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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA NALFRAN MODESTO BENVINDA ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética das Virtudese sua interpretação pelo pensamento cristão Recife 2017

ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

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Page 1: ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Recife

2017

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN

Linha de Pesquisa Filosofia Praacutetica

Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa

Recife 2017

Catalogaccedilatildeo na fonte

Bibliotecaacuteria Maria do Carmo de Paiva CRB4-1291

B478a Benvinda Nalfran Modesto

Alasdair Macintyre e Tomaacutes de Aquino a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e

sua interpretaccedilatildeo pelo pensamento cristatildeo Nalfran Modesto Benvinda ndash 2017

129 f 30 cm

Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco CFCH

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN Recife

2017

Inclui referecircncias

1 Filosofia 2 Eacutetica 3 Virtudes 4 Macintyre Aladair C 1929- 5 Tomaacutes de

Aquino Santo 1225-1274 I Costa Marcos Roberto Nunes (Orientador) II

Tiacutetulo

100 CDD (22 ed) UFPE (BCFCH2019-067)

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN

Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica

Aprovada em 16 08 2017

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)

Universidade do Porto

_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)

Universidade Federal de Campina Grande

________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana

AGRADECIMENTOS

Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo

A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar

A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o

processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa

Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela

educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo

Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia

Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho

Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in

memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon

Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo

incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia

Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo

enxergavam

Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa

Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa

A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das

Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande

do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes

Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos

A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que

pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em

representar-lhes

Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta

Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo

A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo

Gilfranco Lucena

Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel

especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o

meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina

Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual

de Alagoas minha nova casa

A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias

e Letras de Caruaru ndash FAFICA

Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen

Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL

A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse

trabalho

Meus sinceros agradecimentos

ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum

quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad

infinitus effectusrdquo

ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos

oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos

para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)

RESUMO

A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta

pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude

o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta

proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio

investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o

pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes

de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente

de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a

de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas

contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa

bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de

atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e

a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte

abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou

ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada

numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que

sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da

Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista

que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica

Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo

ABSTRACT

The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting

from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort

of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to

Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation

which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian

thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of

aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of

thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the

one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to

the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of

inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos

Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal

themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the

contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of

dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following

part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well

as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own

indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses

the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the

thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics

Keywords Ethics Virtues Christian thought

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 13

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20

212 A incoerecircncia do dever moral 25

213 Criacutetica ao utilitarismo 29

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de

Gertrude Anscombe 32

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO

DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA ORALIDADE 37

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo

e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

MORAL DE MACINTYRE 49

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49

411 Vida social e conceitos morais 50

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51

413 O emotivismo 52

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55

422 O conceito de praacuteticas 57

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60

423 Tradiccedilatildeo 64

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO

E O ARISTOTELISMO 67

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70

512 A escolha deliberada 72

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78

522 Sindeacuterese e consciecircncia 79

523 O conceito de vontade 80

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio 86

526 A intenccedilatildeo 91

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista

da teoria das virtudes 105

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105

53132 As virtudes teologais 107

53133 A virtude da justiccedila 107

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108

53135 O habitus e vontade livre 111

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119

REFEREcircNCIAS 127

13

1 INTRODUCcedilAtildeO

A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para

definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e

possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a

preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-

reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a

contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta

compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O

homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma

deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre

o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade

O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de

Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que

o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado

individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave

compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o

conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto

representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles

estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que

em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto

daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo

O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica

Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno

em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do

dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras

de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica

a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada

no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento

eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas

encontra sua fonte no sujeito

14

Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica

ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas

MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai

causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso

moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande

siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor

a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento

contemporacircneo

Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa

considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para

efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes

MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina

Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e

deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a

saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora

tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com

as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar

O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica

efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir

de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica

centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio

testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi

apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e

Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de

sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa

precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a

reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre

deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre

o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do

MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa

O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que

significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo

15

com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo

retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na

tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se

apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do

pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais

da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento

Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre

Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral

Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico

que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou

em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se

constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa

Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura

do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica

das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das

virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo

A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata

da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea

resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da

moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto

iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral

de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se

mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo

aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia

Moral

16

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES

O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa

do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia

em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna

como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de

compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta

esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como

tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos

pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe

A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada

Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica

das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento

da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira

via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente

instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia

moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que

justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica

deste capiacutetulo

Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das

Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia

moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia

influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS

Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um

termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas

virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras

denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees

1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No

Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot

17

denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)

Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo

Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)

A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto

em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela

perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo

das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom

A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para

a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se

considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo

Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica

normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant

e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John

Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos

publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as

duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto

que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)

permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo

Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo

sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um

reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um

filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das

virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente

falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel

uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre

os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees

complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo

2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist

18

considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo

mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40

anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de

terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas

A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta

as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a

antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou

um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao

pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande

distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo

social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a

escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No

entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute

comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos

deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por

exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo

fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o

renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a

amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o

papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora

praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos

seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma

simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais

em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo

satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind

Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas

sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)

Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta

que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte

demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas

4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas

significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor

da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista

19

revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros

pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant

enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles

(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)

A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um

problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao

fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada

Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que

a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a

deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo

que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do

agente

O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para

Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens

Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas

a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)

A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se

promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um

reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo

lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta

abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica

centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir

humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo

20

apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do

aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes

A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras

particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958

Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention

consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e

amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma

das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua

inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e

fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica

No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses

A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute

que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute

uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer

uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta

Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral

contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta

seccedilatildeo

Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica

tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica

Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica

encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma

Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)

21

As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia

Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com

que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo

distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude

Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo

capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos

realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos

proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir

do ser humano

A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute

soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta

afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como

aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa

se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao

estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na

mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude

desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma

psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se

fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada

intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave

filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade

Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica

sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece

com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a

psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia

passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos

supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser

tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia

ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)

O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin

Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia

ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados

psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim

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pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo

acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de

entender a moral

O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias

(FLANNERY 2009 p 45)

Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas

como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na

contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da

maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os

ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto

eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua

vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a

intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute

o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma

Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia

empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como

Edmund Husserl e Heidegger6

A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na

Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery

salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do

lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf

FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe

entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente

por uma Psicologia Filosoacutefica

6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como

fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo

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Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a

moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma

Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)

Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta

Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz

respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas

como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve

explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele

fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato

voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua

vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e

involuntaacuterios

Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees

morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um

objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante

diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no

tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por

um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade

mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo

se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um

estado psicoloacutegico

Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se

considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da

questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de

Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente

e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica

O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do

pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a

Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as

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virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem

estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por

funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes

Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)

A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em

relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos

se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi

apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos

humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O

aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode

oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem

os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos

Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente

desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o

modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o

desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem

obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes

Neste sentido expotildee Kevin Flannery

Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)

Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia

Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O

direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento

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contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados

proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

212 A incoerecircncia do dever moral

Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um

propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um

questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral

moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia

praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as

tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque

pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por

fundamento primordial o sujeito moral

Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude

Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um

conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de

Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de

modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo

reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que

expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais

como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de

lsquointelectuaisrsquo

A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo

moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a

Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva

suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera

uma releitura na eacutetica aristoteacutelica

Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se

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pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7

O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma

grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo

que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as

noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das

influecircncias recebidas

Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de

dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si

mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um

inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma

enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob

determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute

diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo

deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo

pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a

propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente

Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral

pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma

teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer

um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do

agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e

obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que

privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma

tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela

provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento

No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida

em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de

agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do

haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais

importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar

7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special

sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo

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independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste

sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a

centralidade no agente

As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade

das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees

Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz

do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa

segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken

relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica

e a tese do chamado reducionismo conceitual

A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por

conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma

pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo

julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor

moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees

decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa

o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende

que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude

Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao

reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica

do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e

ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados

de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)

Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente

internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave

moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando

prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-

cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer

que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee

em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua

descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as

consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da

eacutetica hebraico-cristatilde

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A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura

hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees

se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas

A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo

justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no

entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui

um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo

seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas

do indiviacuteduo

Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral

se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf

ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de

lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo

lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada

mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que

apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees

sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro

lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom

ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas

no agente

As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o

sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna

se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que

antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde

Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)

Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio

ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc

faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p

34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade

de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular

a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees

29

Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no

horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo

fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um

sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou

lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a

Lei Divina

Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral

moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que

a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os

conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de

serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos

trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)

213 Criacutetica ao utilitarismo

A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo

do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo

utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave

possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE

2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa

tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio

para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo

(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a

compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma

accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou

intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de

Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave

responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a

autora propotildee um exemplo

Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos

8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for

something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo

30

compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9

A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte

do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o

sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que

este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a

cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude

de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso

seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito

deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim

a responsabilidade pelo ato

Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a

antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela

accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando

apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se

apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram

antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso

desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto

A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente

soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente

previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes

consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas

consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo

se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se

preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que

acontecesse

9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore

deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo

31

A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora

expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre

se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve

ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada

accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve

fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um

consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo

desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso

limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais

O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)

A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite

uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se

o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa

determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista

contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do

convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um

determinado agente consentindo maacutes accedilotildees

[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)

O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo

utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer

dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar

assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser

feito

10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd

32

A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute

de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o

fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-

la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente

controverso

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe

A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de

MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que

encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a

vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais

proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme

afirma Jorge Garcia

A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11

O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois

no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat

(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento

Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus

operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer

salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza

fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais

Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a

felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o

11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply

recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo

12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224

13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic

33

antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute

herdeiro de Gertrude Anscombe

O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo

Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com

o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda

distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p

162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida

uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia

filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por

seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia

metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos

tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo

histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)

MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma

forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser

sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da

perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual

Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave

criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que

seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio

MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles

Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14

concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo

14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo

34

Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste

capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica

das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas

pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio

ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na

ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da

Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate

eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes

como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral

como um todo

A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na

tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia

Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave

contemporaneidade

35

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA MORALIDADE

A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas

centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento

preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que

a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na

modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o

chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos

modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre

Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais

teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da

histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram

A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta

seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de

justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da

argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois

da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que

MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo

dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo

discurso

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE

A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante

apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O

iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias

naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia

inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos

satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum

saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto

o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece

uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se

36

esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos

conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava

significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que

possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de

livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo

rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo

reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica

quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade

da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam

apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e

recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou

quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum

sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da

compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar

sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf

MACINTYRE 2001 p 14)

A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos

da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a

filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a

historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia

natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o

material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de

fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus

fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute

agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis

natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem

Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo

que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe

suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que

sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a

linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de

fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida

37

por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de

linguagem ordenada

O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem

ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral

moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE

O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de

tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus

governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a

moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral

claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral

moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si

proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente

marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica

termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo

(VAZ 1999 p 257)

Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo

eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses

modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que

propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica

Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs

grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral

kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de

Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio

Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente

moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento

de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de

fundamentaccedilatildeo da moral

15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in

something like fully-fledged formrdquo

38

Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs

grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a

escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral

a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na

escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia

do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista

de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho

proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral

contemporacircnea

David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do

gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza

Humana o autor afirma

A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16

Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram

postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma

ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando

este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza

a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com

uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois

realizadas em virtude das paixotildees

A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver

conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees

proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant

afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em

humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant

acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da

accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma

accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute

16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature

of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo

39

vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela

praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo

puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a

moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como

uma heteronomia por exemplo a religiatildeo

A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a

indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)

A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre

Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como

paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma

face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf

MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento

e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute

preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os

estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as

determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou

princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma

posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)

Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos

diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo

fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de

que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente

independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo

se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito

Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo

de MacIntyre

Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)

A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios

para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra

40

marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui

MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um

deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da

Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos

fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia

alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse

desacordo

A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais

existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta

perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo

existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva

passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma

uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da

moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da

norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA

A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade

natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria

afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha

A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e

Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas

morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao

fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)

Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta

incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da

moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo

41

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos

pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo

da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo

incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme

de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para

Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre

de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que

defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por

estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma

natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral

A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza

humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento

necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e

Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees

para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e

categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora

ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a

mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as

caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a

escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza

esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir

argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana

conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos

moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18

Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de

MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso

17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre

acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188

18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre

42

moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A

pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do

autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a

alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de

pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum

Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em

seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos

exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles

tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro

esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana

sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso

moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e

preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo

de natureza humana na moral moderna

O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado

segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria

desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma

relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso

MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi

ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade

Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de

caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que

Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo

homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza

essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o

homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e

Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este

esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios

43

satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o

verdadeiro fim

Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo

preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses

trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem

ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de

accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e

quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois

ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de

interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade

O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de

acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem

expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso

retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de

pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e

respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo

do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande

parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave

revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do

protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito

dando lugar a um novo conceito de razatildeo

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo

Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do

protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo

eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem

O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)

Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo

alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade

44

MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras

entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da

razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A

criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno

tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel

ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que

a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato

psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume

O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)

A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da

razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de

Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana

seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado

destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da

natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia

que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a

catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro

fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural

dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral

Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do

discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi

apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da

noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que

provocaraacute o ulterior desacordo moral

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII

ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada

frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum

45

Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave

terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que

natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento

sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo

das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato

conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e

consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das

possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito

eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre

A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)

MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e

protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono

da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade

Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele

qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia

E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a

felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas

claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente

todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o

homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana

representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque

na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo

pela noccedilatildeo de natureza humana

MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas

de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de

natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida

46

e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade

pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os

modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais

ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue

compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento

uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno

de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um

esquema ldquoestilhaccediladordquo

Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19

A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os

preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do

esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de

justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem

a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana

vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade

soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro

tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na

uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever

MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno

um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito

de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e

medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem

enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial

Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o

conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma

famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o

fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um

conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como

19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia

inquietante

47

indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees

valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave

falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada

O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o

segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro

Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de

juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda

da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado

de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre

conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente

e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta

de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais

Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo

realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua

finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas

expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da

compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute

bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute

justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por

conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)

Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos

A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade

de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade

lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo

Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da

invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso

acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em

questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis

Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal

48

natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles

satildeo categoacutericos

As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre

proporcionaram um desacordo moral

Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)

Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A

primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde

fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma

fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por

um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico

de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do

projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza

humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade

e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos

Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria

macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um

pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito

de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida

humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo

49

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE

A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da

Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a

Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que

marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram

a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma

alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees

A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da

terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe

conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento

contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de

Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do

pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea

A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do

lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave

apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla

criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que

aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns

dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa

desta seccedilatildeo do trabalho

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em

MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais

posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais

do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de

publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral

Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no

primeiro capiacutetulo deste trabalho

50

Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma

embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese

de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute

o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os

conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade

desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do

emotivismo

411 Vida social e conceitos morais

O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica

chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave

histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de

que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua

histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os

conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras

que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas

formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam

representados por estes conceitos

Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas

formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20

MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender

as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos

morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem

ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair

MacIntyre After Virtue and After acrescentam que

20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause

social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01

51

entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21

Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem

estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como

partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para

a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas

O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que

aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir

de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar

fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica

de uma ontologia

As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees

morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas

de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que

esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p

243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de

falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se

fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem

afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o

incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito

distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com

efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado

moral

A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o

modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro

21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral

concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo

52

seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber

que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos

realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem

e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de

bem MacIntyre citando George Moore questiona

O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22

O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor

que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente

simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem

como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua

presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o

indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente

age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo

que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude

413 O emotivismo

O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre

o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas

reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem

como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos

proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o

proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem

ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois

homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo

moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)

22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at

least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo

53

Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson

Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo

primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o

objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica

dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque

satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda

atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois

modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro

modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu

gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que

encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um

significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas

pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em

virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra

Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos

aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela

multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos

valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de

construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque

quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos

assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson

uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite

para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem

procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se

podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo

loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer

apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem

sua conveniecircncia

54

Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos

contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze

anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais

relevantes do autor

Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo

sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois

da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral

moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a

proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da

Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do

discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE

A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a

falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da

racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em

relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o

seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade

partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto

social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de

natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte

A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a

consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios

caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude

e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre

natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute

bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz

A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio

pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos

tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos

principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou

suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica

55

As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os

encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente

esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar

a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do

discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de

MacIntyre

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude

Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da

vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de

MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria

MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute

enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria

Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23

Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades

entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram

completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e

caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre

percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo

Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual

Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um

23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of

importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo

24Destaque nosso

56

bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25

Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um

meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro

Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles

MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute

realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo

eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo

(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em

Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio

Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a

possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de

virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral

fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a

distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou

que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo

comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar

inteligiacutevel o conceito de virtude

Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26

Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos

da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois

25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human

telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo

26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo

57

o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute

reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo

Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios

422 O conceito de praacuteticas

Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana

referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear

pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo

das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas

natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes

satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica

Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27

Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre

apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez

mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda

crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por

semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais

50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar

Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez

Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto

que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai

encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade

especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo

conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada

27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo

58

ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir

Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf

MACINTYRE 2007 p 188)

Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa

de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido

de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que

apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou

de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a

outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e

reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade

Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que

proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando

conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de

modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e

concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua

conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois

a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta

questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre

oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma

nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos

impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28

A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel

eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia

significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens

Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias

atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute

podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no

relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de

relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como

uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute

necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos

28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo

59

estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da

justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar

disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se

necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos

bens internos

A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre

dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma

praacutetica

Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29

Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo

sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece

poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As

virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens

relativos a elas

As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de

capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens

e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade

teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da

consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir

parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica

MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas

definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as

29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo

60

proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute

pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e

consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da

histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma

dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes

Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte

maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um

reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no

contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que

reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica

predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31

Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os

bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens

internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois

o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode

muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse

sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status

sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa

Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo

proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus

resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo

se daacute de maneira uniacutevoca

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular

O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular

eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude

Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu

conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da

seguinte maneira

30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash

but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and

even exclusive featurerdquo

61

seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32

O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada

vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade

ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV

de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da

vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica

ou ainda da teoria socioloacutegica

O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da

maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida

eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos

quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida

puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33

Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do

indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha

Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada

como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista

por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute

constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente

MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese

a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)

Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis

impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de

MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel

Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia

32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each

such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo

33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo

62

questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa

mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor

Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida

humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de

algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que

se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as

abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana

individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre

homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu

cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave

morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p

205)35

O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a

oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se

limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a

problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas

Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)

A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do

conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma

vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser

articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e

essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A

perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa

ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade

34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life

that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as

narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of

human actionsrdquo

63

somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes

de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na

forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a

compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros

Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37

A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular

pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras

Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na

unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e

palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o

indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a

essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem

a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso

enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de

respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida

moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38

A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca

narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais

primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos

isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira

caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas

A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente

caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras

vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter

pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si

A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a

noccedilatildeo macintyreana de virtude

37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms

of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo

38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo

64

As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39

O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios

nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes

necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre

conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para

o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa

para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo

necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas

esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave

vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de

vida e tempo segmentados

424 Tradiccedilatildeo

O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de

uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de

significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma

identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma

identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da

cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de

limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de

partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando

pelas particularidades busca-se o bem o universal

A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles

que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das

39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices

and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo

40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo

65

marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute

mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido

Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer

reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas

sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a

compreende e a transmite

Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas

como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de

tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma

tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente

incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que

constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior

de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura

do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as

circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura

se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica

vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e

caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio

da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi

transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa

ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo

A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do

exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as

virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia

ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes

A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem

e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem

as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo

(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia

41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument

precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made

intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo

66

das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras

que o passado tornou disponiacutevel no presente

O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo

complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem

natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias

conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral

como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria

Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da

exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de

resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter

sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral

Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista

Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo

compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria

moral

O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu

pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma

Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou

em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre

o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de

Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea

67

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO

A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em

tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto

atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do

pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que

a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava

simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo

(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como

objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o

Aristotelismo

A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do

pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes

acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa

psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por

consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e

lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado

Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de

homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de

uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa

indicada por MacIntyre

A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a

necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos

e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as

disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa

direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem

prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre

pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira

sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma

reflexatildeo sobre a teoria dos atos

Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o

autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial

68

prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao

conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir

de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um

retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria

uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica

Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para

o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira

que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa

compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente

moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf

ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato

moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas

em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o

viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que

frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar

relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees

Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a

importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de

boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma

Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque

as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo

moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria

aristoteacutelica dos atos

A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos

fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa

filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses

elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que

se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de

Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na

tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui

conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por

MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode

69

afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo

semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se

refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade

Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute

desconhecidos deles

O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo

como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia

moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma

consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se

essa leitura cristatilde natildeo for considerada

O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o

horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes

dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui

como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem

Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia

central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de

Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com

os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava

inserida

O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo

primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o

desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de

que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que

encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se

desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica

de Aristoacuteteles

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8

Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em

relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de

seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que

70

a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como

o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8

Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a

emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados

ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em

seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores

definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III

1 1109 b30)

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio

A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos

voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores

na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem

Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se

apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees

praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43

Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama

a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo

indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos

navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas

accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que

satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio

entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44

Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz

que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade

natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma

classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma

43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo

71

accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por

exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante

da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os

navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a

jogaram no mar

Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato

ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve

possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda

provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1

1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e

penoso ao agente

Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-

voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf

ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o

nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o

arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se

arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria

Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de

ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em

estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer

que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem

encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de

homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do

homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto

ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente

alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os

criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se

acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento

45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν

μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo

72

Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente

a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados

natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso

dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos

por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu

arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que

conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49

512 A escolha deliberada

Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles

entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria

(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que

a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais

abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos

voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada

A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e

que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual

a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo

do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente

quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute

acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010

III 4 1112 a15)52

No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha

deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A

escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado

49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ

ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo

51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo

52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo

73

deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios

que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer

A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate

latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso

muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles

inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo

de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja

suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma

coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo

de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente

percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se

o querer diz respeito ao fim

Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54

A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que

o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-

se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este

fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para

Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a

escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute

querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que

53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου

ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo

74

o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira

considerar a escolha errada tambeacutem um bem

Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um

modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do

agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do

querer

Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese

na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve

dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que

aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6

1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto

o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o

virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude

consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos

a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a

entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer

ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica

Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56

Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem

enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma

coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a

conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo

Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)

A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma

aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se

55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo

75

relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de

bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser

humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada

uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113

a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro

em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente

bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto

faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em

relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas

O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma

relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a

phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da

phroacutenesis

Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)

O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida

que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o

ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita

de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se

deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees

Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas

mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro

que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo

dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o

homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa

A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-

se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave

visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que

posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de

bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas

57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo

76

aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais

age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano

acrescenta que

enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)

Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo

homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado

caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A

relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento

primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto

mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em

seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo

A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer

esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua

relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios

para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se

que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O

acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por

escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das

virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113

b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente

agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo

um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada

e os diversos outros atos humanos

Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser

o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-

se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que

para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio

Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso

Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um

77

certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a

sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa

Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio

natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente

obscurecer o juiacutezo

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os

conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que

medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo

Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram

traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos

A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta

observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o

concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel

estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar

que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio

Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma

coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute

possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento

fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa

necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave

iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio

mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal

Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo

latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai

retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor

assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa

necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste

modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem

Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria

embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista

78

dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte

da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista

dos atos se justifica

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino

O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo

de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse

de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus

O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos

atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na

bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da

semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de

Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo

O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das

paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir

aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos

mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma

apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para

posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da

reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo

amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em

consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-

se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra

profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem

se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins

O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute

pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as

accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber

uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos

humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo

sobre as paixotildees da alma

79

522 Sindeacuterese e consciecircncia

Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um

aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em

virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se

ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se

move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os

princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua

funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos

primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a

Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde

com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto

que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute

realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela

A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da

consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf

AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a

medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino

esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que

se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se

que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando

se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63

58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive

reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum

hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum

et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo

80

Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se

necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO

Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela

entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como

um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando

os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da

consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de

homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado

como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65

Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece

como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela

natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse

modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese

que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na

atualizaccedilatildeo da consciecircncia

Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66

A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de

homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute

o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma

vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel

defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um

mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar

523 O conceito de vontade

64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est

potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo

81

Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de

necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade

que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de

necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis

A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta

em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente

eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente

eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a

dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de

necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como

causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67

A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo

convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da

alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino

pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente

eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada

como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69

Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se

constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma

compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do

conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma

ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da

noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer

uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a

liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em

relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da

vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito

de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-

67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno

modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo

68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo

69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo

82

se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo

deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir

pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-

lo a querer fazer

Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma

certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute

segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a

inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite

denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-

se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel

A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem

chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel

quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em

irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute

prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da

ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela

voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o

bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal

Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido

como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute

segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de

vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir

esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar

o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q

82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em

Tomaacutes de Aquino

Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia

de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a

vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a

70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit

universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo

71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo

83

bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-

se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma

vontade livre

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira

a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos

serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana

o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese

entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a

felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la

Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre

os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer

que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua

escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de

todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica

um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem

ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de

Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em

virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra

nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor

o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade

O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais

adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade

possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de

liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua

manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que

na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento

do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre

vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade

pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o

pensamento cristatildeo

72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo

84

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade

A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte

da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a

relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de

superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o

sentido de absoluto e relativo

A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73

Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem

desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido

a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do

intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-

se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto

considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade

Tomaacutes de Aquino esclarece

O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82

a3)74

A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica

cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no

Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a

vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas

73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo

sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo

74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo

85

Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo

status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu

operar satildeo chamados de voluntaristas

Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao

intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute

melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa

na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta

coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O

bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o

proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca

desse bem que eacute a felicidade perfeita

Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino

No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste

na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)

Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a

considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria

mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja

Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de

pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto

entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa

coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento

O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a

felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade

75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per

comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo

86

mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-

suficiente Aristoacuteteles acrescenta

Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)

A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na

totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica

num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da

felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda

revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A

eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro

lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes

de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute

realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do

cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente

adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio

A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender

o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o

empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta

existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da

vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais

que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio

e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

posterior

O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira

parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese

geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que

87

este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do

querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute

condicionado

O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das

proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes

de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras

que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o

julgamento livre

Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76

A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo

mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma

distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o

julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que

possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento

Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas

somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto

pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela

racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio

Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes

deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem

seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma

76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter

omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo

88

em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo

impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste

sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um

determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias

inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que

ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser

por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre

e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em

cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83

a1)78

Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos

livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a

agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na

verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer

Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste

artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de

Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne

a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79

Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional

ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo

da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO

Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de

liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o

assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem

constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela

na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O

livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe

o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81

77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium

est potentiardquo

89

Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo

implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode

negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo

de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se

pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre

propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute

possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre

eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este

escolhe o mal

Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant

seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma

terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A

terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o

sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave

escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada

somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium

brutum) (cf KANT 2003 p 63)

A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-

arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e

livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo

Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber

o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo

A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da

autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute

uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de

Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade

O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na

Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e

ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude

de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de

82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo

90

telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e

autonomia

Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-

arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos

distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes

de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da

Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus

quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento

ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)

Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio

Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem

encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees

1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus

particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de

beatitude

A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o

resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo

reside na accedilatildeo em si mesma

A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83

Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela

atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes

de se pensar em termos de teleologia e autonomia

83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non

esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo

91

526 A intenccedilatildeo

A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da

filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma

meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A

intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-

se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na

questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro

artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu

objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)

Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere

agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84

Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo

se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da

alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute

propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85

Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender

ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o

movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme

ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira

primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde

que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a

intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )

Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade

promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada

na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de

Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da

intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios

alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo

84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum

est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo

92

Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas

simultaneamente Tomas de Aquino afirma

A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86

Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar

finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse

sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins

podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a

intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens

se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a

razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo

Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na

descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem

pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute

um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que

implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que

os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a

intenccedilatildeo voluntaacuteria

Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino

afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a

vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave

vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios

para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute

constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre

intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra

O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava

em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo

havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao

86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et

ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo

87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo

93

Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos

atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES

Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de

modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao

pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo

verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto

aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute

Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que

contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa

Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do

cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que

mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no

pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer

entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno

contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento

cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para

a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o

conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo

de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das

Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral

Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino

opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um

lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que

muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta

compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao

pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade

agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do

MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado

94

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista

Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro

aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma

ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na

inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As

reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas

da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz

do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao

pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte

integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral

Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do

pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da

mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino

Assim Agostinho afirma no De Beata Vita

Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88

Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus

Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos

criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo

(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos

interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a

proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo

de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior

de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz

88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod

loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo

95

Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a

vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem

no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a

felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta

nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes

de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as

principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus

por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus

Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou

vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus

mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em

Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente

humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais

satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode

ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento

Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida

beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma

gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao

amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas

A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de

como devem agir aqueles que nela inspiram-se

As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem

praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo

A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer

uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as

Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas

escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um

espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a

concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)

Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem

como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade

e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No

96

livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando

responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes

Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a

Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico

fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que

se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte

especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica

como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu

de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas

ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou

para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos

97

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia

Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a

seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia

tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas

satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como

Tomaacutes de Aquino responde a este problema

No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao

problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema

agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes

coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um

espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo

Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus

viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no

agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em

Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de

Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com

efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o

homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de

Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral

centrada no agente

Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos

como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que

a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo

Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre

sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A

explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia

a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)

98

Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que

se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando

toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se

atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais

suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute

possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes

de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio

de seu pensamento ontoloacutegico

Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino

adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus

atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos

conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40

2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina

o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem

a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta

hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel

secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico

Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma

parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel

tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento

sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus

natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional

constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem

de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-

arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute

justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o

permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual

Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral

conhece-se a lei divina

89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus

nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et

arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo

99

A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91

A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e

estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus

Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo

torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios

atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo

de uma parte moral na Teologia

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista

Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a

construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute

vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei

eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo

Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual

deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos

interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute

2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais

na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula

fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo

eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo

ponto a ser aqui explicitado

O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi

nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre

esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras

liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve

bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos

depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de

91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus

humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo

100

inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de

Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de

Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como

eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo

da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o

desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida

tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p

27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista

A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral

na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos

de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que

possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a

ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia

moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees

humanas Assim ele inicia a Prima Secundae

Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92

A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta

maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma

unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para

adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave

ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar

92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad

hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo

101

do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o

homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de

poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que

o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma

imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem

de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota

ldquobrdquo p 29)

A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia

agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho

mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto

o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos

que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem

uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os

atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um

ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e

os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja

exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)

O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio

pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus

governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave

vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o

governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza

a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o

processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo

relacionadas ao ser do homem

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes

A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as

virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do

homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que

diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas

a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos

102

habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor

diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho

agrave beatitude

A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade

substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como

recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute

como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do

corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as

coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo

(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93

A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo

que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino

espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de

Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal

Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94

Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado

a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o

assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o

homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as

criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar

o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua

vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o

homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem

nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras

93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter

complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo

103

moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu

forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As

potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus

que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o

homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz

Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95

As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem

considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as

potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da

razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a

irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta

totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar

um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza

poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente

pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma

O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar

95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes

appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo

104

inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96

Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta

determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou

conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto

noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse

nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta

de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os

princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a

ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave

concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao

corpo

Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem

seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por

essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da

justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da

fortaleza

Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das

potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente

compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e

humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em

conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma

vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age

(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)

A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que

eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se

96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum

subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo

97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa

105

pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um

lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser

adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias

virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as

virtudes

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das

virtudes

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo

Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o

modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila

faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo

aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees

de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude

enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os

atos excelentes requeridos pela vida beata

Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert

Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se

enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005

tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras

disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas

A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo

da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos

Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia

consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo

regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida

felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados

pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo

ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins

virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca

da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo

106

da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem

ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida

em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O

primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por

Aristoacuteteles

A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta

maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto

as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do

homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas

natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias

racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se

prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a

funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes

que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo

nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo

Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito

operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do

ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em

buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza

naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de

habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao

conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude

humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo

Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das

potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito

bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-

se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo

de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude

humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim

eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55

98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue

consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo

107

a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com

efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia

dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos

humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus

53132 As virtudes teologais

As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca

de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades

naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo

as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a

Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza

humana natildeo seria capaz de proporcionar

A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites

volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim

Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na

articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias

virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes

de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande

conta

Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano

segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento

do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo

entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no

agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute

a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo

dinacircmica entre a razatildeo e o apetite

53133 A virtude da Justiccedila

99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo

108

Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente

individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice

da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a

revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance

dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da

maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila

A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as

virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V

da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades

Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58

da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude

Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida

moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde

Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo

tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social

Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia

espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor

atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista

pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social

Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da

justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem

vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da

Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da

conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes

A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que

ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia

entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o

que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente

Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se

tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral

109

que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os

viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE

1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a

consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa

contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um

reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de

Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma

de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as

decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas

contraacuterias

A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100

A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo

podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel

sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo

de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute

possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam

atualizadas na forma de viacutecios

Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda

proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes

correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute

apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a

diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de

que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser

humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as

paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento

desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental

Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes

estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas

100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde

Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo

110

virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas

potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as

outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma

iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do

homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as

virtudes estatildeo relacionadas e conectadas

A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra

como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma

relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes

Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles

Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101

Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia

aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo

pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a

prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois

enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a

retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia

quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo

virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes

Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes

dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo

Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais

importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas

entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a

caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes

S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a

101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which

moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo

102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo

111

unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas

eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade

A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de

Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes

intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-

II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por

meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a

prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite

denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as

teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas

se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes

teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e

o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees

53135 O habitus e vontade livre

Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave

concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se

estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute

uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)

