Alejandro Casona - A Farsa Do Mancebo

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Peça de teatro espanhola

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PEQUENOS BURGUESES

10

A FARSA DO MANCEBO QUE CASOU COM MULHER GENIOSA

ALEJANDRO CASONA

PERSONAGENS:

PATRNIOMANCEBOO PAI DO MANCEBOA MOAO PAI DA MOAA ME DA MOAMSICOS e DANARINOS

PRLOGO

PATRNIO (diante da cortina, fala ao povo) Minhas senhoras, meus senhores, um momento de ateno. Quereis divertir-vos com uma antiga histria? Apresento-me: sou Patrnio, criado e conselheiro do muito ilustre Conde Lucanor, o qual costuma consultar-me toda vez que uma dvida o assalta. A dvida desta vez que a um seu criado preparam casamento com uma moa muito mais rica do que ele, e de alta linhagem. um bom negcio, direis. Mas meu amo no se atreve a lev-lo adiante, por um receio que tem. Acontece que a tal moa a mais violenta e geniosa coisa que h no mundo. De to mau gnio que certamente no haver marido que possa com ela. Por isso eu, Patrnio, conselheiro fiel, quero levar cena hoje, neste palco, esta histria, para que sirva de exemplo a vs todos e a meu prezado amo.

Esta , pois a histria do mancebo que casou com mulher geniosa e das artimanhas que usou para domin-la desde o dia em que se casaram.

Escutai a histria que est escrita num famoso livro, primeiro dos livros de contos que em terras de Espanha se escreveram. E contribua o prazer e a reflexo que vos cause, para a maior glria de seu autor, o infante D. Joo Manuel, que h 600 anos foi, em Castela, corteso discreto, poeta de cantares e autor de livros de caada e de sabedoria.

Retira-se PATRNIO e sobem ao tablado O MANCEBO e o PAI DO MANCEBO.

PAI Aconselho-te, meu filho, que penses melhor antes de bater nesta porta. A tal donzela que pretendes muito mais rica do que ns e da mais alta linhagem. No bom que a mulher supere em dotes e fortuna a seu marido.

MANCEBO Sei disso. Mas pensai tambm, meu pai, que sois pobre e nada tendes para me dar que me possibilite viver honradamente. Assim sendo, se no colaborais para que este casamento se realize, serei forado a viver com privaes ou a ir-me desta terra em busca de melhor sorte.PAI Fico espantado de teu intento e ousadia. Sois to diferentes um do outro. Tu s pobre e ela rica e tem mais terras do que poderias percorrer a cavalo num dia e andando a trote.

MANCEBO No deis tanta importncia a isto. Se ela tem fortuna, eu a aumentarei com meu esforo. Se tem tantas terras que no se pode percorrer num dia andando a trote, andarei a galope.

PAI No s isto. O quanto tens de boas maneiras tem essa moa de ms e arrevesadas.

MANCEBO Eu vos asseguro, pai, que no h mula falsa onde for bom o cavaleiro. E que saberei manter firme a rdea desde o princpio.

PAI Olha, rapaz, que seu pai nunca pde domin-la. E tem tal gnio que no h homem no mundo, a no ser tu, que queira casar com tal demnio.

MANCEBO Podeis bater na porta, pai. A moa brava? Seja! Mas com braveza e tudo de meu gosto. Se o seu pai consentir no casamento eu saberei como se passaro as coisas em minha casa desde o primeiro dia. Batei sem medo.

PAI J que insistes, no digas depois que no te avisei em tempo. Peamos a mo da moa e queira Deus que no no-la concedam. (Bate com o cajado). de casa!

Descerra-se a cortina, aparecendo a casa da moa. O Pai da pretendida, que est s, levanta-se ao ver os vizinhos.

CENA II

PAI RICO Ol, senhor vizinho! Bons ventos o trazem! Em que lhe posso ser til?

PAI POBRE um pedido que vos venho fazer para este meu filho...

PAI RICO Posso saber de que se trata?

PAI POBRE Amigo e senhor, tendes uma filha nica...

PAI RICO Uma nica, certo, mas que me preocupa como se fossem duzentas.

PAI POBRE E eu s tenho este filho. Em outros tempos, quando ramos pobres os dois, unimos nossa amizade. Hoje, venho pedir-vos, se for de vosso gosto, que unamos tambm nosso filhos.

