneidade. Ao mesmo tempo, emergem ten­tativas de reconstrução das mutações que investem a geografia do controle social. Termos como "sociedade de controle" e "sociedade da vigilância" parecem indicar o epílogo e a superação do regime disciplinar, uma transição que se consumiria a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista.

Todavia, enquanto o trabalho de Michel Foucault inscrevia a análise do "controle disciplinar" diretamente na materialidade das relações de produção capitalistas, nos processos de constituição do proletariado e nas formas de produção de da força de trabalho industrial, as análises das

do "controle social" custam a assumir uma metodo-análoga, limitando-se essencialmente a uma fenomenologia ele

Em outros termos, podemos afirmar que ã discÍ plinaridade se revela cada vez mais inadequada com }elação às novas fõrmas de produção e impotente para exercitar práticas de controle eficazes no confronto com as novas subjetividades do trabal~jporém, não estamos em condições de reconduzir essa inadequação e essa impotência aos processos de transformação em curso na produção.

Chegamos assim ao 9bjeto des~~ livro., que consiste na individualização de algumas hipóteses para preencher este aparente vazio. O ~P, um tanto ambicioso, consiste em iêíescrever algumas mutações OCOl:rldaS nas formas do controle a partir da enrergência de un1:Í nova articulação das relações de produção, perguntando-se de que modo as estratégias atuais de controle se inscrevem no contexto produtivo pós-fordist~No entanto, fazer essa

8 "A abordagem foucaultiana permite ler o desenvolvimento da sociedade modema e a relação nela existente entre Estado e sociedade até o momento histórico do fordismo ( ... ) Mas é este, exatamcnte, o ponto crucial. Esta configuração é arrastada, faz tempo, numa crise aparentemente sem saída, pelo desmoronamento do seu eixo central, vale dizer, do valor social paradigmático da disciplina de fábrica de tipo fordista" (L. Ferrari Bravo, "Sovranità", in Zanini e Fadini (org.), LessÍco postfordista, cit., p.280).

9 .-: transição do fordismo ao pós-fordismo Ce as descrições desta transição) será obJeto de uma seção posterior desta obra.

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pergunta significa, necessariamente, fazer convergir a análise do controle com aquela, complementar, da força de trabalho contemporânea, até o ponto de fundir as duas.

Entra aqui em o conceíl21J~lI)damentaI,de "multidão", com o qual se pretende exprimir o compósito, enraizado e múltiplo da força de trabalho pós-fordista, em ~l qual um conjunto de e séparações, referenciáveis à classe operária, parece perder progressivamente consistência. Vale dizer porém que o conceito de multidão não pretende aludir a uma subjetividade auto-consciente, à emergência de um novo sujeito revolu­cionário, ou à formação de uma identidade paradigmática da força de trabalho contemporânea. Ao contrário, o termo multidão define um processo ele subjetivação em andamento, um "tornar-se múltiplo" das novas formas de trabalho sobre as quais convergem as tecnologias do controle pós-disciplinar. Multidão indica, sobretudo, a impossibilidade de uma reductio ad IlllWrtOaS

diversas subjetividades produtivas comparáveis àquela que permitia individua-lizar, na classe a forma de subjetividade hegcmônica durante a cio capitalismo fonEsta.

A partir do conceito de multidUo veremos então que aquela que, à primeira vista, se revela como inadequação das tecnologias disciplinares em relação ao novo horizonte produtivo, configura-se, na realidade, como um excesso daquilo que deve ser controlado (a nova força de trabalho social) no que concerne aos dispositivos de controle, uma nova constituição do trabalho que transgride continuamente as determinações e as formas de subjetivação impostas pelo domínio. Será então possível afinnªL~}ã construção de um modelo de governo do excesso expressa pela multidão prõdlltiva pós-fordista torna-se uma prioridade das atuais estratégias de control~Será preciso, porém, articular estas transições seguindo uma certa ordem e situá-las num contexto histórico mais geral.

A economia política da penalidade parece poder-nos oferecer esta possi­bilidade. Trata-se de uma orientação da criminologia cl-ítica, de derivação princi­palmente marxista e foucaultiana, que investigou, sobretudo a partir dos anos 1970, a relação entre economia e controle social, reconstruindo as coordenadas da relação que parece manter juntas determinadas formas de produzir e determinadas modalidades de punirlo. Como veremos, ela concentrou suas

10 O texto fundamental, do qual depois foram derivadas mais ou menos diretamente todas as análises posteriores, é G. Rusche e O. Kirchheimer, Pena e struttura sociale, trad. il. Bolonha, II Mulino, 1978 LN. cio T.: edição brasileira: Punição e estrutura social, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2' cd., 2004, tradução e apresentação de Gízlene Neder).

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próprias análises particularmente nos nexos entre "cárcere e fábrica", entre "encarceramento e desemprego", questionando a relação entre dinâmicas do mercado de trabalho e estratégias repressivas no interior de um cenário fordista. Mas os instrumentos críticos produzidos pela economia política da penalidade - tanto por meio da reconstrução histórica do nascimento da penitenciária e da reclusão quanto através da análise da relação atuaI entre economia e pena - constituem uma herança significativa, que deve ser recolhida e levada em conta para se empreender uma crítica do controle social pós-fordista.

Por conseguinte, gostaria de ter como ponto de partida a economia política da penalidade para nela individualizar as diretrizes teóricas fundamentais e investigar sua dupla dimensão histórica e contemporânea. Emergirão, assim, alguns limites deste paradigma de análise, ligados em particular às transformações que, nestes anos, afotaram a produção social. Será, pois, necessário voltar nossas atenções para estas transformações, para nelas colhermos as tendências e os efeitos no plano da subjetividade produtiva. Apenas neste momento serão pesquisadas as formas de controle da multidão através das quais um regime de governo do excesso começa a se revelar.

* Parte deste trabalho constitui uma reelaboração de dois artigos: "OItre

I' economia politica deli a penalità: posfordisl11o e controIlo dellá moltitudine" ["Além da economia política da penalidade: pós-fordismo e controle da mul­tidão"], in Dei de/itti e delle pene, 1-2,2000, e "Società di controIlo: lavori in corso" ["Sociedade de controle: trabalhos em curso"], in DeriveAprodi, 20, 2001.

Desejo agradecer a Venere Bugliari, Richard Sparks, Stefania De Petris, Thea Rinde, Dario Melossi e Sandro Mezzadra pelos seus preciosos co­mentários.

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Capítulo 1

Regime disciplinar e proletariado fordista

A primeirafill1çào era subtrair o tempo, fazendo com que o tempo dos homens,

o tempo das suas vidas, se transformasse em tempo de trabalho. A seglll1dafimçlio

consistia emfazer com o que o corpo dos homens se tornasse força de trabalho.

Afilllçào de transformaçào do corpo emforça de trabalho corresponde àfi<nçlio

de transformaçc7o do tempo em tempo de trabalho. M. Foucault,

A verdade e as fo rlll as jurídicas

Economia política do controle social

A criminologia nasce como um saber inseparável das tecnologias de po­der que remetem ao universo criminal. Ela é produto daquilo que Foucault define como "civilização inquisitória". A sua genealogia faz parte do proces­so histórico de transformação no sentido "governamental" da razão de Esta­do que tomou forma entre os séculos XVIII e XIX. Neste período, a ciência de governo se especializa e se diferencia em seu próprio interior, dando vida a saberes sobre a população, tais como a estatística, a urbanística, a higiene, a psiquiatria, a medicina social e a criminologia I J. O potencial "inquisitorial" - que a criminologia acumula e, ao mesmo tempo, libera em relação ao des­vio - produz, por conseguinte, uma ordem peculiar do discurso e um con­junto de verdades que se concretizam historicamente nas figuras do homo criminalis, do reincidente, do ambiente criminógeno e da classe perigosa12

11 M. Foucault, "La governamentalità", trad. it . .in M. Foucault, Poteri e strategie. Í:assaggetamenta dei carpi e ['elemento sfuggente CP. Della Vigna, org.). Milão,

.. Mimesis, 1994, pp. 43-67. 12 "A inquisição: fonua de poder-saber essencial à nossa sociedade. A verdade da experiência é filha da inquisição do poder político, administrativo, judiciário de to locar perguntas, de extorquir respostas, de recolher testemunhos, de contróI!'lr afirmações, de estabelecer fatos - como a verdade das medidas e das proporções era

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Ao longo de toda a primeira metade do século XX, a investigação crimi­nológica permanece fortemente caracterizada por um saber a serviço do "príncipe", incapaz de superar o estatuto epistemológico consolidado na fase inicial da sua história. Esta marca fundamentalmente "tecnocrática", que toma a criminologia uma verdadeira "ciência de polícia" (Polizeiwissensclwft), dificulta por muito tempo a elaboração de teorias do controle social, ou a de paradigmas de análises capazes de interrogar criticamente as dinâmicas de reação social e institucional em relação ao desvio.

Apenas com o desenvolvimento das teorias do "etiquetamento" nos anos 1960 é que o poder punitivo faz o seu ingresso cfetivo no horizonte crimi­nológico como universo de investigação parcialmente independente da cri­minalidade". Os teóricos do "eticjuetamento" foram os primeiros a promo­ver um processo de renovação crítica do saber criminológico, propondo uma valorização do desvio enquanto diversidade estigmatizada pelos meCa­nismos de poder. Porém, ao fazerem eles continuaram confinados aos limites de uma perspectiva micro-sociológica.

"Revolucionário" sob certos () interacionísta - voltado para uma da identidade desviante diante dos rituais de e degradação social dos quais é objeto - não se fundamentava, porém, em hipóteses abrangentes, relativas ao fundamento material do poder de "eti­quetar" e reprimir. De um lado, o universo desviante descrito pelos labelling theorists parece incapaz de produzir resistências ao poder que não sejam totalmente individuais e quase sempre oportunistas. Por outro lado, o poder de definição do desvio só encontra algum fundamento nos processos de interação simbólica que têm lugar no microcosmo das instituições totais l4 .

Esses aspectos tendem a prejudicar o potencial crítico da análise "interacionista" em relação às estratégias punitivas, visto que restituem uma

filha de dike" (M. Foucault, I corsi ai College de France. I Resumées, trad. it. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 22) [N. do T.: edição brasileira Resumo dos cllrsos do College de France: 197011982. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, tradução de Andréa Dahcr, consultoria de Roberto Machado]. Sobre o nascimento da criminologia e sobre a sua relação com a "governamentalidade" e a disciplina, ver P. Pasquino, "Criminology: the Birth of a Special Saviour", in ldeology and COI1SciOUSlless, 7, 1980, pp. 17-33. 13 Sobre as teorias de etiquetamento, ver a coletânea de escritos publicados em E. Rubington & M. \Veinberg (eds.) Deviance. The InteractionÍst Perspective. Nova Iorque, MacMIIIan, 1973. 14 E. Goffrnan, Asylums, trad. it. Turim, Einaudi, 1968.

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em do poder punitivo fundamentalmente des-historicizada e ~ror11?lovtll'7Iizada. A criminologia crítica começa, portanto, a denunciar a

de uma fundação materialista da análise dos processos institucionais controle do desvio, isto é, de uma análise capaz de examinar criticamente labellers (as instituições e as estratégias do poder punitivo) e também os

label/ed (aqueles que são os destinatários imediatos dos labellers). Esse es­lúpulo político-intelectual determina, ou pelo menos agiliza, de modo signifi­~êativo, a entrada do marxismo na sociologia criminal, ocorrida entre o final ela década de 1960 e o início dos anos 197015

São duas as principais direções de investigação que se delineiam neste periodo. A primeira é constituída por um conjunto de estudos históricos que descrevem o papel exercido pelos sistemas produtivos na afirmação históri­c.adas relações de produção capitalistas l6

• Uma história da pena, que até aquele momento era representada como um progresso contínuo da civiliza­ção jurídica em dircção à racionalidade e à humanização da punição, agora é descrita como uma de com as quais a ordem talísta i no suas formas de c de classe. Já a di ele se orienta para as práticas contemporâneas dos sistemas de controle c, sobretudo, do dispositivo carce-

,-::; "< I: Ver sobretudo a crítica na perspectiva marxista feita por Alvin Gouldner aos Zabelling theorists no seu Per la sociologia. Rinnol'o e critica della sociologia dei /1ostri tempi, trad. it. Nápoles, Liguori, 1977. Seria simplista remeter as diver­Sas orientações que se desenvolveram neste período no âmbito da criminologia erítica apenas à influência teórica do marxismo. Surgem, por exemplo, correntes ~narquistas, que se consolidarão posteriormente no movimento abolicionista, e, sobretudo, silo lançadas as bases para o nascimento das diversas criminologias feministas. Para uma reconstrução da história da criminologia crítica em todas as suas correntes (embora limitada ao contexto europeu), das suas origens até a metade dos anos 1990, ver R. Van Swaningen, CriticaI Criminoiogy. Visiol1s fram Europe. Londres, Sage, 1997. ... M. Foucault, Sorvegliare e punire, trad. it. Turim, Einaudi, 1976 [N. do T.: edição brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisc7o. Petrópolis, Vozes, 2002, 26" ed.; tradução de Raquel Ramalhete]; M. Ignatieff, Le origini del peninteziario.

··Sistema carcerario e rivoluzione industriaie inglese 1750-1850, trad. it. Milão, • Mondadori, 1982; Rusche e Kirchheimer, Pena e struttura socia/e, cit.; D. Rothman, The Discovery of the Asylum. Social Grder and Disorder ln the New Republic. Boston, Little Brown, 1971; D. Melossi eM. Pavarini, Carcere e fabbrica. B~lo­)'lha, II Mulino, 1977 [N. do T.: edição brasileira Cárcere e fábrica. Rio de JaneltO, Revan/ICC, 2006, tradução de Sérgio Lamarão].

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rário. A análise se concentra, aqui, no papel desempenhado pelos aparelhos repressivos em relação às dinâmicas económicas atuais e, em particular, em relação ao funcionamento do mercado de trabalho nas sociedades industria­lizadas.

A convergência dessas duas direções de investigação dá forma, final­mente, a uma crítica materialista da penalidade. O fio condutor da economia política da pcna é construído pela hipótese geral segundo a qual a evolução das formas de repressão só pode ser entendida se as legitimações ideológi­cas historicamente atribuídas à pena forem deixadas de lado. A penalidade absorve uma função diversa e posterior em relação à função manifesta de controle dos desvios e defesa social da criminalidade. Esta função "latente" pode ser descrita situando-se os dispositivos de controle social no context<: das transformações económicas que perpassam a sociedade capitalista e as contradições que delas derivam. Tanto a afirmação histórica de determina­das práticas punitivas quanto a permanência dessas práticas na sociedade contemporânea devem ser reportadas às relações de produção dominantes, às relações econômicas entre os sujeitos e às formas hegemónicas de orga­nização do trabalho.

A penalidade se inscreve num conjunto de instituições jurídicas, políticas e sociais (o direito, o Estado, a família), que se consolidam historicamente em função da manutenção das relações de classe dominantes. Não é possível descrever os processos de transformação que interessam a essas institui­ções se não se levar em conta os nexos que ligam determinadas expressões da dominação ideológica de classe no interior da sociedade às formas de dominação material que se manifestam no âmbito da produção.

O controle do desvio enquanto legitimação aparente das instituições pe­nais constitui, pois, uma construção socj91 por meio da qual as classes domi­nantes preservam as bases materiais da sua própria dominação. As institui­ções de controle não tratam a criminalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em seu conjunto; ao contrário, por meio da reprodu­ção de um imaginário social que legitima a ordem existente, elas contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de produção capitalista. Em outras palavras, numa sociedade capitalista o direito penal não pode ser co­locado a serviço de um "interesse geral" inexistente: ele se torna, necessari­amente, a expressão de um poder de classe.

Por outro lado, porém, o caráter complexo das relações entre estrutura económica material e instituições punitivas não pode ser subestimado caso se queira evitar a recolocação de um paradigma teórico abalado pelo

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e pelo economicismo. Esse problema já era eficazmente ilus­~'~.,H"<U"'ln por Georg Rusche em seu já célebre artigo de 1933, no qual definia as

~ .• H.111U'<" teóricas da economia política da pena:

É necessário que não se confunda a independência teórica do fenó­meno criminal e da luta conduzida contra ele, empreendida por meio da argumentação histórica e econômica, com a completa clarifica­ção do problema. As forças às quais se reconhece eficácia através de uma análise deste tipo não são as únicas que contribuem para determinar o objeto da nossa pesquisa, que, por conseguinte, é im-

17 perfeita e limitada em muitos aspectos .

A ligação entre economia e penalidade não deve ser, pois, considerada corno resultado de um automatismo, como uma relação mecânica mediante a qual a superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida, de modo linear, da estrutura material das relações de produção. Ainda que ocupe uma posição de proeminência em relação a outros fatores sociais, o universo da economia simplesmente contribui para definir a fisionomia histórica dos diversos sistemas punitivos. Porém, de acordo com Rusche, esta perspec­tiva materialista de análise da penalidade estava ausente de todas as corren­tes criminológicas, de derivação sobretudo positivista, que lhe eram contem­porâneas:

Elas não mantêm nenhuma ligação com a teoria económica, e por-. tanto não se reportam à base material da sociedade, e nem sequer são historicamente orientadas. Isso significa que elas pressupõem uma constância na estrutura social que na realidade não existe e que absolutizam de modo inconsciente, as condições sociais reais do

18 observador .

Trata-se, portanto, de superar uma dimensão teórica da criminologia enquanto ciência da criminalidade, como saber-poder sobre as causas indi­viduais e sociais do desvio, e de construir uma crítica histórico-económica da formação dos sistemas repressivos. A emergência de formas d~termi~~­dás da penalidade é o resultado da convergência de forças culturms, polttt-ê::is e sociais, que embora não sendo o reflexo necessário de determinadas articulações das relações de produção, estão intimamente conectadas a es-

17 G. Rusche, "II mercato di lavam e l'esecuzione della pena. Riflessioni per una sociologia deli a penale", trad. it. in La Questione crininale, 2, 1976, p. 522.

18 Idem, pp. 521-522.

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sas últimas. A estrutura material da sociedade informa a geografia das rela-de domínio e subordinação que aí prevalecem e, .ao mesmo tempo,

acelera o processo de consolidação das instituições sociais que reúnem con­dições de favorecer a sua reprodução. A história da pena deverá, por conse­guinte, tornar-se uma história econômica e social dos aparelhos que se constituem como dispositivos das de classe. Ela é "algo mais do que uma história do suposto desenvolvimento particular de uma 'instituição' legal qualquer. Ela é a história das entre as 'duas nações' [ ... ] que compõem a população, os ricos e os

Ocorre aqui, evidentemente, uma profunda ruptura com relação à historiografia jurídico-penal tradicional. As transformações históricas da pena representam não o resultado do progresso da sociedade, mas, pelo contrá­rio, a evolução das estratégias com as quais a primeira das "duas nações" sempre impôs sua própria ordem social à segunda. Contando com a contri-buição de OUo Kirchheimer, Rusche escreverá a hist6ria destas duas

num livro de título PlIlliç{fo e estrutllra social. Publicada essa obra por muito A economia

política da penalidade por aproximadamente 30 anos do hori-zonte criminológico e sóciorógico. Apenas em 1969, com a reedição desse livro, o programa te6rico de Rusche será finalmente retomado pela nascente criminologia crítica.

Não é difícil compreender as razões do esquecimento e da posterior redescoberta. O texto de Rusche e Kirchheimer vem à luz pela primeira vez nos anos 1930, em circunstâncias históricas particularmente adversas ao marxismo nos Estados Unidos e às ciências sociais na Europa. O advento dos regimes totalitários após o segundo conflito mundial e de uma recons­trução pós-bélica que enfatizará uma concepção tecnocrática dos proble­mas sociais e, conseqüentemente, do desvio, certamente não estimulam o desenvolvimento das perspectivas críticas apresentadas em Pwziçc70 e es­trutura social. No entanto, no contexto muito diferente dos anos 1960 e 1970, parece finalmente estar colocado o espaço intelectual e político para uma crítica materialista das instituições repressivas, um espaço no qual a criminologia crítica e a economia política da pena ganham uma posição de destaque.

19 Idem, pp. 528.

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. Nascimento da sociedade industrial e disciplinamento do proletariado

As hip6teses centrais de Rusche são duas. A primeira é que qualquer sistema repressivo necessariamente, numa de pre-

o objetivo das penas é dissuadir os criminosos em de violar as leis. Por outro Jado, porém, são as classes subordinadas que cometem esses crimes - sobretudo contra a propriedade - e é para elas que o sistema penal se seletivamente. A segunda hipótese é que as modali­dades com as quais se concretiza () objetivo da variam historica­mente em relação ao universo da economia e, sobretudo, à situação do mer­.cado de trabalho:

Ensina a experiência que os delitos são cometidos, em sua maior parte, por aqueles que pertencem às classes sobre as quais pesa uma opressão social mais forte [ ... ] A pena, portanto, se não se quer

ele tal modo que as crimi

racional comcter as para não serem vítimas de punição .

As classes sociais despossuídas constituem, assÍm, o objetivo principal das instituições penais. A hist6ria dos sistemas punitivos é, nessa perspecti-va, uma hist6ria das "duas nações", isto é, das di versas estratégias repressi­

\'vas de que as classes dominantes lançaram mão através dos séculos para íevitar as ameaças à ordem social provenientes dos subordinados.

, '. As diversas orientações da política penal se articulam a partir das condi­~çÕes materiais das classes pobres. Para serem eficazes, as instituições e práticas repressivas devem impor, a quem ousa violar a ordem cOl1stitU'ída, condições de existência piores do que as garantidas a quem se submeter a

.. cla. Numa economia capitalista, isso significa que será a condição do prole­tariado marginal que determinará os rumos da política criminal e, por conse­guinte, o regime de "sofrimento legal" imposto àqueles que forem punidos por desrespeito às leis. Em outras palavras, "todo esforço em prol de uma reforma no tratamento do delinqüente encontra o seu pr6prio limite na si~u­àção do estrato proletário mais baixo, socialmente significativo, que a SOCle-

..... ~. '''21 dade usa como parâmetro para quem comete açoes cnmll10sas .

Idem, pp. 523 .. 21 Idem, pp. 524.

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A evolução da penalidade não é, portanto, o resultado de reformas sociais e jurídicas cada vez mais ambiciosas e progressistas. Existe, de fato, um limite estrutural a qualquer processo de reforma e civilização das penaS, e este limite é representado pelo princípio da less eligibility (isto é, da menor preferibilidade) da pena, ao qual todo sistema de repressão deve adequar-se.

Nas economias pré-capitalistas, a condição das classes marginais era definida por fatores antes de tudo políticos, que estabeleciam as margens de exploração da força de trabalho conforme uma estratificação social baseada em laços de servidão e dependência pessoal das classes subalternas para com as classes dominantes. Porém, com a afirmação do modo de produção capitalista, a condição do proletariado se torna uma função principalmente econômica: a condição material do proletariado é determinada diretarnente no interior dos processos de organização e de divisão do trabalho.

São as dinâmicas invisíveis e anônimas do mercado que conferem à for­ça de trabalho o seu "preço justo", e é uma lei econômica que orienta a fixação do preço: quanto maior for a oferta de trabalhq, menor será o seu valor e piores serão as condições do proletariado. Daí deriva, de acordo com o princípio da less eligibility, que os períodos históricos em que ocorre um sllIplus de força de trabalho serão necessariamente caracterizados por um agravamento das penas.

As massas sem trabalho, que diante da fome e da necessidade tendem a cometer delitos ditados pelo desespero, só podem ser contidas atra­vés de penas cruéis. Numa sociedade onde os trabalhadores são escas­sos, a execução penal tem uma função totalmente diversa. Quando alguém que quer trabalhar encontra trabalho, o estrato social mais bai­xo é formado por trabalhadores não qualificados e não por desempre­gados que se encontram numa situação de necessidade. A execução penal pode, assim, contentar-se em obrigar ao trabalho quem a ele se recusa e ensinar aos delinqüentes que eles se contentem com o que é suficiente para um trabalhador honesto vive/

2•

O nascimento da prisão se coloca, portanto, na passagem de um regime penal que aponta para a destruição do corpo do condenado, sobre o qual se reflete o poder absoluto do monarca, para uma forma de punição que poupa o corpo a fim de que, na sua produtividade, se evidencie o poder econômico relativo do capitalista. Uma nova concepção do tempo, de um lado, e urna

22 Idem, pp. 526-527.

40

~universalização do princípio da troca de equivalentes, do outro, explicam a ':afirmação histórica paralela do contrato como fixação do tempo de trabalho ""ê:da sentença como fixação do tempo de reclusão23

• i

Punição e estrutura social desenvolve es'tas linhas teóricas e as emprega na análise histórica dos regimes punitivos da Idade Média tardia até os anos 30 do século XX. Neste contexto, o conceito da less eligibílity recebe uma elaboração mais complexa e é aplicado à análise de processos históricos tais como a transição da economia feudal para o mercantilismo e, posteriormen­te, o advento da Revolução Industrial.

A origem da pena detentiva está inserida no contexto das transformações ,;I>ociais que ocorreram na Europa nos séculos XVI e XVII. Naquele período, ÚrlIa repentina redução demográfica, ligada em parte à Guena dos Trinta Anos, havia determinado uma dramática carência de mão-de-obra, o que resultou na elevação progressiva dos salários. Essa situação induziu os go­vernos dos países europeus economicamente mais avançados a rever as suas políticas em relação à pobreza. Amadurecia a idéia de que os pobres em condições de trabalhar deveriam ser obrigados a fazê-lo. Através da imposi­ção do trabalho, tornava-se possível ao mesmo tempo, a praga social da vagabundagem e a praga econômica do aumento dos salários, pro­yocado pela escassez de força de trabalho.