A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem

mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo

contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do

determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas

capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira

indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos

Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam

112

indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)

Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se

possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de

liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o

melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente

da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103

Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de

liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma

substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em

Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem

Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo

aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo

iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a

capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os

atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre

Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo

nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza

indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade

A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre

arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio

pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de

S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo

significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude

a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por

um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade

por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples

reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta

conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que

103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO

2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est

id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo

113

Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)

A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o

posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como

o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente

que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade

possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo

Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao

conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo

Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo

enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino

acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo

a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de

accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins

Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)

A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira

os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele

tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais

adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana

nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei

eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos

Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela

razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza

Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem

ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006

p 398)

114

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa

Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se

encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas

as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute

existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo

Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica

e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes

Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105

Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo

estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma

105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum

quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo

115

essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua

vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na

exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do

ser humano

Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no

homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres

humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no

aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora

as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas

potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa

tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)

Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da

consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no

homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo

e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de

praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar

a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das

mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito

de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de

maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas

suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de

indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do

conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles

o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a

significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui

que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos

proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo

A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia

o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a

116

articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral

Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia

aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da

Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo

Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de

integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um

equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e

o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a

questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude

A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica

da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes

O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de

natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio

interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num

universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo

(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o

pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo

ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da

ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus

eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele

retorna

A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute

em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles

Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista

da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da

ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem

da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto

uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte

dela

Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se

compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico

Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o

117

teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)

No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur

mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da

Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a

Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria

pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que

aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de

uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do

cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador

Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o

Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim

uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma

condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem

atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo

homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da

Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja

o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude

cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural

Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica

constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os

atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o

desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da

natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em

Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real

existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)

106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio

questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17

118

A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica

dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou

cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica

aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia

de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos

modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave

Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e

da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais

aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor

do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo

do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de

entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-

se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa

Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou

um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o

foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica

Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente

harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua

teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das

conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se

encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor

encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo

de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo

compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo

eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das

criaturas sensiacuteveis

119

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto

de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo

desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma

heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui

desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes

proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos

forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica

O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia

denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta

expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente

constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem

contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo

desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua

indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor

afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a

unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino

realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

e o Aristotelismo

Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo

tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo

satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de

modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que

incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como

pensamento epocal nas palavras de Hegel

A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento

de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a

continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises

Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral

contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre

120

a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo

poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um

caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em

relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes

No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o

modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e

quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind

Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves

morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o

pensamento de MacIntyre eacute devedor

A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude

com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a

moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de

sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa

A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino

intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta

parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a

compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em

seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave

psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes

Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance

filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e

da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto

A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave

contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever

pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de

si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees

agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a

uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas

expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que

por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por

outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas

121

Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute

possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico

contemporacircneo

Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes

eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo

da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um

achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver

justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo

emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por

tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos

agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco

Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre

na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas

agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e

Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe

explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees

relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma

psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo

serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e

nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino

Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em

primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um

desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos

empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais

posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as

teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute

propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um

discurso moral

Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a

fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa

adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as

virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu

na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se

122

compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de

Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes

de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre

pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de

Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais

desta pesquisa

Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes

tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral

O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo

com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um

agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A

questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio

ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem

e contribui na sua realizaccedilatildeo

Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a

ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela

necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente

em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia

conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu

agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma

do ser humano

Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um

conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que

internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma

estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida

pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa

corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos

outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila

O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude

sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles

quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do

homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem

que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros

123

O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se

constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia

vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave

fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios

praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros

princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento

acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para

desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso

conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo

A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento

constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a

solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo

do homem como animal racional implicaria necessariamente num

funcionamento constante da consciecircncia

As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num

sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na

independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do

proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade

mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo

racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo

aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o

movimento interno do querer fazer

Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em

vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade

nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude

promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do

divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a

concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino

compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o

intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que

eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada

124

por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo

implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre

Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo

Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca

de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido

designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo

enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus

voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse

sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que

implica posteriormente em uma unidade da vida moral

No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute

presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo

consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e

em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos

concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo

desenvolvimento das accedilotildees

O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em

que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo

filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos

Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos

termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia

moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na

proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica

quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento

cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia

inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento

contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu

processo de fundamentaccedilatildeo

A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias

iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo

permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram

forjados no seio do pensamento cristatildeo

125

Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes

passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute

como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de

encontro dos dois filoacutesofos

Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que

de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que

compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral

e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem

verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto

uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que

existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das

virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que

ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre

posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma

psicologia filosoacutefica

O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em

encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu

conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana

que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos

na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas

Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes

como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas

circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento

histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas

Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio

MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de

Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna

entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma

hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma

consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade

das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma

vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave

noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo

126

similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma

unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das

virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos

foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de

consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo

pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram

127

REFEREcircNCIAS

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AQUINO Tomaacutes de Suma contra os gentios Traduccedilatildeo de Odilatildeo Moura Porto Alegre ESTEdipucrs 1996 vol II

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Page 2: ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN

Linha de Pesquisa Filosofia Praacutetica

Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa

Recife 2017

Catalogaccedilatildeo na fonte

Bibliotecaacuteria Maria do Carmo de Paiva CRB4-1291

B478a Benvinda Nalfran Modesto

Alasdair Macintyre e Tomaacutes de Aquino a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e

sua interpretaccedilatildeo pelo pensamento cristatildeo Nalfran Modesto Benvinda ndash 2017

129 f 30 cm

Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco CFCH

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN Recife

2017

Inclui referecircncias

1 Filosofia 2 Eacutetica 3 Virtudes 4 Macintyre Aladair C 1929- 5 Tomaacutes de

Aquino Santo 1225-1274 I Costa Marcos Roberto Nunes (Orientador) II

Tiacutetulo

100 CDD (22 ed) UFPE (BCFCH2019-067)

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN

Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica

Aprovada em 16 08 2017

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)

Universidade do Porto

_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)

Universidade Federal de Campina Grande

________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana

AGRADECIMENTOS

Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo

A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar

A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o

processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa

Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela

educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo

Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia

Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho

Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in

memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon

Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo

incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia

Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo

enxergavam

Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa

Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa

A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das

Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande

do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes

Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos

A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que

pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em

representar-lhes

Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta

Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo

A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo

Gilfranco Lucena

Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel

especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o

meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina

Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual

de Alagoas minha nova casa

A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias

e Letras de Caruaru ndash FAFICA

Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen

Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL

A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse

trabalho

Meus sinceros agradecimentos

ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum

quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad

infinitus effectusrdquo

ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos

oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos

para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)

RESUMO

A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta

pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude

o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta

proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio

investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o

pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes

de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente

de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a

de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas

contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa

bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de

atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e

a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte

abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou

ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada

numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que

sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da

Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista

que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica

Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo

ABSTRACT

The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting

from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort

of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to

Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation

which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian

thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of

aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of

thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the

one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to

the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of

inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos

Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal

themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the

contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of

dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following

part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well

as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own

indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses

the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the

thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics

Keywords Ethics Virtues Christian thought

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 13

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20

212 A incoerecircncia do dever moral 25

213 Criacutetica ao utilitarismo 29

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de

Gertrude Anscombe 32

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO

DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA ORALIDADE 37

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo

e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

MORAL DE MACINTYRE 49

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49

411 Vida social e conceitos morais 50

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51

413 O emotivismo 52

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55

422 O conceito de praacuteticas 57

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60

423 Tradiccedilatildeo 64

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO

E O ARISTOTELISMO 67

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70

512 A escolha deliberada 72

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78

522 Sindeacuterese e consciecircncia 79

523 O conceito de vontade 80

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio 86

526 A intenccedilatildeo 91

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista

da teoria das virtudes 105

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105

53132 As virtudes teologais 107

53133 A virtude da justiccedila 107

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108

53135 O habitus e vontade livre 111

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119

REFEREcircNCIAS 127

13

1 INTRODUCcedilAtildeO

A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para

definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e

possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a

preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-

reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a

contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta

compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O

homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma

deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre

o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade

O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de

Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que

o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado

individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave

compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o

conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto

representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles

estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que

em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto

daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo

O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica

Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno

em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do

dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras

de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica

a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada

no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento

eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas

encontra sua fonte no sujeito

14

Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica

ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas

MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai

causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso

moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande

siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor

a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento

contemporacircneo

Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa

considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para

efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes

MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina

Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e

deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a

saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora

tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com

as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar

O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica

efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir

de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica

centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio

testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi

apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e

Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de

sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa

precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a

reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre

deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre

o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do

MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa

O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que

significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo

15

com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo

retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na

tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se

apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do

pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais

da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento

Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre

Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral

Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico

que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou

em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se

constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa

Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura

do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica

das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das

virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo

A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata

da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea

resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da

moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto

iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral

de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se

mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo

aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia

Moral

16

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES

O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa

do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia

em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna

como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de

compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta

esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como

tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos

pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe

A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada

Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica

das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento

da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira

via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente

instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia

moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que

justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica

deste capiacutetulo

Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das

Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia

moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia

influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS

Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um

termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas

virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras

denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees

1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No

Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot

17

denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)

Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo

Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)

A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto

em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela

perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo

das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom

A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para

a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se

considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo

Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica

normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant

e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John

Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos

publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as

duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto

que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)

permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo

Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo

sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um

reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um

filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das

virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente

falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel

uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre

os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees

complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo

2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist

18

considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo

mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40

anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de

terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas

A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta

as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a

antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou

um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao

pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande

distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo

social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a

escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No

entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute

comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos

deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por

exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo

fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o

renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a

amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o

papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora

praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos

seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma

simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais

em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo

satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind

Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas

sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)

Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta

que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte

demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas

4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas

significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor

da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista

19

revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros

pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant

enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles

(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)

A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um

problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao

fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada

Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que

a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a

deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo

que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do

agente

O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para

Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens

Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas

a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)

A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se

promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um

reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo

lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta

abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica

centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir

humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo

20

apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do

aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes

A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras

particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958

Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention

consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e

amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma

das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua

inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e

fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica

No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses

A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute

que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute

uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer

uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta

Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral

contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta

seccedilatildeo

Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica

tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica

Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica

encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma

Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)

21

As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia

Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com

que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo

distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude

Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo

capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos

realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos

proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir

do ser humano

A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute

soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta

afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como

aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa

se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao

estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na

mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude

desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma

psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se

fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada

intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave

filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade

Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica

sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece

com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a

psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia

passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos

supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser

tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia

ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)

O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin

Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia

ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados

psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim

22

pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo

acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de

entender a moral

O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias

(FLANNERY 2009 p 45)

Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas

como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na

contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da

maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os

ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto

eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua

vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a

intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute

o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma

Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia

empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como

Edmund Husserl e Heidegger6

A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na

Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery

salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do

lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf

FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe

entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente

por uma Psicologia Filosoacutefica

6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como

fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo

23

Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a

moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma

Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)

Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta

Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz

respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas

como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve

explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele

fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato

voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua

vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e

involuntaacuterios

Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees

morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um

objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante

diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no

tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por

um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade

mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo

se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um

estado psicoloacutegico

Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se

considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da

questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de

Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente

e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica

O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do

pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a

Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as

24

virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem

estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por

funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes

Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)

A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em

relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos

se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi

apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos

humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O

aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode

oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem

os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos

Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente

desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o

modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o

desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem

obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes

Neste sentido expotildee Kevin Flannery

Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)

Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia

Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O

direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento

25

contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados

proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

212 A incoerecircncia do dever moral

Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um

propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um

questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral

moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia

praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as

tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque

pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por

fundamento primordial o sujeito moral

Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude

Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um

conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de

Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de

modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo

reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que

expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais

como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de

lsquointelectuaisrsquo

A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo

moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a

Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva

suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera

uma releitura na eacutetica aristoteacutelica

Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se

26

pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7

O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma

grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo

que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as

noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das

influecircncias recebidas

Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de

dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si

mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um

inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma

enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob

determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute

diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo

deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo

pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a

propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente

Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral

pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma

teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer

um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do

agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e

obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que

privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma

tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela

provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento

No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida

em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de

agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do

haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais

importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar

7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special

sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo

27

independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste

sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a

centralidade no agente

As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade

das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees

Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz

do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa

segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken

relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica

e a tese do chamado reducionismo conceitual

A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por

conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma

pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo

julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor

moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees

decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa

o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende

que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude

Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao

reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica

do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e

ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados

de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)

Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente

internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave

moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando

prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-

cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer

que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee

em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua

descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as

consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da

eacutetica hebraico-cristatilde

28

A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura

hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees

se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas

A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo

justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no

entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui

um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo

seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas

do indiviacuteduo

Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral

se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf

ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de

lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo

lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada

mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que

apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees

sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro

lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom

ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas

no agente

As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o

sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna

se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que

antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde

Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)

Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio

ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc

faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p

34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade

de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular

a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees

29

Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no

horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo

fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um

sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou

lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a

Lei Divina

Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral

moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que

a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os

conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de

serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos

trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)

213 Criacutetica ao utilitarismo

A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo

do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo

utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave

possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE

2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa

tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio

para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo

(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a

compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma

accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou

intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de

Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave

responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a

autora propotildee um exemplo

Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos

8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for

something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo

30

compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9

A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte

do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o

sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que

este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a

cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude

de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso

seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito

deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim

a responsabilidade pelo ato

Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a

antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela

accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando

apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se

apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram

antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso

desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto

A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente

soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente

previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes

consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas

consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo

se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se

preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que

acontecesse

9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore

deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo

31

A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora

expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre

se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve

ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada

accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve

fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um

consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo

desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso

limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais

O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)

A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite

uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se

o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa

determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista

contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do

convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um

determinado agente consentindo maacutes accedilotildees

[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)

O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo

utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer

dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar

assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser

feito

10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd

32

A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute

de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o

fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-

la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente

controverso

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe

A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de

MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que

encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a

vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais

proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme

afirma Jorge Garcia

A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11

O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois

no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat

(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento

Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus

operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer

salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza

fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais

Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a

felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o

11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply

recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo

12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224

13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic

33

antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute

herdeiro de Gertrude Anscombe

O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo

Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com

o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda

distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p

162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida

uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia

filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por

seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia

metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos

tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo

histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)

MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma

forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser

sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da

perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual

Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave

criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que

seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio

MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles

Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14

concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo

14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo

34

Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste

capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica

das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas

pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio

ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na

ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da

Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate

eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes

como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral

como um todo

A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na

tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia

Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave

contemporaneidade

35

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA MORALIDADE

A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas

centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento

preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que

a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na

modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o

chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos

modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre

Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais

teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da

histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram

A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta

seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de

justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da

argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois

da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que

MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo

dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo

discurso

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE

A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante

apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O

iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias

naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia

inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos

satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum

saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto

o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece

uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se

36

esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos

conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava

significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que

possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de

livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo

rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo

reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica

quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade

da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam

apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e

recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou

quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum

sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da

compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar

sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf

MACINTYRE 2001 p 14)

A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos

da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a

filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a

historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia

natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o

material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de

fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus

fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute

agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis

natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem

Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo

que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe

suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que

sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a

linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de

fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida

37

por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de

linguagem ordenada

O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem

ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral

moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE

O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de

tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus

governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a

moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral

claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral

moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si

proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente

marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica

termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo

(VAZ 1999 p 257)

Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo

eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses

modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que

propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica

Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs

grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral

kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de

Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio

Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente

moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento

de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de

fundamentaccedilatildeo da moral

15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in

something like fully-fledged formrdquo

38

Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs

grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a

escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral

a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na

escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia

do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista

de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho

proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral

contemporacircnea

David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do

gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza

Humana o autor afirma

A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16

Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram

postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma

ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando

este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza

a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com

uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois

realizadas em virtude das paixotildees

A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver

conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees

proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant

afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em

humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant

acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da

accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma

accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute

16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature

of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo

39

vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela

praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo

puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a

moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como

uma heteronomia por exemplo a religiatildeo

A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a

indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)

A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre

Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como

paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma

face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf

MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento

e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute

preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os

estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as

determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou

princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma

posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)

Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos

diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo

fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de

que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente

independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo

se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito

Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo

de MacIntyre

Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)