PAI RICO Ser que estou ouvindo bem, vizinho? de casamento que me falais?

PAI POBRE J adverti ao rapaz da vossa riqueza e da nossa humildade. Mas ele insiste...

PAI RICO (avanando, cheio de assombro, para o Mancebo) Ento este moo quer casar com minha filha?

MANCEBO (humilde) Se fr de vosso gosto...

PAI RICO inteiramente de meu gosto. Deus te abenoe, meu filho. Que peso me tiras das costas.

PAI POBRE Ento est concedida a noiva?

PAI RICO J est entregue. Mas nunca aconteceu que homem algum quisesse carregar com ela de minha casa. Antes, porm, por Deus, eu seria falso amigo, se no vos avisasse do que pode acarretar essa deciso. Somos amigos e tendes um timo filho, seria grande maldade consentir em sua desgraa. Certamente, sabeis que minha filha e spera e geniosa como uma megera, e se o rapaz chegar a casar com ela mais lhe valeria uma boa hora de morte do que to difcil vida.

PAI POBRE Tranqilize-se, senhor. Quanto a isso podeis ficar descansado. O rapaz bem sabe do temperamento da noiva, e mesmo assim deseja casar-se. No foi enganado.

PAI RICO Ento, no se fala mais. Se assim , eu a entrego de bom grado, meu filho. E que o cu te auxilie nesta empresa. (Ouve-se, vindo de dentro da casa, grande rudo de gritos e pratos quebrados). No se espantem: a moa, que discute amigavelmente com sua me. (Chama). Ol, menina! Senhora minha mulher! Vinde aqui! Temos grandes novidades!

Saem me e filha, muito furiosas, em grande discusso, disputando-se um pano que ambas puxam cada uma para si...

PAI RICO Mas que isso, senhora? Filha indomvel! Assim apareceis? No vedes que temos visitas?

MOA (Atrevida, olhando-os de alto a baixo) E que visitas so estas?

PAI RICO Este rapaz, minha filha, teu futuro marido.

MOA Meu marido? Este? (O mancebo faz uma reverncia. A moa ri s gargalhadas). No me pudestes encontrar coisa melhor na feira, meu pai?

ME Muito me espantaria eu, marido, se fizsseis alguma coisa usando a cabea. Ento, com o mais esfarrapado da cidade haveria de arruinar-se nossa filha:

PAI RICO Calai, senhora, e no retruqueis mais. de minha vontade e est decidido. Amanh ser o casamento.

ME Vossa vontade? E que vontade a vossa, seu frouxo? Ai, minha filha, minha pobre filha...

PAI RICO (Confidencialmente, para o vizinho) A me no menos tirana, amigo. Mas esta j no h quem me tira de casa.

Fecha-se a cortina e volta a aparecer PATRNIO.

CENA III

PATRNIO Assim comea a nossa histria. Logo veremos como prossegue e termina. Forte a moa e bem decidido o mancebo. O que resultou desta unio, logo o sabereis. Eu me retiro, que o cortejo est por chegar, e s vim aqui para vos avisar que o casamento se fez e j trazem a noiva casa de seu marido. (Sada o cortejo).

O cortejo, que vem pelo meio da praa, aparece e desfila diante do pblico e sobe ao tablado. Vm gaitas, tambores e pandeiros. Em seguida, o PAI RICO e a ME. Atrs os noivos e pares de moos e moas coroadas de grinaldas em flor. Cantam e danam no cenrio um Romance de Bodas.

CORTEJO Maio em flor vos traz gentis ataviosos alegres campos, as fontes e os rios.

Erguem a cabeasalgueiros bravios, e as verdes espadas de onde apontam[lrios.

Danam e repetem, cantando, a primeira estrofe.

PAI RICO (Chamando a moa parte) Ests casada, minha filha, ouve agora meu conselho: obedece e serve a teu marido, que h mais sossego em obedecer do que em mandar.

ME (Tomando a moa pela mo e levando-a para o outro lado) Ests casada, minha filha, ouve agora um conselho: no te deixes abrandar nem por bem nem por mal; que ao que lambe as mos, a este do pancadas.

PAI RICO Ei, senhores. Retire-se agora o cortejo. Que fiquem ss os noivos at o outro dia.