Essa nova filosofia inspira a construção das primeiras instituições desti­nadas à reclusão dos pobres: Bridewell, na Inglaterra, Hôpital Général, na !;'rança, e Zuchtlzaus e Spinhaus, na Holanda. A reclusão começa assim a ser i'>f,0posta como estratégia para o controle das classes marginais. A sua utili­<~ade, independentemente das camadas da população às quais pode ser apli­i~Ma (pobres, vagabundos, prostitutas, criminosos), consiste no fato de que Ilgora o çerpo é valorizado por encerrar uma potencialidade produtiva, e os sistemas de controle têm início concentrando-se nas atitudes, na moralidade, na alma dos indivíduos. Progressivamente, a detenção se afirmará como

2i':iA privação da liberdade por um período determinado preventivamente pela sen­t~nça do tribunal é a forma específica na qual [ ... ] o direito penal moderno burguês­'capitalista realiza o princípio da retribuição equivalente. Trata-se de um meio Ín­}onsciente, mas profundamente ligado à idéia do homem abstrato e do trabalho

. humano abstrato medido pelo tempo" (K B. Pasohukanis, La teoria generale del diritto e ii marxismo, trad. it. [N. do T.: edição portuguesa A teoria geral do

e o marxismo. Coimbra, Centelha, 1'972, tradução de Soveral Martins], in Cerroni (org.), Teorie sovietiche deZ diritto. Milão. Giuffre, 1964, p. 230.

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modalidade hegemónica da pUl1lçao, dando origem assim ao "grande internamento" de que fala Foucault. No momento em que esta hegemonia estiver definitivamente consolidada, o que vai mudar, segundo o princípio da less eligibility, serão os regimes de reclusão, isto é, as condições de vida impostas aos detidos.

Uma vez as humanitúrias desempenham um papel com-pletamente secundário em tudo isso. As reformas sustam o passo, quando não retrocedem, toda vez que o desemprego cresce, reduzindo novamente o valor do trabalho. Um exemplo significativo é dado pela Inglaterra do início do século XIX, quando um novo SU/1J1lls de força de trabalho orienta a política penal no sentido da reintrodução de métodos punitivos cruéis e destrutivos, que parecem decretar momentaneamente a falência dos ambiciosos projetos iluministas de reforma:

Já tínhamos observado que o movimento reformador encontrou um terreno fértil só porque os princípios humanitários em que se

coincidiam com as necessidades da economia da mas nos para dar essas novas o fundamento do qual nós havíamos partido já havia, pelo menos em parte, deixado de existi/".

Quando a utilidade eeonômica dos novos sistemas punitivos é menor, as mesmas medidas introduzidas pelo reformismo humanitário podem voltar a assumir a crueldade que as reformas pareciam ter confiado ao passado:

O trabalho no cárcere torna-se, assim, um instrumento de tortura e as autoridades mostravam-se cada vez mais hábeis em inventar novos sistemas; ocupações de caráter exclusivamente punitivo tornavam­se extl]}mamente fatigantes! prolongadas por períodos de tempo

• ,. _5 absolutamente lI1suportavcls .

No centro da análise de Ruscbe e Kirehheimer encontramos as trans­formações descritas no primeiro livro do Capital. Na seção VII, Marx enfrenta a questão da acumulação primitiva, estágio pré-histórico do capital, no qual o sistema capitalista teve criadas as condições para o seu próprio desenvolvi­mento, ou seja, a destruição do sistema de produção agrícola-artesanal e a transformação do trabalho aí empregado em força de trabalho assalariada. A contradição constitutiva deste proeesso fica logo clara: se de um lado o

24 Rusche e Kirchheimer, CiL, p. 153. 25Idem,p. 191.

çapital libera o trabalho dos vínculos servis e da dependência pessoal que, i:l.té aquele momento, o haviam refreado, por outro sujeita-o a uma nova

. forma de subordinação. A "liberação" do trabalho advém de uma expropriação "dos produtores que os submete a um nível mais alto de servilismo:

o movimento histórico que transforma os produtores em operários assalariados se apresenta, de um lado, como sua libertação da servidão e da coerção corporativa; e para os nossos historiógrafos

só existe esse lado. l'vlas, por outro lado, esses recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos após terem sido espoliados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias para a sua existência, oferecidas pelas antigas instituições feudais

26•

As massas de camponeses em fuga após o cercamento dos campos diri­gem-se para as cidades, engrossando as fileiras de vagabundos e pobres. Esta força de trabalho em potencial, expropriada dos poucos meios de sustento de que dispunha e separada violentamente do próprio ambiente, revela-se a princípio de adaptar-se ús novas de e reluta em se submeter ü nova do trabalho que se afirma nas fábricas. Marx detém-se nas práticas repressivas que atingiam as massas expropriadas:

Os pais da atual classe operária foram punidos, num primeiro mo­mento, ao serem transformados em vagabundos e em miseráveis. A legislação tratou-os como delínqüentes voluntários e partiu do pres­suposto de que dependia da sua boa vontade continuar a trabalhar

27 llas antigas condições não mais existentes .

Pena e subsunção real do trabalho ao capital

Uma vez mais, o problema é a constituição do proletariado, isto é, a transformação do trabalho em capital produtivo de mais-valia. A afirmação do regime de fábrica dirige o processo que Marx define como "subsunção real" do trabalho: todas as formas do trabalho pré-capitalista são progressi­vamente reduzidas à forma geral do "trabalho abstrato". Os produtores são ~~sim transformados em força de trabalho social e o trabalhador coletivo sucede o trabalhador individual:

Com o desenvolvimento da submissão real do trabalho ao capital e, por conseguinte, do modo de produção especificamente capitalista, o verdadeiro agente do processo de trabalho total não é o trabalhador

26 Marx, fl capitale, ciL, p. 779. 27ldem, p. 797.

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individual, mas sim uma força de trabalho cada vez mais combinada socialmente, e as diversas forças de trabalho cooperantes que formam a máquina produtiva total participam, de diversas maneiras, do proces­so imediato de produção de mercadorias 28.

Qual foi então o papel das práticas punitivas no processo de subsunção real do trabalho? E qual foi a função da prisão no controle das contradições nas quais este processo se baseia?

Do ponto de vista da economia política da pena, a contribuição das insti­tuições e das tecnologias da pena foi, nesse sentido, fundamental: a penitenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender as exigências cio, nascente sistema de produção industrial. A estrutura cm penitenciária, soo o'perfil tanto orgarlizativo quanto ideológico, não pode ser compreendida se, paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo que faz a mediação entre cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do século XVIII co­dividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares à fábrica:

Elas se caracterizam por serem incumbidas pelo Estado da sociedade burguesa da gestão dos vários momentos da formação, produção e reprodução do proletariado de fábrica; elas são um dos instrumentos essenciais da política social do Estado, política que persegue o objetivo de garantir ao capital uma força de trabalho que - por hábitos morais, saúde física, capacidades intelectuais, conformidade às regras, hábito à disciplina e à obediência etc. - possa facilmente adaptar-se ao regime de vida na fábrica em seu conjunto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia extraível em determinadas circunstânci:;ts29.

A prisão se consolida então como dispositivo orientado à produção e à reprodução de uma subjetividade operária. Deve-se fOljar, na penitenciária, uma nova categoria de indivíduos, indivíduos predispostos a obedecer, seguir ordens e respeitar ritmos de trabalho regulares, e sobretudo que estejam em condições de interiorizar a nova concepção capitalista do tempo como medida do valor e do espaço como delimitação do ambiente de trabalho. Delineiam­se aqui os contornos de uma economia política do corpo, de uma tecnologia do controle disciplinar que age sobre o corpo para governá-lo enquanto

28 Marx, II capitale. Libro J. Capítulo VI. Inedíto, trad. it. Florença, La Nuova Itália, 1969, p. 74.

29 Melossí e Pavarini, Carcere e fabbrica, cit., p. 70.

44

produtor de mais-valia e que, juntamente com outros corpos "cientificamente" 9rganizados, torna-se capital. Como escreve Melossi:

Tal disciplina é condição fundamental para a extração de mais-valia e, portanto, o único ensinamento real que a sociedade burguesa tem a propor ao proletariado. Se fora da produção pode imperar a ideologia jurídica, no seu interior opera a servidão, a desigualdade. Mas o local da produção é a ü1brica. Eis a razão pela qual a função insti­tucional que primeiro a casa de trabalho e depois a prisão assumem é o aprendizado, por parte do proletariado, da disciplina de fábríca

30•

Mas a reconstrução do nascimento do cárcere e da sua função na formação histórica do proletariado industrial constitui apenas uma vertente do problema. A outra vertente é representada pelo papel que este dispositivo de controle ciesenvolve na reproduçào da força de trabalho assalariada. Nesse sentido, torna-se indispensável considerar tanto a dimensão instrumental quanto a dimensão simbólica da instituição carcerária. A dimensão instrumental nos permite iluminar as origens da penitenciária e as funções económicas imediatas que ela assumia, sendo a delas a produção de uma força de trabalho disciplinada e disponível à valorização capitalista. A dimensão simb6Hca, por sua vez, permite-nos explicar o motivo do "sucesso histórico" aparente da instituição carcerária. O cárcere representa a materialização de um modelo ideal de sociedade capitalista industrial, um modelo que se consolida através .do processo de "desconstrução" e "reconstrução" contínua dos indivíduos no interior da instituição penitenciária. O pobre se toma criminoso, o criminoso se torna prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se transforma em proletário:

Porém, uma vez reduzido o prisioneiro a sujeito abstrato, uma vez "anulada" a sua diversidade [ ... ], uma vez colocado diante das necessidades materiais que não pode mais satisfazer al!,tünomamente, tornado assim completamente dependente da/à soberania admi­nistrativa, enfim, é imposta a este produto da máquina disciplinar a única alternativa possível à própria destruição, à própria loucura: a forma moral da sujeição, isto é, a forma moral do status de proletário. Melhor dizendo: a forma moral de proletário é aqui imposta como a única condição existencial, no sentido de única condição para a sobrevivência do não-proprietári0

31•

Melossi, "Criminologia e marxismo. AIle origini della questione penale nelÍa società de 'Ii Capitale'''. ln La questione criminale, I, 2/1975, p. 328. 31 Melossi e Pavarini, Carcere e fabbrica, cit., p. 223.

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Esta dinâmica da produção de subjetividade através do regime carcerário nos conduz diretamente às reflexões de Althusser sobre os "aparelhos ideológicos dé Estado". Segundo Althusser, é exatamente nos processos de subjetivação dos indivíduos, ao perpetuar as relações de produção nas quais a subordinação material dos sujeitos se 111 que se baseia o funcionamento da

A instituição carcerária é pois, certamente, uma tecnologia repressiva, uma vez que impõe ao detento uma situação de privação absoluta que faz dele um sujeito totalmente dependente do aparelho de poder que o subordina. Mas é também um poderoso dispositivo ideológico, uma vez que lhe impõe a submissão ao trabalho como único caminho para sair desta condição. Revela­se, assim, o paradoxo de um mecanismo que, de um lado, produz privação, falta, carência, e, de outro, impõe as próprias engrenagens disciplinares como remédio para esta condição.

A prisão cria o statlls de detento e, ao mesmo tempo, ao indivíduo trabalho, obediência e disciplina constitutivos desse como

que devem ser fim de que possa, no delas. Ela evoca nos uma representação mesmos em relação à própria condição materiaL A privação extrema imposta ao preso é, assim, representada como conseqüência óbvia e quase natural da recusa da disciplina do trabalho33

. O princípio da troca de equivalentes torna a instituição carcerária ideologicamente aceitável, do mesmo modo que torna "justo" um contrato de trabalho. Neste não há abuso ou excesso, mas sim troca entre iguais e retribuição ao justo preço:

O conteúdo da pena (a execução) está, deste modo, ligada à sua fonnajurídica, do mesmo modo que, na fábrica, a autoridade garante

I . 34 /'

que a exp oração pode aSSUl11lr o aspecto de contrato .

Vemos emergir aqui uma contradição estrutural da sociedade capitalista: a contradição entre uma igualdadefornzal e uma desigualdadefwulamental.

32 L. Althusser, Lo Stato e i suai apparafi, trad. it. Roma, Riuniti, 1997 [N. do T.: edição brasileira. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1987, 3aed, introdução crítica de J.A.Guilhon Albu­querque, tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro]. 33 Ver também a definição althusseriana de ideologia: "Na ideologia encontra-se representado não o sistema das relações reais que governam a existência dos in­divíduos, mas sim a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais nas quais eles vivem" (idem, pp. 185-186; itálico meu). 34 Melossi e Pavarini, Carcere e fabbrica, cit., p. 87.

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é observável seja no universo econômico, no qual se exprime na relação a esfera da circulação (igualdade) e a esfera da produção (desigualdade),

.;;eja na instituição carcerária, onde se.tra?u~ no con~ito ins<:lúvel.ent~e o . pfincípio de retribuição e as práticas dlsclphnares. A IdeologIa retn.blltl~a-

legalista oculta a realidade de disciplina e violência que se produz no mtenor da instituição penitenciária, assim como a ideologia . esconde a realidade de exploração e subordinação que se produz na fábnca. O: objetivo, coerentemente, é reproduzir um proletariado que conside.re o salário como justa retribuiçt70 do próprio trabalho e a pena como Justa medida dos seus próprios crimes.

Encarceramento e desemprego na época fordista

A partir da segunda metade dos anos 1970, a criminologia marxista começa ri utilizar os conceitos da economia política da pena na análise dos sistemas puhitivos contemporâneos. O paradigma materialista qu~ Ru~ch~.e Kir­chheimer tinham elaborado para descrever as transformaçoes hlstoncas da penalidade é, para as entre sistema eco-nômico fordista c da repress{ío penal.

A passagem da investigação histórica ii dimensão contemporânea comporta, porém, dois problemas. O primeiro diz respeito à "tradução" dos conceitos. Enquanto Rusche e Kirchheimer descreveram o processo de ~volução da penalidade ao longo de um arco histórico que s~ estende d~

ii afirmação do capitalismo, o horizonte deve redUZir-se agora a h::lação entre economia e pena numa fase específica do capitalismo. Com? é possível aplicar hipóteses concebidas originariament~ numa p~rspect.lva histórica ii análise das políticas penais na sociedade industnal ou pós-mdustnal?

segundo problema é de ordem metodológica e diz respeito à construção de eficazes" da economia e da penalidade contemporâneas. Em

outras palavras, como podem ser individualizados instrumentos analíticos âdequados para descrever a situação econômica atual, as estratégias repres­;;ivas contemporâneas e o laço que as une?

O percurso teórico através do qual se consegue dar uma resposta. a essas intelTogações está intimamente ligado às circunstfmcias históricas partIculares ~m que ocorreu este aggiomamento da econom~a pol~tica da p~n.a .. Estamos no final dos anos 1970, nos Estados Unidos. E aqUI que se 111lcta, pouco ~epois da publicação de Punishment and Social Structure, o processo de atualização da perspectiva materialista.

A reestruturação capitalista está em curso já há alguns anos e seus primeiros . efeitos começam a ser percebidos, sobretudo o aumento do desemprego que se

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segue à expulsão de uma ampla fatia do trabalho desqualificado do setor indus­trial. Começa-se a se falar em surplus population, isto é, uma força de trabalho em excesso no que tange à capacidade de absorção do mercado de trabalho. Essa força de trabalho se configura cada vez mais como uma reedição, no capitalismo tardio, do "exército industrial de reserva" marxista. Trata-se de uma massa de trabalho escassamente ou nada qualificada, expulsa pelo processo produtivo porque é extremamente numerosa, mas ao mesmo tempo extrema­mente eficaz como instrumento de eontrole das reivindicações salariais da força de trabalho ativa. Ela é, portanto, a principal candidata ao posto de "estrato proletário mais baixo" ao qual Rusche se referia em 1933.

Paralelamente, ocorre nos Estados Unidos uma significativa inversão de tendência na política criminal. As taxas de encarceramento, que desde a depressão de 1929 ao final dos anos 1960 foram mantidas em níveis par­ticularmente baixos, a partir dos primeiros anos da década de 1970 começam novamente a crescer, inaugurando uma tendência que assumirá proporções cada vez maiores nos anos subseqüentes. A economia política da pena co­meça, então, a investigar conjuntamente esses fenômenos, indagando se eles eram ou se, ainda quc não fosse possível indivi­dualizar, havia entre eles uma relação estruturaL

Um setor da criminologia marxista americana avança a hipótese de que o aumento paralelo do desemprego e do encarceramento constitui o momento inicial de um processo de redefinição conjunta da relação entre economia e sistema repressivo. Delineia-se, assim, uma resposta aos problemas que se colocavam antes. A solução consistirá em assumir o desemprego como pa­râmetro da condição econômica e o encarceramento como medida da se­veridade do sistema penal. Richard Quinney oferece uma interpretação efi­caz das transformações em curso:

/' Incapaz de absorver o sUlplus no interior da economia política, o capi-talismo avançado pode apenas supervisionar e controlar uma população que agora é supérflua [ ... ] O sistema penal é o recurso moderno para o controle do surplus de trabalho produzido pelo capitalismo tardi0

35•

Em 1977, Ivan Jankovic será o primeiro a tentar aplicar o paradigma de Rusche e Kirchheimer à situação americana36• Ele parte de duas hipóteses. A

35 R. Quinney. Class, State and Crime. Nova Iorque, Longman, 1977, p. 131.

36 r. Jankovic. "Labor Market and Imprisonment", in Crime and Social Justice, 8, 1977, p. 17-31. Na realidade, merecem ser citadas pelo menos outras duas contribui-

muito anteriores à de Jankovic, mas não tão centrais do ponto de vista da sua

48

refere-se à "severidade" das penas: o agravamento das condições isto é, o aumento do desemprego, cOITesponde a uma maior

das sanções penais, isto é, um incremento das taxas de encarcera­O núcleo da argumentação está ancorado no princípio da less eligibility:

as penas se tornam tão pesadas que, por piores que sejam as condições oferecidas ao trabalhador "livre", elas ainda são prcferíveis ao status de

criminoso "punido". A segunda hipótese diz respeito à "utilidade" das penas com relação ao

mercado de trabalho. O recurso ao encarceramento desempenha a função de "regulação" do slU1J1us de força de trabalho, com o objetivo implícito de consolidar o exército industrial de reserva de que fala Marx. Nas palavras

do próprio Jankovic: O que eu proponho é uma reformulação da hipótese da "severidade" avançada por Rusche e Kirchheimer: quando a economia está em crise, as penas são mais severas ( ... ) A segunda hipótese a ser veri­ficada é aquela segundo a qual o aumento do encarceramento tem a

de reduzir o desemprcgo. Esta hipótese de "utilidade" sus-tenta que os efeitos nas se refletem no mcrcado de trabalho .

Jankovic separa nitidamente as suas análises do comportamento das taxas de criminalidade. O pressuposto inicial é que estes fenômenos são observáveis independentemente da criminalidade e que a relação entre desemprego e

sobre os desenvolvimentos posteriores da economia política da penalida­A primeira é a de T. Sellin, "Research Memorando on Crime in the Depres:ion~, i~

Social Sciel1ce Research Cowzcil, Boletim 27, Nova Iorque, 1937. Essa publtcaçao e 'i~portante porque, antes mesmo da publicação de Punishment and Social Structure, éonfere destaque às intuições de Rusche (Sellin trabalha com o ~rtigo de 193?~. ~:n

no capítulo VII (pp. 109 e ss.), SeIlin considera o conceIto da less eltglbzl!ty um possível ponto de referência para os desdobramentos futuros da pesqUIsa economia e sistema penal. A segunda contribuição é de L. T. Stern, "The Effect

the Depression on Prison Commitments and Sentences", in Joumal ofthe American of Criminal Law and Criminology, vol. XXXI, 1940-1941, pp. 696-7~1.

se propõe aqui, explicitamente, a testar as hipóteses de Georg Rusche, ven~­se à depressão econômica nos Estados Unidos correspondeu um endureCI­das condenações à pena de detenção (o case study conduzido por Stern

contudo, a duas penitenciárias do estado da Pensilvânia).

Jankovic, "Labor Market and Imprisonment", cit., pp. 20-21.

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encarceramento é, por conseguinte, direta38. Todavia, examinando o caso

dos Estados Unidos entre 1926 e 1974, os resultados são ambíguos. De um lado, é confirmada a hipótese da "severidade": encarceramento e desemprego seguem, de fato, a mesma direção e esta tendência não é influenciada pelo andamento das taxas de criminalidade. De outro, não se nenhum impacto das taxas de encarceramento no mercado de trabalho: a hipótese de um efeito imediato do aparelho repressivo em relação ao sW7J1us de força de trabalho é desmentida. Com efeito, muito embora a

carcerária constituída em grande parte por trata-se sempre de uma muito limitada para que ela possa exercer um impacto significativo sobre as dimensões do exército industrial de reserva.

Entre os anos 1970 e 1980 entram em cena outros trabalhos que têm como objetivo verificar as hipóteses de Rusche e Kirchheimer, e é uma vez mais e sobretudo a criminologia crítica norte-americana que investiga a relação entre desemprego e encarceramento. !vIas, também nesses casos, a hipótese da severidade é sistematicamente confirmada e a da utilidade não encontra base de

O fato é que, no em que essas análises, as medidas não constituem (ainda) o único dispositivo institucional de regulação

do swplus de força de trabalho. Estamos, vale repetir, entre o final dos anos 1970 e os primeiros anos da década de 1980, quando a reestruturação indus-

38 É desse ponto de vista que a investigação de lankovic se distancia notavelmen­te de outros estudos precedentes, os quais, embora tendo como hipótese uma relação entre economia e encarceramento, assumiam que a criminalidade ali exer­citasse um papel de mediação e que, conseqüentemente, fosse a verdadeira "cau­sa" das mudanças do sistema repressivo. Ver, por exemplo, D. A. Dobbins e B. M. Bass, "Effects of Unemployment on 'White and Negro Prison Admissions in Louisiana", in lO/trllOl of Criminal Law, Criminology and Pofice Science, 48, 1958, pp. 522-525. 39 Ver, sobretudo, D. Greenberg, "The Dynamics of Oscillatory Punishment Pro­cesses", in The lournal of Criminal Lmv and Criminology, 4, 1977, pp. 643-651; e "Penal Sanctions in Poland: a Test of Alternative Models", in Social Problems, XXVIII, 2, 1980, pp. 194-204; M. Yeager, "Unemployment and Imprisonment", in The Joumal of Crimillal Lmv and Criminology, vol. 70,4, 1979, pp. 586-588; D. Wallace, "The PoliticaI Economy of Incarceratiol1 Trends in late U. S. Capitalism: 1971-1977", in The Illsurgent Sociologis!, vol. XI, 1, 1980, pp. 59-65. Para uma resenha que inclui trabalhos não considerados aqui, ver G. T. Chiricos & M. Delone, "Labor Surplus and Imprisonment: A Review and Assessment of Theory and Evidence", in Social Problems, vol. 39,4, 1992, pp. 421-446.

50

. , ..' ra mas ainda não produzira os efeitos dramáticos trial certamente Ja se mlcm , c " 1 rb ., 1

ue só viriam a ocorrer no decênio seguinte. Alem diSSO, o assa to neo 1. eI.a q W lf'are State ainda não se abatera violentamente sobre as classes margmms. ao eJ' d'd concorrem, nessa Isso significa que Estado e me 1 as . ., em certa

f' 'l['l '1 do excesso de força de trabalho, dlvldmdo,

ase, p, , " cai na rede medida, as tarefas. toda ct I '

d 1 '" "d'" o 1 de lve'lClle e da penalidade. Parte e a e geu a c n . _ ," ., ," . 1 que de qualquer modo, começam a assumIr con~taçoes pUl1ltlvas,

soem" , Imposta aos por exemplo, atraves da crescente .

. , '. d dos pr'()cedimentos de acesso, CIarlOS e a' . O criminólogo marxista Steven Spitzer descreve este processo COl:1 ~.~l-

dade, quando afuma que o surplll.~ de forç~ d~ ~rab,~lho po~e s~r ~ub~,l;~l~ d~ em socialjwzk e em social dynallllte. O pnmeIlo tc.uno s~ le,~e:e a p. n

o ulação desempreaada Que representa um "detnto socml , mofenslvo e,I p p aos aparelbo~ do poder (e, portanto, passível de manobra por parte

do Welfare é a do , a ordem que deve sel

c, . O incremento do sistema . que

, I'! ao mas Sim ao , portanto, 19ac o . ' ," d '1 constitlllda: atinge alguns estratos sociaiS. conslderad~s ~e:/gosos a 01' en minorias étnicas, imigrantes, Jovens margmms . ,

No âmbito da economia política da pena delineia-se, nesse momento, <l

tendência a abandonar as hipóteses "ortodoxas" for~n~la~as por Rusc~le_ e

l'etoluadas por Jankovic. A dificuldade de provar a eXlstenCIa de uma reblaç11ao

. . d de tra a 10 de funcionalidade imediata entre slstema repreSSIVO e merca. o ( 'd d suaere interpretações mais articuladas da relação entre economl: e penal!, a e e ~ma reavaliação dos elementos Ç.Xtra-econômicos. A r.elaçao tel~d~ a l~: estabelecida cada vez mais em termos qualitativos, medIante a analise

. ,,' Social Problems, voI. 40 S. Sptizer, "Toward a Marxian Theory of Devlance , ll1

22 5 1975 . 'd d " . f' d" teraç'ío entre etmCl a e, 41 Para um interessante sflldy case sobre o e eIto a ll1 • < G T Cl iricos

. " d nos Estados Umelos, ver . ' 1 condição ocupaclOnal e IllVeIS e . c • " Assessment" in e W D Bales "Unemployment and Pumshment: an Empmcal .,' c '0-.., 701 724' G T Lessan "Macro-econOlD1C e

Criminology, voI. 29,1 4, 1991, pp.. - , . . ' '. Intlation Intluences terminants of Penal Policy: Estim~tll1g the ~nemPI~~m~~~;~~985'" in Crime, Law anel Imprisonment Rate Chang!Os 111 the Umted Sta . ' C I f' eld e E. E.