A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios

para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra

40

marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui

MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um

deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da

Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos

fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia

alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse

desacordo

A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais

existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta

perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo

existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva

passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma

uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da

moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da

norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA

A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade

natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria

afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha

A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e

Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas

morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao

fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)

Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta

incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da

moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo

41

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos

pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo

da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo

incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme

de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para

Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre

de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que

defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por

estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma

natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral

A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza

humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento

necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e

Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees

para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e

categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora

ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a

mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as

caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a

escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza

esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir

argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana

conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos

moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18

Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de

MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso

17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre

acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188

18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre

42

moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A

pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do

autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a

alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de

pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum

Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em

seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos

exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles

tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro

esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana

sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso

moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e

preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo

de natureza humana na moral moderna

O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado

segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria

desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma

relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso

MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi

ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade

Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de

caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que

Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo

homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza

essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o

homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e

Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este

esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios

43

satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o

verdadeiro fim

Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo

preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses

trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem

ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de

accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e

quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois

ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de

interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade

O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de

acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem

expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso

retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de

pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e

respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo

do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande

parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave

revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do

protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito

dando lugar a um novo conceito de razatildeo

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo

Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do

protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo

eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem

O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)

Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo

alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade

44

MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras

entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da

razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A

criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno

tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel

ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que

a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato

psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume

O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)

A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da

razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de

Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana

seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado

destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da

natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia

que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a

catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro

fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural

dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral

Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do

discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi

apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da

noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que

provocaraacute o ulterior desacordo moral

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII

ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada

frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum

45

Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave

terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que

natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento

sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo

das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato

conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e

consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das

possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito

eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre

A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)

MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e

protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono

da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade

Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele

qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia

E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a

felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas

claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente

todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o

homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana

representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque

na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo

pela noccedilatildeo de natureza humana

MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas

de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de

natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida

46

e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade

pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os

modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais

ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue

compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento

uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno

de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um

esquema ldquoestilhaccediladordquo

Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19

A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os

preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do

esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de

justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem

a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana

vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade

soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro

tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na

uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever

MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno

um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito

de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e

medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem

enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial

Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o

conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma

famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o

fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um

conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como

19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia

inquietante

47

indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees

valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave

falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada

O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o

segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro

Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de

juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda

da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado

de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre

conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente

e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta

de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais

Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo

realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua

finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas

expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da

compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute

bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute

justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por

conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)

Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos

A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade

de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade

lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo

Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da

invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso

acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em

questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis

Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal

48

natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles

satildeo categoacutericos

As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre

proporcionaram um desacordo moral

Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)

Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A

primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde

fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma

fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por

um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico

de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do

projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza

humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade

e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos

Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria

macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um

pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito

de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida

humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo

49

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE

A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da

Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a

Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que

marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram

a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma

alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees

A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da

terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe

conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento

contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de

Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do

pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea

A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do

lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave

apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla

criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que

aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns

dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa

desta seccedilatildeo do trabalho

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em

MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais

posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais

do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de

publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral

Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no

primeiro capiacutetulo deste trabalho

50

Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma

embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese

de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute

o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os

conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade

desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do

emotivismo

411 Vida social e conceitos morais

O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica

chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave

histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de

que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua

histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os

conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras

que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas

formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam

representados por estes conceitos

Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas

formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20

MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender

as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos

morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem

ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair

MacIntyre After Virtue and After acrescentam que

20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause

social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01

51

entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21

Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem

estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como

partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para

a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas

O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que

aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir

de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar

fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica

de uma ontologia

As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees

morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas

de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que

esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p

243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de

falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se

fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem

afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o

incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito

distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com

efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado

moral

A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o

modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro

21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral

concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo

52

seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber

que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos

realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem

e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de

bem MacIntyre citando George Moore questiona

O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22

O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor

que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente

simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem

como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua

presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o

indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente

age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo

que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude

413 O emotivismo

O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre

o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas

reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem

como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos

proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o

proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem

ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois

homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo

moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)

22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at

least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo

53

Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson

Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo

primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o

objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica

dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque

satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda

atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois

modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro

modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu

gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que

encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um

significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas

pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em

virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra

Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos

aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela

multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos

valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de

construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque

quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos

assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson

uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite

para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem

procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se

podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo

loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer

apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem

sua conveniecircncia

54

Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos

contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze

anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais

relevantes do autor

Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo

sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois

da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral

moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a

proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da

Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do

discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE

A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a

falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da

racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em

relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o

seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade

partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto

social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de

natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte

A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a

consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios

caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude

e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre

natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute

bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz

A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio

pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos

tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos

principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou

suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica

55

As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os

encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente

esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar

a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do

discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de

MacIntyre

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude

Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da

vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de

MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria

MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute

enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria

Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23

Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades

entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram

completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e

caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre

percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo

Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual

Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um

23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of

importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo

24Destaque nosso

56

bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25

Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um

meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro

Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles

MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute

realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo

eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo

(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em

Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio

Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a

possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de

virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral

fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a

distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou

que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo

comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar

inteligiacutevel o conceito de virtude

Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26

Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos

da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois

25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human

telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo

26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo

57

o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute

reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo

Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios

422 O conceito de praacuteticas

Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana

referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear

pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo

das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas

natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes

satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica

Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27

Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre

apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez

mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda

crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por

semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais

50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar

Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez

Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto

que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai

encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade

especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo

conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada

27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo

58

ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir

Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf

MACINTYRE 2007 p 188)

Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa

de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido

de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que

apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou

de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a

outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e

reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade

Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que

proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando

conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de

modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e

concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua

conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois

a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta

questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre

oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma

nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos

impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28

A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel

eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia

significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens

Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias

atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute

podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no

relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de

relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como

uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute

necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos

28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo

59

estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da

justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar

disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se

necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos

bens internos

A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre

dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma

praacutetica

Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29

Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo

sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece

poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As

virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens

relativos a elas

As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de

capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens

e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade

teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da

consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir

parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica

MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas

definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as

29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo

60

proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute

pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e

consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da

histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma

dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes

Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte

maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um

reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no

contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que

reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica

predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31

Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os

bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens

internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois

o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode

muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse

sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status

sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa

Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo

proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus

resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo

se daacute de maneira uniacutevoca

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular

O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular

eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude

Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu

conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da

seguinte maneira

30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash

but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and

even exclusive featurerdquo

61

seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32

O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada

vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade

ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV

de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da

vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica

ou ainda da teoria socioloacutegica

O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da

maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida

eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos

quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida

puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33

Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do

indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha

Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada

como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista

por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute

constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente

MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese

a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)

Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis

impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de

MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel

Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia

32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each

such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo

33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo

62

questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa

mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor

Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida

humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de

algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que

se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as

abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana

individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre

homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu

cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave

morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p

205)35

O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a

oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se

limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a

problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas

Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)

A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do

conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma

vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser

articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e

essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A

perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa

ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade

34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life

that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as

narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of

human actionsrdquo

63

somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes

de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na

forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a

compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros

Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37

A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular

pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras

Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na

unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e

palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o

indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a

essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem

a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso

enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de

respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida

moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38

A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca

narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais

primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos

isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira

caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas

A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente

caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras

vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter

pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si

A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a

noccedilatildeo macintyreana de virtude

37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms

of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo

38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo

64

As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39

O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios

nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes

necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre

conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para

o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa

para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo

necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas

esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave

vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de

vida e tempo segmentados

424 Tradiccedilatildeo

O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de

uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de

significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma

identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma

identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da

cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de

limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de

partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando

pelas particularidades busca-se o bem o universal

A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles

que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das

39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices

and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo

40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo

65

marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute

mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido

Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer

reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas

sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a

compreende e a transmite

Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas

como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de

tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma

tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente

incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que

constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior

de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura

do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as

circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura

se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica

vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e

caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio

da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi

transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa

ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo

A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do

exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as

virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia

ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes

A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem

e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem

as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo

(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia

41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument

precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made

intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo

66

das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras

que o passado tornou disponiacutevel no presente

O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo

complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem

natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias

conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral

como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria

Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da

exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de

resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter

sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral

Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista

Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo

compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria

moral

O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu

pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma

Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou

em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre

o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de

Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea

67

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO

A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em

tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto

atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do

pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que

a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava

simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo

(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como

objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o

Aristotelismo

A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do

pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes

acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa

psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por

consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e

lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado

Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de

homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de

uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa

indicada por MacIntyre

A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a

necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos

e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as

disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa

direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem

prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre

pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira

sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma

reflexatildeo sobre a teoria dos atos

Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o

autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial

68

prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao

conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir

de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um

retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria

uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica

Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para

o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira

que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa

compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente

moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf

ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato

moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas

em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o

viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que

frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar

relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees

Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a

importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de

boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma

Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque

as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo

moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria

aristoteacutelica dos atos

A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos

fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa

filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses

elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que

se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de

Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na

tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui

conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por

MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode

69

afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo

semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se

refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade

Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute

desconhecidos deles

O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo

como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia

moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma

consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se

essa leitura cristatilde natildeo for considerada

O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o

horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes

dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui

como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem

Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia

central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de

Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com

os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava

inserida

O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo

primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o

desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de

que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que

encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se

desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica

de Aristoacuteteles

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8

Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em

relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de

seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que

70

a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como

o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8

Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a

emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados

ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em

seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores

definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III

1 1109 b30)

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio

A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos

voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores

na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem

Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se

apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees

praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43

Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama

a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo

indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos

navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas

accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que

satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio

entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44

Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz

que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade

natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma

classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma

43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo

71

accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por

exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante

da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os

navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a

jogaram no mar

Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato

ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve

possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda

provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1

1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e

penoso ao agente

Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-

voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf

ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o

nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o

arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se

arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria

Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de

ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em

estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer

que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem

encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de

homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do

homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto

ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente

alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os

criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se

acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento

45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν

μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo

72

Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente

a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados

natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso

dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos

por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu

arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que

conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49

512 A escolha deliberada

Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles

entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria

(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que

a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais

abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos

voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada

A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e

que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual

a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo

do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente

quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute

acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010

III 4 1112 a15)52

No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha

deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A

escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado

49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ

ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo

51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo

52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo

73

deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios

que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer

A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate

latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso

muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles

inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo

de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja

suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma

coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo

de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente

percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se

o querer diz respeito ao fim

Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54

A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que

o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-

se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este

fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para

Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a

escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute

querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que

53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου

ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo

74

o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira

considerar a escolha errada tambeacutem um bem

Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um

modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do

agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do

querer

Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese

na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve

dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que

aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6

1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto

o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o

virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude

consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos

a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a

entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer

ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica

Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56

Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem

enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma

coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a

conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo

Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)

A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma

aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se

55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo

75

relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de

bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser

humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada

uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113

a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro

em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente

bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto

faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em

relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas

O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma

relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a

phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da

phroacutenesis

Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)

O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida

que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o

ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita

de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se

deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees

Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas

mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro

que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo

dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o

homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa

A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-

se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave

visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que

posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de

bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas

57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo

76

aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais

age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano

acrescenta que

enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)

Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo

homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado

caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A

relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento

primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto

mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em

seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo

A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer

esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua

relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios

para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se

que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O

acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por

escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das

virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113

b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente

agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo

um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada

e os diversos outros atos humanos

Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser

o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-

se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que

para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio

Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso

Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um

77

certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a

sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa

Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio

natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente

obscurecer o juiacutezo

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os

conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que

medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo

Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram

traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos

A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta

observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o

concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel

estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar

que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio

Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma

coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute

possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento

fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa

necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave

iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio

mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal

Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo

latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai

retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor

assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa

necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste

modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem

Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria

embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista

78

dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte

da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista

dos atos se justifica

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino

O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo

de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse

de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus

O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos

atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na

bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da

semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de

Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo

O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das

paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir

aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos

mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma

apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para

posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da

reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo

amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em

consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-

se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra

profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem

se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins

O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute

pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as

accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber

uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos

humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo

sobre as paixotildees da alma

79

522 Sindeacuterese e consciecircncia

Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um

aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em

virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se

ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se

move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os

princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua

funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos

primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a

Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde

com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto

que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute

realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela

A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da

consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf

AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a

medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino

esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que

se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se

que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando

se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63

58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive

reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum

hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum

et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo

80

Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se

necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO

Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela

entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como

um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando

os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da

consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de

homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado

como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65

Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece

como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela

natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse

modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese

que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na

atualizaccedilatildeo da consciecircncia

Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66

A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de

homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute

o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma

vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel

defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um

mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar

523 O conceito de vontade

64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est

potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo

81

Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de

necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade

que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de

necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis

A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta

em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente

eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente

eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a

dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de

necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como

causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67

A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo

convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da

alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino

pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente

eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada

como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69

Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se

constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma

compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do

conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma

ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da

noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer

uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a

liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em

relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da

vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito

de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-

67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno

modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo

68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo

69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo

82

se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo

deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir

pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-

lo a querer fazer

Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma

certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute

segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a

inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite

denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-

se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel

A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem

chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel

quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em

irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute

prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da

ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela

voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o

bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal

Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido

como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute

segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de

vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir

esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar

o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q

82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em

Tomaacutes de Aquino

Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia

de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a

vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a

70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit

universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo

71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo

83

bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-

se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma

vontade livre

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira

a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos

serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana

o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese

entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a

felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la

Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre

os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer

que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua

escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de

todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica

um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem

ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de

Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em

virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra

nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor

o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade

O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais

adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade

possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de

liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua

manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que

na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento

do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre

vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade

pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o

pensamento cristatildeo

72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo

84

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade

A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte

da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a

relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de

superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o

sentido de absoluto e relativo

A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73

Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem

desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido

a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do

intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-

se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto

considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade

Tomaacutes de Aquino esclarece

O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82

a3)74

A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica

cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no

Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a

vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas

73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo

sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo

74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo

85

Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo

status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu

operar satildeo chamados de voluntaristas

Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao

intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute

melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa

na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta

coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O

bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o

proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca

desse bem que eacute a felicidade perfeita

Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino

No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste

na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)

Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a

considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria

mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja

Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de

pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto

entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa

coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento

O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a

felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade

75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per

comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo

86

mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-

suficiente Aristoacuteteles acrescenta

Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)

A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na

totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica

num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da

felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda

revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A

eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro

lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes

de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute

realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do

cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente

adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio

A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender

o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o

empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta

existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da

vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais

que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio

e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

posterior

O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira

parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese

geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que

87

este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do

querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute

condicionado

O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das

proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes

de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras

que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o

julgamento livre

Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76

A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo

mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma

distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o

julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que

possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento

Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas

somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto

pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela

racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio

Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes

deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem

seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma

76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter

omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo

88

em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo

impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste

sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um

determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias

inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que

ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser

por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre

e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em

cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83

a1)78

Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos

livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a

agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na

verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer

Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste

artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de

Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne

a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79

Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional

ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo

da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO

Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de

liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o

assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem

constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela

na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O

livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe

o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81

77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium

est potentiardquo

89

Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo

implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode

negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo

de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se

pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre

propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute

possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre

eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este

escolhe o mal

Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant

seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma

terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A

terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o

sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave

escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada

somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium

brutum) (cf KANT 2003 p 63)

A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-

arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e

livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo

Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber

o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo

A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da

autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute

uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de

Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade

O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na

Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e

ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude

de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de

82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo

90

telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e

autonomia

Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-

arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos

distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes

de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da

Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus

quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento

ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)

Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio

Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem

encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees

1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus

particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de

beatitude

A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o

resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo

reside na accedilatildeo em si mesma

A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83

Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela

atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes

de se pensar em termos de teleologia e autonomia

83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non

esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo

91

526 A intenccedilatildeo

A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da

filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma

meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A

intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-

se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na

questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro

artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu

objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)

Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere

agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84

Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo

se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da

alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute

propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85

Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender

ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o

movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme

ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira

primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde

que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a

intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )

Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade

promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada

na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de

Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da

intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios

alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo

84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum

est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo

92

Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas

simultaneamente Tomas de Aquino afirma

A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86

Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar

finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse

sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins

podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a

intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens

se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a

razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo

Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na

descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem

pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute

um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que

implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que

os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a

intenccedilatildeo voluntaacuteria

Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino

afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a

vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave

vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios

para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute

constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre

intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra

O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava

em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo

havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao

86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et

ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo

87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo

93

Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos

atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES

Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de

modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao

pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo

verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto

aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute

Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que

contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa

Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do

cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que

mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no

pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer

entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno

contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento

cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para

a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o

conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo

de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das

Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral

Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino

opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um

lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que

muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta

compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao

pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade

agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do

MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado

94

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista

Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro

aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma

ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na

inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As

reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas

da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz

do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao

pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte

integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral

Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do

pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da

mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino

Assim Agostinho afirma no De Beata Vita

Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88

Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus

Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos

criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo

(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos

interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a

proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo

de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior

de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz

88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod

loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo

95

Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a

vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem

no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a

felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta

nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes

de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as

principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus

por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus

Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou

vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus

mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em

Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente

humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais

satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode

ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento

Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida

beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma

gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao

amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas

A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de

como devem agir aqueles que nela inspiram-se

As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem

praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo

A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer

uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as

Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas

escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um

espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a

concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)

Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem

como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade

e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No

96

livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando

responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes

Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a

Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico

fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que

se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte

especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica

como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu

de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas

ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou

para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos

97

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia

Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a

seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia

tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas

satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como

Tomaacutes de Aquino responde a este problema

No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao

problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema

agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes

coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um

espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo

Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus

viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no

agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em

Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de

Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com

efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o

homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de

Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral

centrada no agente

Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos

como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que

a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo

Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre

sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A

explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia

a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)

98

Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que

se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando

toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se

atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais

suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute

possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes

de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio

de seu pensamento ontoloacutegico

Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino

adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus

atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos

conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40

2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina

o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem

a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta

hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel

secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico

Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma

parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel

tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento

sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus

natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional

constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem

de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-

arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute

justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o

permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual

Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral

conhece-se a lei divina

89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus

nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et

arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo

99

A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91

A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e

estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus

Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo

torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios

atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo

de uma parte moral na Teologia

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista

Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a

construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute

vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei

eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo

Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual

deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos

interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute

2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais

na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula

fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo

eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo

ponto a ser aqui explicitado

O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi

nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre

esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras

liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve

bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos

depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de

91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus

humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo

100

inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de

Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de

Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como

eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo

da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o

desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida

tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p

27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista

A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral

na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos

de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que

possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a

ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia

moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees

humanas Assim ele inicia a Prima Secundae

Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92

A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta

maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma

unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para

adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave

ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar

92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad

hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo

101

do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o

homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de

poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que

o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma

imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem

de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota

ldquobrdquo p 29)

A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia

agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho

mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto

o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos

que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem

uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os

atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um

ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e

os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja

exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)

O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio

pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus

governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave

vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o

governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza

a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o

processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo

relacionadas ao ser do homem

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes

A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as

virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do

homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que

diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas

a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos

102

habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor

diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho

agrave beatitude

A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade

substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como

recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute

como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do

corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as

coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo

(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93

A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo

que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino

espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de

Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal

Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94

Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado

a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o

assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o

homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as

criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar

o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua

vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o

homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem

nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras

93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter

complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo

103

moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu

forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As

potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus

que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o

homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz

Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95

As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem

considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as

potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da

razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a

irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta

totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar

um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza

poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente

pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma

O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar

95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes

appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo

104

inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96

Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta

determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou

conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto

noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse

nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta

de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os

princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a

ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave

concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao

corpo

Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem

seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por

essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da

justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da

fortaleza

Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das

potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente

compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e

humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em

conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma

vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age

(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)

A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que

eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se

96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum

subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo

97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa

105

pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um

lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser

adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias

virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as

virtudes

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das

virtudes

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo

Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o

modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila

faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo

aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees

de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude

enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os

atos excelentes requeridos pela vida beata

Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert

Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se

enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005

tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras

disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas

A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo

da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos

Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia

consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo

regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida

felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados

pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo

ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins

virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca

da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo

106

da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem

ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida

em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O

primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por

Aristoacuteteles

A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta

maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto

as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do

homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas

natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias

racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se

prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a

funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes

que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo

nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo

Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito

operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do

ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em

buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza

naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de

habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao

conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude

humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo

Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das

potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito

bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-

se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo

de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude

humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim

eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55

98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue

consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo

107

a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com

efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia

dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos

humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus

53132 As virtudes teologais

As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca

de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades

naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo

as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a

Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza

humana natildeo seria capaz de proporcionar

A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites

volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim

Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na

articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias

virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes

de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande

conta

Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano

segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento

do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo

entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no

agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute

a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo

dinacircmica entre a razatildeo e o apetite

53133 A virtude da Justiccedila

99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo

108

Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente

individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice

da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a

revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance

dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da

maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila

A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as

virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V

da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades

Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58

da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude

Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida

moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde

Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo

tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social

Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia

espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor

atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista

pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social

Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da

justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem

vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da

Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da

conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes

A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que

ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia

entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o

que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente

Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se

tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral

109

que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os

viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE

1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a

consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa

contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um

reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de

Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma

de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as

decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas

contraacuterias

A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100

A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo

podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel

sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo

de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute

possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam

atualizadas na forma de viacutecios

Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda

proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes

correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute

apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a

diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de

que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser

humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as

paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento

desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental

Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes

estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas

100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde

Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo

110

virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas

potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as

outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma

iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do

homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as

virtudes estatildeo relacionadas e conectadas

A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra

como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma

relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes

Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles

Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101

Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia

aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo

pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a

prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois

enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a

retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia

quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo

virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes

Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes

dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo

Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais

importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas

entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a

caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes

S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a

101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which

moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo

102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo

111

unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas

eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade

A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de

Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes

intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-

II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por

meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a

prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite

denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as

teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas

se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes

teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e

o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees

53135 O habitus e vontade livre

Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave

concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se

estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute

uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)

A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem

mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo

contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do

determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas

capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira

indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos

Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam

112

indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)

Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se

possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de

liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o

melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente

da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103

Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de

liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma

substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em

Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem

Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo

aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo

iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a

capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os

atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre

Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo

nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza

indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade

A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre

arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio

pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de

S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo

significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude

a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por

um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade

por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples

reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta

conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que

103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO

2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est

id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo

113

Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)

A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o

posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como

o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente

que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade

possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo

Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao

conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo

Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo

enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino

acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo

a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de

accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins

Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)

A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira

os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele

tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais

adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana

nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei

eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos

Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela

razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza

Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem

ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006

p 398)

114

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa

Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se

encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas

as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute

existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo

Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica

e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes

Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105

Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo

estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma

105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum

quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo

115

essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua

vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na

exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do

ser humano

Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no

homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres

humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no

aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora

as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas

potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa

tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)

Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da

consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no

homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo

e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de

praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar

a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das

mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito

de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de

maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas

suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de

indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do

conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles

o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a

significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui

que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos

proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo

A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia

o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a

116

articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral

Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia

aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da

Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo

Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de

integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um

equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e

o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a

questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude

A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica

da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes

O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de

natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio

interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num

universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo

(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o

pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo

ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da

ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus

eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele

retorna

A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute

em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles

Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista

da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da

ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem

da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto

uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte

dela

Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se

compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico

Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o

117

teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)

No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur

mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da

Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a

Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria

pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que

aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de

uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do

cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador

Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o

Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim

uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma

condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem

atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo

homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da

Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja

o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude

cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural

Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica

constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os

atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o

desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da

natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em

Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real

existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)

106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio

questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17

118

A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica

dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou

cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica

aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia

de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos

modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave

Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e

da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais

aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor

do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo

do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de

entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-

se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa

Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou

um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o

foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica

Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente

harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua

teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das

conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se

encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor

encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo

de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo

compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo

eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das

criaturas sensiacuteveis

119

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto

de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo

desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma

heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui

desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes

proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos

forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica

O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia

denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta

expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente

constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem

contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo

desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua

indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor

afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a

unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino

realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

e o Aristotelismo

Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo

tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo

satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de

modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que

incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como

pensamento epocal nas palavras de Hegel

A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento

de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a

continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises

Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral

contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre

120

a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo

poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um

caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em

relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes

No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o

modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e

quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind

Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves

morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o

pensamento de MacIntyre eacute devedor

A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude

com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a

moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de

sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa

A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino

intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta

parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a

compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em

seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave

psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes

Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance

filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e

da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto

A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave

contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever

pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de

si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees

agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a

uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas

expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que

por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por

outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas

121

Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute

possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico

contemporacircneo

Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes

eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo

da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um

achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver

justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo

emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por

tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos

agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco

Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre

na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas

agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e

Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe

explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees

relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma

psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo

serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e

nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino

Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em

primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um

desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos

empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais

posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as

teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute

propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um

discurso moral

Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a

fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa

adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as

virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu

na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se

122

compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de

Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes

de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre

pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de

Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais

desta pesquisa

Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes

tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral

O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo

com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um

agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A

questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio

ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem

e contribui na sua realizaccedilatildeo

Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a

ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela

necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente

em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia

conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu

agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma

do ser humano

Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um

conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que

internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma

estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida

pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa

corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos

outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila

O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude

sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles

quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do

homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem

que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros

123

O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se

constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia

vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave

fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios

praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros

princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento

acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para

desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso

conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo

A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento

constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a

solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo

do homem como animal racional implicaria necessariamente num

funcionamento constante da consciecircncia

As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num

sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na

independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do

proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade

mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo

racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo

aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o

movimento interno do querer fazer

Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em

vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade

nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude

promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do

divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a

concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino

compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o

intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que

eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada

124

por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo

implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre

Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo

Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca

de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido

designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo

enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus

voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse

sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que

implica posteriormente em uma unidade da vida moral

No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute

presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo

consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e

em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos

concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo

desenvolvimento das accedilotildees

O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em

que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo

filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos

Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos

termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia

moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na

proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica

quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento

cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia

inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento

contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu

processo de fundamentaccedilatildeo

A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias

iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo

permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram

forjados no seio do pensamento cristatildeo

125

Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes

passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute

como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de

encontro dos dois filoacutesofos

Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que

de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que

compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral

e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem

verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto

uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que

existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das

virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que

ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre

posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma

psicologia filosoacutefica

O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em

encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu

conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana

que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos

na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas

Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes

como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas

circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento

histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas

Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio

MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de

Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna

entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma

hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma

consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade

das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma

vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave

noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo

126

similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma

unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das

virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos

foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de

consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo

pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram

127

REFEREcircNCIAS

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AQUINO Tomaacutes de Suma contra os gentios Traduccedilatildeo de Odilatildeo Moura Porto Alegre ESTEdipucrs 1996 vol II

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ZINGANO Marco (org) Sobre a Eacutetica Nicomaqueia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010

Page 3: ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

Catalogaccedilatildeo na fonte

Bibliotecaacuteria Maria do Carmo de Paiva CRB4-1291

B478a Benvinda Nalfran Modesto

Alasdair Macintyre e Tomaacutes de Aquino a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e

sua interpretaccedilatildeo pelo pensamento cristatildeo Nalfran Modesto Benvinda ndash 2017

129 f 30 cm

Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco CFCH

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN Recife

2017

Inclui referecircncias

1 Filosofia 2 Eacutetica 3 Virtudes 4 Macintyre Aladair C 1929- 5 Tomaacutes de

Aquino Santo 1225-1274 I Costa Marcos Roberto Nunes (Orientador) II

Tiacutetulo

100 CDD (22 ed) UFPE (BCFCH2019-067)

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN

Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica

Aprovada em 16 08 2017

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)

Universidade do Porto

_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)

Universidade Federal de Campina Grande

________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana

AGRADECIMENTOS

Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo

A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar

A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o

processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa

Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela

educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo

Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia

Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho

Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in

memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon

Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo

incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia

Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo

enxergavam

Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa

Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa

A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das

Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande

do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes

Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos

A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que

pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em

representar-lhes

Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta

Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo

A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo

Gilfranco Lucena

Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel

especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o

meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina

Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual

de Alagoas minha nova casa

A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias

e Letras de Caruaru ndash FAFICA

Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen

Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL

A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse

trabalho

Meus sinceros agradecimentos

ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum

quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad

infinitus effectusrdquo

ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos

oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos

para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)

RESUMO

A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta

pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude

o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta

proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio

investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o

pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes

de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente

de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a

de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas

contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa

bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de

atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e

a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte

abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou

ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada

numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que

sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da

Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista

que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica

Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo

ABSTRACT

The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting

from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort

of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to

Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation

which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian

thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of

aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of

thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the

one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to

the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of

inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos

Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal

themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the

contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of

dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following

part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well

as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own

indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses

the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the

thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics

Keywords Ethics Virtues Christian thought

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 13

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20

212 A incoerecircncia do dever moral 25

213 Criacutetica ao utilitarismo 29

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de

Gertrude Anscombe 32

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO

DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA ORALIDADE 37

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo

e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

MORAL DE MACINTYRE 49

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49

411 Vida social e conceitos morais 50

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51

413 O emotivismo 52

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55

422 O conceito de praacuteticas 57

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60

423 Tradiccedilatildeo 64

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO

E O ARISTOTELISMO 67

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70

512 A escolha deliberada 72

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78

522 Sindeacuterese e consciecircncia 79

523 O conceito de vontade 80

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio 86

526 A intenccedilatildeo 91

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista

da teoria das virtudes 105

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105

53132 As virtudes teologais 107

53133 A virtude da justiccedila 107

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108

53135 O habitus e vontade livre 111

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119

REFEREcircNCIAS 127

13

1 INTRODUCcedilAtildeO

A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para

definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e

possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a

preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-

reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a

contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta

compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O

homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma

deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre

o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade

O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de

Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que

o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado

individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave

compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o

conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto

representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles

estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que

em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto

daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo

O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica

Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno

em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do

dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras

de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica

a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada

no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento

eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas

encontra sua fonte no sujeito

14

Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica

ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas

MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai

causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso

moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande

siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor

a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento

contemporacircneo

Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa

considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para

efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes

MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina

Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e

deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a

saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora

tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com

as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar

O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica

efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir

de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica

centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio

testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi

apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e

Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de

sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa

precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a

reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre

deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre

o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do

MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa

O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que

significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo

15

com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo

retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na

tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se

apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do

pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais

da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento

Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre

Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral

Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico

que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou

em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se

constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa

Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura

do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica

das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das

virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo

A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata

da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea

resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da

moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto

iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral

de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se

mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo

aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia

Moral

16

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES

O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa

do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia

em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna

como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de

compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta

esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como

tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos

pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe

A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada

Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica

das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento

da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira

via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente

instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia

moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que

justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica

deste capiacutetulo

Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das

Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia

moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia

influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS

Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um

termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas

virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras

denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees

1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No

Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot

17

denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)

Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo

Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)

A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto

em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela

perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo

das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom

A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para

a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se

considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo

Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica

normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant

e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John

Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos

publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as

duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto

que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)

permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo

Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo

sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um

reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um

filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das

virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente

falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel

uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre

os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees

complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo

2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist

18

considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo

mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40

anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de

terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas

A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta

as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a

antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou

um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao

pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande

distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo

social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a

escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No

entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute

comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos

deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por

exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo

fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o

renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a

amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o

papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora

praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos

seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma

simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais

em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo

satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind

Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas

sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)

Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta

que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte

demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas

4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas

significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor

da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista

19

revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros

pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant

enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles

(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)

A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um

problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao

fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada

Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que

a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a

deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo

que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do

agente

O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para

Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens

Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas

a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)

A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se

promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um

reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo

lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta

abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica

centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir

humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo

20

apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do

aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes

A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras

particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958

Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention

consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e

amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma

das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua

inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e

fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica

No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses

A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute

que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute

uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer

uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta

Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral

contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta

seccedilatildeo

Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica

tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica

Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica

encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma

Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)

21

As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia

Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com

que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo

distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude

Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo

capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos

realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos

proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir

do ser humano

A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute

soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta

afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como

aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa

se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao

estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na

mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude

desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma

psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se

fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada

intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave

filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade

Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica

sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece

com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a

psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia

passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos

supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser

tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia

ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)

O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin

Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia

ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados

psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim

22

pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo

acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de

entender a moral

O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias

(FLANNERY 2009 p 45)

Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas

como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na

contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da

maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os

ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto

eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua

vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a

intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute

o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma

Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia

empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como

Edmund Husserl e Heidegger6

A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na

Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery

salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do

lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf

FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe

entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente

por uma Psicologia Filosoacutefica

6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como

fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo

23

Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a

moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma

Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)

Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta

Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz

respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas

como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve

explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele

fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato

voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua

vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e

involuntaacuterios

Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees

morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um

objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante

diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no

tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por

um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade

mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo

se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um

estado psicoloacutegico

Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se

considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da

questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de

Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente

e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica

O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do

pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a

Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as

24

virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem

estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por

funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes

Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)