Despedem-se entre risos e abraos e saem todos cantando. O MANCEBO descerra a cortina e entra com a noiva em sua casa. Est posta a mesa e sobre ela um candelabro aceso. Ao fundo, por uma janela, v-se a cabea do cavalo ruminando no curral. Enquanto a noiva retira a grinalda e os enfeites, ouve-se cantar o cortejo, distante.

CENA IV

MANCEBO Digo-te, mulher, que no se cumpre conosco o costume desta terra, de servir a ceia dos noivos sem que lhes falte nada.

MOA Mas no vs a tudo?

MANCEBO No vejo onde est a bacia da gua para lavar as mos.

MOA gua para lavar as mos! Essa boa, marido. Contenta-te em comer e calar que em tua casa, certamente, no te davas ao luxo dos lavabos.

MANCEBO Te enganas. Sempre fui pobre, porm limpo. E quero me lavar. (Pausa. Ela no liga importncia. Ele d um soco na mesa, erguendo o tom de voz). Quero me lavar, ouviste? (Olhando em volta de si). Ei, tu, dom cachorro! D-me gua para lavar as mos! (Outra pausa. Espera). Como? No ouviste, co traidor? Eu te ordenei que me trouxesses gua para as mos. Ah, calas! No me obedeces? No perdes por esperar. (Sai furioso para trs das cortinas e d punhaladas no cachorro, que late espantado).

MOA O que fizeste, marido? Mataste o pobre co. Olhem que tipo de homem esse...

MANCEBO Mandei que trouxesse gua e no me obedeceu. (Limpa o punhal na toalha da mesa e torna a olhar ao redor de si, contrariado. Dirige-se a um suposto gato, do outro lado da cortina). E tu, dom gato, me traz gua para as mos!

MOA Falas com o gato, marido?

MANCEBO (sem dar ateno mulher). Como? Tu tambm calas? Traidor! No viste o que aconteceu ao co por no me obedecer? Aviso que se insistes em teimar comigo ters o mesmo fim. D-me gua para as mos agora mesmo!

MOA Mas, marido, como queres que o pobre gato entenda de bacias de gua?

MANCEBO (Impe silncio com um gesto, secamente) Que? Nem te mexes apesar de tudo? Ah, gato traidor... Espera, espera e j vers!

O MANCEBO sai entre as cortinas. Ouve-se um miado estridente. Volta a entrar com um gato espetado na espada. Joga-o ao p da moa.

MOA Ai, pobre gatinho! (Ergue o bichano tristemente pelo rabo, comprovando que est morto).

MANCEBO E agora, tu dom cavalo. Traz-me gua para as mos! Vamos!

MOA Isso no! Pensa, marido, que cachorros e gatos h muitos. Mas cavalos, tens apenas este.

MANCEBO Ora, mulher, pensas que por que no tenho outro cavalo, este vai se livrar de mim se no me atender? Que cuide de no me aborrecer, do contrrio ter to negra morte quanto os outros. (Voltando-se para ela, que retrocede, assustada). E no haver viva alma nesta casa a quem no faa o mesmo. (Para fora). Ei, dom cavalo! Ouviste? D-me gua para as mos!

MOA (perturbada) Enlouqueceu!

O MANCEBO puxa da pistola e dispara em direo ao cavalo. O animal cai pesadamente.

MOA Deus nos valha, marido! Mataste o cavalo!

MANCEBO E da? Pensas que admitirei dar uma ordem em minha casa e no ser obedecido? (D um ponta-p na cadeira. Volta a olhar para os lados com fria. Fita o olhar nela e se aproxima. Fala calculada e lentamente) Mulher, d-me gua para as mos.

MOA (tremendo) gua? Agora mesmo! Porque no pediste antes, marido?

(A MOA corre para dentro e volta com uma pequena bacia dgua e uma toalha) Espera! No te canses. Eu mesma te lavarei!

MANCEBO Menos mal. Agora serve a ceia.

MOA Sim, sim... agora mesmo. s mandar, marido. (Serve, prodigalizando-lhe sorrisos. Fica em p enquanto ele come).

MANCEBO Ah, como agradeo aos cus por teres obedecido prontamente. Caso contrrio, com o tdio que tenho, faria contigo o mesmo que fiz com o cavalo.