177 198' G S BrIdges' R. D. rutc 1 1 anel Social Change, 16, 1991, pp. - .'..: . 'I '. . White anel Nonwhite Simpson "Crime Social Structure and Cnmmal PUl1lS lment. 345

, " ,,' " I 34 4 1987, pp. ss. Rates of Impnsol1ment , 111 Soczal P/oblems, vo ., , ,

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f?t~re~ s~ciais que convergem para a "qualificação" do desemprego: compo­slçao etmca da população, relações de gênero, transformações abrangentes do me~cado de trabalho etc42

• A hipótese de UlTl papel imediato das práticas repre~s~~as na gestão do exército industrial de reserva parecia, pois, perder plausIbIlIdade por conta da citada "divisão de trabalho" entre penalidade e welfare.

. Na r.ealidade, porém, uma conclusão desse tipo seria apressada. Nos úl­tunos tnnta anos a situação nos Estados Unidos mudou profundamente, tanto na vertente das políticas penais quanto na vertente das políticas sociais. O aumento das ~a:as. de encarceramento, do qual Jankovic pôde entrever apenas o começo, fOI tao lIltenso que levou a população carcerária ao nível mais alto de toda a história contemporânea americana; o ataque neoliberal ao Estado do b~m~e:tar social prosseguiu ininterruptamente, até determinar, de fato, a substltUlçao do "Estado social" por Uln verdadeiro "Estado penal"43.

Partindo dessas transformações, Bruce Western e Katherine Beckett re­colocaram a hipótese de uma relação de funcionalidade entre políticas penais ~ mer~~do de trabalho nos Estados Unidos44 • Retomando a hipótese da "uti­lIdade das penas, eles sugerem que o enorme aumento das taxas de encar-ceramento dos últimos anos exerceu um impacto sobre as taxas de

. por exemplo, S. L. Myers e W. J. Sabol, "Dnemployment and Racial Differences ln Imprison~ent", in Review o! Black Political Ecol7omy, vol,. 16, 1-2, 1987, pp. 189,-~09. Para um exemplo maIS recente, que faz referência particular aos fatores pohtlcos como elemento ,?e mediação da relação entre economia e penalidade, ver D. Jac.obs.e R. E. Helms, Toward a Politicai Model ofIncarceration: A Time-Series Examll1atlOn of Multiple Explanations for Prison Admission Rates" in American Joumal of Sociology, 2, 1996, pp. 323-357. ' 43 "A d I - A' .esregu amentaçao economlca e a hiper-regulamentação penal caminham, na rea:l~ade, lado a lado. O desinvestimento social implica o super-investimento ca~ceran~, que r~presenta o único instrumento em condições de fazer frente às a:nbula~oes sUSCitadas pelo desmantelamento do Estado social e pela generaliza­çao. ~a ll1segurança material que, inevitavelmente, se difunde entre os grupos s~clal~ colocados nas posições mais baixas da escala social" (L. Wacquant, Parola d or~lI1e: tolleral1za zero. La trasformazione dello stato penale nella società neollberale, trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000, p. 101).

44 B. Western e K. Beckett, "How DnreguJated is the D.S. Labor Market? The Penal System as A Labor Market Institution", in American Joumal of Sociology CIV 4 1999, pp. 1030-1060. ' "

45 :oder-se-ia acrescentar um outro efeito do encarceramento de massa, que é retirar os d t" d' as es atlstlcas me lante o seu emprego na da 52

O caráter relativamente limitado das taxas de desemprego norte-americano nos anos 1980 e 1990 teria sido causado não pelas políticas de flexibilização e liberalização do mercado de trabalho (como sustenta a vulgata neoliberal), mas sim pelo incremento vertical do encarceramento, que teria ocultado uma parte da população desempregada, encerrando-a nas prisões americanas. Por outro lado, porém, o efeito penalizante que o encarceramento exerce sobre as possibilidades futuras de emprego da força de trabalho é tal que, para poder manter os níveis atuais de desemprego, os Estados Unidos deveriam intensificar o internamento em massa iniciado na segunda metade dos anos 1970, alimentando assim uma espiral cujo fim é difícil de se ver.

Analisando a composição de classe da população carcerária dos Estados Unidos, verificamos que a taxa de desemprego seria pelo menos dois pontos lnais elevada do que a indicada pelas estatísticas oficiais. O aumento do percentual parece ainda mais significativo se levarmos em conta a população afro-americana: incluindo os detentos nas estatísticas, a variação neste caso seria de 7%. Isso significa dizer que o encarceramento em massa teria reduzido as taxas de desemprego dos afro-americanos em cerca de um terço. Enquanto nos europeus sobrevivem de política social voltadas para a das distorções do mercado de trabalho e para remediar as desigualdades sociais daí resultantes, nos Estados Unidos se observa a tendência a substituir essas medidas sociais por políticas penais. A gestão do desemprego e da precariedade social parecer ter passado, em suma, do universo das políticas sociais para o da política criminal.

Mas se os Estados Unidos exibem a realidade sem disfarces de uma gestão repressiva das novas pobrezas que se materializa na progressiva convergência entre precarização social e autoritarismo penal, hoje um cenário semelhante parece desenhar-se também na Europa. Nas últimas duas décadas, as taxas de encarceramento cresceram de forma aguda em todos os países europeus, abatendo-se de modo desproporcional sobre a população desempregada, sobre os tóxico-dependentes e, nos últimos anos, sobre os imigrantes. Também na Europa, ademais, este processo de "hipertrofia" do sistema penal se produziu

segurança. A privatização dos cárceres é um fenômeno já consolidado nos Esta­dos Unidos, onde prisioneiros e serviços de segurança privada representam um dos mais promissores setores de emprego de mão-de-obra. Em suma, os pobres encontram trabalho exatamente no prison-industrial COl11plex que nasce com o objetivo de encarcerar outros pobres americanos. Sobre a transformação do encarceramento em empresa, ver, necessariamente, N. Christie, 11 business penitenzíario. La via occidentale dei Gulag. trad. it. Milão, Eleuthera, 1996.

53

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paralelamente ii reestruturação do ll'e(fàre, numa singular sÍmbiose entre eonstrução do Estado penal e destruição elas garantias sociais.

As análises críticas mais rccentes voltadas ao contexto europeu deixam pouca à dúvida. Analisando o caso Stevcn Box c Chris Hale puderam

direta entre mercado ele e de crise cconô-

n:ica, como o atravessado pela Inglaterra a partir dos primeiros anos da decada ele 1970, correspondeu um incremento vertical das taxas de encarce-rmnellto a uma maior punitividade do repn~ssivo:

A "radical" [ ... ] afirma que desemprego e encarceramento estão mas ao invés de olhar a criminalidade e as condenações como elementos de mediação entre as duas, ela concentrou-se na visão de que "o de~emprcg~ produz criminalidade" e nas maneiras pelas quais esta crença mt1uencla direta ou indiretamente as decisões elas cortes os pareceres dos sociais c as da -\7 '

que pinUlll1 o

llcnte c CIIl de às cl' . I" ,)

caplta ,.e e.stender a observação ao conjunto dos fatores ideológicos e cultu-r~[s que InCIdem so~re a relação entre economia e pena4il . O sistema punitivo nao guarda autonomIa das dinâmicas ideológicas da sociedade: as instituições

e.. Crisis ane! lhe Rising Prison Population in Enb"land and Wales", C IS' l " ll1 rtlllC .al1G oela Justice, 17, 1982, pp.20-35; S. Box e C. Halc, Unemp!oyment, Impnsonmenl and Prison Overcrowding", in Call1el11pora rv Cri­

ses, 9, 1985, pp.209-~28; e S. Box e C. Hale, "Unemployment, Crime and Imprison­ment, and lhe Endunng Problem of Prisons Overcrowding", in R. Mathews e J. Young (ed.), Cal(frontinfJ Crill1e. Londres 1986 !J!1 7')-99' C H'lle "E

• ~ ,. L ~,. -,' , ,_. ___ , • (,. , -,COnonly~

PUl1lshmcnt and Impnsonment , ll1 COlltcmporary Crises, 13, 1989, pp.327-349.

47 S. Box. Crime and PliIlishmcnt. Londres McMillan EdllC'Hion 1987,p.158. ' L ,

4R Para .alguns. exemplos eleste "col1spiraciol1ismo", ver os trabalhos já citados de Jankovlc, .Q1lll1~ey c Wallace e mais os seguintes: R. Vogel, "Capitalisrn and :,ncarcera~!On", 111, Montlz(v Rev~ew, vol. 34, lO, 1983, pp. 30-41; M. Colvin, Contro~JlI1g the Surplus Populatlon: lhe Lalent Functions of Imprisonment anel

We.lfare 10 Late U. S. Capitalism", in B. D. Maclcan (cd.). Thc PoliticaI Ecollom)' af Cnme. Ontano, PJ:~ntice Hall, 198~, pp. 154-165. Para uma perspectiva hist<5r'ic~, ~e,r C. P:dél!;lS0n, Toward a J'vIarXIaIl Pcnology: Caplive Criminal Population as Economlcs rhrcats and Resources", in Social Problems, vol. 31, 4, 1984.

54

do "Estado penal" eo-dividem e estereótipos dominantes, que, por sua vez, são afetados pelas condições da economia. Agindo de modo particularmente punitivo para eom as classes subordinadas, os operadores do sistema penal não a necessidades abstratas do capital, das

. 11"lS e' Que eles tenham eles se limitam, isso qUaiS, ~ 1,., . '1

a tomar dcci de acordo com sobre a questão criminal e sobre as para enfrentá-la, entre elas a idéia de que quem vive em de pobreza e preeariedade está mais inclinado a cometer crimes.

A entre descmprego e encarceramcnto é por conseguinte, por uma percepçâo da marginalidade social como ameaça à ordem constituída, que se torna hegemónica nos períodos de crise económica:

Quando a crise económica se agrava, o Poder Judici<''irio manifesta crescente preocupação com a possível ameaça à orderTl social, pro-veniente til: , dos homens rnais do qlH~ das dos negros mal do que í ... L e aumentando o recurso ao encarceramcntu, sobretudu no e~lSO de delitos contra a na va de que uma deste tipo tenha um efeito inibidor e incapacitador, e que, em conse-

49 qüência, possa neutralizar a ameaça .

o limite da economia política da penalidade fordista

Começa, assim, a delinear-se aquilo que nas primeiras páginas se anunciava como o limiTe da economia política da penalidade. A tradução dos conceitos de estrutura social e pena, nos termos ela relação entre desemprego e encar­ceramento, que constitui uma constante ela criminologia marxista, restringe indevidamente o campo de observação da relação entre eeonomia e dispositivos de controle. As transformações que afetam, sobretudo a partir dos primeiros anos da década de 1970, os dispositivos de controle da sociedade conte111-porànea, não podem ser referenciadas apenas às mutações do mercado (~e trabalho e às taxas de desemprego. Na verdade, elas não constituem mms uma representação adequada da dinâmica capitalista atual.

Em outras palavras, a evolução recente das tecnologias de controle deve ser inserida no contexto dos processos de mutação que perpas-

------------------------------------------49 S. Box c C Bale, "Uncmployment, Imprisonmcnt and Prisol1 Ovcrcroweling", cit.,p.2l7.

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san: a ."~strutura social" no seu conjunto. Estamos falando pois das subJetlvld~des do trabalho, das formas de organização da ~rodd ão ~as ,modaltdades de exploração da força de trabalho contcmporã~ea'

orem, do mesmo modo, deve-se também frisar que as taxas de encar~ ceraI~ento, que certamente constituem um indicador plausível d ~evcndade de um sistema penal, não são uma exemplificação exaustiv:

as de controle social que vemos desenvolver-se.

P~de-se as~im compreender em que sentido a economia olítica d' penalidade fordlsta se revela inadequada para desc . , f p < a d t'" < rever <IS ormas de produção Ae su }Jetl.vl~a~e que_se delineiam no horizonte do controle social pós-fordísta

,s suas a~al.lses nao levam em conta os processos de transforma ão d . ~:a~alhob' h1rmtando-se à observação do tratamento penal do deSempr;go dOo nao-tra a ho". '

O que devemos nos pergul1t . ' '" . ar e se este reduclOnismo" está f tlvmnente presente na pe f e e-R . I K' . . rspec lva materialista originalmente definida por

m~~c ~~: inl;~.l~l;::~~~~l~ ~~~~cl~~O~t~:~:~~(;:té que p~n~o élPo~sívella.nçar Poder-se-h ' .' cnmmo ogIa marXIsta? , ., • < ate a margem extrema do ismo ate o ponto de consecução da '. f d' . . ao pos- 01' lsmo que redesenha em seu conjunto, a estrutura material da produção à qual a . . ' política da pena d" T < economIa . se Inge. entamos, pois, aproximar-nos deste limiar retor~ando por um segundo ao paradigma de Rusche e Kirchheimer ar~ val~nzar algun~ de seus elementos que a criminologia marxista mai~ re cen e parece deIxar parcialmente de lado. -

Nas páginas .iniciais de Puniçc10 e estrutura social propõe-se uma defini ã geral do elo eXIstente entre relações de produção e c d _ ç o tormas e repressao:

Todo modo de produção tende a descobrir formas punitivas ue corr~sponda.m às próprias relações de produção. É, pois, necessirio anahsar a ongem e. o des~ino dos sistemas peRais, o uso e o abandono de certas penas, a mtensIdade das práticas punitivas, assim como se e~tes feno} menos ~or~m determin<;~os pelas forças sociais, in primis p r aque as economIcas e fiscais .

vim:~r out~~ ~dO, no j~ citado artigo de 1933, Rusche individualizava, como , .' as .m ,as contmgentes de transformação deste elo nas form -

SOCIaIS capItalIstas. açoes

50 Rusche K' hh' . e Irc elmer, Pena e struttura ~f>,~inln cit., p. 46.

56

No primeiro caso, delineia-se uma correspondência histórica e tendencial . t;ntre relações de produção e sistemas de controle. No segundo, ficam claros os termos em que esta relação se artícula ciclicamente diante de determinadas circunstâncias históricas. Ademais, o princípio da less eligibility constitui, de certo modo, o nexo de continuidade entre as tendências históricas de longo prazo e as contingências particulares da relação. Independentemente das situações específicas, tal princípio define as fronteiras nas quais a condição de quem se submete voluntariamente à ordem constituída deve, em geral, parecer preferível à de quem é punido por tê-la infringido,

Três elementos me parecem merecer aqui particular atenção. Em primeiro lugar, a relação entre estrutura social e penalidade é dinâmica. Tanto de um ponto de vista histórico quanto do da análise do presente, a relação se inscreve num processo de contínua transformação que recusa qualquer representação estática. O objeto da análise é constituído pela relação entre estrutura social e formas de controle, respectivamente nas suas macro-trajetórias históricas e nas suas micro-trajetórias cíclicass1 . Em outras palavras, se a análise da história soei aI pré-capi talista e capi tali sta nos permite afirmar que cada sistema de a formas de punir que correspondam às relações de produção, a sobre o contexto capitalista nos permite detectar as linhas ao longo das quais e~ta correspondência se modula de quando em quando, em consonância com a mudança de determinados fatores

econômicos e sociais. Além disso, a relação se revela complexa e tendencial. Por conta disso,

não é possível estabelecer uma ligação definida e irreversível: os termos nos quais a relação se articula estão sujeitos a uma redefinição contínua, que depende de circunstâncias políticas, sociais e culturais. Rusche fala expli­citamente de correspondência entre sistemas de produção. e formas de punir como uma tendência de longo prazer; e de forças sociais que influem sobre aquela con·espondência. Enfim, o princípio da less eligibility não é traduzível em um nexo imediato entre indicadores econômicos e indicadores penais, e menos ainda, conseqüentemente, na simples relação entre taxas de desemprego e taxas de encarceramento. É a situação do estrato proletário mais carente que constitui o limite externo a qualquer reforma do regime penaL Isso significa

51 Sobre a necessidade de distinguir as "macro-trajetórias" e as "micro-trajetórÍ­as" da relação entre economia e penalidade, ver sobretudo D. Melossi, "Punish­ment and Social Action: Changing Vocabularies ofPunítive Motive Within a politicaI Business , in Current 011 Social Theory, VI, 1985, p. 186.

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dize~ que, l:a .de~iniçã~ das frontei~'as nas quais a less eligibility opera, outros fatores SOCIaIS ll1tervem para delInear a condição do proletariado e a sua relação com o regime penaP2.

:Vale dizer que a expressão "a situação do estrato proletário mais baixo socIalmente significativo" requer uma interpretação muito mais extensa do que a permitida pela ao ou ao mercado de Ela rc.mete, na realidade, à composição da força de trabalho, às formas de organlza~ão da p:'odução e às de classe. em seu conjuntoS3 • Isto é, dev~mos mtroduzlr no nexo entre estrutura económica e controle social aquele con~unto de transformações da produção que, ao definir a condição conjunta da torça de trabalho contemporânea, inscreve este nexo no universo dos modos de organização do trabalho, de governo, do conflito de classe e de gestão da marginalidade social.

Podemos. então ampliar o horizonte do princípio da less eligibility e situá­lo na encruz!lhada entre mercado de trabalho, governo do social e

Os dois meiros dctcrminam a I (O estrato

que, por sua define o de das de cO~ltrole54 isso significa il também a vertente da r~laçao entre economia e pena. Não é de fato possível definir a "sianificat'­vldade social" dos estratos marginais se não se levar em conta ta;bém ;s p~'ocessos ideológicos e culturais mediante os quais o "valor social" dos dlversos segmentos da força de trabalho é socialmente definido.

. :-- esse ponto, torna-se possível desenvolver linhas interpretativas que não se J ImItem a fornecer uma racionalização a po.'ite riori da correlação estatística entre desel~lprego e encarceramento, mas que, ao contrário, coloquem estas COf­

~'elaçoes entre os processos de mudança da ecol2Pmia em seu conjunto. Melossi Jul~a. que estes processos têm um andamento cíclico e, por isso, refere-se a polItIcai busÍness cycles:

52. Ver, ~obre este ponto, R. Lévy e H, Zander, "Introduction", in Rusche e Klrchhelll1er, Peine et structllre sociale. Paris, Cerf, 1994. .

53 ~ css~ resp~ito, Lév~ e Zan~er ~hegam a sustentar que o desemprego represen­tana paI a. Rusche uma categona vlttual", mais do que uma entidade real e concre­t~. Com ISSO, OS autores pretendem, uma vez mais, evidenciar a importância da dUl1ensã I' . . I '. . o. po ltICO-SOCIa tanto no que dIZ respeito as transformações históricas d~ c?ncelto da less eligibility quanto no que concerne à noção de "correspo _ ~encl~ tendencial" entre relações de produção e pn'íticas penais. . n

Vet Wacquant, Parola d'ordille: tolleranza zero, ciL

58

O conjunto das condições SOClUIS e políticas associadas ao ciclo político-económico não é determinado por este nem lhe é secundário. Ao contrário, são essas que tornam possível o seu desenvol­vimento, Em outros termos, o vínculo entre ciclo económico e fe­nómenos político-sociais correlatos não é o produto de "leis" econó­micas que sobredeterminam o valor de outras vanaveís sociais. Ao contrário, o vínculo é resultado da obra de atores sociais cUJo a interacão faz tluluar os indicadores económicos,

-> 55 seguindo uma trajetória quase oscilante .

A sucessão destcs delos redefine continuamente tanto os termos da relação entre economia e penalidade quanto, e sobretudo, as formas de construção social da própria relação, as quais se traduzeni por urna demanda social de severidade penal e de intransigência para com o desvi0 56. Em outras palavras, durante os períodos de rec~ssão económica, de aumento de desemprego e deterioração das condições de trabalho, entra em cena uma nova Uma quc se mostra severa para com os fenómenos de desvio e constitui terreno fértil para as de Imv aml orc/er

elites no . Este "clima moral" difuso na sociedade ser considerado como o tcrmo de mcdiação entre dinâmicas da economia e práticas de controle:

A relação entrê economia e encarceramento não deveria ser concebida como diretamente causal. Antes, dever-se-Ía conectar a mudança económica com o clima moral que costumeiramente a acompanha, admitindo que as orientações empreendidas pelas partes envolvidas no conflito económico estejam profundamente relacionadas a atitudes

57 sociais mais gerais e historicamente determinadas .

Em períodos de crise económica, a criminalidade se torna o tema privile­giado do discurso público, permitindo assim às elites políticas catalisar, sob

55 Melossi, "Punishment and Social Action", CiL, pp. 179-180. 56 "Tempos de depressão económica são também tempos de punição. Os políticos deploram os hábitos imorais e dissipadores dos tempos passados, o aumento espantoso das atividades criminosas e desviantes, a falência dos laços institucionais e morais da sociedade. Às suas palavras fazem eco os m(us media [ ... 1 Diz-se que os trabalhadores tenham passado o tempo a desperdiçar os seus grandes salários e agora se pede a eles que, na austeridade sem brilho da sua nova condição de desempregados, se arrependam. Agora é tempo de traçar uma linha. É tempo de punir" (idem, p. 181). 57 D. Melossi, "Introduetion", The Sociology of Pllilishment. Socio-Structural Perspectives. Aldershot, Ashgate, 1998, p., xxiv.

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a forma do "pânico moral" produzido pelo aumento da criminalidade, inse­guranças e medos cuja origem se situa mais longe do que nunca do seu objeto imediat058 • Os processos de definição do desvio mudam radicalmente de sinal durante os ciclos político-económicos recessivos. A práticas discur­sivas sobre o fenómeno criminal que exaltam o respeito pela diversidade, a importância da integração social dos desviantes e o papel ressocializante do sistema punitivo, linguagens orientadas para a defesa social, a neutralização do inimigo público e a necessidade de zerar a tolerância para com o crime.

Quando falamos de ciclos de depressão económica, referimo-nos a um conjunto de fatores que pertencem à esfera da economia sem, porém, esgo­tar·-se no dado estatístico do desemprego. Para deflnir este conjunto de ele­mentos, Melossi introduz o conceito de pelforl1lonce, que remete às condi­ções gerais de trabalho, aos níveis salariais, aos padrões de vida e aos níveis de exploração impostos pelo capital aos setores marginais da classe operária. Os ciclos político-económicos em que se difunde o clima moral punitivo e a

de massa das classes da

são caracterizados por uma de trabalho:

Dever-se-ia estabelecer urna ligação direta entre a demanda ampliada de pelformonce dirigida à classe operáçia e o aumento da pressão penal sobre os estratos mais marginais da sociedade (a undercloss). Esta pressão cria um efeito de "frustração social" que leva todos a trabalhar mais, especialmente aqueles que estão tão próximos do fundo asfonto de poder sentir os urros e os lamentos de quem é surrado .

Voltamos assim à função subalterna das instituições de controle na orga­nização capitalista do trabalho. O princípio da less eligibility sustenta e re­força, mediante uma ameaça repressiva crescente, a demanda de pelformonce que o poder económico dirige à classe operária. Como já acontecia nos albores do sistema de produção capitalista, ° objetivo seria constranger à disciplina aquelas fatias do proletariado marginal que se mostram mais recalcitrantes

58 Idem, pp. xxv-xxvi. Sobre a insegurança e o medo como categorias existenciais que definem a experiência do "cidadão global", ver Z. Bauman, La società dell'incertezzo. trad. ít. Milão, Feltrinelli, 2000. S9 D. "GazeUe of Morality and Social Whíp: the Case ofthe Usa, 1970-1992", Ín Social &

60

para com as condições renovad~s de e~ploração, precariedade e insegurança

impostas à força de trabalho pos-fordlsta. Atingimos aqui o limiar extremo da economia política da. penali.dade fordis:a

, 1 . os referíamos anteriormente. Relendo Rusche e KIrchhelmer, atraves aqua n . . 1" das hipóteses de Melossi, acompanhamos esta corrente cnmm~ o~lca m~:r-xista até ° declínio do fordismo, isto é, até a crise da economIa mdustnal taylorista e a intensificação da pressão c~lpitalista sobre a classe que

acompanhou o desdobramento desta cnse. Aaora nos encontramos no limiar. Atrás de nós, o universo económico

da fábrica e o cárcere disciplinar, analisado pela economia política da l~ena; à nossa frente, a crise desse universo e um processo de transfon~~çao d~s relações de produção em. curso que redesenha, em se~ conjunt~, a ft~JO~o:ll1a .da força de trabalho contemporânea, arrastan?o CO.11.S1g0 o regime dIsclplma: e a estrutura da relação entre produção e dISPOSitIVOS de controle que ate

agora procuramos descrever.