A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em

relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos

se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi

apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos

humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O

aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode

oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem

os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos

Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente

desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o

modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o

desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem

obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes

Neste sentido expotildee Kevin Flannery

Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)

Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia

Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O

direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento

25

contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados

proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

212 A incoerecircncia do dever moral

Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um

propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um

questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral

moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia

praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as

tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque

pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por

fundamento primordial o sujeito moral

Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude

Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um

conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de

Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de

modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo

reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que

expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais

como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de

lsquointelectuaisrsquo

A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo

moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a

Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva

suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera

uma releitura na eacutetica aristoteacutelica

Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se

26

pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7

O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma

grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo

que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as

noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das

influecircncias recebidas

Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de

dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si

mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um

inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma

enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob

determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute

diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo

deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo

pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a

propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente

Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral

pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma

teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer

um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do

agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e

obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que

privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma

tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela

provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento

No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida

em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de

agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do

haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais

importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar

7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special

sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo

27

independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste

sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a

centralidade no agente

As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade

das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees

Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz

do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa

segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken

relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica

e a tese do chamado reducionismo conceitual

A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por

conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma

pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo

julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor

moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees

decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa

o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende

que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude

Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao

reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica

do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e

ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados

de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)

Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente

internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave

moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando

prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-

cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer

que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee

em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua

descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as

consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da

eacutetica hebraico-cristatilde

28

A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura

hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees

se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas

A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo

justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no

entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui

um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo

seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas

do indiviacuteduo

Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral

se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf

ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de

lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo

lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada

mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que

apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees

sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro

lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom

ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas

no agente

As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o

sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna

se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que

antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde

Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)

Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio

ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc

faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p

34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade

de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular

a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees

29

Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no

horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo

fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um

sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou

lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a

Lei Divina

Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral

moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que

a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os

conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de

serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos

trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)

213 Criacutetica ao utilitarismo

A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo

do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo

utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave

possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE

2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa

tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio

para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo

(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a

compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma

accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou

intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de

Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave

responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a

autora propotildee um exemplo

Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos

8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for

something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo

30

compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9

A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte

do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o

sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que

este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a

cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude

de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso

seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito

deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim

a responsabilidade pelo ato

Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a

antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela

accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando

apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se

apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram

antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso

desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto

A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente

soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente

previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes

consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas

consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo

se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se

preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que

acontecesse

9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore

deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo

31

A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora

expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre

se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve

ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada

accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve

fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um

consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo

desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso

limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais

O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)

A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite

uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se

o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa

determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista

contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do

convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um

determinado agente consentindo maacutes accedilotildees

[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)

O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo

utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer

dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar

assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser

feito

10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd

32

A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute

de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o

fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-

la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente

controverso

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe

A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de

MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que

encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a

vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais

proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme

afirma Jorge Garcia

A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11

O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois

no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat

(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento

Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus

operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer

salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza

fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais

Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a

felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o

11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply

recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo

12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224

13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic

33

antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute

herdeiro de Gertrude Anscombe

O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo

Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com

o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda

distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p

162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida

uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia

filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por

seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia

metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos

tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo

histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)

MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma

forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser

sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da

perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual

Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave

criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que

seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio

MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles

Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14

concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo

14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo

34

Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste

capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica

das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas

pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio

ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na

ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da

Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate

eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes

como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral

como um todo

A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na

tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia

Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave

contemporaneidade

35

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA MORALIDADE

A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas

centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento

preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que

a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na

modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o

chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos

modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre

Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais

teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da

histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram

A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta

seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de

justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da

argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois

da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que

MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo

dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo

discurso

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE

A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante

apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O

iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias

naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia

inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos

satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum

saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto

o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece

uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se

36

esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos

conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava

significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que

possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de

livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo

rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo

reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica

quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade

da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam

apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e

recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou

quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum

sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da

compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar

sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf

MACINTYRE 2001 p 14)

A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos

da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a

filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a

historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia

natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o

material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de

fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus

fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute

agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis

natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem

Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo

que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe

suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que

sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a

linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de

fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida

37

por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de

linguagem ordenada

O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem

ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral

moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE

O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de

tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus

governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a

moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral

claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral

moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si

proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente

marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica

termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo

(VAZ 1999 p 257)

Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo

eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses

modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que

propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica

Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs

grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral

kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de

Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio

Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente

moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento

de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de

fundamentaccedilatildeo da moral

15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in

something like fully-fledged formrdquo

38

Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs

grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a

escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral

a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na

escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia

do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista

de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho

proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral

contemporacircnea

David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do

gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza

Humana o autor afirma

A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16

Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram

postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma

ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando

este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza

a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com

uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois

realizadas em virtude das paixotildees

A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver

conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees

proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant

afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em

humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant

acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da

accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma

accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute

16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature

of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo

39

vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela

praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo

puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a

moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como

uma heteronomia por exemplo a religiatildeo

A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a

indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)

A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre

Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como

paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma

face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf

MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento

e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute

preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os

estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as

determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou

princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma

posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)

Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos

diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo

fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de

que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente

independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo

se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito

Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo

de MacIntyre

Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)

A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios

para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra

40

marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui

MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um

deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da

Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos

fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia

alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse

desacordo

A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais

existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta

perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo

existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva

passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma

uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da

moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da

norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA

A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade

natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria

afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha

A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e

Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas

morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao

fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)

Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta

incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da

moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo

41

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos

pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo

da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo

incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme

de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para

Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre

de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que

defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por

estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma

natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral

A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza

humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento

necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e

Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees

para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e

categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora

ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a

mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as

caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a

escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza

esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir

argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana

conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos

moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18

Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de

MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso

17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre

acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188

18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre

42

moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A

pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do

autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a

alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de

pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum

Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em

seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos

exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles

tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro

esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana

sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso

moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e

preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo

de natureza humana na moral moderna

O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado

segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria

desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma

relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso

MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi

ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade

Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de

caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que

Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo

homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza

essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o

homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e

Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este

esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios

43

satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o

verdadeiro fim

Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo

preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses

trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem

ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de

accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e

quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois

ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de

interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade

O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de

acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem

expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso

retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de

pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e

respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo

do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande

parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave

revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do

protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito

dando lugar a um novo conceito de razatildeo

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo

Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do

protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo

eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem

O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)

Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo

alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade

44

MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras

entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da

razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A

criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno

tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel

ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que

a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato

psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume

O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)

A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da

razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de

Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana

seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado

destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da

natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia

que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a

catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro

fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural

dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral

Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do

discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi

apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da

noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que

provocaraacute o ulterior desacordo moral

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII

ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada

frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum

45

Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave

terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que

natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento

sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo

das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato

conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e

consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das

possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito

eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre

A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)

MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e

protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono

da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade

Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele

qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia

E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a

felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas

claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente

todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o

homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana

representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque

na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo

pela noccedilatildeo de natureza humana

MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas

de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de

natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida

46

e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade

pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os

modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais

ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue

compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento

uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno

de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um

esquema ldquoestilhaccediladordquo

Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19

A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os

preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do

esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de

justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem

a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana

vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade

soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro

tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na

uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever

MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno

um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito

de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e

medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem

enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial

Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o

conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma

famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o

fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um

conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como

19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia

inquietante

47

indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees

valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave

falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada

O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o

segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro

Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de

juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda

da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado

de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre

conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente

e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta

de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais

Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo

realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua

finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas

expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da

compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute

bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute

justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por

conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)

Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos

A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade

de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade

lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo

Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da

invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso

acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em

questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis

Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal

48

natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles

satildeo categoacutericos

As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre

proporcionaram um desacordo moral

Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)

Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A

primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde

fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma

fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por

um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico

de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do

projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza

humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade

e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos

Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria

macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um

pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito

de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida

humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo

49

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE

A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da

Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a

Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que

marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram

a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma

alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees

A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da

terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe

conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento

contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de

Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do

pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea

A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do

lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave

apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla

criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que

aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns

dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa

desta seccedilatildeo do trabalho

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em

MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais

posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais

do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de

publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral

Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no

primeiro capiacutetulo deste trabalho

50

Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma

embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese

de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute

o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os

conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade

desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do

emotivismo

411 Vida social e conceitos morais

O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica

chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave

histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de

que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua

histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os

conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras

que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas

formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam

representados por estes conceitos

Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas

formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20

MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender

as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos

morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem

ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair

MacIntyre After Virtue and After acrescentam que

20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause

social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01

51

entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21

Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem

estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como

partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para

a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas

O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que

aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir

de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar

fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica

de uma ontologia

As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees

morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas

de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que

esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p

243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de

falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se

fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem

afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o

incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito

distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com

efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado

moral

A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o

modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro

21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral

concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo

52

seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber

que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos

realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem

e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de

bem MacIntyre citando George Moore questiona

O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22

O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor

que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente

simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem

como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua

presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o

indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente

age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo

que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude

413 O emotivismo

O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre

o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas

reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem

como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos

proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o

proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem

ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois

homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo

moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)

22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at

least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo

53

Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson

Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo

primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o

objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica

dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque

satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda

atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois

modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro

modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu

gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que

encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um

significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas

pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em

virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra

Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos

aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela

multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos

valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de

construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque

quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos

assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson

uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite

para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem

procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se

podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo

loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer

apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem

sua conveniecircncia

54

Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos

contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze

anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais

relevantes do autor

Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo

sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois

da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral

moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a

proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da

Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do

discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE

A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a

falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da

racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em

relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o

seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade

partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto

social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de

natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte

A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a

consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios

caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude

e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre

natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute

bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz

A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio

pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos

tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos

principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou

suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica

55

As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os

encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente

esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar

a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do

discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de

MacIntyre

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude

Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da

vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de

MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria

MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute

enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria

Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23

Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades

entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram

completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e

caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre

percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo

Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual

Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um

23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of

importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo

24Destaque nosso

56

bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25

Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um

meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro

Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles

MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute

realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo

eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo

(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em

Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio

Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a

possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de

virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral

fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a

distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou

que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo

comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar

inteligiacutevel o conceito de virtude

Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26

Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos

da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois

25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human

telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo

26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo

57

o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute

reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo

Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios

422 O conceito de praacuteticas

Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana

referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear

pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo

das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas

natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes

satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica

Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27

Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre

apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez

mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda

crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por

semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais

50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar

Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez

Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto

que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai

encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade

especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo

conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada

27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo

58

ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir

Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf

MACINTYRE 2007 p 188)

Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa

de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido

de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que

apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou

de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a

outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e

reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade

Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que

proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando

conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de

modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e

concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua

conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois

a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta

questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre

oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma

nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos

impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28

A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel

eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia

significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens

Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias

atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute

podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no

relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de

relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como

uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute

necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos

28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo

59

estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da

justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar

disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se

necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos

bens internos

A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre

dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma

praacutetica

Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29

Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo

sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece

poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As

virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens

relativos a elas

As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de

capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens

e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade

teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da

consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir

parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica

MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas

definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as

29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo

60

proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute

pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e

consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da

histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma

dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes

Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte

maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um

reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no

contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que

reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica

predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31

Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os

bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens

internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois

o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode

muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse

sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status

sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa

Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo

proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus

resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo

se daacute de maneira uniacutevoca

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular

O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular

eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude

Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu

conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da

seguinte maneira

30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash

but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and

even exclusive featurerdquo

61

seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32

O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada

vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade

ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV

de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da

vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica

ou ainda da teoria socioloacutegica

O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da

maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida

eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos

quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida

puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33

Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do

indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha

Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada

como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista

por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute

constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente

MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese

a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)

Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis

impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de

MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel

Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia

32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each

such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo

33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo

62

questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa

mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor

Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida

humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de

algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que

se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as

abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana

individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre

homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu

cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave

morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p

205)35

O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a

oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se

limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a

problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas

Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)

A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do

conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma

vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser

articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e

essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A

perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa

ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade

34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life

that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as

narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of

human actionsrdquo

63

somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes

de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na

forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a

compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros

Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37

A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular

pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras

Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na

unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e

palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o

indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a

essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem

a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso

enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de

respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida

moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38

A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca

narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais

primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos

isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira

caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas

A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente

caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras

vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter

pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si

A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a

noccedilatildeo macintyreana de virtude

37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms

of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo

38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo

64

As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39

O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios

nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes

necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre

conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para

o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa

para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo

necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas

esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave

vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de

vida e tempo segmentados

424 Tradiccedilatildeo

O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de

uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de

significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma

identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma

identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da

cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de

limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de

partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando

pelas particularidades busca-se o bem o universal

A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles

que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das

39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices

and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo

40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo

65

marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute

mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido

Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer

reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas

sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a

compreende e a transmite

Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas

como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de

tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma

tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente

incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que

constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior

de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura

do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as

circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura

se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica

vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e

caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio

da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi

transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa

ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo

A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do

exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as

virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia

ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes

A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem

e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem

as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo

(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia

41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument

precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made

intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo

66

das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras

que o passado tornou disponiacutevel no presente

O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo

complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem

natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias

conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral

como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria

Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da

exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de

resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter

sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral

Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista

Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo

compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria

moral

O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu

pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma

Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou

em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre

o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de

Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea

67

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO

A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em

tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto

atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do

pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que

a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava

simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo

(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como

objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o

Aristotelismo

A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do

pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes

acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa

psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por

consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e

lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado

Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de

homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de

uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa

indicada por MacIntyre

A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a

necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos

e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as

disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa

direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem

prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre

pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira

sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma

reflexatildeo sobre a teoria dos atos

Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o

autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial

68

prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao

conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir

de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um

retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria

uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica

Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para

o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira

que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa

compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente

moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf

ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato

moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas

em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o

viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que

frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar

relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees

Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a

importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de

boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma

Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque

as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo

moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria

aristoteacutelica dos atos

A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos

fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa

filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses

elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que

se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de

Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na

tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui

conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por

MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode

69

afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo

semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se

refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade

Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute

desconhecidos deles

O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo

como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia

moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma

consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se

essa leitura cristatilde natildeo for considerada

O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o

horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes

dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui

como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem

Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia

central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de

Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com

os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava

inserida

O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo

primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o

desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de

que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que

encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se

desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica

de Aristoacuteteles

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8

Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em

relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de

seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que

70

a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como

o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8

Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a

emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados

ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em

seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores

definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III

1 1109 b30)

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio

A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos

voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores

na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem

Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se

apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees

praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43

Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama

a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo

indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos

navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas

accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que

satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio

entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44

Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz

que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade

natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma

classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma

43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo

71

accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por

exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante

da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os

navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a

jogaram no mar

Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato

ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve

possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda

provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1

1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e

penoso ao agente

Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-

voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf

ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o

nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o

arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se

arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria

Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de

ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em

estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer

que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem

encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de

homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do

homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto

ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente

alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os

criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se

acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento

45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν

μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo

72

Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente

a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados

natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso

dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos

por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu

arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que

conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49

512 A escolha deliberada

Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles

entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria

(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que

a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais

abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos

voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada

A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e

que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual

a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo

do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente

quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute

acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010

III 4 1112 a15)52

No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha

deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A

escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado

49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ

ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo

51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo

52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo

73

deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios

que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer

A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate

latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso

muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles

inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo

de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja

suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma

coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo

de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente

percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se

o querer diz respeito ao fim

Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54

A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que

o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-

se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este

fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para

Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a

escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute

querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que

53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου

ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo

74

o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira

considerar a escolha errada tambeacutem um bem

Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um

modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do

agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do

querer

Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese

na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve

dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que

aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6

1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto

o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o

virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude

consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos

a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a

entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer

ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica

Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56

Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem

enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma

coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a

conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo

Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)

A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma

aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se

55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo

75

relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de

bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser

humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada

uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113

a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro

em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente

bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto

faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em

relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas

O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma

relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a

phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da

phroacutenesis

Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)

O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida

que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o

ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita

de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se

deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees

Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas

mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro

que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo

dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o

homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa

A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-

se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave

visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que

posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de

bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas

57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo

76

aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais

age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano

acrescenta que

enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)

Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo

homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado

caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A

relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento

primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto

mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em

seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo

A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer

esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua

relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios

para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se

que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O

acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por

escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das

virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113

b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente

agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo

um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada

e os diversos outros atos humanos

Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser

o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-

se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que

para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio

Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso

Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um

77

certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a

sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa

Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio

natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente

obscurecer o juiacutezo

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os

conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que

medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo

Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram

traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos

A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta

observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o

concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel

estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar

que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio

Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma

coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute

possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento

fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa

necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave

iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio

mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal

Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo

latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai

retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor

assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa

necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste

modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem

Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria

embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista

78

dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte

da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista

dos atos se justifica

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino

O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo

de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse

de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus

O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos

atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na

bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da

semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de

Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo

O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das

paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir

aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos

mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma

apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para

posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da

reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo

amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em

consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-

se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra

profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem

se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins

O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute

pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as

accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber

uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos

humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo

sobre as paixotildees da alma

79

522 Sindeacuterese e consciecircncia

Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um

aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em

virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se

ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se

move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os

princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua

funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos

primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a

Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde

com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto

que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute

realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela

A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da

consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf

AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a

medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino

esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que

se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se

que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando

se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63

58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive

reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum

hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum

et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo

80

Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se

necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO

Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela

entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como

um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando

os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da

consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de

homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado

como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65

Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece

como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela

natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse

modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese

que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na

atualizaccedilatildeo da consciecircncia

Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66

A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de

homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute

o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma

vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel

defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um

mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar

523 O conceito de vontade

64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est

potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo

81

Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de

necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade

que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de

necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis

A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta

em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente

eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente

eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a

dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de

necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como

causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67

A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo

convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da

alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino

pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente

eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada

como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69

Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se

constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma

compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do

conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma

ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da

noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer

uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a

liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em

relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da

vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito

de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-

67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno

modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo

68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo

69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo

82

se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo

deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir

pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-

lo a querer fazer

Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma

certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute

segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a

inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite

denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-

se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel

A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem

chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel

quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em

irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute

prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da

ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela

voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o

bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal

Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido

como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute

segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de

vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir

esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar

o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q

82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em

Tomaacutes de Aquino

Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia

de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a

vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a

70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit

universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo

71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo

83

bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-

se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma

vontade livre

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira

a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos

serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana

o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese

entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a

felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la

Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre

os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer

que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua

escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de

todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica

um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem

ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de

Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em

virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra

nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor

o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade

O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais

adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade

possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de

liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua

manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que

na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento

do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre

vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade

pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o

pensamento cristatildeo

72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo

84

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade

A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte

da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a

relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de

superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o

sentido de absoluto e relativo

A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73

Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem

desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido

a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do

intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-

se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto

considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade

Tomaacutes de Aquino esclarece

O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82

a3)74

A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica

cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no

Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a

vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas

73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo

sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo

74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo

85

Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo

status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu

operar satildeo chamados de voluntaristas

Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao

intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute

melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa

na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta

coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O

bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o

proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca

desse bem que eacute a felicidade perfeita

Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino

No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste

na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)

Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a

considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria

mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja

Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de

pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto

entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa

coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento

O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a

felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade

75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per

comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo

86

mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-

suficiente Aristoacuteteles acrescenta

Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)

A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na

totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica

num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da

felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda

revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A

eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro

lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes

de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute

realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do

cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente

adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio

A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender

o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o

empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta

existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da

vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais

que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio

e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

posterior

O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira

parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese

geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que

87

este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do

querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute

condicionado

O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das

proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes

de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras

que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o

julgamento livre

Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76

A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo

mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma

distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o

julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que

possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento

Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas

somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto

pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela

racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio

Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes

deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem

seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma

76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter

omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo

88

em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo

impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste

sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um

determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias

inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que

ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser

por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre

e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em

cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83

a1)78

Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos

livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a

agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na

verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer

Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste

artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de

Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne

a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79

Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional

ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo

da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO

Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de

liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o

assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem

constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela

na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O

livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe

o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81

77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium

est potentiardquo

89

Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo

implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode

negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo

de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se

pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre

propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute

possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre

eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este

escolhe o mal

Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant

seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma

terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A

terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o

sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave

escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada

somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium

brutum) (cf KANT 2003 p 63)

A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-

arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e

livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo

Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber

o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo

A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da

autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute

uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de

Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade

O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na

Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e

ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude

de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de

82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo

90

telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e

autonomia

Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-

arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos

distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes

de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da

Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus

quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento

ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)

Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio

Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem

encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees

1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus

particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de

beatitude

A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o

resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo

reside na accedilatildeo em si mesma

A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83

Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela

atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes

de se pensar em termos de teleologia e autonomia

83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non

esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo

91

526 A intenccedilatildeo

A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da

filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma

meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A

intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-

se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na

questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro

artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu

objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)

Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere

agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84

Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo

se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da

alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute

propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85

Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender

ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o

movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme

ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira

primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde

que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a

intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )

Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade

promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada

na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de

Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da

intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios

alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo

84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum

est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo

92

Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas

simultaneamente Tomas de Aquino afirma

A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86

Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar

finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse

sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins

podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a

intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens

se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a

razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo

Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na

descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem

pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute

um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que

implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que

os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a

intenccedilatildeo voluntaacuteria

Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino

afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a

vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave

vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios

para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute

constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre

intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra

O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava

em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo

havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao

86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et

ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo

87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo

93

Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos

atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES

Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de

modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao

pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo

verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto

aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute

Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que

contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa

Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do

cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que

mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no

pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer

entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno

contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento

cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para

a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o

conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo

de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das

Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral

Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino

opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um

lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que

muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta

compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao

pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade

agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do

MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado

94

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista

Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro

aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma

ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na

inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As

reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas

da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz

do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao

pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte

integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral

Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do

pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da

mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino

Assim Agostinho afirma no De Beata Vita

Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88

Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus

Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos

criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo

(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos

interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a

proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo

de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior

de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz

88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod

loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo

95

Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a

vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem

no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a

felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta

nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes

de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as

principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus

por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus

Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou

vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus

mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em

Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente

humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais

satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode

ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento

Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida

beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma

gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao

amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas

A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de

como devem agir aqueles que nela inspiram-se

As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem

praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo

A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer

uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as

Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas

escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um

espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a

concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)

Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem

como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade

e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No

96

livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando

responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes

Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a

Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico

fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que

se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte

especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica

como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu

de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas

ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou

para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos

97

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia

Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a

seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia

tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas

satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como

Tomaacutes de Aquino responde a este problema

No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao

problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema

agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes

coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um

espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo

Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus

viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no

agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em

Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de

Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com

efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o

homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de

Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral

centrada no agente

Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos

como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que

a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo

Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre

sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A

explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia

a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)

98

Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que

se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando

toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se

atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais

suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute

possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes

de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio

de seu pensamento ontoloacutegico

Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino

adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus

atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos

conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40

2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina

o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem

a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta

hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel

secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico

Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma

parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel

tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento

sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus

natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional

constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem

de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-

arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute

justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o

permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual

Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral

conhece-se a lei divina

89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus

nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et

arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo

99

A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91

A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e

estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus

Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo

torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios

atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo

de uma parte moral na Teologia

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista

Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a

construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute

vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei

eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo

Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual

deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos

interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute

2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais

na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula

fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo

eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo

ponto a ser aqui explicitado

O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi

nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre

esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras

liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve

bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos

depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de

91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus

humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo

100

inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de

Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de

Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como

eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo

da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o

desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida

tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p

27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista

A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral

na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos

de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que

possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a

ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia

moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees

humanas Assim ele inicia a Prima Secundae

Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92

A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta

maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma

unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para

adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave

ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar

92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad

hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo

101

do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o

homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de

poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que

o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma

imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem

de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota

ldquobrdquo p 29)

A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia

agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho

mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto

o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos

que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem

uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os

atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um

ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e

os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja

exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)

O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio

pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus

governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave

vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o

governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza

a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o

processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo

relacionadas ao ser do homem

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes

A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as

virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do

homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que

diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas

a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos

102

habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor

diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho

agrave beatitude

A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade

substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como

recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute

como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do

corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as

coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo

(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93

A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo

que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino

espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de

Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal

Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94

Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado

a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o

assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o

homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as

criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar

o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua

vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o

homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem

nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras

93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter

complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo

103

moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu

forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As

potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus

que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o

homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz

Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95

As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem

considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as

potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da

razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a

irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta

totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar

um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza

poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente

pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma

O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar

95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes

appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo

104

inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96

Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta

determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou

conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto

noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse

nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta

de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os

princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a

ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave

concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao

corpo

Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem

seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por

essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da

justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da

fortaleza

Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das

potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente

compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e

humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em

conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma

vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age

(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)

A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que

eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se

96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum

subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo

97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa

105

pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um

lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser

adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias

virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as

virtudes

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das

virtudes

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo

Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o

modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila

faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo

aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees

de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude

enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os

atos excelentes requeridos pela vida beata

Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert

Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se

enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005

tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras

disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas

A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo

da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos

Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia

consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo

regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida

felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados

pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo

ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins

virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca

da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo

106

da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem

ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida

em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O

primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por

Aristoacuteteles

A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta

maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto

as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do

homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas

natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias

racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se

prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a

funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes

que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo

nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo

Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito

operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do

ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em

buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza

naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de

habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao

conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude

humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo

Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das

potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito

bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-

se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo

de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude

humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim

eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55

98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue

consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo

107

a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com

efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia

dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos

humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus

53132 As virtudes teologais

As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca

de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades

naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo

as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a

Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza

humana natildeo seria capaz de proporcionar

A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites

volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim

Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na

articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias

virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes

de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande

conta

Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano

segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento

do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo

entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no

agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute

a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo

dinacircmica entre a razatildeo e o apetite

53133 A virtude da Justiccedila

99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo

108

Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente

individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice

da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a

revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance

dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da

maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila

A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as

virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V

da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades

Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58

da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude

Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida

moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde

Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo

tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social

Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia

espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor

atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista

pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social

Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da

justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem

vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da

Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da

conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes

A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que

ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia

entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o

que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente

Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se

tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral

109

que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os

viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE

1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a

consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa

contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um

reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de

Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma

de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as

decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas

contraacuterias

A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100

A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo

podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel

sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo

de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute

possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam

atualizadas na forma de viacutecios

Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda

proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes

correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute

apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a

diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de

que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser

humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as

paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento

desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental

Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes

estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas

100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde

Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo

110

virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas

potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as

outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma

iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do

homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as

virtudes estatildeo relacionadas e conectadas

A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra

como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma

relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes

Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles

Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101

Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia

aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo

pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a

prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois

enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a

retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia

quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo

virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes

Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes

dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo

Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais

importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas

entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a

caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes

S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a

101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which

moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo

102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo

111

unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas

eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade

A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de

Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes

intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-

II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por

meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a

prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite

denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as

teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas

se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes

teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e

o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees

53135 O habitus e vontade livre

Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave

concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se

estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute

uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)

A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem

mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo

contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do

determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas

capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira

indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos

Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam

112

indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)

Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se

possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de

liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o

melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente

da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103

Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de

liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma

substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em

Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem

Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo

aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo

iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a

capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os

atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre

Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo

nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza

indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade

A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre

arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio

pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de

S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo

significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude

a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por

um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade

por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples

reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta

conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que

103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO

2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est

id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo

113

Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)

A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o

posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como

o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente

que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade

possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo

Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao

conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo

Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo

enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino

acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo

a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de

accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins

Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)

A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira

os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele

tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais

adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana

nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei

eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos

Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela

razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza

Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem

ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006

p 398)

114

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa

Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se

encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas

as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute

existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo

Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica

e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes

Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105

Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo

estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma

105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum

quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo

115

essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua

vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na

exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do

ser humano

Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no

homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres

humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no

aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora

as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas

potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa

tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)

Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da

consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no

homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo

e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de

praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar

a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das

mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito

de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de

maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas

suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de

indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do

conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles

o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a

significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui

que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos

proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo

A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia

o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a

116

articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral

Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia

aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da

Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo

Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de

integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um

equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e

o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a

questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude

A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica

da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes

O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de

natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio

interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num

universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo

(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o

pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo

ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da

ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus

eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele

retorna

A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute

em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles

Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista

da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da

ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem

da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto

uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte

dela

Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se

compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico

Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o

117

teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)

No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur

mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da

Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a

Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria

pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que

aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de

uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do

cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador

Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o

Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim

uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma

condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem

atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo

homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da

Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja

o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude

cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural

Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica

constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os

atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o

desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da

natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em

Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real

existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)

106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio

questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17

118

A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica

dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou

cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica

aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia

de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos

modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave

Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e

da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais

aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor

do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo

do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de

entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-

se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa

Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou

um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o

foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica

Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente

harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua

teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das

conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se

encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor

encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo

de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo

compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo

eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das

criaturas sensiacuteveis

119

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto

de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo

desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma

heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui

desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes

proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos

forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica

O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia

denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta

expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente

constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem

contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo

desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua

indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor

afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a

unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino

realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

e o Aristotelismo

Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo

tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo

satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de

modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que

incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como

pensamento epocal nas palavras de Hegel

A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento

de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a

continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises

Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral

contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre

120

a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo

poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um

caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em

relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes

No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o

modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e

quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind

Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves

morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o

pensamento de MacIntyre eacute devedor

A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude

com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a

moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de

sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa

A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino

intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta

parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a

compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em

seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave

psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes

Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance

filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e

da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto

A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave

contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever

pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de

si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees

agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a

uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas

expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que

por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por

outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas

121

Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute

possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico

contemporacircneo

Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes

eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo

da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um

achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver

justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo

emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por

tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos

agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco

Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre

na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas

agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e

Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe

explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees

relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma

psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo

serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e

nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino

Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em

primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um

desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos

empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais

posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as

teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute

propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um

discurso moral

Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a

fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa

adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as

virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu

na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se

122

compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de

Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes

de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre

pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de

Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais

desta pesquisa

Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes

tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral

O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo

com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um

agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A

questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio

ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem

e contribui na sua realizaccedilatildeo

Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a

ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela

necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente

em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia

conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu

agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma

do ser humano

Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um

conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que

internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma

estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida

pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa

corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos

outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila

O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude

sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles

quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do

homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem

que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros

123

O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se

constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia

vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave

fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios

praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros

princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento

acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para

desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso

conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo

A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento

constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a

solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo

do homem como animal racional implicaria necessariamente num

funcionamento constante da consciecircncia

As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num

sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na

independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do

proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade

mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo

racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo

aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o

movimento interno do querer fazer

Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em

vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade

nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude

promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do

divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a

concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino

compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o

intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que

eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada

124

por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo

implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre

Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo

Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca

de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido

designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo

enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus

voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse

sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que

implica posteriormente em uma unidade da vida moral

No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute

presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo

consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e

em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos

concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo

desenvolvimento das accedilotildees

O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em

que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo

filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos

Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos

termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia

moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na

proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica

quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento

cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia

inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento

contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu

processo de fundamentaccedilatildeo

A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias

iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo

permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram

forjados no seio do pensamento cristatildeo

125

Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes

passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute

como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de

encontro dos dois filoacutesofos

Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que

de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que

compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral

e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem

verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto

uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que

existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das

virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que

ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre

posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma

psicologia filosoacutefica

O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em

encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu

conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana

que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos

na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas

Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes

como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas

circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento

histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas

Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio

MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de

Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna

entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma

hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma

consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade

das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma

vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave

noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo

126

similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma

unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das

virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos

foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de

consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo

pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram

127

REFEREcircNCIAS

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AQUINO Tomaacutes de Suma contra os gentios Traduccedilatildeo de Odilatildeo Moura Porto Alegre ESTEdipucrs 1996 vol II

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KANT Immanuel Criacutetica da razatildeo pura A 395 5 edTraduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001

KANT Immanuel Sobre a pedagogia 3 ed Traduccedilatildeo de Francisco Cock Fontanella Piracicaba Unimep 2002

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MACINTYRE Alasdair A short history of ethics a history of moral philosophy from the homeric age to the twentieth century Great Britain Routledge 2005

MACINTYRE Alasdair After virtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007

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VAZ Henrique C de Lima Escritos de filosofia IV introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica I Satildeo Paulo Loyola 1999

VAZ Henrique C de Lima Escritos de filosofia I problemas de fronteira 3 edSatildeo Paulo Loyola 2002

ZINGANO Marco (org) Sobre a Eacutetica Nicomaqueia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010

Page 4: ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

NALFRAN MODESTO BENVINDA

ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO

a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo

pensamento cristatildeo

Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN

Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica

Aprovada em 16 08 2017

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)

Universidade do Porto

_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)