MOA E como no te haveria de obedecer, marido? Sei muito bem que no h qualidade que assente to bem numa mulher como a de servir e honrar ao senhor de sua casa. Manda-me o quanto quiser. Eu juro...

MANCEBO (interrompendo) Cala-te! Chega!

MOA Sim, sim, perdo. MANCEBO A ceia no esteve satisfatria. Que isso no torne a acontecer.

MOA No te preocupes. Amanh eu mesma a prepararei...

MANCEBO Bem, agora vou ao leito. Cuidado, mulher, que nada me perturbe o sono, com a raiva que tive esta noite nem sei se poderei dormir. Esta cadeira...

MOA Sim, sim... (Apressa se em pr a cadeira no lugar).

MANCEBO Ilumina o caminho!

MOA Sim, sim...

A MOA acompanha-o com o candelabro, cedendo-lhe a dianteira com uma reverncia. Sai o MANCEBO. Fora recomea o Romance de Bodas. A MOA volta e corre at a janela.

MOA Loucos! Que fazeis? Psiu ... No perturbeis meu marido seno seremos todos mortos! (Cessa a msica. Ela impe silncio ao pblico, nas pontos dos ps). Silncio, silncio, todos, por Deus! Meu amo esta dormindo... (Fecha a cortina, levando um dedo ao lbio).

Mudana de luzes. Sai o PAI DA MOA. Escuta, levando a mo orelha.

CENA V

PAI RICO No se ouve nada. Que se ter passado aqui? (Chama) Meu genro! Oh, meu genro! (Sai o MANCEBO).

MANCEBO J est mansa...

PAI RICO Mansa? Minha filha!

MANCEBO Mansa como uma ovelha.

PAI RICO Mas isto maravilhoso. Conta-me como te arranjaste para conseguir tal milagre?

MANCEBO Puxando forte a rdea desde o princpio. Mandei o co trazer gua, como no obedeceu, matei-o a punhaladas diante dela. Fiz o mesmo com o gato e depois com o cavalo. Assim que, quando ordenei-lhe que me trouxesse gua, obedeceu voando por medo de sofrer igual castigo. Eu vos garanto que, de hoje em diante, vossa filha ser a mulher mais bem mandada do mundo. E juntos teremos uma vida muito feliz.

PAI RICO Por todos os diabos, rapaz... Que grande idia me ests dando... Se eu puder fazer o mesmo com a me, que tambm tirana!

MANCEBO No sei o que dizer, meu sogro. Mas penso que nunca os segundos tempos foram bons. Lembrai-vos daqueles versos de Lucanor:

Se no incio no mostras que[s capaz,no poders mostr-lo nunca[mais...Cuidado, a vem vossa mulher...

PAI Por tua alma, rapaz! Deixa comigo esta espada.

MANCEBO Aqui est. Que o cu vos ajude. Adeus, meu sogro.

Sai o MANCEBO. Descerra-se a cortina outra vez e entra a ME.

ME Que fazeis aqui, marido, to cedo e com uma espada na mo?

PAI E quem sois para perguntar-me alguma coisa, senhora?

ME Heim, perguntais quem sou?

PAI Falai, quando fordes mandada, e muito cuidado para no me aborrecer. (Ouve-se de dentro o canto de um galo).

ME Com que ento essa a nova fala vossa, bem, marido?

PAI E antes de replicar mais uma palavra, olhai bem o que vou fazer. Ei, tu, dom galo, trazer-me gua para lavar as mos!

ME Mas o que fazeis, dom fulano? com o galo esta conversa?

PAI Silncio! E fique de olho no que se vai passar aqui. (Para o suposto galo). No ouviste que te pedi gua para as mos? (Pausa). Que? No me obedeces? Espera, espera! (Sai furioso).

ME Pelo que vejo hoje a festa completa... (Arregaa as mangas).

Volta o PAI trazendo o galo morto, pelo pescoo.

ME Vejo muito bem, marido. Porm, tarde demais vos lembrais de tal providncia. Isto deveria ter comeado h trinta anos. Agora to bem j nos conhecemos que nada disso me convenceria, ainda que matasses cem cavalos. (Arrebatando o galo da mo do marido e agredindo-o com ele). Vamos! Vamos! Para dentro, toleiro! J, no h galo morto que te salve. Vamos, vamos!

FIM