61 '-")~J

'~f~rgí s

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Excesso

o

Capitulo 2

c trabalho da muUidao

o imperial e 0 res(duo negativo, a reca(da da po/encia da 1Il1i1tich70. E /il7l parasira que

retira a sua vitalidadc da capacidade da mll[tidao de criar sempre novas Jontes de ellergia

e de valOl: Um parasita que a resistencia do seu ho.)pedeiro, podcndo colocar

em risco tambem a Slla pr6pria existencia. o JWlciollamento do poder imperial esta

indissoluvelmente ligado ao seu decUllio.

M. Hardt e A. Negri, Imperio

do excesso

Antes de proceder a uma analise mais aprofundada dos processos de transforma~ao da prodw;;ao e investigar as hovas coordenadas da relac;ao entre essas transformac;6es e os processos de mudanc;a que afetam as estrategias de controle, faz-se necessario estabelecer duas premissas.

A primeira, de ordem metodo16gica, diz respeito a utilidade do termo "p6s-fordismo", ao qual recorro com tanta freqUencia neste trabalho. Como dizia nas paginas introdut6rias, pas-fordismo e hoje uma expressao comum tanto na lit;yratura economica (ao menos na nao ortodoxa) quanta no lexico socio16gico e politico. Porem, a difusao de um termo, pOl' mais ampla que seja, nao significa necessariamente ser sinonimo da sua eficacia explicativa e da adequa<;ao para descrever os fenomenos a que se refere. "Pas" indica sernpre urn processo de transic;ao "daquilo que nao e mais" para "aquilo que ainda nao e"; isto e, denota dinamicas de transformac;6es que, se pOl' um lado permitem pensar que nada e rnais como antes, pOl' outro nos surpreende despreparados para clescrever a nova condic;ao em todos os seus aspectos. ~este sentido, p6s-fordismo e um termo que alude mais a determinadas tendencias e ao espac;o indefinido que se estende entre 0 "nao mais" e 0 "nao ainda", do que a consoliclaC;ao de um paradigma claramente definivel. Sera portanto importante considerar as argumentac;6es presentes nas paginas que se seguem como fruto da tentativa de identificar as tendencias paralelamente

63

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observáveis nos universos da produção e do controle social e de explorar o território, ainda confuso, no qual elas se desenvolvem.

A segunda premissa, ao contrário, diz respeito à necessidade de "qualificar" o modo pelo qual é usado o conceito de pós-fordismo. O próprio fato de se referir mais à percepção de tendências do que à identificação de um modelo definido faz com que ele possa ser utilizado para descrever fenôme!10s diversos entre si e muitas vezes até mesmo contraditórÍos60. Nestas páginas, o termo pós-fordismo descreve processos de transformação do trabalho e da produção que, sobretudo no curso dos anos 1990, situaram-se no centro do debate político-intelectual amadurecido no âmbito do marxismo neo-obrerista itaJian0

61• Trata-se, certamente, de uma perspectiva parcial- mas talvez mais

útil que outras, sobretudo por sua atenção às dinâmicas de conflito que sempre se entrelaçam às transformações da produção a iluminar aqueles aspectos da transição pós-fordísta que parecem incidir, de modo mais significativo, sobre o terreno do controle social.

Encontra-se, pois, em andamento um processo de transformação global da economia que sanciona o esgotaillento do modelo il/(lllstrial fordista e

ao mesmo uma con de todo das cie nova cnvolve, simultaneamente, os planos

em torno dos quais se desenvolveu o sistema capitalista ocidental a partir do segundo pós-guerra. De um lado, no que concerne aos sistemas produtivos, vemos consumar-se a progressiva "explosão" do paradigma taylorista de organização do trabalho: a grande fábrica tende a desaparecer do horizonte da metrópole pós-moderna. De outro, e contemporaneamente, consuma-se a crise da estratégia fordista de regulação da dinâmica salarial, isto é, rompe­se o círculo virtuoso que, durante boa parte do século XX, permitiu manter e!n conjunto o rendimento operário, a produtividade social e o consumo de massa. A tudo isso se acrescenta, tfze last but llOt lhe least, um processo de

uma interpretação "anglo-saxônica" do conceito de pós-fordísmo, ver, por exemplo, W. Bonefeld e J. Holloway (eds.), Post-Fordism and Social Form. A Marxist Debate 0/1 lhe Post-Fordist State. Londres, MacMillan, 1991; R. Burrows e B. Loader (eds.), Towards a Post-Fordisl1l Welfare State? Londres, Routledge, 1994. Para uma ampla resenha do debate internacional, ver A. Amin, Post-Fordism. A Reader. Oxford, Blackwell, 1994:

61 Os momentos mais significativos podem ser reconstruídos através das revistas Luogo comune, DeriveApprodi, Vis à Vis e Futuro Anteriore, que no decorrer desses anos serviram de espaço para o debate.

64

revisão radical das políticas keynesianas de apoio à despesa pública e de intervenção pública na economia, que permitiam. mant~r ~u resta.belec~r, periodicamente, os precários equilíbrios das economIas capItalIstas oCldentms.

Nesse meio tempo, muda também a geografia da produção capitalista em nível mundial. O capital não é mais apenas transnacional, móvel, capaz de expandir-se e atravessar as fronteiras dos Estados, mas tam?ém globaL. Ele criou um espaço de valorização sem confins, no qu~:l n~o. eXIstem fronteiras, instituições nacionais soberanas e delimitações terntonms do poder. O novo território do capital global é o Império, um "espaço lis~". no qual c.irculam fluxos de dinheiro, força de trabalho e informação, sUJeltos a reglmes de controle diferenciados62 •

A passagem de um regime de pleno emprego para uma condição em q~e o desemprego' representa um fato "estrutural", a passagem de uma economIa

> orientada para a produção para uma economia da informação, a passagem da centralidade da classe operária para a constituição de uma força de trabalho global (que, como veremos, assume as características c:e uma n:llltl~dâO) não são fenômenos que perpassam somente os palses capitalistas

e os individualizados das suas forças de trabalho. As profundas que ,. entre os ,. de que prevalecem nas diferentes áreas geografIcas do Imp~n,? (~em con~o .no interior de suas províncias) não indicam, de fato, a coexlst~n~Ia de esti~glOs diferenciados do desenvolvimento capitalista, como se estlvessemos dIante de um modelo pós-fordista no "Primeiro Mundo", fordista no "Segund?'.' e pré-fordista no "Terceiro". Essas diferenças são, acima de tudo, o efeIto imediato das estratificações hierárquicas impostas à força de trabalho global pelo domínio capitalista sobre a produtividade socia163 .

Limitando o nosso discurso às tendências que determinam os efeitos de maior alcance sobre o plano da relação entre dinâmicas da produção e formas do controle, gostaria de me deter principalmente em dois aspectos da transformação em curso. O primeiro, que chamaria de "quantitativo", refere­se à progressiva redução do nível de "emprego" da força de trabalh? e, conseqüentemente, à drástica diminuição da demanda de trabalho VlVO,

expressa pelo sistema produtivo a partir pelo menos da segunda metade dos anos 1970. O segundo, que chamaria de "qualitativo", diz respeito às mudanças

62 Hardt e cito 63 p.288.

65

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ocon'idas nas formas da produção, na composição da força de trabalho, nos processos de constituição das subjetividades produtivas e nas dinâmicas de valorização capitalista em que elas estão imersas.

A entre estes aspectos da nos permite descrever a do fordismo ao como a passagem de um

carência desenvolvimento de um de estra-orientadas para a disciplina da carência) a um regime produtivo definido

pelo e).:cesso Ce conseqüentemente, pela de orientadas para o controle do Seria, de todo impróprio pensar que estas duas tendências (redução do trabalho necessário e mudanças nos pro­cessos de produção) se manifestem independentemente uma da outra, como se fossem os extremos opostos da transição pós-fordista. Ao contrário, elas se inscrevem conjuntamente numa força de trabalho social afetada, con­juntamente, por processos de transformação cujo efeito principal é exata­mente a crise de um conjunto de disti cOllsolidadas. Pense-se nas dis-ti entre trabalho e entre produção e ,'p'~'·'-"1 entre

comunicativo.

de descrever estas tendências e os seus efeitos separa­porque isso nos permitirá, por um lado, esclarecer em que sentido

se pode dizer que o pós-fordismo inaugura um regime de excesso e, por outro, identificar o sujeito de tal excesso, a nova força de trabalho social, aquela multidão produtiva sobre a qual, como veremos, se recortam as novas estratégias do controle.

O excesso negativo

O primeiro dado, portanto, é que a economia pós-fordista parece depender cada vez menos da quantidade de força de trabalho diretamente empregada ~o processo de produtivo. A introdução de novas-tecnologias (principalmente mfom:áticas) diminuiu progressivamente o quantum de trabalho vivo neces­sário à valorização do capital, até reduzi-lo a um mínimo:'

O progresso tecnológico informático não amplia a produção, mas a reestrutura e a modifica através de um constante incremento de flexi­bilidade. Tudo isso não cria emprego, mas, ao contrário, o destrói, O desemprego não é mais, portanto, um fenômeno puramente

. I' 64 conJuntura, mas snn estrutural .

64 A. Fumagallí, "Aspettti dell'accumalazione flessibile in Italia", in S. Bo!Oglla e A. FumagaIli Corg.), !l lavoro autollomo di seconda generazione. Scenari dei posfordismo in Itália. Milão, Feltrinelli, 1997, pp. 137-138.

66

Este processo teve início no começo dos anos 1970 e constitui, por um lado, a resposta capitalista à recusa operária da disciplina de fábrica, à insubordinação e ao absenteísmo, à do trabalho assalariado expressa pelos movimentos revolucionários dos anos 1960; por outro lado, a

reação do sistema empresarial ~l e à dos

de bens Já na metade dos anos 1980, a fábrica fordista se apresentava como um

deserto no qual o ecoar e das máquinas ao longo da linha de foi substituído por "inteligentes", que a de poucos crescentes da de trabalho, expulsas dos contextos produtivos cm reestruturação, foram, assim, alimentar ó exército da população desempregada, não empregada e subempregada, ou preencher os vários nichos do setor terciário, aqueles âmbitos complementares ao compartimento industrial, cada

vez maiS zados ade dos

dos rendimentos, o

de incerteza, a

nibilidade absoluta à e as novas que se tornarão um aspecto existencial, estrutural e paradigmático da nova força de trabalh0

68. A

restrição dos espaços de acesso ao emprego regular, sobre o qual converge o ataque político aos direitos sociais, produz uma hipertrofia das economias submersas, dos circuitos produtivos paralelos aos quais aqueles que não têm

65 Pam uma análise (voltada para o caso italiano) da crise do paradigma fordista, que leva em consideração tanto os aspectos ligados ii conflitualidgAe do trab.alho quanto às disfunções internas ao sistema fordista derivadas da sua e, ainda, às dinâmicas de saturação dos mercados que, posteriormente, aceleraram os pro­cessos de reestruturação, ver mais uma vez Fumagalli, "Aspettti deli' accumulazione

flessibile in Italia", ciL 66 Uma descrição fascinante do processo de reestruturação que ocorreu na ~iat ~ partir dos anos 1970 e sobretudo dos efeitos sobre a subjetividade operária fOI feita por M. Revelli, Lavorare ln Fiat. Da Valletta ad Agnelli a Romiti. Opera!

sindacati robot. Turi 111, Garzanti, 1989. 67 A. Gorz, Miserie del presente. Ricchezza dei possibile, trad. it, Roma,

Manifestolibri, 1998, 6" . "1' 'I" "d I" 1se"'uro !Jrecário 'o Para uma reconstrução dos efeitos )logra ICOS este c eVlr 11. b ' . .

e flexível, ver R. Sennct, L' Homo jZessibile. Le cOllsegllenze dei /lliOVO capitalis-

mo sulla vira personale, tmd. it. Milão, Feltrinelli, 2000. 67

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garantia são obrigados a recorrer para se assegurar de fontes alternativas de renda, Setores inteiros da produção começam, assim, a apoiar-se em mercados não regulados, não tutelados, muitas vezes no limite da legalidade, em que domina o trabalho intermitente, temporário, flexível às exigências contingentes de empresas que, de acordo com a filosofia do just IIZ time e da lecm-pro­duction, contratam fora fases isoladas do processo de produção, É a rees­truturação do setor industrial que determina estes processos, produtiva, descentramento, outsourcing, downsizJllg e terciarização deses­truturam a força de trabalho operária, fragmentando-a cm um arquipélago de trabalhadores atípicosó9 .

Diante de uma verdadeira "deflagração" do trabalho, de uma recolocação abrangente da produtividade social entre prestações ê ocasionais" trabalho negro, interino e intermitente, diante da passagem de um trabalho percebido como evento biográfico "narrável" para um trabalho vivido como "fragmento", como necessidade do hoje, urgência do momento, bem, diante de tudo isso ainda é possível definir o desemprego como falta de trabalho?

Na isso ljue temos o costume de chamar de mui à falta de

emprego entendermos um conjunto de acesso a detenninadm garantias, titularidade de um conjunto de direitos socialmente reconhecidos - do qual o pós-fordismo expropriou a totalidade da força de trabalho contemporânea. Talvez o "desemprego" então se configure hoje mais propriamente como a abolição do "trabalho" específico, próprio do capitalismo industrial, do trabalho ao qual nos referimos quando se diz que uma mulher "não tem um trabalho" e dedica o seu tempo a criar os filhos, e que "tem um trabalho", quando dedica apenas uma fração do seu tempo a criar os filhos dos outros70.

Nesse sentido, o conceito de desemprego atravessa uma radical mudança semântica (que, entretanto, afeta diretamente o plano da experiência social). O desemprego deixa, de fato, de ser associável à idéia de "i natividade" para se tornar uma medida oficial da fratura entre as inumeráveis "atividades"

69 Para uma análise dos efeitos de fragmentação e perda de segurança (econômi­ca, cultural e existencial) que acompanha a transição do trabalho operário às novas formas de trabalho "atípico", ver S. Bologna, "Dieci tesi per la definizzione di uno statuto dei lavoro autônomo", in Bologna e Fumagalli (org.), Il lavora autol1omo di secollda cit., pp. 13-42. 70 Miserie dei presente. Ricchezza del cit., p, 10.

68

d. . st é aquelas que remetem à noção de trabalho no sentido

pro utlvas - I o , , , -' 1 'd , ' ' d teI'mo _ nas quais os indiVIduas estao cont1l1uamente envo VI os, propno o, ,.' 'h . d e o limite imposto pelo sistema capitalIsta, a fun de que seja recon eCl o a

t' 'dades o valor social de "trabalho". Em outros termos, o desemprego

essas a IV1 . l 1-se configura como a margem de excesso da p,rodutividade soc~a. em r~ a?ao , _ i'f'cial entre trabalho e emprego Imposta pelo dommlO capitalista a separaçao mIl • < - ' • 1 , . d d O desaparecimento do emprego nao eqUlva e, a SOCIe a e / f d' na verdade, ao desaparecimento do trabalho. Ante~, no pos- or lsmo~ o trabalho, entendido como um conjunto de ações, pef1ormanc~s : p~'estaç~es

d ' cad'l vez Inal'" até integrar toda a eXlstencla socw1. pro utlvas, < < " <. ,-

Aquilo que experimentamos, efetivamente, é uma radIcal se'pa~açao do trabalho, assim concebido, de um sistema de governo dos dIreitos e da cidadania ainda profundamente ligado ao conceito fordista de emprego,

A imposição da sociedade salarial se configura, P?rtant~, como l~ma:lOva articulação do nexO entre trabalho, rendiment~ e cld~dal11a,. A ~e,b~çao, do acesso ao trabalho enquanto "emprego" excltll da cldar/al/w m~lssàs, Cles-centes de propriamente enquanto trabalhador (lSlO e,

1 como

ee suficiente para ter acesso a uma

Delineia-se, nesse momento, uma profunda cOI:tradiçã~: o rec~~hecimento do direito à cidadania, à inclusão social e ao rendl~1ento e sub~ld~nado a ~m trabalho, entendido como emprego, que não tem mms uma refer~nclU I:1aten~L Se até a segunda metade do século XX foi possível cOI:Stl:mr a cldadama como conjunto de direitos do trabalho n:ediados .pelo d,uelto. ao t~abalh~, direitos que o compromisso fordista POdl~ garantIr med~a~te ,a re~lO?Uç~O do ciclo trabalho_salário-consumo-cidadama, agora esta dmanuca nao e maiS

ímyginável. , ' , Emergem, assim, os primeiros contornos ~aqul1o que. ~efl~llnOS cO~r~

regime do excesso, Excesso significa, neste sentIdo, que a dl:mrr:lca ~rod~Itl\ a contemporânea excede continuam~nte o~ disp~sitiv~s mStlt~clOnal~~: atribuição, reconhecimento e garantia da cldadama SOCIal. A CrIse do p

71 Ver por exemplo A. Gorz II lavoro debole. Oltre lc; società salariale , trad. dit. , , , o problema a

R L ro 1994 Porém é preciso não esquecer que mesmo oma, avo, ., .' , t balho com falta de reconhecimento de determinadas prátIcas SOCIaiS como . r~ < ,

. , d 'd d ' conStitUI um terreno tudo aquilo que daí deriva em termos de dIreIto e Cl a ama, .' tOdo

. ' d 'b lh Pensemos neste sen I , de conflito constante entre capital e força e tra a o. ' ' , . . recO-

. ' _ 1 d trabalho e nas lutas para o nas críticas feministas da dlvlsao sexua o

. b II como trabalho nheclll1ento do tra a 10 69

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fordista-keynesiano e do Estado social que fora construído sobre aquele pacto resolve-se numa crónica i nadequação por parte das instituições de governo da sociedade cm garantir inclusc/o por meio do trabalho. A entre constituição material da sociedade e formal das é máxima. São todas as margens de entre trabalho e O que permanece é um contínuo excesso da

durante o

institucionais destinados a de governo da sociedade,

a exclusão social e a existencial eram a de um déficit, de uma inadequação dos indivíduos para

com um sistema que, todavia, tinha garantir, graças aos instrumentos políticos de mediação da relação entre economia e sociedade, inclusão e cidadania virtualmente universais, hoje isso não é mais possíveL

instrumentos de medi parece haver

Do ponto de vista capitalista, podemos dizer que o Welfare State pertence à fase histórica na qual era o capital que se manifestava como excesso sobre a força de trabalho, O desenvolvimento histórico do capitalismo industrial fordista necessita de aparatos de governo da população e de dispositivos de controle social que permitam elevar ao nível das relações de produção uma força de trabalho "carente", inadequada, relutante, Vimos, a propósito do papel exercido pela prisão na produção do proletariado, que eram as carências, as insuficiêneias, além da rebelião da força de trabalho, que se procurava controlar, sob o manto da cooperação produtiva, do autocontrole dos indivíduos, da capacidade de inserção no processo produtivo. Nesse mesmo cenário se inscrevia também a lógica profundamente disciplinar do Welfare State, que permeava todas as instituições sociais, em primeiro lugar a prisão,

Este tipo de dispositivo disciplinar cai por terra agora, e é o que se mostra carente em relação a uma força de trabalho tornada flexível, nômade, móvel: multidão, A multidão produtiva excede as relações de produção capitalistas no momento em que vive diretamente a il1adequação do conceito de trabalho-emprego e experimenta em si mesma a violenta negação dos direitos de cidadania provocada por esta inadequação, Nesse sentido, podemos falar aqui de um excesso negativo, evidenciando, por um lado, os efeitos da

70

- d 'l~ 'u do poder e do control~ que este excesso determina exclusao a VlO enCh

, d' b lh e por outro o fato de que, neste processo, o sobr~ ~ força ~ tI a a o , 'negado, Isto é, este domínio se domll110 do capital com a força de revela em toda a sua trabalho

o excesso quea da

do trabalho humano nee~ss:ir~o à , A um aspecto da transfounaçao em ," , sobre os incide, de fato, diretamente sobre as propnas íOl~11as do t 'do da prestação processos de organização que a conforl~lal:l e ,~oble o cO~i~~r que o trabalho ,~ t b' 1110 Desse de "qua ltatlvo , ~ ue ra ci ' ., aI

tende a , , ' , " nado se tOln,u

d ' a relação 111stonca com um a su , d' f' 'I te pode l'esolver-se no , ' ,t criatiVO que I ICI men pelformance comumeatlva, a o ." da lntureza" ob'eto imediato do , momento produtivo que ena uma segu~l c ~ (aJvirtuan, ao invés de limitar-se a transformar o mundo natLllu:, ,

S ~ordismo - e o tavlorismo como sua tradução orgamzatlva - se

e o c '" _ ,,' ';' direção do trabalho e fundava sobre uma nítida separaçao entre cllaçào,. 1 h ,', tal fazendo execução da tarefa, o pós-fordismo parece tornar este CIC o 0lIZ~~utiv~73 da inovação e da criação os fundamentos de todo processo pro ' , ,

- ' A' ca ao longo das ftleu as A repetição das operações, a coordel:açao Sll1CrOl:l. '- ';' ',f r uica são

produtivas pré-constituídas a partir ele cima e a subordmaçao hle~~ ~ valo~ na tay lorista do trabalho que tendem a per er c ,

72 Essa vertente' é em si mesma controvertida: caso 'd ;-) emergem setores - d d t rminados 'lmbltos ela pi o UÇdC ~

progressiva automaçao e e e . , . d terciário desqualificado) a estes em to o o , '''t' 'o) muitas vezes _ ". . , (ens",se no Sudeste àSla lC ,

ou até mesmo em "sistemas de produçao lntelloS p . ~ . em que a automação é quase inexistente, , "" d' 1993' e B.

" -[/ t tnd it TUrim, Emau 1, ' 73 Ver sobretudo T 011no, Lo splnto 0)'0 a, < .' , jJrassi deZ modelo

, I' . IFiollC del favaro, e Coriat, R/pe/lsare orgalllzz(,~

giapponese, tmd, it. Bari, Oedalo, 1991.

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empresa flexível pós-fordista. Ao contrário, eles representam verdadeiros obstáculos à produtividade. A interdição imposta aos operários de se comunicarem, que na fábrica fordista era sistematicamente acompanhada da injunção de incrementar o rendimento conjunto dos mecanismos através de

parcializadas e perfeitamente sincronizadas no tempo e no espaço, cede agora a vez para a do trabalho Illllltiskil/ed, cujo requisito principal é exatamente a de não se repetir nunca, de não de acordo com uma ordem predefinida:

Na da manufatura e depois o longo apogeu da fábrica fordista, a atividadc de trabalho é muda. Quem tnlbalha, cala. A produção é uma cadeia silenciosa, na qual é admitida apenas uma relação mecânica e exterior entre antecedente e conseqüente, ao mesmo tempo em que se impede qualquer correlação interativa entre simultâneos ( ... ) Na metrópole pós-fordista, ao contrário, o processo de trabalho material pode ser descrita, empiricamente, como conjunto de atos lingUísticos, de interação simbólica. Em parte, [isso ocorre] porquc a do trabalho vivo se

agora, ao lado do

c mas o processo produtivo tcm com07:'matéria-prima" o saber, a informação, a cultura, as relações sociais .

O trabalho se torna lingüístico na medida em que a comunicação se toma mercador~a (sob a forma da mercadoria-informação) e o imelecto, entendido como conjunto de faculdades comunicativas, expressivas e inventivas, torna­se o /lOVO utensílio da produção pós~fordisra. Assim, os tempos e lucrares que na sociedade-fábrica separavam o universo da produção da esfe;a da reproduçãó são desestruturados: o trabalho, progressivamente, retira-se do perímetro da instituição fechada. Ora, a produtividade não depende mais tanto de uma gestão racional e economicamente eficaz dos recursos internos à empres~ (dos seus fatores produtivos imediatos) quanto da capacidade empresanal de colher, compreender, decodificar fluxos de conhecimento resíduos de experiência social difusa - tais como modos, linguagens, rede~ de relação (aquilo que se define como "externalidade posítiva") _ e conferir­lhes valor. Nesse com à nova de trabalho imaterial, torna-se cada vez mais problemática uma real separação entre tempo de

"Lavara e p.181.

h"·'"F-.''''~ , in Zanini e Fadini Lessico

72

trabalho e tempo de não-trabalho. De um lado, na realidade, o tempo de reprodução da força de trabalho imaterial torna-se tempo diretamente produtivo, uma vez que a empresa pós-fordista confere valor a competências, habilidades, atitudes que se desenvolvem (ou melhor, que se constituem) sobretudo durante o tempo de "não-trabalho". Por outro lado, o trabalho imaterial se caracteriza exatamente como processo de produção daquelas relações e comunicativas nas quais se desenvolvem competências, habilidades e atitudes a serem valorizadas.

O devir lingUístico do trabalho traduz-se, assim, em produção de sentido, comunicação e laço social, i.e., em produção de subjetividade, em modo de subjetividade. Dissolve-se, destarte, a distinção tradicional entre estrutura material da sociedade - entendida como universo da valorização capitalista das subjetividades e superestrutura - entendida como universo de formação daquelas mesmas subjetividades. Nas palavras de Negri e Hardt:

A superestrutura colocada ~o trabalho e no universo em que vivemos é um universo de redes lingUísticas produtivas. As linhas da produção

se cruzam e se confundeln !lO mesmo contexto ( ... ) da

as evoluem de o capital constante tende a ser constituído e representado no interior do capital variável que está nos cérebros, nos corpos e na cooperação

• 75 dos sujeitos produtIVOS .

Um exemplo significativo dos processos que estamos descrevendo é representado pelo "logo"76. Na economia pós-fordista dos signos, o logo não é mais apenas uma marca que permite distinguir um produto de outro, idêntico mas de fabricação diversa. Ao contrário, ele encerra o valor lingUístico ou imaterial do próprio produto, torna-o parte de um estilo ~e vida e faz dele um medillln da comunicação social. O logo contém em si uma experiência relacional - veicula e produz subjetividades. Mas o que faz dele um dispositivo de

75 Hardt e Negri, Impero, ciL, pp. 356-357. Ver também M. Lazzarato, Lavoro immateriale. Forme di vira e produzione di soggettività. Verona, Ombrecortc, 1997; P. Vimo, Mondanità. L'idea di "mondo" {ra sensibile e s/era pubblica. Roma, Manifestolibri, 1994. 76 Ver, naturalmente, N. Klein, No Ecollomia globale e Illlova contestaziolle, trad. it. Milão, Baldini&Castoldi, 2000 do T.: edição brasileira Sem A tirania das marcas em Hill vendido. Rio de Janeiro, Record, tradu-

de

73

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produção de subjetividades é precisamente o fato de que ele mesmo é o resultado da valorização de subjetividades. Em outras palavras, para ser eficaz - isto é, produtivo -, o deve poder captar, arrancar e interceptar determinadas formas da relação social e valorizá-las como atributo de um

É nesse sentido que a empresa sta se caracteriza como que valoriza fluxos de linguagem, símbolos c

transformando-os em mercadorias. Mas isso que a empresa valoriza diretamente a esfera da do da existência social:

se consuma o fim da disti da sociedade.

entre estrutura material e

De outra é a vida inteira a ser ao a do momento em que são as faculdades humanas mais comuns que constituem o núcleo da produtividade pós-fordista: capacidade de linguagem, faculdade de expressão e invenção, propensão à comunicação e à afetividade. A

Sea e a relacionalidade se tornaram elementos constitutivos da produtividade, a cooperação social representa certamente a sua forma de realização. Compreende-se, assim, por que o processo de produção depende cada vez menos de prestações singularizadas às quais o comando capitalista pode impor uma organização racional do alto, como acontecia na fábrica taylorista. A cooperação produtiva entre os do trabalho pós-fordista se furta a qualquer lógica disciplinar que pretenda vinculá­la a uma repetição, a uma sincronização, a uma ordem cuja é antitética ao processo de comunicar. A rede substitui a linha de montagem. A ~npresa em rede obtém e valoriza uma cooperação que se produz de baixo e se alimenta de trocas lingüísticas e simbólicas, com relação às quais qualquer forma de organização rígida representa um limite que dificulta o seu livre fluir.

Mas se isso é verdade isto é, se a produtividade do trabalho depende cada vez mais daquilo que, no passado, seria definido como o universo do nâo-traballlO, e se além disso é a cooperaçâo (e não a competição) entre os sujeitos que constitui o pressuposto material deste sistema de produção -, então, ao lado da crise das categorias tradicionais de que vimos falando, perfila-se também a da "lei do valor". Quer dizer, do projeto capitalista de medir, através do tempo de trabalho, o espaço do desenvolvimento humano que permite à produtividade social exprimir-se. Torna-se impossível quantificar

74

. te o tempo e os recursos necessários à reprodução do utensílio economlcamen / ' . 77 de trabalho hegemônico na produção pos-forchsta, o mtelecto . .

Marx prevê as transformações que vemos .desenvolver-se e ~efll1e a nova capacidade produtiva social como generalmtellect. O !I1tellect

é, de acordo com a uma nova

emerge à social: O desenvolvimento do capital fixo mostra até que ponto o saber social geral, knowledge, tornou-se produtiv~l .e, por conseguinte, as condições do próprio processo VItal da SOCiedade são passadas para o controle do General Intcllect" e remode1ad~~ de acordo com ele, até o ponto ele as forças produtIvas :or:m produzidas não apenas na forma do saber, m~s tamb~~11 como orgaos imediatos da práxis social, do processo de vida real

de das dc

I t ' COll1 'I va da nos. e contrasan es <

capitalista. O comando empresarial se coloca diante desse~ p:"ocess<?s ~o"mo

d ,. externo como uma camisa de força que hlmta as mfl!1ltas puro oml1110 , . d t '0 potencialidades da cooperação, ao mesmo tempo em que as encerra en [

da forma da valorização: O trabalho vivo é organizado no interior da empresa, independen­temente do comando capitalista e apenas num segundo tempo, e formalmente, esta cooperação é sistematizada ~10 comando. A coo­peração produtiva se coloca como precedente e mdependente d.a fun-. ção empresarial. Portanto, o capital não se apresent~ como organ.lzad~l da força de trabalho, mas como registro e gesta? da orga~lzaçd~ autônoma da força de trabalho. A funçflo progreSSIva do capItal esta

79 terminada .

d forças da ciência e da 77 "De um lado ele [o capital] evoca, portanto, to as as .

< , • -" 'fim de tornar a natureza bem como da combinação SOCIal e das relaçoes SOCIaiS, à 1

' . d' de trabalho ne a empre-criação da riqueza (relativamente) Independente o tempo < .' " TI " '" forças SOClalS aSSll

gado Por outro lado. ele pretende medir as glgantt:scas < - ' ·OS . " .., l' 't que sao necessan

evocadas a, medida do tempo e apnslOna-las nos 11111 es, .. , . I "t I" de/la cnttca

I .'.' "do (K Marx Linealllent! fonG amell a I para conservar o va 01 Ja cna ., . 78 40")) dell' economia política, trad. it. Florcnça, La Nuova !taha, 19 ,p. -"

78 Idem, p. 403. 79 Hardt e Negri, Illavoro di Dioniso, cit., p. 103.

75

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o controle capitalista se exerce LI posteriori sobre esta nova força de trabalho, não mais como determinação dos pressupostos organizativos que tornam possível a produtividade social, mas como pura expropriação (desvinculada, de fato, de uma troca de equivalentes tornada impossível) de uma produtividade que tende, continuamente, a extrapolar as fronteiras da valorização. Não há dúvida, ademais, que esta expropriação finalmente ocorra. Não pretendemos, é certo, afirmar que agora a força de trabalho social esteja materialmente livre do comando capitalista. Ao contrário, o que devemos investigar é exatamente a formação de novas modalidades de controle da força de trabalho imaterial, tornadas necessárias pelo desenvolvimento de uma cooperação social que excede a relação capitalista.

Sabemos, por ora, que se trata de formas de controle que não remetem mais a um domínio capitalista "interno" ao processo de trabalho, mas sim que se articulam a partir de um comando externo e que, portanto, materializam um poder mais "político" do que econômico do capi tal. Definiria como político o controle que o capital exerce hoje sobre o trabalho exatamente para evidenciar a retirada do domínio de um econômico fundado sobre a idéia de troca de para se a uma relação puro comando. No fordista, a valorização capitalista estava ligada a formas de orga­nização científica da fábrica que permitiam maximizar o rendimento do trabalho operário a partir do interior do processo produtivo. Hoje, a valodzação depende da possibilidade de controlar de fora e de impor a forma da competição (e, subrepticiamente, a lei do valor) a atitudes produtivas que, por sua natureza, são cooperativas80

.

O que definimos como "excesso pós-fordista" configura-se aqui como excesso constante de potencialidades produtivas, de laços de cooperação, de formas da comumcação com respeito às geografias da produção impostas por uma racionalidade capitalista reduzida a domínio. O capital - não mais em condições de governar ativamente, a partir de dentro, a produtividade social, visto que esta excede as formas capitalistas de racionalização do real -limita-se a exercitar um controle, a expressar-se como puro limite externo em relação a uma cooperação produtiva que prefigura a sua obsolescência. Eu falaria, portanto, de excesso pós-fordista para evidenciar, ao mesmo

80 "Com isso a contradição da exploração é deslocada para um nível altíssimo, onde o sujeito principalmente explorado (aquele técnico-científico, o cyborg, o operário é reconhecido na sua subjetividade criativa, mas controlado na

da que exprime" (ibidem, p. 105).

76

tempo, tanto os aspectos de hiper-inc1usão e centralidade do trabalho imaterial no que concerne à produção pós-fordista, quanto ao fato de que esta força de trabalho social alude, constantemente, à possibilidade de superar o parasitismo do capitaL Isso prefigura um horizonte de produtividade livre e de cooperação social não comandada.

Multidão Pelo que foi dito até agora, poder-se-ia ter a impressão que existe uma

profunda separação entre aquilo que definimos ~or excesso negat.ivo e excesso positivo. Isto é, poder-se-ia pensar que os dOIS termos - refendos, respec­tivarnente, a processos quantitativos c qualitativos de transformação do tra­balho descrevem aspectos até mesmo contraditórios da transição em curso: de um lado, a força de trabalho expulsa do processo produtivo, do outro, a força de trabalhoi1iper-integrada; de um lado, massas c:rescent~s de sujeitos que excedem as exigências do sistema, do outro uma anstocrac.Ia do trabalho imaterial que se coloca exatamente no seu centro. Indo-se maIS longe nessa reflexão, poder-se-ia julgar que cxatamente a progressiva centralidade do trabalho c de alta contribui para a exclusão e a estratos da de trabalho que apresentam como excesso com ao sistema

Se assim fosse, dever-se-ia talvez concluir que a transição ao pós­fordismo representa uma vitória, provavelmente definitiva, do capital so~re a força de trabalho. O domínio capitalista abandonaria o terreno do. c.onfllto contra o trabalho para deixar que ele se desenvolva entre os sUJeI~os d~ trabalho. O mesmo raciocínio poderia ser estendido, em segUlda, a composição global da força de trabalho: à crescente informatização da produção em alguns países capitalistas dominantes contrap?:-se, de fat~:. a deterioração das condições de vida e trabalho naquelas reglOes do Impeno

onde a autOIllação não ocorreu. Este ponto de vista não é novo e representa o .11úcl~? :entral. da a;,gu­

mentação de todos aqueles que recusam a categona de pos-fordlsm~ ou contestam que esta reúna condições suficientes para descrever o ~conJunto das transformações que atingem a força de trabalho conten:poranea. Em resumo, quando se fala de pós-fordismo estaríamos nos refermdo apenas a uma elite restrita do trabalho informatizado, deixando de fora tanto parcelas

d ' "d . t s" quanto - e sobretudo crescentes da força de trabalho os pmses omll1an e, . . . . ' . d ' "d . d "André Gorz sll1tetlza - slstemas produtIVOS ll1telros os pmses omll1a os .

eficazmente esta perspectiva quando afirma que "é insensato ~presentar como fonte da da identidade e do desenvolvllnento de

77

I

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todos um trabalho cuja função é a de com que haja cada vez mais menos trabalho e salário para todos "81,

O nosso problema não é, certamente, contestar a validade destas

de fato, É indiscutível , crescentes

não a "liber-

caracterizadas pela i e da I~esr~a f~rma q~e an:plos setores da produção nos quais a infor­matlzaçao nao se faz presente. E também verdade que o devir imaterial de alguns circuitos produtivos tenha, no máximo, possibilitado que outros con­textos da produç~o pen~ane~am mais materiais do que nunca, ou que, final­mente, o trabalho lmatenal seja a forma de trabalho que atualmente "comanda" as outras.

De resto, é que, embora possam frente ús tcnd.2ncias cm curso, - tais como

• A.~. • tempo de trabalho/tempo de não-trabalbo -mantem a sua vlgencla do ponto de vista dos efeitos que concretamente pr~duzem sobre os indivíduos. Em outras palavras, não se pode negar que eXlst~ ~m ~la~o factual no qual a condição de desempregado, de empregada ~o~estlca !m~grante ou de trabalhador temporário comporte conseqüências reaiS, tanglvels e concretas sobre as experiências biográficas subjetivas.

POl~éI~, ~,possível afirmar que tudo isso seatém a uma percepção "feno­menologlca do trabalho, a um ponto de vista que não nos permite colher o excesso expresso peja força de trabalho contemporânea nem identificar o seu p~tenc.ial "subversivo". O plano fenomenológico induz à reificação de conceItos u~~ostos pela. rac~onalidade capitalista, tais como desemprego, excesso, salano, e a cons:dera-Ios como características constitutivas da força de trabalho onde elas efetlvamente não estão. Não é no nível da fenomenologia do tra?albo q~e podemos compreender o significado do excesso pós-fordista, mas SIm no l1lvel da sua "ontologia": são os pressupostos da produtividade do trabalho que hoje excedem a relação capitalista e não as determinacões concretas desta produtividadé2

• No nível constitutivo, ontológico, a f~rça

81 Gorz, Miserie dei presente. Ricchezza dei possibile, cit., p. 66. Uma ampla r~senha das análises que adotam esta perspectiva pode ser encontrada em Vis à VIS, Altreragioni e Capital & Class.

82 A.Negri, Fabbriche deZ soggetto. Livorno, Sec. XXI, 1987 (sobretudo pp.131-138).

78

de trabalho contemporânea se configura como totalidade produtiva indistinta, como conjunto de potencialidades cooperativas que escapam a qualquer regulamentação: nesse sentido, ela é uma multidão.

Na teoria política clássica, o conceito de "multidão" se define em contra-, ao de . No De Hobbes considera a incapacidade de dis-

entre povo e multidão como a estrada que leva à c, temente, à queda dos governos. "Povo" é a entidade que exprime uma vontade geral única por intermédio do querer de um único indivíduo que representa a todos. "Multidão", ao é o conjunto indiferenciado dos sujeitos aos quais uma única vontade e uma única nção podem ser referidas. A sedição nasce não quando o povo se rebela contra o soberano;mas sim quando os cidadãos se revoltam contra a cidade, isto é, quando a multidão se ao pOVOS3 .

Referido, portanto, à realidade produtiva contemporânea, o conceito de multidão identificar uma de trabalhO dctcrmi-

expressa, e

reprodução, emprego e Mas indica também, e ao mesmo tempo, que nenhum sujeito hegemônico, nenhuma "vontade individual" ou ação individual tem condições de exprimir e representar comple­tamente a complexidade desta força de trabalho. Nesse sentido, o conceito de multidão demonstra e supera a inadequação do conceito de classe, não tanto porque a classe opebSria tradicional perde hoje a própria centralidade produtiva, mas porque não é mais possível definir um lugar determinado de constituição da subjetividade do trabalho, de tornar extrínseca a sua produtividade e de expressão da sua conflitualidade, como era possível paro a classe operária fordistaM

.

O excesso negativo e o excesso positivo são entidades indistinguíveis sob o perfil da sua potencialidade produtiva. Tnclusão e exclusão, emprego e

R3 Th. Hobbes, De Ove, xn, 8. O conceito de "multidão" também está presente em N. Machiavelli, Discorsi sopra la prima deca de Tito Livio, l, 58, e em B. Spinoza, Tractatus Políticlts, III, 2, 6, 9. B4 "Multidão é a forma hodierna do trabalho vivo não uma Babel de identidades dispersas, mas tampouco uma nova classe operária 'sob invólucros pós-modernos. É um conjunto de subjetividades cujo impacto produtivo é diretamente proporcional à sua capacidade relacional, lingUística e comunicativa, A linguagem, enquant~ algo comum, é colocada a serviço dos muitos, do ser social inteiro, formação indefil1lda,na cooperação lingUística" (A. Zanini, "Multidão", in Zanini e Fadini Corg.], Lessu:o pos(fordista. cit., p. 214).

79

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não-emprego, são categorias que, repetimos, produzem efeitos absolutamente reais, mas são impostas à multidão pela exterioridade do comando capitalista e pelas estratégias de controle que contribuem para a sua reprodução.

O apagamento das delimitações do agir individual e coletivo que, durante o período fordista, circunscreviam os lugares disciplinares de controle da força de trabalho produz um espaço "liso" pós-fordista, no qual os dispo­sitivos de poder não parecem mais se dirigir tanto para os indivíduos mas sim à predisposição de "aparelhos de captura" capazes de controlar fluxos de produtividade social que atravessam a multidão. Nas palavras de Deleuze e Guattari,

O mais-trabalho e a organização capitalista no .seu conjunto passam cada vez menos pelo cstriamento espaço-tempo correspondente ao conceito físico-social de trabalho. Antes, é como se a alienação humana fosse substituída no próprio mais-trabalho por uma "sujeição maquinal" generalizada, de tal forma que se pode extrair uma mais­valia independente de um tnlbalho qualquer (o menino, o

RS o o de tele-escuta etc.) .

Parece-me que a todo o seu vez que ela é para definir uma de trabalho social que se

- constitui com respeito a qualquer lógica do domínio empresarial. Multidão é aquilo que antecede ao comando e que, potencialmente, escapa a ele; são muitos aqueles que, quase sempre de forma latente, mas às vezes também explicitamente, "transgridem" os regulamentos das instituições do poder e sua filosofia de redução da complexidade. Lá onde o "povo" representa aquilo que resta da multidão, uma vez que as instituições de governo da sociedade tenham desenvolvido eficazmente os próprios dispositivos de domínio sobre o real, a "multidão" exprime exatamente a crescente irredutibilidade dOJeal

85 G. Deleuze & F. Guattari, Apparati di cattura. Millepiani. Capitalismo e schizofrenia. Seção IV, tmd. it .. Roma, Castelvecchi, 1997, p. 118 [N. do T: edição brasileira Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Rio de Janeiro, Editora 34. 1995, tradução de Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa].

86 Negri evidenciava, num trabalho fundamental, datado de 1977, o nexo existente cntre a força de trabalho, a ser entcndida, neste contexto, como classe operária, e as formas da soberania política do Estado que se constitucionalizam a partir do conceito de povo: "A força de trabalho que comparece como totalidade social se configura como povo no interior do mecanismo de reprodução do capital: o povo é a força de trabalho constitucionalizada no Estado da sociedade-fábrica" (A. Negrí. La forma Stato. Per la crittica deli' economia delta costituzione. Milão, 1977, p.

80

. ' . 1'f co e econôrnic086

às cate(Tonas do d0l1uI1l0 po I 1 . A.

t::> d '1 mento da teoria política à teona economlca N-o se pense que este es oca d

a ·t de povo e rnultídão no contexto a .. ',. Inscrevendo os concel os sep lrnpropllO. . , . f d· smo IJretendo evidençiar, de um lado, o

• • 7' do fordlsmo ao pos- 01' 1, ..' .' .. tlanslçao . d hsse operána entidade umtanas,

1" 'a1eIo dos conceitoS e povo e c < • , • dec 11110 par. .' '. d p~presentação singular, sltuavelS suscetíveis de reduct/O od 1lI1wn, paisslv~l~ ee f'ibriC'l) e sujeitáveis ao regime

. ,. determinados (Estac O-I1dÇàO < . < em terntonos . <. • A • d s conceitos de multidão e produção disciplinar-,e,deoutro,~el:,elgenc.l~, ~ tíveis não representáveis e

,., 1 - entidades multlplas, lIle u, .' d SOCla. .. 1. adas às llU'üS se torna necessário impor um novo regime e desterntona lZ< ,. <"

controle: d r d des O comando imperial não se exercita segundo as mo a 1 a .

< . de acordo com as . . r . 'es do Estado moderno, maS SIm <

dIScdlPl'dm~1 do controle biopolítico. Estas modalidades .tê!:, ~omo mo a 1 a es . - d ser diSCiplInada b'lse e objeto urna multidão produtlva que nao po e 1."

< '. "ontudo deve ser governac ct l1à sua e normalIzada, mas que, c .'. . ~ )elo sistema

A idéia de Povo enquanto sUjeito I , do não funciona mais; em

é pela mobilidad1'7 pela de

diferenciação perpétua da multidão . . . ós fordismo se entrecruza, aSSI111, com o

A pa~sagem do for~ls~:Ou:a~o~erania estatal definida como complexo progressIvo esgotamen o r . _ disciplinar da classe operária e com a de estratégias de norma, l~aç.ao erial construído com base no controle emergência de um dOll1.l11l0 1.m

p t 'ole "biopolítico" coloca-se num

biopolítico da multidão. T?daVla, .es~e c~; sinoulares da força de trabalho plano t~talmente externo aSddet~I:l~:~~tali~ta ~eduzido a puro comando. É social, mscrevend~-se num .00~Im. d. 1 entre biopolítica e disciplinaridade aqui que se detenmna a sepmaçao lU lC~ . . b II com a qual eu acenava nas primeiras pagmas deste tra a ,o.

87 Hardt e 81

cit., p.

M

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Capítulo 3

Governo do excesso e controle da multidão Da da ao governo do excesso

Podemos, agora, começar a repensar a análise da relação entre dinâmicas da produção e formas CÍQcontrole social a pmtir da emergência daquilo que definimos como "excesso pós-fordista" e tendo como hipótese que as estratégias pós­disciplinares orientadas para o controle da nova força de trabalho, da multidão, convergem na formação de um regime de "govemo do excesso".

Esta hipótese se baseia, por um lado, na análise do esgotamento do papel produtivo do comando capitalista que descrevemos até este mOlTlento e, por outro, no fato de que um processo análogo também é observável no plano das de controle social. Em outras parece-me que o fato de o llomínio disciplinar ter urn menor controle dos processos lle trabalho está uma crescente dos aparatos e das estratégias de controle para com a multidão Obviamente, movemo-nos no plano da tendência e o objetivo aqui é traçar algumas linhas de transformação prováveis, e não descrever um paradigma inteiramente desenvolvido. Ainda no terreno do controle social, do mesmo modo que ocorre no contexto da produção, muitas vezes encontramos, à frente de processos de mudança que prefiguram horizontes completamente inéditos, a persistência de modelos, estratégias, práticas e instituições que parecem atestar uma substancial continuidade entre passado e presente. No fundo, política, tribunais e cárcere ainda constituem, praticamente em toda a parte, as instituições fundamentais do controle social. Mas isso não deve prejudicar o sentido de uma análise atenta aos fenômenos que se agitam sob a supeIfícíe do presente para colher a tendência das transformações em curso.

Devemos, porém, deter-nos uma vez mais sobre aquele complexo de estratégias e racionalidades que tem definido, até agora, a relação entre controle social e sistema de produção capitalista. Isso é necessário porque, como já foi visto, no processo de desenvolvimento do capitalismo industrial, desde a acumulação primitiva até o fordismo, os dispositivos de controle exerceram uma função fundamental de racionalização disciplinar da produção e de sujeição da força de trabalho à valorização capitalista. E é exatamente o aparente esgotamento desta função produtiva do controle que constitui o objeto do nosso discurso.

83

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Gostaria, portanto, de voltar a Foucault e em particular suas hipóteses sobre a governamental idade, a discip1inaridade e o biopoder, Trata-se, de fato, de conceitos que representam as coordenadas essenciais daquela cartografia da modernidade e dos seus aparelhos de poder que se revelaram instrumento indispensável para compreender as diversas articulações da relação entre controle disciplinar e produção fordista, Essa cartografia, de

foi também atingida, e de modo significativo, pela economia política da pena que descrevemos nas primeiras ptíginas deste trabalho,

O pensamento volta-se quase que instintivamente para Vigiar e punir, É aqui, na reaJidade, que FoucauJt se ocupa especificamente da penalidade e das Suas transformações, revelando uma atenção constante aos processos de transformação da economia capitalista e aos seus efeitos sobre o universo da punição, A pesquisa sobre o "nascimento da prisão" representa a sistematização definitiva de análises e renexões que Foucault estava empreendendo já havia tempo (devemos pensar sobretudo nos cursos ministrados no College de France entre 1970 e 1974), e muitas vezes são os materiais n50 sistemáticos que revelam as foucaultianas mais

a respeito das relações entre de prodUção e de controleSl',

No centro do projeto foucaultiano encontra-se a tentativa de reconstrução de uma genea10gia das tecnologias de poder que nos permite decodificar a economia e as racionalidades internas aos sistemas de Controle, O objetivo principal é, pois, analisar os processos históricos de transformação dos dispositivos de repressão, perguntando sobretudo de que modo eles, abandonando progressivamente uma lógica baseada na negação e na destruição dos desvios, foram capazes de desenvolver uma função produtiva que os torna partícipes do processo histórico de afirmação do capitalismo,

Os processos de formação das tecnologias disciplinares descritos em Vigiar e punir constituem o contexto em que se dá a passagem do "suplício" à "prisão", isto é, de um poder que destrói a um poder que transforma, Por

88 Numa conferência de 197 I, Foucault descrevia as linhas mais gerais da sua investigação: "Pareceu-me interessante procurar compreender a nOSsa sociedade e a nossa civilização através dos seus sistemas de exclusão, de rejeição, de recu­sa, através daquilo que elas não querem, os seus limites, a obrigação de ter de Suprimir um certo número de coisas, de pessoas, de processos, aquilo que elas devem deixar cair no esquecimento, o seu sistema de repreSSão-supressão" (Conversazione COll Michel Foucault, l!, coord, A, da1

Milão, Feltrinelli, 1997, p,38), 84

A' niverso disciplinar só pode ser compreendida no sua vez, a emergencla do u, , 1 'o da afirmação da "governamen-

so mUlto mms amp o, , _ interior de um proces , ' as introdutórias, trata-se da translçao talidade"89, Como se acenava nas pagm delo da soberania para uma prática çle uma lógica do poder centra~~ ,1:0 l:~ode croverno", A ciência de governo

t' da nOV'l ClenCI,l o c do poder que se nu le < b' ler 110 l'nterior do qual tomam 10rma ' I - d 1exo sa er-poc redefine a artIcu açao o I ,_ 't' lar Contra um poder soberano

' '1' e a pnsao em par ICU , ._ '1S técnicas dlSClpltllares. t' ' s de cOl1lr'ole à conservaçao e f . r '15 estra e(Jw q

ue emprega os recursos e llld. lza < • 't' el~ cena na idade clássica, uma " ,. (J t'vas absolutas, en la <, _ fi

das propnas PI erraoa 1 "d' "(Je à populaçao e aos uxos d ," overnamental que se llle:> " concepção do po el g 1 d f" a "governamentalidade como ,. "um Foucau t c lllC <

produtivos que a perpasse, '" _ procedimentos, análises e ' 'd pelas ll1stltmcoes, ,

o conjunto constitul o . "t' exercitar uma forma mUlto ' t'fcas que peUnI em _

reflexões, calculos e aI. 1 d oder que tem como alvo a populaçao, , 'to comp exa e p específica e tambem mm , olítica e como instrumentos como forma principal de sabe .. ' a economl~ p" 90 '

, '. ' d' ositIvos de segUI ançcl , , técmcos essenClàlS os lSp '., t a penetração da economm

j 'd d " pOlt"n o < , A "crovernamenta 1 a' e , to (Ie saberes relativos a

b . " . • 1." isto é cOI1Jun '. < , jJolítica na "razao de Estaoo " , O hto de a economIa ' /,' d"s SU'lS ,

correta de um ternt,ollo ~ ú .!" , '110 permeando as suas estraté-" 0l1'lhdade (e croveI , Política se impwmr na raCI < , e:> t' , desse momento aovernar ' , '- "fica que, a par 11 , b

aias práticas e 1l1stltmçoes, slgm d 'es que derivam do novo con-o , 'd fvamente os po er , um Estado e exercitar pro UI" potencialidades produtivas e 1l1-' , Tará maXllnIZar as , ceito de soberama slgm lC _ ' d 11esse meio tempo meeamsmos

d opulaçao atlVan o , centivar o bem-estar a p , ' a estatística social, os recensea-'fi -o dos resultados, tms como deven lcaça , . 1

ntabilidade naCIOna , , ' mentos, a co 'A '. d d r influir mediante estrategms h' " d conSClenChl e po e, A

A aquisição lstonca a Iações e sobre os fenome-' 1 d ocessos~obre as popu "

de governo raCIOna os pr 'I 'a constituição de novos re-f . 11am (eterm1l1a nos econômicos q~e,os c?n Oll , lomerados de saber e de poder, q,ue crimes de práticas' , lStO e, de novos

d ag _ saúde a sexualidade, a hlgle-

o 'd erno' a pro uçao, a < , d definem os obJetos o gov ,', io de auto-conservação, que se tra uz na ne, Um poder fundado no pnnCl? d' uilo que constitui uma ameaça, possibilidade sem limites de repnmir tu o aq, t 'i político e as nascentes cede lugar a uma troca de saberes entre o SlS em,

b lho de M Dean, ' "ver sobretudo o amplo tra a ' 89 Sobre a "governamentahdade , . . Londres, 1999,

' P , d Rule 1/1 Model/l , 65 Governmentallty, owel Qn ,_ lt Pote ri e Clt" p, ' m Foucau , 90 Foucault, "La, 85

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ciências sociais e biológicas a uma idéia de pod s ",' ' er como motor dos proc os, como SUjeIto atlvo de transformação da realidade9j es-

, O poder se torna então, progressi vamente reaula 10 ~'lS -ves das quais o governo da so ' d d' ',b ç, ,populaçoes atra-, , ' .. ele a e e exercitado um aoverno 'd t' que se mSll1ua na complexa intenç'lo entre f A' b pro LI IVO,

l)l

'o(lut' . 11 " ' , enomenos lJ[()ceSsos lVO~ e UXOS VItaIS que não elevem ser ,.' constrangidos, mas sim dirioidos .]' eI. . obsL:lcuhzados e Ainda segundo Foucault: b ., CaiU lza os e orgal1lzados eficazmente.

~sclaboração ~l~. I~ro~Icl11a população-riqueza (nos seus diversos aspce-concretos., tJ~calidaele, carestia, despovoamento ócio-v '

dagem) constltlll uma das condi"ões IYlra a COI' 1 ~ d agabUl:­p l'f E ,. . "f ' , , I' 11açao a eCOnOITIIa a~S;ã~~' ,sjt,a ~ltlma se desenvolve quando nos damos conta que ~ ;xcl ,a le açao entre re::ursos e população não pode mais depender

USlvamente de um sistema de tipo rcaulal11entar' e c .. 92 A ... . b' (. oerclllvo . pclssagem da soberallla como poder a .

um que ordena " Idade para ~ a I fi

racionalidadceconômica JO' 1 ~'''";,,' aCll1ilivada

tl"'.lll

0

C .I~ . d I 1 (ta LH:tlCla de fTO\"""ll() ,'1 , "cne cnel '1 c I b "" . '. ,U111 80 )crano quc se colOC"V'l ac' f' cd' . ct , ( llTIa c ora oman ava e substituída pela imanênch de que

interior dos processos que l'egula A . t' (~ ~Jm governo que se coloca no . ( . S le erencns deste p d ,- - .

~~~;;~~i:':'.~~~~e~:~~i~~~~a~;q~a ~ t~ dei i~1i ta ;ão eSpaC~"1 e~~::~~;~I7'aa~~ ep O~~I~'~O enquanto destina~ári~ ~~ll~:~~~~: :l;~I;~~~~:.e~t~odn~~~:l~pn~foó~~

governamental" será ao c t·' " " população-riqueza um or ('. 011 rauo, constItUldo pela tríade território-, ganlsmo complexo um cor o . I

consome recursos limitados. ' p SOCIa que produz e

Paralelamente à formação d t . / positivos e práticas de e ' ~s a ~10va r'2clO;ullidade, consolidam-se dis­s gUl ançd CllJ a funçao e garantir o COI'l'elo fu . nClOna-

91 MI' 'd . e OSSI eVI enCIa, de forma muito a 1'0 r' d ' . -transformadora do poder no seu t i p bP Ia a, a afIrmaçaodesta concepção

. es ue o so re o proc s h' " ção do conceito de "controle social'" .e. so lstonco de consolida-de "Estado" que doml'na 'lS c.;. n~s .Estados Umdos (conceito alternativo ao

(, lenCIaS SOCIaIS europ'" ) O ' a capacidade do poder d . f . . etas. controle SOCIal condensa

e m Ol mar-se a respel to da . d d suas relações produtivas em se s" ~ .socIe a e, penetrando em , u lenomenos culturaIS e e d' ~ . construção do consenso. Cf. D. Melossi '. . . m suas manlleas de Polity Press, 1990. ' The State of Socml Controlo Cambridge,

92 M. Foucault I corsi ai C ll' I F 1999,p.78.' o ege ce 'rance. 1 Resumées, trad. iI. Milão, Feltrinelli,

86

mento do aparato "governamental" e preservar o princípio de maximização económica sobre o qual ele é regido. Falando dos dispositivos de segurança, Foucault se refere a um conjunto de práticas de controle e supervisão da po­pulação, mas também à educação, aos que então despontavam, às políticas de saúde pública, em suma, a tudo isso que permite a reprodução e a """",,,""'<1""'0 de de produtiva das

As estratégias de controle social, e em, particular as penalidades e a criminal, integram igualmente estes aparatos de Aqui a análise da governamentalidade se interliga à microfísica do poder disciplinar: as técnicas disciplinares, como Foucault não se cansa de repetir, não constituem um prima com relação 11 "governamentalidade", uma fase anterior a esta e colocada a meio caminho entre o esgotamento do modelo da soberania e a origem da nova ciência de governo. Ao contrário, o controle disciplinar é imanente à governamentalidade e 11 biopolítica. Nele se condensa, na realidade, um con­junto de tecnologias e práticas de sujeição dos corpos a partir das quais pode

forma uma do das assume

da soberania. Tambérn ela participa da difusão de uma concepção e produüva.:k> poder. Assim, pode finalmente consumar-se a superação do suplí­cio em toda a sua teatralidade destrutiva, e o alvorecer de uma penalidade silen­ciosa, discreta, que age com sistemática regularidade na penumbra das institui­ções totais. A penalidade torna-se, portanto, um processo mediante o qual produzem-se indivíduos cuja utilidade - tanto como singularidades quanto como partes de uma população produtiva - se realiza no trabalh0

94

.

No entanto, o corpo permanece no centro. As diversas técnicas do poder se exercem sobre o corpo, nele imprimindo as suas marcas. Sobre o corpo

93 Esta foi a definição que Foucault deu aos ::lpar::ltos de segurança ministrada no College de France no dia 5 de abril de 1978: "Pó r em prática de mecanis­moS de segurança ['H] mecanismos ou modos de intervenção do Estado cuja função é garantir a segurança dos fenómenos naturais, dos processos económicos e dos processos intrínsecos à população, torna-se o objetivo principal da raeio­nalidade governamental" (citado em G. Burehell, "Governmental Rationality. An Introduction", in Burchell, Gordon e Miller (cds.), The FOllcault Effect, cit., p.19). 94 "O corpo deve ser não mais marcado, mas sim adestrado e corrigido; o seu tempo deve ser medido e plenamente utilizado; as suas forças, continuamente aplicadas ao trabalho" (Foucault, I corsi ai College de France, cit., p. 40).

87

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se consuma a violência espetacular do suplício de Damien, que ocupa as primeiras páginas de Vigiar e punir; sobre o corpo se fundam agora as tec­nologias disciplinares que anunciam o fim daquele suplício. O mesmo corpo sobre o qual se materializava a ilimitada potência destrutiva e aniquiladora do poder soberano agora se torna objeto peculiar do poder "governamental", o núcleo sobre o qual convergem os novos saberes reguladores (as ciências biológicas, a estatística, a medicina, a psiquiatria, a criminologia), as novas instituições (escolas, quartéis, hospitais, hospícios, prisões), os novos regi­mes de práticas (a investigação, a pesquisa, o exame, a terapia, a sentença).

A racionalidade do biopoder disciplinar e "governamental" certamente se constrói, como se disse mais de LIma vez, sobre uma idéia produtiva do poder. Mas esta produtividade não se explica se não se leva em conta um elemento fundamental (que permanece enquanto tal até a crise do sistema de produção fordista). Os dispositivos de poder e de controle devem ser ativados produtivamente porque existe uma improdutividade social difusa à qual é pre~iso pôr um fim, uma latente dispersão de recursos que deve ser contida, uma carência de cooperação produtiva que deve ser recuperada. As relações capitalistas de excedem a de trabalho, convocam-na para for­mas de cooperação em relação ;lS quais ela se revela inadequada, da, de-socializada, carente. Para rCI1'lediar essas carências, o sistema capi­talista teve de inventar "métodos de poder capazes de ampliar as forças, as atitudes, a vida em geral, sem, no entanto, tornar mais difícil o assujeitamento"95.

A prisão e as demais instituições disciplinares materializam uma nova concepção do espaço e do tempo aplicada aos corpos e ü população. A sin­cronização dos gestos, a regulação das ll'Rlssas de indivíduos na indústria, a relação corpo-máquina, são aspectos que exemplificam a racionalidade eco­nômica peculiar que se afirma com a emergência da produção industrial e se consolidará com o desenvolvimento do capitalismo fordista. As tecnologias do controle disciplinar exprimem esta racionalidade, traduzindo-a em moda­lidades específicas do punir96. As linhas desta evolução se articularão, simul­taneamente, seja na fábrica, onde os princípios científicos de organização do trabalho conferirão à direção o papel de propulsão e de governo da produtí-

95 Foucault, La volontli di sapere, cit., pp. 124- I 25.

96 "O tempo dos homens deve ser oferecido ao aparato de produção; é necessário que este possa utilizar o tempo de vida, o tempo de existência dos homens. É por isso e sob esta forma que o controle se exercita" (M. Foucault, "La verità c le forme giuridiche", in Archivio Foucault, /l, Poteri, p. 1

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. d f'b " a onde as políticas keynesianas de regulação da 'dade sep fora a a uC,,' d d . t ão

VI, .' d d definirão as coordena as a 111 ervenç-relação entre economm e socle a e

•• 97 tatal noS processos SOCiaiS . . . d

es . I 70 das \'chções entre economia e socleda e e , - d empresa legu aça ,. c I' DJreçao a <,' , " O11'llidade "Governamental" na mec l-I do d~svio expressam uma !UCI , , I::> , •

contro e 1;;, '.' disjJositivos cm condições de mItigar ~ 'luto-constituem como ' ' .

da em que se .' f " 'i. . as de suprir determinadas faltas, de lI1tegrar o que determmadas tl1SU IClcnCl", lfi aur'lrem como dispositivos de

.. " t' momento em que se COI I::> '

é deflCltano, a e o .~. a for '1 de trabalho no confronto com a or-disciplinanzcnlo das cm enclCls~, A j:b " ~'l eleve ser crovernada "cientifica­ganização capitalista da produçao. ,\ ~ll~' .' ~ l' d deve ser gover-

" ,', ~ ias de produtividade, a soclec à e ' mente para suprir à carenc 'f" t ~ s cal'e~llCJ"lS de inclusão devidas aos

. '1" t~" )a1'a f'lzer [ell c", " nada "Clentl leamen e I "d" . deve ser' ti'atado "cientificamente" para

. . d 'cado' o esvlO ' , deséqmlíbnos ~o n:el ~'. l' . ';' e inteGração que se produzem quando

d' carenClaS de SOCla IzaçdO b reme tar as, . . falham De um ponto de vista interno à econo-as outras praticas de goveln~. 1 'e'lo' cjue se 1)ossa sintetizar deste modo a

. l't' '1 elo controle soela , Cl t . . I' mia po i IC, _' ~ .. " .. , .. , Jrúticas do controle cltSClP mar simbiose entre produçao, proCt;S~O~ SOCI,11S t; I

durante o forc!Jsmo. que se 'de e formas

. '1 ' : peruuntar quaIs ~e~sa:1 ~ura, e do domínio b se constituem a partir d? esgotament~. d~

de raCIOnalidade . 1 . d strial do capitalIsmo e da transfor-d· d 1cerramento do CIC o 111 u

for lsmo, o el , f 'd' .t' em multidão. Isto é, chegamos ao mação da força de trabalho pos: or ,;~. das de croverno se recortam no hori-

t d perountar que novas pIU IC I::> momen o e b .' d' 'ê lcia para um regime do excesso. zonte da passagem de um regIme cl Cal I

".,. b"'r" O controle como nao-sa... ., ., _ . .,. 'd' no )ara o pós-fordismo, marcada pela ti ansfol mel

A tranSlçao do for lS\ I" ~ !f dão determina mudanças - d f ' 'i de trabalho contemporanea em mLl I, . . ..

çao a OlÇ, .' r d' de "governamental" e dos diSpOSItiVOS signifícati vas no terreno da 1 aCIOna.I:1

.

de controle que asseguram a sua vlgenela.

I . reSI)ectiva-d · . r . overnamental no qua se Situam,

97 A respeito do complexo ISClp lI1ar-g _ '. velfarista da sociedade, . - I ,', da produçao e o governo " .

mente, a orgamzaçao tay ~!lsta. '" ~d' de' "Na fábrica, o taylorismo radicaliza Clen-Lazzarato escreve com multa plOplle a.. (, . duç'lo aoS esquemas sensO-

d - d corpo a orgal1lsmo sua le , d -tifícamente a re uçao o . . o ula 'ão em processos de repro uçao, motores). O welfare articula e dlssemma li P p. ~ .,. da família das mulheres e

d .' - (controle e mstltulÇàO , , multiplicando as figuras a sUJelçao . Lavoro

'd d' e da velhIce das da sau e, a immateríale, cit., p. 121). 39

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o excesso negativo é representado como um conjunto de subjetividades que excedem a lógica "governamental", uma vez que acentuam a contradi­ção entre uma cidadania social ainda baseada 110 trabalho e uma esfera pro­dutiva que cada vez tem menos necessidade de trabalho vivo. O excesso poslflVO se por seu turno, como conjunto de subjetividades que exce­dem a racionalidade porque a entre uma potencialidade produtiva ilimitada c cooperativa e um arranjo das relações de produção que cria obstáculos à autonomia do comando capitalista, impondo às de produção lima valorização baseada na competição,

Quando falo ele exclusão ele desemprego, de marginalidade, refec

rindo esses termos a aspectos de um excesso negCllivo, procuro evidenciar dois pólos de uma contradição que parece insolúvel nas condições atuais, De um lado, observamos uma sociedade cujas dinâmicas de inclusão são medi­adas pelo trabalho entendido como emprego, como ocupação a tempo pleno, garantida, continuada e cm resumo, uma sociedade que continua a subordinar a titularidade dos direitos de cidadania e, em última direito ii existência à concl trabalhador trabalhadora, De outro

emerge uma estrutura das de que se funda exatamente na redução e na precarização do trabalho,

O acesso à renda, ii cidadania, à integração social e à própria existência é, em outras palavras, subordinado ü satisfação de um requisito que desapa­rece progressivamente do horizonte de possibilidades da constituição mate­rial pós-fordista, Vejo aqui uma primeira vertente da contraclição, que as atuais estratégias de controle se dispõem a conter, reprimir ou inibir devido às suas conseqüências potencialmente subversivas da ordem social: a con­tradição entre os requisitos que a constituição formal da cidadania requer abstratamente, e os recursos que a constituição material pós-fordista pre­dispõe concretamente,

QtJãndo falo de trabalho imaterial, de intelectualização da produção, de trabalho lingüístico e de general imellect, referindo-os a aspectos cio e:rcesso positivo, procuro delinear as características de lima contradição ulterior, mas em tudo complementar à precedente, Refiro-me ü contradição entre uma força de trabalho que possui, potencialmente, capacidades e atitudes produtivas que permitiriam superar o comando e a organização capitalista cio trabalho e um sistema de relações de produção que, ao contrário, se impõe de fora, como domínio puro e comando parasitário, A contradição se define aqui como excesso da atividade enquanto cooperação social produtiva autônoma - sobre o traballzo - enquanto produção hetero-dirigida de mais-

90

cI . 'cI I enraizando-se . como conflito entre um potencial cle pro utlVl ac e qu~, ,'., . valIa, . d 'JO vivo (comunicação, invençao, criatiVidade), diretamente nas atitudes o cOIl , r d'lde vazia de empresa

/ 'fl"IO o comando capitalista, e uma raCIOna I < < torna super < '

que não obstante, a tudo se, , , _ , ," -,' lo nexo entre produçao e Para tentar delinear as novas conhg:H'açoes ( I' I' .. de tnl)'llho

IJ'lrtll' novamente c <l orça " devemos ' l

. dustrl' aI da chsse OIJerária, 11 multidão, ti nova c ~ "i" m ,," 'd /' d "lpltal Isso slgm 1-

cuj~s det~rn~~naçõe~ produtivas :~c~~~~~~~e ~~1~1~:.~1ill~da~1~~e d:l ~acion,:lídade cara anahsar dS nOV~lS .'! I' c se lI1scre-d' 'r isto é a partir cio esgotamento da 101'111a (e poc el qu, '

:SClP ma~, ' de l'j'lll'l'for'ç'l de trabalho localizável no tempo e no espaço, vw no corpo ' < , ' '.

1 f' 'd eh I)rodução industnal torchsta, c e 1m os p , , ' 1'1 d ode r

, ;- é de forma alcruma, secundana. O moc e o e p A passagem !1dO , , b, t'tul'do sobre um. saber

1 '. d' sCII)!mares era cons 1 que informava as tecno OgI,lS 1 . ti' elos indivíduos e

• 1 • oso ., ( o corpo, proful1Cto e llnmlCl u

~lS

O do

de e tava-se, por como ~'. .',. ' I . Era um cisa como cartografia exata das dinatmcas produtl ~<lS ~.o;s 1 10 interior da

" . do se tratava de Olgal1lZ,1- 01 , saber retirado do C~IpO: q~e, quan , ' b a forma de prática disCl-fábrica, voltava a lmprumr-se sobre o COlpO, so

plinar e controle: " .' saber do ope-Numa instituição como a fábrica, o trabalho opelall~ e ~ ". ue-'ário sobre o próprio trabalho, os melhoramentos tec111coS: àS peq

1 a i~ven ões e descobertas, as micro-adaptações ~ue eles tmham con­'~~ÇsãO de 1~lzer no curso do seu trabalho eram imed\atm~~nte anotado~,~

I '., ' .. ~ cia subtraídos de sua pratIca e acumu à

Id'eglst~~op~~~;t,~~:~~~~~dO: o trabalho do operário vem g~nhan(blo,. os p d ' '1' d· ou um certo sa el

Pouco a pouco, um certo saber da pro utlVI( cl e, . 99

.. , , forço do controle ' técnico da produção que penmtlra um le . ,~

• (T 'reaíme do excesso e exatamente Mas o que acontece com a paSS<l:"e~11 ,\0 b '1 d "cxtl"lir" este saber

, ' 't d .' 1stitUlçOes elo contIO e, e' . a possibIlIdade, porpal e as lI, .. d' dllt'lvI'da(!e" de que fala

, 1 'd;- O "saber . a pIO " cio corpo produtIVO da mu tI <lO, ' _ . t ,) d'l força de traba-

f ' t 'IS 111'10S (e nas men es c Foucault, permanece lrmemen e n, ,c '

, ' . \' I ver R, Alquati, Lavoro e attivirà, 9~ Sobre a distinção entre trabalho e àllVI( àC c, , M' 'f' ,tolibri 1997. Per UlI 'anolisi dell(l schiavitii neomodenw, R~m,l, ,mi o;;S ,

. , '. . ,'d' '\ " clt, I), 160, 99 Foucault, "La venta c le fOI me glUl1 IC 1C, ,

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lho pós-fordista, escapa aos dispositivos de controle recusa os seu ' tos de captura e s ' " , " ' , s apara-

e mostw III edutl vel as c'ltecrorias que trabalho ' - ' b emprecram' valor-

d' c~mpetlçao, tempo de trabalho e tempo de não-trabalh~ pr~duçã

e repro uçao, ' , o

con~: 00 :oe~~lI~~ da carência podia ser definido, em termos fOllcallltíanos chegado l.nlveIso no qual se desenvolvia um poder-saber, talvez tenhal11o~

ao momento ele que o rec' -I • rr 'd" ",llne l o excesso pós-fontista se (lua-1 Ica ca a vez mms como terreno d ,. el

pelo nâo-saber As det'r 11' ,,_ , e exerclclO e um domínio caracterizado ticas constituti ;'1S' ,,<.: I, !l1dç~eS ,concretas da mu ltidão, as suas caracterÍs­pode dar v' I ,. f' o,s seus pOsslveIS c_omportarnentos, as interações às quais

pu <' l!C a, as ~: n:a~ de, cooperaçao que constantemente alimenta esca-< m a qua quer deÍll1lçao r cr' d ' • <

condição d - b o l,b,orosa ~ parte dos aparelhos de controle, Esta . _e nao-sa el qualifIca os dispositivos de contr I., ,,' "

uma funçao de supervis'Io d. r ' _ o e e os ollenta paI cl

contenção do excesso, L , e 11111taçao do acesso, de neutralização e de

O controle da

em tomo ela les que ',. " '.' naque-mbe' l' 'l" am, à passdgem de prallcas CQl1struídas sobre um , , _ I G ISClp II1GJ para modalIdades de controle caracterizadas . dlçao de não-saber, ' pO! uma con-

Não se trata de construir um novo paradicrma ou de I f 'o a~rangente de análise cio controle social. A; transform~~~:~l ~~1~c~~0,de~0 :l~ba~ho so~re as qua,is nos debruçamos afetam, de modo si~ni~lca:i~<~ ~ re a~ao entle economIa e controle, e sugerem a oportunidad: de ' ' 'o

dcodI1Juntamente os instrumentos conceituais da economia política dalepe~sl~I

a e, Trata-se po o~ ',' . < pelIa 1-, ,l,em" como Ja se repetÍu mUltas vezes, de rocessos de

dmudan~a t~l1dencJa!S, all1da não claramente definíveis, É porta~t l' a tendencJa que de' o'. o I ' ,o, no p ,l!10

vera seI co ocada a descnção das tecnolo cr ' .. , . que ganham forma a partir destas transformações, ",IaS de contlOle

mai~ :a:l~~Pticoll foi consi~erado por muito tempo como a exemplificação , ,nte das tecnologIaS disciplinares de controle dos indi 'd A

Sua arqUltetura funde, plastícament 'b' .', VI uos, ra histórica eficaz do proce d f~' osa, e: e podel, e C?l:Stltu! uma metáfo-dos cornos no espaço Nele

sso e 01 n:,lçao das estrategws de organização

I:"' ' ,se concretiza ') utoph d' " uma obsel'vabl'll'dade l'n' t <, mo elna e capitalIsta de

, , III errupta e o' . I absoluta dos ' plll1Clpa mente, de uma transparência

nos olhos elo tos porque sabe exatameme onde e quando que 92 atém

minuciosamente à norma porque não sabem exatamente de onde e quando serão observados. Ora, justamente esta concatenação de saber e poder que sintetiza toda a economia do sistema disciplinar parece estar sendo progres­sivamente desarticulada para ceder lugar a tecnologias de controle que mi­gram em direção a um regime de supervisão e contenção preventíva de classes inteiras de sujeitos, renunciando, assim, a qualquer saber sobre os indivíduos,

A metáfora do Pa/lopticol1 foi recentemente retomada em algumas análi­ses sobre as transformações do controle na sociedade contemporânea, Sus­tentou-se, por exemplo, que as atuais tecnologias de controle convergem para a construção de um regime pós-panóptico, definível como Synopticol1, Na "sociedade do espet~ículo" contemporânea não seriam mais os poucos a vigiar os muitos para obrigá-los a seguir as regras, mas sim os muitos, cons­tantemente transformados em "público", que admirariam as façanhas dos poucos e interiorizariam valores, atitudes e modelos de comportamento, tor­nando-se assim indivíduos responsáveis e consumidores confiáveis l()(), Do mesmo sustentou-se que o Pallopticoll estaria sendo progressivamente substituído um modelo de controle no grupos sociais restritos exercem um poder de restritos lOl

, Estas descrições, embora bastante entre si, parecem concordar num ponto: o esgotamento da utopia disciplinar de um saber ab­soluto do poder para com os indivíduos, e também o fato de que este grande desenho da modernidade está sendo substituído hoje por tecnologias de con­trole que renunciam explicitamente àquela utopia,

Se examinarmos as marcas desta renúncia, constataremos o vislumbre de tecnologias de controle orientadas para o internamento, para a vigilância e para a limitação do acesso, Nas páginas que se seguem pretendo oferecer alguns primeiros elementos de descrição destas tecnologias, confelindo particular aten­ção àqueles contextos em que me parece que elas começam a se manifestar de forma mais definida: o cárcere atuarial 102 , a metrópole punitiva, a rede,

tOO T. Matbiesen, The Viewer Society: Michel Foucault's Panopticon Revisited, in Theoretical Crilllinology, 1-2, 1997, pp, 215-234, lOl R,

285-307, Post-Panopticism, in ECOIlOllly (/Iul Society, vol. 29, 2, 2000, pp,

Hl2 O termo "aluarial", como veremos nas páginas que se seguem, remete aos e às eCOn0l111CaS das empresas de seguro, Trata-se

de uma filosofia de cio risco e do

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o risco aprisionado - Já é quase um lugar-comum colocar a crise do fordismo por volta da primeira metade dos anos 1970, mais precisamente em 1973, ano em que explode a crise do petróleo. rígidas assim se prestam, obviamente, a muitas críticas, a primeira das quais é a que afirma não ser nunca sociologicamente individualizar o momento

em se determinam dramáticas ou pas-sagens de paradigma. Se de um lado esta crítica parece completamente razo­ável com aos fenômenos econômicos,~ do outro - no que concerne às mutações ocorridas nas estratégias penais contemporâneas - não o é. Em outras palavras, ocorre um momento de ruptura, claramente identificável neste caso, que coincide exatamente com o período em que, embora de modo discutível, tendemos a situar a crise do sistema fordista. E existe tam­bém um lugar onde esta ruptura ocorreu: os Estados Unidos.

Durante o segundo pós-guerra, a população carcerúfÍa dos Estados Uni-dos uma tendência constante à queda sobretudo, du-rante os anos favorecida dc diversos fatores. O "clima moral" toler~mle que se dos direitos ci o menta do Estado social e a introdução de formas de controle alternativas ao cárcere certamente desempenharam um papel importante nessa direção. Porém, na metade dos anos 1970 ocorreu lima radical inversão de tendência. A população carcerária começa a crescer, primeiro gradualmente e depois de forma acelerada. Passa-se de 400.000 presos em 1975 para 750.000 em 1985, chegando-se à cifra de mais de dois milhões em 1998 e esse cresci­mento ainda não dá sinal de que vai parar.

O aprisionamento atingiu níveis jamais alcançados no arco de toda a his­tória dos Estados Unidos, superando até mesmo os da África do Sul da época do apartheid e da Rússia pós-comlll1ista. Nos Estados Unidos a média de prisioneiros é cinco vezes superior à da Europa. E se acrescentarmos aos detetltos todos aqueles que estão sujeitos a alguma forma de controle penal extra-carcerário ou para-carcerário (medidas alternativas, probatiol1 ou parole), verificamos que a população americana "penalmente controlada" conta, em seu conjunto, com cinco milhões de indivíduos,

Seria inútil procurar nas taxas de criminalidade uma causa possível deste processo de prisão em massa. A criminalidade nos Estados Unidos parece ter seguido uma trajetória de substancial estabilidade no curso das últimas décadas, para depois diminuir significativamente a partir da segunda metade dos anos 1990. Um outro dado que não deve ser desprezado é que cerca de um milhão - i.e., a metade dos presos americanos são acusados ele crimes

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não violentos e, por menos graves: delitos contra a prop:ie~a­de, contra a ordem pública, delitos que envolvem o consumo de substanCIas

e, no caso dos violações da disciplina sobre a

o emer!le daí nos info"rma claramente que o 1l1-

~ Estados Unidos mais a uma lFl1dan-

çada Se atentarmos para a também em que das de da nova

de controle do que à

Os afro-americanos constituem 12% da norte-americana, mas já há dez anos eles representam a maioria absoluta da sua população Em 1950, ela era constituída de 66% de brancos e 32% de negros. Quarenta

inverteram: os brancos representam pouco a cerca de 60l,/0. Se

anos

número ficamos que, os brancos detídos a entre os nos essa relação a quase 7.000 por 1 Vale dizer que a probabilidade de um afro-americano terminar na prisão é mais de sete ve~es superior à de um branco. Traduzido em termos ainda mais claros, UI1; afro­americano em três, na faixa etária compreendida entre 18 e 35 anos, esta preso ou submetido a alguma medida alternativa ao cárcere. Estes dados nos falam de uma guerra declarada à população negra pelo sistema repressivo norte­america;o. De fato, para fornecer uma legitimação pública ao encar~eram.e:1to de massa dos negros americanos, foi usada uma autêntica retónca l1uhtar (war on crime, lv~r Oll drllgs, zero tolerallce)I03. /'

Esses dados devem ainda ser cruzados com os relativos à composição de classe da população prisional, e o resultado disso é revelador. A expansão.do sistema penal coincidiu, com um timing que se pode dizer quase p~rfelto, com a progressiva demolição do Estado social. Ao aumento vertlc~l do encarceramento eorrespondeu, no mesmo período e com a mesma l:ap:de~, uma redução também vertical do amparo às famílias pobres, da aS~lstencw social e da ajuda aos desempregados. Por exemplo, apenas no per;odo que se estende de 1993 a 1998 registrou-se uma queda de 44% do' numero de

10:1 Ver J. l\1iller, Search um! Destro)'. Aji-icC//!-AmericC/11 .Males iI! the Justice System. Cambridge, Cambridge Univcrsity Press, 1996.

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famílias que recebem o amparo público para filhos dependentes (AFDC), principal forma de subsídio aos pobres concedida pelo we(fare dos Estados Unidos, Estudos recentes demonstram, além disso, que o aumento da seve­ridade penal foi mais profundo exatamente nos estados norte-americanos que primeiro se mobilizaram para reduzir as medidas de weifare (por exem­plo, Texas, Califórnia, Lousiana, Arizona) 104, O fato de a população carcerária ser constituída cm sua imensa maioria por pobres, desempregados c subem­pregados não é nenhuma novidade; ao contrário, trata-se de uma constante histórica que os recentes acontecimentos americanos serviram apenas para evidenciar, O que mudou, porém, e de modo significativo, foi a relação entre instituições sociais e instituiçõespt?nais na gestão da pobreza.

As "populações problemáticas", vale dizer o sllIplus de força de trabalho determinado pela reestruturação capitalista pós-fordista, são geridas cada vez menos pelos instrumentos de regulação "social" da pobreza e cada vez mais pelos dispositivos de repressão penal do desvio. Deriva daí aquela transição "do Estado social ao Estado penal" dc que fala Lo'lc \Vacquant, quando definc "a irresistível ascensão do Estado penal americano" como uma cle

ela miséria funcional pela da salarial e sub-remunerada", que se desenrola paralelamente à "concomitante reformulação dos programas sociais no sentido punitivo"los. O mesmo \Vacquant nos adver­te, porém, que estas tendências não dizem respeito apenas aos Estados Unidos e que um novo "sentido comuru penal neoliberal" se difunde progressivamente também na Europa. Não é difícil identificar os traços que parecem aproximar o grande internamento europeu ao norte-ameríçano. Nos últimos dez anos as taxas de aprisionamento aumentaram em cerca de 40% na Itália, Inglatena e França, 140% em POltugal, 200% na Espanha e nos Países Baixos, Os únicos países onde foi registrada uma ligeira contra-tendência foram a Alemanha, a Áustria e a Finlândia.

Mas indo além dos aspectos quantitativos, eloqUentes ao demonstrar que o encarceramento aumentou em todos os países europeus com uma rapidez que pouco tem a invejar dos Estados Unidos, também aqui o aspecto mais significa­tivo é representado pela composição da população carcerária. Se é verdade que nos Estados Unidos o cárcere tende a se tornar cada vez mais "negro" e "po­bre", os mesmos fenômenos também são observáveis nas prisões da Europa,

104 B. Western e K. Beckett, "Governing Social Marginality: Welfare, Incarcerntion, and lhe Transformatiol1 of State Policy", in D. Garlund Mass lmprisollment, Social Causes alld Londres, 200 I, pp, 35-50. 105 L. Wacquant, Parola d'ordine: tolleranza zero, p.70.

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_ ., 'esentados em todos os sistemas carcerários Os nligrantes. estao supel-lep~ 19~0 té hoje o percentual de migrantes no

europeus. Na ltálm, por eX~l:lplo, e d laSO! l)'lra 30%. Esse dado é efetiva-1 - . erana passou e 10."

total da popu açao CaIC t'l clue os miGrantes constituem apenas , t se levarmos em con , 'b ~ mente preocupan e , '.' ' 106 Como no resto da Europa,

d l' ão reSidente no paIs . . cerca de 2% a popu clÇ, tIos I11Í Gr'lntes é acompanhado, slste-

'I' I' , enclfceramen o C. b ' ' , também na Ita la o 1Ipel-' 1 t dos ,leSell1!Jreoados. Emerge da!, . . . , 1 "-depene en es eu, b . . matlcamente, pelo c os to;uco '. d . "três terços": um terço de 1l11l-

. d'C ética de um carcere os ' assim, a Imagem lam,a. < d ç. dentes e um terço de desempregados. Grantes um terço de tOXICO- ep~n . . ~ , b ' , •. , 'deI1acj'\S de cOl1J'unto da nova estrategm

- ort'll1to 'IS com ' . d' Estas sao, P , , " . d fundo \ transição do for lsmo ao , , 'c lle servem de pano e' , . .

siva euro-anlencancl l' ." " ~ d 1" Todavia, é legltllTIO m-. d "Estado socm1 ao Esta o pena . . ,

pós-forcllsmo e o ' . / ' d'f' . d'lS priticas disciplinares que jU co-/ testa estrateGJ:l I el e, , . dagar ate que pOI1 o .t:; • "'o é outn coisa senão a progreSSIVa

, . N f d o que exammanl0s na " ...,. nhecwmos. o un o, ',..' t ' pelo disl)Ositivo dlsclphnm pClI

'd d I ç'ld'l pelo Cal cere, JS o e, . . central! a e a can , , '. I _, b' 1\ o e dos orupos sociais margmats,

I' 10V'1 iorç~l (e ti ,\ d 1 . b .

excellcncc na C:1 I , 1'.. vez mais em conseqüêncIa do au-por sua vez, se amp hU11 de

da du e do em suma,

massa se . Ü 'ontem )orâneo não é muito diferente do pensar que o grande ll1ternmnento c f d I proieto disciplinar não tenha sido

1 d ' . eu e que no un o, o J •. que Foucau t eSClev, , ' b' etivo dos dispOSitIVOS de con-

. t que amda uma vez. o o J nem de longe extll: o e , . a de trabalho desqualificada. tro1e seja o disciplmamento da fOlÇ, , -' observar-

_ " '. - aparece claramente, porem, se ' . O caráter tlusono desta Impl essao _ . lS{)'II"lr o eXIJelÍmento carceráno

. l'd d d ontrole que pmece 11 , , mos a nova raCIona I a e o c . l' dade é o de risco. As

, . 't ualific::mte desta raciona I .. em andamento. O cancelO q " . da vez mais como dispositivos de

, . a' s se caractell zam ca , novas estrategws pené l, _ , 'das l)opulações consideradas pOlta-

, /" d repressao pleventlva "d ' gestão do nscO e e d ," lal' criminosos perigosos indlVI uatS,

. N'" se trata e apllslOl' , 1 d doras desse rISCO, ~ ,la .' d' 'd 1 lTI'lS sim de gerir, ao !1lve e

1· f t' de rISCO l\1 IV! ua, " isto é, de neutra Izar a Oles , '" de (e de resto, não se esta

.' , roa de riSCO que Ilda se po, . . populações mtelras, uma ca b .' t os descrevendo não é dlSCl-interessado em) reduzir. A raclOnahdade que es am '

. t "al107 pEnar, e sim a UCIII .

. ", t'" Quademi ISMU 2/ . "D' , vittimizzazlOne tra I 111lgran I .

106 Ver S. PalIdda, eVlanza e

2001. Milão, Fondazione Cariplo, 2001. d t 'ole penal, ver M. Felley e J. do modelo e con 1 of and

Notes on lhe M e J Simon XXX.4, 1992, pp. 449-474; 1 • • ,

its 97

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o recrutamento da carcerária ocorre com base na identifica-(mas melhor seria dizer "invenção") das classes de sujeitos consideradas

de desviantes e para a ordem constituída, Assim, não são mais tanto as dos

que o objeto) das de

a classes concretamente, que inteiras de indivíduos deixam virtu-

almente de cometer crimes para torl/arem, elas mesmas, cri

Devemos pensar ainda uma vez nos aos são ativadas de controle e já totalmente inde-

seu concreto sua construção ao seu tratamento) como classes de risco, agregados de peri-go potencial. u-se e denunciou-se insistentemente que os "centros de

, que foram disseminados territórios da forta-fato são

poucas de formalmente,

o momento de inverter este raciocínio e de per­guntarmos se não são os próprios centros ele detenção para migrantes que constituem o novo modelo no qual, progressivamente, as prisões pós-fordistas se inspirarão. Esses centros se configuram como dispositivos prepostos à con­tenção de uma população excedente e de um surpllls de força de trabalho desqualificada; eles prescindem explicitamente da consumação de um delito, das características individuais ele quem está detido neles e de qualquer finalidade reeducativa ou correcional, para orientar-se no sentido da "estocagem" de cate­gorias inteiras de iI'ídivíduo'yconsideradas de risco, O cárcere atuarial, da mesma maneira que o centro de detenção para migrm1tes, torna-se então, e cada vez mais, uma zona de espera em que se procede à alocação dos indiví­duos singulares às diversas classes de risco das quais deverão continuar a fazer parte no futuro.

"Actuarial Justice: The New Criminal Law", ín D, Nelken (ed.), 171e

Futures of Crimillology, Londres, 1994, pp. 173-201; P. O'Malley, "Legal Networks and Domestic Seeurity", in StlIdies i/l Law. Polítics alld Society, XII 1991, pp. 170-190; P. O'Malley, "Risk, Power and Crime Prevenlion", ín Eco/lomv and XXI, 3, 1 pp, 252-275. '

108 Sobre este assunto, ver L. Morrís, Dangerolls C/asso The Underclass anel Social Citizenship. Londres, Routledge, 1999.

98

. . d ' d' 'd ' reais da inte-Por consegumte, a concretude o m IVI ue, eIS

. - ' 1 ~-o subs'j'tuídas por probabilísticas baseadas na laçao SOCIa , sa. ,l < • - "d .. j"'Cl'OS do local' clundestmos, produçao estatlstlca e Slmu u ' ,

do gueto,

reclusão d

' constantementc, novOS sabe-mento as , res sobre os sujeitos, que, depois, eram reflexivamentc _ a.s mesmas

melhorar a sua de penetraçao da realldade -, o a tudo isso, O

a e o substitui construção ele categorias e formas ele individualização com-

pletamente arbitrárias, baseadas no de e para a contenção dos riscos. , ,"

As determinações peculiares do sujeito, que as tecnologias dlsclplmares dobrar e , silo por

tituem - t' 109 contençao preven Iva .

A lógica atuarial evidencia, certamente, a penetração ele uma raciol1alid~l,de gerencial no sistema de controle, uma racionalida~e q~e torn~. ~~us os pi ~~~ cípios de economização dos recursos, de monetallzaçao dos IISCOS, d~ e tividade da relação custo-benefício 11o

, Mas o nestes l11~cal11smo~ , . I A'''' ,F. ,1' ·ta" C'lda vez mms estranlu constitui uma mClOnalidaG e eCO/lOilIlCa pOS-joj'( 1.1 " .~ •

à complexidade do real c incapaz de penetrar a matéria sobr~ a qual exerce o domínio, ela substitui a regulação das forças sobre as qums s~ desenvolve pela redução ao mínimo das potencialidades que não controla, E. '

, , . . . . ,I' o cnl11moso do a difIculdade crescente em dlstmgull o l Ü .

, b 11 1 ,.\ '011C)!·n·j'l 'lleüal do da econorma llTeOular, o tra a 1a{ Ol c a ec 'b' '. matque determina o reagrupamento da diversidade en,1 ?lasse pen,gosa,. Pcl-rece-me que se torna possível aqui reconhecer uma afmldade partlculm en-

109 Para uma análise mais articulada da lógica atum'ia! e ~la sua .' ._ '. • 'LI hvro Zero lolle/O/lGa,

penalidade contemporánea, penmto-me remeter <lO me .. . O Strategie e pratiche delta societi! di cOlltrollo. Roma, DenveApprodl, 200 :.

c .. . I TI' C" ,. 1 Conte," A Crltlcal 110 Sobre estes aspectos do atuanaltsmo, ver . ay 01, lime /I ' .

Criminology ()f Market Societies. Cambridge, Polity Prcss, 1999. 99

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tre um poder de controle incapaz de exercitar qualquer função disciplinar de transformação dos sujeitos e uma racionalidade capitalista que, igualmente distante das dinâmicas da produtividade social, projeta-se sobre a força de trabalho pós-fordista sob a forma de controle externo puro.

Convém, por outro lado, reconhecer que a lógica securitária, na qual as práticas do controle atuariai se inspi ram, não representa uma novidade abso­luta. O Estado social pode ser, de fato, como um modelo de regulação da sociedade que conjuga eficazmente o paradigma disciplJfmr'-ce controle sobre os sujeitos com um sistema de socialização atum·ial dos riscos que afetam as populações em seu conjunto. É a partir desta instalação biopolítica que se compreende o nascimento dos sistemas sanitários nacio­nais, da previdência social, das legislações sobre acidentes de trabalho. Em todos esses casos uma lógica securitária ióforma e racionaliza os dispositi­vos biopolíticos de regulação da população lll

. O que hoje me parece decidi­damente novo é o modo pelo qual a tecnologia securitária se conjuga às novas estratégias de controle. Enquanto na tradução welfarista as técnicas securitárias um mecanismo de regulação orientado para a

dos riscos coJetivos alimentavam 1'Or111:1S ele social fundadas l1a na c na as técnicas atuarillis de controle contemporâneas operam cxatamente na elireção oposta, limitan­do, neutralizando· e desestruturando formas da interação social percebidas como de risco. Ao combinar sistematicamente estratégias políticas que alí­mentam a construção social de um imaginário da insegurança, do risco e da ameaça criminal proveniente do "estrangeiro", as tecnologias atuariais se revelam, ao mesmo tempo, um instrumento de contenção da força de traba­lho excedente e um dispositivo simbólico de desconstrução dos elos sociais da multidão pós-fordista.

O encarceramento de massa, sustentado por retóricas de guerra, inva­são e assédio, permite atribuir ao excesso negativo a fisionomia da nova classe perigosa e de de-socializar a multidão pós-fordista, substituindo os laços de cooperação por aquilo que Pat O'Malley define como "novo prudencialismo", um regime de desconfiança universal que impede o reco-

III É a François Ewald que devemos os estudos mais significativos sobre a rela­ção entre a emergência da lógica atuarial e o nascimento do Estado social. F. Ewald, L'État-Providence. Paris, 1 F. Ewald, "Norms, Discipline and the Law", in 30, 1 pp. 136-161: F. "Insurancc anel Risk", in BUfchell, Gordon & Miller The Fo/{colllr pp. J 97-210.

100

nhecimento recíproco dos indivíduos como parte de uma mesma força de

trabalho social 112 •

Estes processos de construção social da diversidade ~on~o alg.o de risco (dos lugares, das situações, dos indivídl:os e d~ gr~pos ll1telfos: l~scl:evem novas hierarquias na superfície da multIdão e lmpoem ~lOvas dlstan~Jas no seu interior. Desse modo, a multiplicidade, a mistura de 11l1guagens, a Irredu­tibilidade das em suma, todas aquelas características que nos permitem definir a força de trabalho contemporâne.a como lI.ma l.nllltidã~, são redefinidas pelas estratégias de controle como fontes de ll1cer teza pe!­manente, fobia do diferente e pânico pelo imprevisível I 13.

Hoje, a conservação da ordem social parece invocar, insist~ntemente, a implementação de uma estratégia de controle capa~ de d~sartlcular ex~lta­mente aquelas formas de socialização e de cooperaçao socwl que antes 1?~a necessário alimentar uma vez que constituíam o fundamento da produtlvl­d;de fordista. E isso acontece porque hoje aquelas formas de coo.per~çã.o escapam constantemente ao controle, fogem de qualquer cartografia .dISCI­

plinar e assumem a de eventos de risco, que devem ser eVitados

a prcçol14

112 Ver em particular P. Q'Malley, "Risk, Crime and Pru.dentialism R~v.isited", i~: K. Stenson e R. Sullivan (eds.), Crime, Risk and JustIce. The Pollt/cs of CI /lne Contral in Liberal Del1locracies. Devon, Willan, 2001, pp. 89-103. 113 Para uma descrição dos processos de construção do "estrangeiro" e da, s~a função quanto à reproduç,ão,de um~ incerteza ex.istencial que legitil:1a o dOll111110, ver Z. Bauman La società dell'incertezza, tmd. It. Bolonha, II Mulmo, 1999.

114 Neste conte~to insere-se também o processo de "normaJizaç~o da, e.!:le~g31c~:'.' a que assistimos na sociedade contemporânea. Estamos nos refenndo a]a slstemàtlc.~ recolocação de "emergências" criminais que permitem, ao mesmo temp?, construll as novas classes perigosas (dar-lhes uma fisionomia reconhecível: pedofilos, sat~-. nistas fundamentalistas islâmicos, hackers, albaneses, nômades elc.) e prod~Zll consel~so social em torno de novas medidas repressivas. Pode-se f~lar de .. nor~ahz~-

em dois sentidos: porque estas são cada vez ma~s frequent.e~" I~las sobretudo porque, uma vez cessadas (isto é, desapareei~ias do cenáno mass-mldmt1co, seu único plano de existência), as medidas repressivas adotadas p~ra fazer-lhes

I· d f·t d r mitação das liberdades que frente permanecem em norma Izan o os e elos e I ... " ,."

daí derivam. Ver em pm1icular L. Blisset Project, Nemici delta Stato. C.mlllllalt 110S1l1

Ilella società di comrallo. Roma, Derive Approdl, 1999, e o meu

11 " . 19 2000 pp. 99-102. towle de! contro o , ll1 "

101

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A metrópole punitiva - constante na literatura contemporânea, a cidade parece set candidata a representar o das de controle mais das

na cada vez mais

nar116

• As práticas abandonam certamente o cárcere mas não para difundir-se além do seu perín;'etro no interior do espaço urb;no, como

outros dele 17, mas

a tornar a

de punitiva, l1ias sim se transforma, mesma, em dispositivo de viailância m~dal.id>ade de .uma repressão que exerce, uma vez, não m~s sobr~ ?s mdtvlduos smgulares, mas sobre~c1asses inteiras de sujeitos. E ainda mais­Importante, a cidade não parece fu:ucionar como um mecanismo orientado par~ ~e~erminar, nos indivíduos, a ~ntcríorização de valores disciplinares, n a~ulS1çao de modelos de comportanãento regulados, a obediência a estilos de VJda pr~-co~sti.tllí~os. Perpassada rior uma multidão produtiva que foge às categonas dlsclplmares de normalidade e patologia social, conformidade c . . . operosidade e periculosidade, abarcando todas, mas sem se deixar identificar com nenhuma delas,·a cldade pós-disciplinar aquilo que, com talvez dcfí~ir como uma "ordem' sem nprma" I IR. A

e punire, 116 M D . C' , /. . aVls, ata { I quarzo. IndagclIrdo sul jiltllro ii! Los Manifestolibri, 1999. trad. ir. Roma, 117

por exemplo, S. Cohen, Puni tive City: Notes on lhe DispersaI of Social Contrai", in COl1temporarv 3, 1979, pp. 118 Z B .

. auman. Work COllslllnerislIl,and rhe NeIV Poor. Buckingham, University 2001, p. 85.

102

nova arquitetura urbana e as políticas de controle que nela se apóiam - quer se chame tolerância zero ou Ileiglzbollrhoodwatch, ou ainda vigilância ele-trônica ou - alimentam uma social totalmente

individuais de uma de classes de indivíduos defini-

As 21.000 tele-cflmcras de circuito fechado que cstão instaladas nos territórios urbanos da as torres direcionais de Los (mu-nidas de sensibilidade à umidade e à

dos movimentos e, em casos, de escuta"l biométrica das identidades nas

os detectores de metais que, procedem a sistemáticas imateriais"120, enfim

todos estes dispositivos de não configuram um único, enorme e O na realidade, os

"o

atual ( ... ] mas sim Pelo contrário, as classificações atumiais produzidas por esses processos que, por sua vez, as inspiram) não têm tanto a função de dete~tm~ pop~laçõ~s a serem disciplinadas, reguladas ou "normalizadas"; sua funçao e mUlt? maIs a de diferenciar as possibilidades de acesso a (ou de fuga de) determmadas zonas da cidade.

Em outras palavras, estas tecnologias se erigem como proteção dos guetos "voluntários" (centros comerciais, parques temáticos, aeroportos, gated C01ll11111llities) e "involuntários" guetos propriamente ditos) que compõem a cidade pós-fordista, garantindo o respeito aos critérios que regulam os fluxos de entrada ou saída de uns e outros. Desse modo, elas "indicam" as l7o-go-areas disseminadas pela metrópole e assinalam visualmente que existe

119 M. Davis, Geografí"e della pOlira. Los . l'illlllwgÍnario colletivo dei disastro. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 382. do T.: brasileira. do medo. Los Angeles e a jábricaçâo de 11m desastre. Rio de Janeiro, Record, 2001, tradução de Aluízio Pestana da Costa]. 120 o. Sforia política dei filo Spil/Clto, trau. it. Verona, Ombrecorte, 200l. 121 D. Lyon, SlIrveillollce MOI/flOriu!! Li{e. Opcn University Press, 2001, p. 54.

103

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uma diferença fundamental entre "aqueles que la 'd d / o aviso llo-go-area como 'eu _ " I Cl a e pos-moderna, lêem

nao quero entrar'" e "aqueles para q se traduz por 'eu não posso sair'''122. uem no go

A metrópole ) / f 'd' , I os- 01 lsta Isola no seu interior es d I desarticulam violentamente as l11uitíd-' . , " paços e rec usão que ficial ente aquilo q I f ' oes, leplOduzlI1do uma separação arti­

ue c e lI11J~l~S C~:11~ :xcesso negativo e excesso positivo, , clSPOSslbIlldadesdemo"Í'l' t' -

aSSIm criada uma escol a soc· ai ,,' v .1 en o e lI1teraçao: I, ,menSlll a vel de 'lcOl'do c .

acesso aos lugares simbolicamente e/ou e ' " om a c~pacldade ele .. .,. conomlcamente valonzados"'2:> A

deíll1ltlvamente de envernar as vest~s d " / ,'" para transformar-se num apanto d I::> e, O espaço publIco observ1veis ii ,I' t; " O' " e captura e vigilância de populações

< , ulS dncw. controle se 't·· r.. . regula o encontro 111' ' I _ ma ena lZ,l lll.lrna arqllltetura que não

, ,IS o Impec e nao novern 't -cu los a ela não dl'sc' l' 'b a a ln eraçao, mas cria obslâ-

, , . lp 111a as presenças mas t '. / simbólicas e f' t', ' , ' , as orna 117V1S1VeiS, Barreiras

, ,lOn ellas materIaIs produzem assim exclusão e inclusão DIante da lllcupacÍebdc de °ove"IJar rcu I' r' 1 •

tos da multidão, os I::> I . < , _ oU dr c ( iSClp. os comportamcn-(O contlOlc urbano se limitam à vil::>uili'1I1Cl'U ,~ ~'l

de massa, v , no das

externas lJue mostram de '", , / ' de um espaço imperial virtualmellte livre de front '_ _ ~ ~~lclnte d<~ COnS~l1Ul-

tonas da força de trabalho crlob 1 b' '. ellas e as pressoes mlgra-• b a so le os lImItes naciona' - R d I

aqUi os novos contornos do crueL -b ,: ' . IS, e esen lam-se dispositivo carcerário colo I::> o ur ano que, em slmblOse mortal" Com o

<, ca-se como garante das est t /, d f tação e separação hierárquica da f d _ '_ ra egIaS e ragmen-mente a diferença e a dist~' o:ç1a e ttabalho, restabelecendo artificial-

, anCla SOCla entre "incluídos" e "exc1uídos"124,

123, cit., p, 70, Razac, Stona política deZ filo spinafo cÍt 9 . ,

spazi VI/oti della metrojJO/i D' t. ~' '.1'" p: 1. VCI tambem M, Ilardi, Negli , ' IS 11Iz.lOl1e {Isordllle t' r I'

Tunm, BolIati Borin ahieri 1999 A 'P' ,I ac Imento {, ell IIltimo Homo, I " "", c, etnllo L'I citt' -I L' ' {, lInenSlOl/e urbana !leI mOIl I _ "a pen Ufa, echsse della 1~4 .,' . ~' C,o contemporaneo, Bari, Dedalo, 2000.

" ' SO,bre d IdeIa de uma cqUlvalência funcional d SimbIOse" entre Gueto e . L \V que escmboca numa verdadeira

'" vel ,acquant S b- , and Prison Mcet anel Mesh" il1 D Oe -I' d (d' ym 10051S: When Ohetto e, ,di ,111 e ) 1\ A' '[ \- ~ II _. , Vale dizer > ," 'ice. IlpUsonment, Clt., pp, 82-J20

, que em 1980 Dano Mclossí 'fia _ ' e prenunciava a das de ple loLlJaVa ~stes, desenvolvil~entos como substitutos das d UI bana e de guetlzação 'I . e controle através do Cf D ~" I Per uno studio clelle cI'. ," Oltre ventcsimo secolo'" r., I contlOllo socmle ncl dei

, , 111 LlI questIone 1 pp,277-361.

104

A reestruturação das cidades de acordo com linhas de fortificação e perímetros de segurança dá consistência plástica à separação entre classes perigosas e classes laboriosas que constitui o único terreno colocado à disposição dos dispositivos de controle para conter o excesso da multidão. A segregação dos migrantes nas cidades européias, a reclusão da força de trabalho afro-americana, hispano-americana e oriental nas metrópoles dos Estados Unidos e, em geral, a instituição de zonas urbanas de acessibilidade diferenciada alimentam um regime da cujo objetivo é a desestruturação da multidão, a ruptura daqueles laços de empatia e cooperação que, do ponto de vista do domínio, representam um perigo extremo. O efeito é a segmentação da multidão através de uma ecologia do medo que, na cidade, se materializa na figura do estrangeiro, do imigrante, do desempregado, do dependente de drogas,

A contenção do excesso negativo alimenta a sua construção social como classe perigosa, como entidade imprevisível. Aí se evidencia o crepúsculo ele um poder disciplinar que cultivava a ambição ele produzir sujeitos úteis, e o alvorecer de um poder de controle que se limita a vigiar CUjaS

de vida não consegue colher. Em

o visto no contexto da social, é, mais projetado do que material mais temido do que mais evitado do que contrastado, mais prevenido do que suprimido, Trata-se de uma esfera sociocognitiva completamente renovada, que emerge do conflito bem delineado entre territórios governados e "ou-

. , 125 tros pengosos' ,

A atribuição de uma função de controle ao espaço - dissociada das carac­terísticas individuais dos sujeitos, separada das formas específicas da interação entre eles, indiferente às modalidades de socialização concreta dos indivídu­os e fundada sobre a construção social de perigos cujas características fo­gem a toda e qualquer compreensão precisa - evidencia até que ponto a lógica do risco é o resultado de uma perda de contato sobre o real da parte dos aparelhos de controle. Eles operam como pura inibição de processos de interação que não governam, renunciando a qualquer função positiva, produ­tiva e transformadora.

A rede imbricada Nesse meio tempo, a economia da rede reclama no­vas formas de controle à altura das transformações que perpassaram a pro-

125 M,Lianos e and the End of Dcviancc, Thc InsLÍ­tutional Environment", in TÍle British ]ollmal 2,2000, p, 274_

105

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o produtividade informatizada, o

da

representa o âmbito de máxima da no qual se concretiza (ou se virtualiza)

mas também um terreno de conflito

procura agora assegurar comando que lhe

além do trabalho [ ... J suas

que estão acontecendo cativos elo comunicativo

por que o controle se em torno da . do quanto e do como tcr acesso, com base em quais requisitos e

com qUalS à às informações, à inovação, ao saber. O controle se exercita não tanto mais sobre o uso concreto de determinados recursos _

são torar, Controlar e censurar a comunicação e mais preci-samente os comportamentos dos novos trabalhadores do imaterial sujeitos que se apropriam elo e da capacidade de inova~

adquirindo cada vez mais autonomia da organização do coman­do, e cujo uso das redes e do computador pode, a qualquer momen­to, tornar disfuncional, transformar-se em sabotagem, conexão das lutas, "desobediência civil eletrônica" 127.

aqui, ~~rém, emergem algumas insanáveis, que revelam a vulnerabIlidade e a estranheza das formas do domínio na sua rela­çã~ com a nova de trabalho imaterial: de um lado, apenas o acesso ul1lversal potencialmente indiscriminado e horizontalmente cO-dividido às

. ..,. -:- aos d~dos, ao~. ao espaço virtual permite à produtividade lmgmstlca e Imatenal expnmIr-se plenamente; cle outro lado, exatamente o acesso e esta generalizada parecem minar os próprios fundamen­tos da. expropriaç.ão e da valorização capitalista dos novos fatores produti­vos, VIsto que pnvam ele sentido os mesmos conceitos de e

Technology a /1(1 CirclI irs Univcrsity or Illinois

Projcct, Nemici dei/o Stato, cit., p. 15. 127

106

of Slrugg/e in High-1999, p. 122.

"propriedade". No momento em que estende o domínio para além da esfera do real, projetando-o sobre a dimensão virtual, o capital lança, paradoxal-mente, as bases para a própria continuamente novas frentes em que se materializa o excedente da de trabalho

Por os trabalhadores do imaterial devem ser de ter acesso a que possam colocar em a exclusividade de uma relacionada aos de tratamento dos dados. O aCesso a determinados informáticos deve ser subordinado à posse de uma

capaz de individualizar ou que demonstrem contar com os requisitos que assegurem ao sistema um uso e não arris-cado dos Voltam assim à mente as de Deleuze:

Nas sociedades de controle [ ... ] o essencial não é nem uma firma nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma uma vez que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras d.e ordem l ... I. A do controle é feita de cifras que assmalam o

. encontramos mais diante e

amostras

Estas estratégias de controle preventivo não no entanto, escapar de uma contradição constitutiva, que as leva ao limite do paradox~. EI~s pretendem estabelecer um reginle da previsibilidade absoluta, d.a anteclpaçao e da categorização, ali onde a produtividade da multidão se basew exatamente no oposto, i.e., na imprevisibilidade, no inédito, no que não se repete. Por outro lado, porém, estas estratégias não podem manter-se sempre ~ora. dos processos de comunicação e troca que animam os fluxos da prod~çao Virtu­al, configurando-se, conseqüentemente, como limite imposto ao livre desen­rolar destes mesmos fluxos. Uma vez mais, porérn, este limite não pode ser empurrado até se tornar imposição de uma verdadeira disciplina, porque esta esgotaria os requisitos da própria produtividade.

A co-divisão horizontal de informações e o acesso indiscriminado aos não-lugares nos quais elas são produzidas representam hoje as formas mais

128 G. Delcuze, "La soeietà dei controllo", in G. Deleuze, POW]J(l rlers, trad. it. Macerata, Quodlibet, 2000, p. 239 lN. do T.: edição brasileira COllversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, tradução de Peter Pál Pelbart). Para uma resenha dos problemas de controle causados pelo desenvolvimento da rede, ver D. Thomas e B. Loader (eds.) Cybercrime. U/lV Enforcemcnl, ScclLriry {/nd Surl'eIl­lance iI! the blj:or11wtioll Age. Nova Iorque, Routledge, 2000.

107

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graves de atentado à apropriação capitalista dos meios de produção, e as n~vas estratégias de controle tentam, em meio a contradições e paradoxos, dl~por desta apropriação. Compreende-se, assim, por que não é exagerado afIrmar que "a Internet é o mais importante bode expiatório dos nossos tem­pos, a mãe de todas as novas emergências, ajihad que pressupõe e justifica toda e qualquer guerra local"129.

Tudo isso nos reporta, significativamente, aos albores do modo de pro­dução capitalista, quando na Inglaterra, na transição entre os séculos XVIII e XIX, foi exatamente a difusão das manufaturas, das máquinas, dos esto­ques de mercadorias e dos negócios o que constituiu o pressuposto do nas­cimento da polícia moderna:

Es~es h~veres - constituídos por estoques, por matérias-primas, por obJetos Importados, por máquinas, por oficinas - estão diretan:'lente expostos ao roubo. Toda essa população de pobres, de desemprega­dos, de pessoas que procuram trabalho, tem agora um contato dire­to, físico, com as fortunas, com a riqueza. O roubo de navios, o

das e dos ues, os tornam-se normais na no fina! do E exatamente o grande problema do poder na Inglaterra nesta época é promover mecanrsmos de controle que permitam proteger esta nova forma

. I d' 130 matena a nqueza .

Se essas novas exigências de controle determinaram o nascimento de uma polícia como nós a conhecemos hoje e alimentaram formas de oraani­zação do trabalho no interior da fábrica fordista em que, ao lado do Obj:tivo da máxima produtividade, encontrava-se o do máximo controle sobre os comportamentos operários, hoje talvez assistamos a uma evolução. Uma renovada necessidade de controle se manifesta diante das novas formas de-' produção da riqueza social e das novas possibilidades de apropriação dos recursos: "enquanto a era que está chegando ao término se caracterizava pelo controle da troca de bens, a nova era se caracteriza pelo controle da troea de conceitos"13l.

Nel11ici dello Stato, cit., p. 11.

!30 Foucault, "La verità e le forme giuridiche", cit., p. 146. Sobre o nascimento da polícia e sobre as transformações atuais ver ainda Palidda, Polida postoderna.

del /lUOVO cOlltrollo cit. 131 J. Rifkin, L'era dell'acesso. La Mondadori, 2000, p. 76.

della New trad. ir.

108

Emergem, assim, progressivamente, um controle preventivo - porque, diferentemente da riqueza material, a riqueza imaterial só pode ser recupera­da quando alguém se tenha apropriado ou feito uso dela -, 1..111: contt:o~e difuso - porque, diferentemente dos recursos materiais, os recursos lmatenms não se localizam num espaço determinado, constituindo antes fluxos, éter e um controle atuarial - porque, diferentemente dos sujeitos da pro­dução material, situáveis e disciplinarmente num espaço produ­tivo definido, a multidão pós-fordista é uma entidade irredutível às formas de singularização típicas da produção fordista e às .conceituais qu: se baseiam nelas. A produtividade fundada no saber dos IIlUltos excede, enfIm, o domínio fundado no nilo-saber do poder.

Novas resistências

Em La volontà di saperc, Foucault se detém· nas formas de resistência que emergem na sociedade do controle biopolítico. Essas resistên~ia~ não se enraízam, afirma ele, num "lugar da Grande Recusa", não delIneIam um "ânimo de revolta", nem sequer um "foco de todas as rebeliões" sobre as

uma "lei pura do revolucionário". Elas se

espontâneas. selvagens, as, concertadas, estressantes, irredutíveis, pontas ao compromisso, interessadas ou sacrificiais"132 .

As resistências ao governo do excesso estão em processo constante. Embora nem sempre seja possível dar-lhes um nome, ou consig~m n~mear­se como tais, elas se desenvolvem numa molecuraridade de conflItos difusos. É exatamente isso que, com o declínio da fábrica fordista e a implosão do reaime de controle disciplinar, Foucault nos sugere, para dizer o menos, da~uele lugar da "grande recusa" á qual associamos ,a forma l:ist~ri~a _da resistência e da insurgência operárias. Oriundos do penmetro de mstltUlço~s disciplinm:es fechadas, os conflitos que surgem em tor~)o .d~s novas estrate­gias de controle pós-fordista se caracterizam pela multlpl:cl~ade_ de fOfl;1as, pela irredutibilidade a qualquer práxis hegemôl:ica, pela hlbndaçao cont1l1ua das práticas e pela amplitude com que se mal1lfestam.

Todo dispositivo de controle é constituído por um c~nj~nto de práticas, estratégias e discursos que dão corpo a uma economia l~terna e a uma racionalidade específica do domínio. As resistências se localizam exatamen­te naquela economia e naquela racionalidade para sabotá-las, subtraí-las, torná-

132 Foucault, "La volontà di , cit., p. 85.

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Não se

por dentro, quase um axiOlTHl daquilo que do nexo

11J

convém frisar, de que exista uma e resistências, como

formas de rebelião que ao contrário, de

se

mos, permitia a da seu enraizamento no espaço físico e nas ~'eJ~ções de p~der-saber que lhe conferiam vigor. Esta resistência podia expnmIr-se como exodo dos lugares do controle, isto é, como desejo de retirar­~e ~esta localização (evasão do cárcere, fuga da ou da instituição psiqui­~tr~ca), como desestrtltllraçlío por dentro (sabotagem industrial, prática do ob­JctlVO, fO~'mas "atípicas" de greve), ou como prflxis de reapropriaçâo do espaço ~m:a destll1á-lo a um uso distinto do imposto pelo domínio (prMÍcas anti-psiqui-

../ atncas, ocupação das fábricas, comunidades anárquicas).

Os mesI~o~ mecanismos ela organização disciplinar que tornaram possí­vel a grandIOSIdade do taylorismo nos anos Sessenta e Setenta representa­ra~l. o elemento de força de uma classe que começava a dar vida a pratIcas de auto-valorização dentro e contra o capital. Toda aquela preciosa

133 .A~nd~t segundo ~oucault, é sempre no interior das relações de poder que as reslstenclas se constituem. Não existe uma exterioridade absoluta da resistência a~ poder, visto que as r.elações de poder são dispersas, difusas e "ubíquas". É este. um dos pontos mais controversos (mas, na minha opinião, também mais fascll1antes) da aná.lise foucaultiana, sobre o qual se mede a difícil relação entre Foucault e o marXIsmo ortodoxo, pela recusa, por parte do filósofo de toda representação estática, monolítica e vertical dos aparelhos de

110

engrenagem de controle total sobre a força de trabalho se voltou, assim, progressivamente, contra o domínio capitalista que a bavia montado e colo­cado em ação. As mesmas posturas rígidas, as mesmas máquinas, as mes­mas linhas de montagem, as mesmas sucessões hierárquicas que haviam

a alienação, a e a subordinação do corpo ao valor, pcrmitiam agora, à classe exercitar um cfctivo cm relação ao sistema produtivo. Quero dizer com isso que, dentro ou (ora da produção, dentro ou (ora dos espaços definidos do controle, as resistências nascem exatamente onde os poderes se apóiam, nutrindo-se daquelas mesmas características que fazem deles poderes "eficazes".

Ora, as tecnologias do controle que vimos descrevendo nessas páginas parece.r~.am quase consumar estas margens de resistência, porque substitu­em lugares, indivíduos e relações subjetivas reais por simulacros, i1uxos de dados e números, estatísticas e não-lugares, com respeito aos quais é difícil

a de resistência. A tabela e o das áreas ele risco da

com base com base no grupo

são alguns exemplos de atuanals que tornar qualquer resistência porque a anulam na sua dimensão subjetiva, isto é, de­sestruturam aqueles sujeitos e aquelas formas de interação social que as tec­nologias disciplinares pretendiam transformar e regular. Em outras palavras:

A classificação atuarial, com o seu sujeito sem centro, parece elimi­nar, antecipadamente, a possibilidade de uma identidade, de um auto­conhecimento crítico e de uma intersubjetividade. Ao invés de cons-

134 truir as pessoas, as práticas atuariais as desmantelam .

Todavia, talvez seja possível considerar tudo isso não como a submissão definitiva das resistências da parte de um poder de controle que refinou os próprios instrumentos de domínio, mas sim como a demonstração de uma radical fetração do poder, de uma drástica perda de controle sobre as dinâmi­cas sociais. A atuarialização, a vigilância, o internamento, as limitações de acesso não impedem as resistências, simplesmente procuram ignorá-Ias, colocando as práticas de controle num plano diverso, onde no lugar de sujei­tos reais encontramos imagens deformadas.

134 J. Simon, "The Ideological Effect of Actuarial Practices", in La,v anel Society RevielV, II, 411988, p. 795.

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Então, é aqui que podemos identificar um nexo singular entre estratégias de c?l1trole do excesso e formas de domínio do capital sobre a multidão pós­fordIsta. Do mesmo modo que o comando do capital sobre a força de traba­lho se ~esenvolve sob a forma de simulacro, como contínua imposição de ~ategonas que não compartilham nada com o caráter social e cooperativo da for?a. de trab~lIho a que pretendem aplicar-se (trabalho e não-trabalho, pro­dutivIdade e Improdutividade, emprego e desemprego), o controle do exces­so se desenvolve através da imposição de categorias virtuais e transcenden-

.tais ~omo a classe perigosa, o clandestino, o sujeito de risco, o fotograma e a Identidade biométrica.

/ Se, c~mo j~í foi dito muitas vezes, a consolidação das relações produti~as p~s-fordlstas representa a resposta a uma ofensiva operária que tinha preju­dIcado o processo da acumulação capitalista e a realização da mais-valia, p~d~m~s pensar que a mesma dinâmica esteja ocorrendo na passagem da dIscIplIna para o controle. Agora, os sujeitos, a própria matéria sobrc as

as tecnologias disciplinares puderam se exercitar no

cedem a uma multidão que que cnnl procura se retirar dos espa(,;os delimitados da para 110 tecido social em seu conjunto. O que vem~s.então não é mais a definição disciplinar de espaços e t~mpos de cOl:trole dlstmtos dos espaços e dos tempos do não-controle, mas SIm _o exp~odll- d~ uma obsessão quase dese'sperada de vigilância total, de gestao do impreVIsto, de antecipação do possível.

Quando afirmamos que o controle pós-fordista assume progressivamen­te a forma de um simulacro, não pretendemos desmaterializá-lo, nem mes­mo.subestimar a violência que o inspira e as conseqliências factuais que daí den~an:' As novas estratégias de segregação urbana, de destruição do espa­ço publIco, de encarceramento de massa e de limitação do acesso à informa­ção são fenômenos extremamente reais. Produzem sofrimento, isolamento, desespero, chegando mesmo, muitas vezes, a -impor aquela "morte bioaráfi­ca" a ~~e eu m~ refe~ia nas p:-imeiras páginas. É impossível negá-lo. A<;sim como e lmposslvel nao ver ate que ponto este arsenal de violência do contro­le que vemos desenvolver-se na sociedade contemporânea demonstra toda a sua pobreza diante da riqueza das subjetividades produtivas que pretende controlm·.

. _Aqui, a incapacidade de compreender e governar o real determina a tran­slçao a um poder de controle do excesso que l1el0 é mais produçel0, mas sim pura de (1'1 d d

< a, o o da guerra humanitária, ele cuIti-

112

va a ilusão de constranger a multidão em categorias definidas, de dispô-la segundo linhas hierárquicas, impondo-lhe uma ordem pré-concebida. Não conseguindo exercer-se sobre o "tornar-se múltiplo" dos sujeitos, o governo do excesso os cristaliza, atribuindo-lhes violentamente uma identidade pré­definida de imigrante, desempregado, criminoso - necessária para tornar possível o da vigilância. Mas à violência desta imposição de identida­de acrescenta-se imediatamente uma outra, a distribuição das divcrsas clas­scs de indivíduos nos não-lugares do controle: a imigração nas "zonas de

do Império, o desemprego nos guetos metropolitanos, a precarieda­de nas dobras do trabalho negro, o desvio no cárcere, o trabalho imaterial nas redes, as diversidades existenciais nas margens.

Porém, voltando o olhar para as formas de resistência emersas nos últi­mos anos em várias frentes da identidade sexual ao trabalho, da imigração aos direitos da cidadania -, descobrimos que elas se configuram exatamente como práticas de contestação dos dispositivos que obrigam os indivíduos a aceitar identidades e, como a colocar-se em espaços nas resistências que acabaram. por reconhecer que, através de processos que definir de "auto-consciência", se penso muito mais nas resistências que emergem no quotidíano silencioso das formas de vida e das experiências biográficas individuais. Penso nas resis­tências que se enraízam na corporeidade de um trabalho hiper-explorado e precário, nas expectativas de vida confinadas num gueto urbano ou no dese­jo de fuga que esbarra num confim artificia1. "Exemplos de espécie", diria Foucault; emergências singulares, muitas vezes subterrâneas, quase sempre ocultas ou tornadas invisíveis pelos dispositivos do controle pós-fordista, mas que delineiam uma nova cartograf.9 das resistências biopolíticas.

Penso nos migrantes, cujo desejo de mobilidade, de subtração, de fuga, esbarra diariamente nos dispositivos de controle e de localização forçada da multidão, expressando uma "crítica prática" a eles 135. As políticas de contro­le das migrações se traduzem numa expropriação sistemática dos desejos, das motivações e das expectativas que inspiram os projetos migratórios. Na metrópole pós-fordista, é retirada a palavra ao migrante, a linguagem e a possibilidade de comunicar a própria condição existencial lhe são tolhidas, reduzindo-o, assim, à afasia. Vemos desenvolver-se aqui, de modo exemplar, a racionalidade dos dispositivos de controle pós-fordistas. Ao mesmo tempo

m Cf. Diritto di cit.

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c1ass~at.rabalhadora e c1ass~ perigosa, excesso positivo e excesso negativo, os :TIlbra~tes devem ser pnvados exatamente daquelas faculdades comuni­catIvas, lmgüísticas c afetivas que deles uma subjetividade constitutiva da f?rça de trabalho social. O objetivo é contrastar o auto-reconhecimento de SI como part~ da multidão, de impedir a de laços e de

. SOCIal e que possam elar corpo à Os C?l1stltuem então uma.imagem paradigmática da multidão pós-fordista e in­dIcam, sobretudo, as formas de resistência a que ela pode dar vida, dentro do e contra o novo de "governo do excesso.

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