Universidade Federal de Campina Grande

________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)

Universidade Federal da Paraiacuteba

A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana

AGRADECIMENTOS

Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo

A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar

A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o

processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa

Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela

educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo

Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia

Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho

Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in

memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon

Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo

incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia

Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo

enxergavam

Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa

Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa

A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das

Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande

do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes

Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos

A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que

pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em

representar-lhes

Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta

Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo

A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo

Gilfranco Lucena

Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel

especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o

meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina

Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual

de Alagoas minha nova casa

A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias

e Letras de Caruaru ndash FAFICA

Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen

Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL

A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse

trabalho

Meus sinceros agradecimentos

ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum

quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad

infinitus effectusrdquo

ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos

oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos

para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)

RESUMO

A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta

pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude

o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta

proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio

investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o

pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes

de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente

de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a

de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas

contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa

bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de

atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e

a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte

abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou

ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada

numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que

sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da

Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista

que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica

Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo

ABSTRACT

The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting

from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort

of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to

Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation

which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian

thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of

aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of

thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the

one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to

the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of

inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos

Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal

themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the

contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of

dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following

part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well

as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own

indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses

the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the

thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics

Keywords Ethics Virtues Christian thought

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 13

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20

212 A incoerecircncia do dever moral 25

213 Criacutetica ao utilitarismo 29

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de

Gertrude Anscombe 32

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO

DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA ORALIDADE 37

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo

e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

MORAL DE MACINTYRE 49

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49

411 Vida social e conceitos morais 50

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51

413 O emotivismo 52

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55

422 O conceito de praacuteticas 57

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60

423 Tradiccedilatildeo 64

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO

E O ARISTOTELISMO 67

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70

512 A escolha deliberada 72

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78

522 Sindeacuterese e consciecircncia 79

523 O conceito de vontade 80

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio 86

526 A intenccedilatildeo 91

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista

da teoria das virtudes 105

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105

53132 As virtudes teologais 107

53133 A virtude da justiccedila 107

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108

53135 O habitus e vontade livre 111

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119

REFEREcircNCIAS 127

13

1 INTRODUCcedilAtildeO

A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para

definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e

possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a

preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-

reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a

contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta

compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O

homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma

deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre

o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade

O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de

Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que

o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado

individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave

compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o

conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto

representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles

estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que

em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto

daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo

O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica

Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno

em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do

dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras

de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica

a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada

no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento

eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas

encontra sua fonte no sujeito

14

Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica

ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas

MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai

causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso

moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande

siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor

a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento

contemporacircneo

Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa

considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para

efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes

MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina

Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e

deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a

saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora

tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com

as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar

O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica

efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir

de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica

centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio

testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi

apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e

Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de

sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa

precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a

reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre

deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre

o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do

MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa

O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que

significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo

15

com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo

retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na

tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se

apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do

pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais

da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento

Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre

Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral

Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico

que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou

em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se

constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa

Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura

do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica

das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das

virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo

A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata

da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea

resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da

moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto

iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral

de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se

mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo

aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia

Moral

16

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES

O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa

do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia

em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna

como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de

compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta

esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como

tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos

pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe

A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada

Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica

das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento

da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira

via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente

instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia

moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que

justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica

deste capiacutetulo

Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das

Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia

moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia

influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS

Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um

termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas

virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras

denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees

1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No

Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot

17

denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)

Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo

Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)

A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto

em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela

perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo

das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom

A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para

a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se

considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo

Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica

normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant

e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John

Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos

publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as

duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto

que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)

permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo

Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo

sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um

reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um

filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das

virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente

falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel

uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre

os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees

complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo

2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist

18

considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo

mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40

anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de

terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas

A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta

as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a

antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou

um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao

pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande

distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo

social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a

escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No

entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute

comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos

deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por

exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo

fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o

renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a

amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o

papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora

praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos

seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma

simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais

em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo

satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind

Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas

sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)

Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta

que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte

demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas

4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas

significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor

da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista

19

revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros

pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant

enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles

(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)

A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um

problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao

fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada

Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que

a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a

deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo

que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do

agente

O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para

Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens

Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas

a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)

A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se

promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um

reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo

lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta

abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica

centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir

humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo

20

apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do

aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes

A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras

particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958

Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention

consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e

amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma

das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua

inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e

fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica

No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses

A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute

que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute

uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer

uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta

Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral

contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta

seccedilatildeo

Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica

tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica

Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica

encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma

Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)

21

As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia

Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com

que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo

distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude

Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo

capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos

realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos

proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir

do ser humano

A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute

soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta

afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como

aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa

se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao

estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na

mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude

desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma

psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se

fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada

intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave

filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade

Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica

sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece

com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a

psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia

passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos

supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser

tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia

ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)

O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin

Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia

ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados

psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim

22

pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo

acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de

entender a moral

O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias

(FLANNERY 2009 p 45)

Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas

como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na

contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da

maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os

ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto

eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua

vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a

intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute

o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma

Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia

empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como

Edmund Husserl e Heidegger6

A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na

Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery

salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do

lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf

FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe

entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente

por uma Psicologia Filosoacutefica

6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como

fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo

23

Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a

moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma

Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)

Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta

Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz

respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas

como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve

explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele

fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato

voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua

vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e

involuntaacuterios

Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees

morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um

objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante

diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no

tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por

um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade

mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo

se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um

estado psicoloacutegico

Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se

considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da

questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de

Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente

e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica

O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do

pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a

Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as

24

virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem

estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por

funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes

Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)

A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em

relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos

se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi

apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos

humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O

aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode

oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem

os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos

Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente

desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o

modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o

desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem

obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes

Neste sentido expotildee Kevin Flannery

Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)

Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia

Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O

direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento

25

contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados

proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

212 A incoerecircncia do dever moral

Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um

propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um

questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral

moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia

praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as

tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque

pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por

fundamento primordial o sujeito moral

Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude

Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um

conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de

Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de

modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo

reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que

expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais

como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de

lsquointelectuaisrsquo

A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo

moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a

Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva

suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera

uma releitura na eacutetica aristoteacutelica

Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se

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pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7

O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma

grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo

que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as

noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das

influecircncias recebidas

Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de

dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si

mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um

inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma

enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob

determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute

diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo

deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo

pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a

propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente

Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral

pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma

teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer

um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do

agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e

obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que

privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma

tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela

provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento

No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida

em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de

agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do

haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais

importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar

7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special

sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo

27

independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste

sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a

centralidade no agente

As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade

das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees

Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz

do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa

segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken

relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica

e a tese do chamado reducionismo conceitual

A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por

conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma

pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo

julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor

moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees

decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa

o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende

que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude

Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao

reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica

do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e

ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados

de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)

Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente

internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave

moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando

prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-

cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer

que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee

em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua

descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as

consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da

eacutetica hebraico-cristatilde

28

A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura

hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees

se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas

A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo

justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no

entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui

um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo

seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas

do indiviacuteduo

Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral

se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf

ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de

lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo

lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada

mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que

apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees

sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro

lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom

ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas

no agente

As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o

sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna

se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que

antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde

Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)

Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio

ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc

faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p

34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade

de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular

a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees

29

Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no

horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo

fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um

sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou

lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a

Lei Divina

Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral

moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que

a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os

conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de

serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos

trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)

213 Criacutetica ao utilitarismo

A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo

do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo

utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave

possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE

2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa

tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio

para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo

(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a

compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma

accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou

intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de

Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave

responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a

autora propotildee um exemplo

Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos

8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for

something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo

30

compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9

A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte

do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o

sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que

este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a

cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude

de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso

seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito

deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim

a responsabilidade pelo ato

Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a

antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela

accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando

apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se

apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram

antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso

desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto

A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente

soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente

previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes

consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas

consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo

se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se

preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que

acontecesse

9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore

deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo

31

A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora

expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre

se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve

ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada

accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve

fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um

consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo

desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso

limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais

O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)

A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite

uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se

o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa

determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista

contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do

convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um

determinado agente consentindo maacutes accedilotildees

[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)

O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo

utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer

dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar

assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser

feito

10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd

32

A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute

de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o

fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-

la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente

controverso

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe

A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de

MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que

encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a

vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais

proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme

afirma Jorge Garcia

A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11

O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois

no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat

(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento

Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus

operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer

salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza

fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais

Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a

felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o

11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply

recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo

12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224

13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic

33

antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute

herdeiro de Gertrude Anscombe

O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo

Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com

o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda

distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p

162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida

uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia

filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por

seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia

metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos

tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo

histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)

MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma

forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser

sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da

perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual

Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave

criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que

seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio

MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles

Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14

concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo

14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo

34

Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste

capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica

das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas

pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio

ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na

ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da

Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate

eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes

como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral

como um todo

A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na

tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia

Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave

contemporaneidade

35

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA MORALIDADE

A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas

centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento

preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que

a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na

modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o

chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos

modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre

Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais

teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da

histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram

A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta

seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de

justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da

argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois

da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que

MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo

dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo

discurso

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE

A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante

apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O

iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias

naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia

inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos

satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum

saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto

o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece

uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se

36

esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos

conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava

significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que

possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de

livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo

rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo

reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica

quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade

da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam

apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e

recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou

quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum

sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da

compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar

sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf

MACINTYRE 2001 p 14)

A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos

da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a

filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a

historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia

natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o

material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de

fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus

fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute

agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis

natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem

Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo

que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe

suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que

sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a

linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de

fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida

37

por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de

linguagem ordenada

O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem

ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral

moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE

O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de

tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus

governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a

moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral

claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral

moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si

proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente

marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica

termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo

(VAZ 1999 p 257)

Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo

eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses

modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que

propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica

Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs

grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral

kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de

Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio

Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente

moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento

de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de

fundamentaccedilatildeo da moral

15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in

something like fully-fledged formrdquo

38

Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs

grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a

escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral

a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na

escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia

do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista

de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho

proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral

contemporacircnea

David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do

gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza

Humana o autor afirma

A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16

Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram

postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma

ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando

este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza

a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com

uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois

realizadas em virtude das paixotildees

A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver

conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees

proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant

afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em

humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant

acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da

accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma

accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute

16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature

of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo

39

vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela

praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo

puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a

moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como

uma heteronomia por exemplo a religiatildeo

A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a

indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)

A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre

Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como

paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma

face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf

MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento

e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute

preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os

estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as

determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou

princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma

posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)

Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos

diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo

fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de

que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente

independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo

se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito

Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo

de MacIntyre

Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)

A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios

para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra

40

marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui

MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um

deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da

Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos

fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia

alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse

desacordo

A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais

existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta

perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo

existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva

passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma

uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da

moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da

norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA

A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade

natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria

afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha

A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e

Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas

morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao

fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)

Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta

incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da

moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo

41

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos

pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo

da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo

incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme

de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para

Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre

de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que

defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por

estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma

natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral

A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza

humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento

necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e

Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees

para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e

categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora

ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a

mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as

caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a

escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza

esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir

argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana

conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos

moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18

Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de

MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso

17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre

acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188

18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre

42

moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A

pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do

autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a

alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de

pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum

Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em

seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos

exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles

tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro

esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana

sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso

moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e

preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo

de natureza humana na moral moderna

O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado

segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria

desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma

relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso

MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi

ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade

Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de

caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que

Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo

homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza

essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o

homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e

Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este

esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios

43

satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o

verdadeiro fim

Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo

preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses

trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem

ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de

accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e

quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois

ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de

interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade

O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de

acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem

expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso

retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de

pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e

respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo

do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande

parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave

revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do

protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito

dando lugar a um novo conceito de razatildeo

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo

Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do

protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo

eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem

O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)

Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo

alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade

44

MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras

entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da

razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A

criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno

tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel

ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que

a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato

psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume

O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)

A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da

razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de

Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana

seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado

destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da

natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia

que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a

catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro

fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural

dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral

Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do

discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi

apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da

noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que

provocaraacute o ulterior desacordo moral

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII

ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada

frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum

45

Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave

terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que

natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento

sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo

das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato

conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e

consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das

possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito

eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre

A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)

MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e

protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono

da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade

Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele

qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia

E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a

felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas

claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente

todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o

homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana

representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque

na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo

pela noccedilatildeo de natureza humana

MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas

de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de

natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida

46

e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade

pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os

modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais

ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue

compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento

uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno

de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um

esquema ldquoestilhaccediladordquo

Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19

A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os

preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do

esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de

justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem

a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana

vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade

soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro

tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na

uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever

MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno

um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito

de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e

medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem

enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial

Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o

conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma

famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o

fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um

conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como

19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia

inquietante

47

indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees

valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave

falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada

O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o

segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro

Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de

juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda

da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado

de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre

conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente

e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta

de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais

Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo

realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua

finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas

expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da

compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute

bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute

justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por

conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)

Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos

A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade

de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade

lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo

Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da

invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso

acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em

questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis

Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal

48

natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles

satildeo categoacutericos

As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre

proporcionaram um desacordo moral

Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)

Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A

primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde

fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma

fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por

um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico

de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do

projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza

humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade

e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos

Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria

macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um

pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito

de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida

humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo

49

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE

A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da

Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a

Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que

marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram

a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma

alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees

A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da

terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe

conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento

contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de

Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do

pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea

A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do

lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave

apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla

criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que

aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns

dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa

desta seccedilatildeo do trabalho

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em

MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais

posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais

do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de

publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral

Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no

primeiro capiacutetulo deste trabalho

50

Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma

embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese

de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute

o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os

conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade

desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do

emotivismo

411 Vida social e conceitos morais

O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica

chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave

histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de

que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua

histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os

conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras

que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas

formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam

representados por estes conceitos

Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas

formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20

MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender

as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos

morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem

ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair

MacIntyre After Virtue and After acrescentam que

20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause

social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01

51

entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21

Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem

estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como

partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para

a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas

O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que

aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir

de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar

fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica

de uma ontologia

As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees

morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas

de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que

esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p

243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de

falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se

fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem

afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o

incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito

distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com

efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado

moral

A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o

modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro

21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral

concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo

52

seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber

que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos

realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem

e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de

bem MacIntyre citando George Moore questiona

O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22

O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor

que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente

simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem

como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua

presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o

indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente

age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo

que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude

413 O emotivismo

O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre

o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas

reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem

como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos

proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o

proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem

ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois

homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo

moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)

22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at

least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo

53

Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson

Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo

primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o

objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica

dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque

satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda

atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois

modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro

modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu

gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que

encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um

significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas

pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em

virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra

Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos

aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela

multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos

valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de

construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque

quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos

assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson

uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite

para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem

procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se

podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo

loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer

apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem

sua conveniecircncia

54

Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos

contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze

anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais

relevantes do autor

Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo

sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois

da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral

moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a

proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da

Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do

discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE

A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a

falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da

racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em

relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o

seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade

partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto

social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de

natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte

A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a

consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios

caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude

e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre

natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute

bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz

A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio

pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos

tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos

principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou

suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica

55

As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os

encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente

esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar

a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do

discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de

MacIntyre

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude

Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da

vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de

MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria

MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute

enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria

Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23

Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades

entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram

completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e

caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre

percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo

Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual

Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um

23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of

importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo

24Destaque nosso

56

bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25

Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um

meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro

Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles

MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute

realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo

eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo

(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em

Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio

Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a

possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de

virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral

fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a

distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou

que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo

comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar

inteligiacutevel o conceito de virtude

Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26

Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos

da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois

25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human

telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo

26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo

57

o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute

reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo

Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios

422 O conceito de praacuteticas

Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana

referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear

pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo

das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas

natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes

satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica

Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27

Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre

apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez

mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda

crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por

semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais

50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar

Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez

Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto

que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai

encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade

especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo

conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada

27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo

58

ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir

Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf

MACINTYRE 2007 p 188)

Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa

de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido

de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que

apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou

de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a

outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e

reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade

Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que

proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando

conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de

modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e

concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua

conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois

a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta

questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre

oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma

nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos

impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28

A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel

eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia

significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens

Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias

atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute

podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no

relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de

relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como

uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute

necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos

28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo

59

estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da

justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar

disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se

necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos

bens internos

A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre

dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma

praacutetica

Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29

Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo

sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece

poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As

virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens

relativos a elas

As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de

capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens

e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade

teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da

consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir

parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica

MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas

definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as

29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo

60

proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute

pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e

consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da

histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma

dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes

Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte

maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um

reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no

contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que

reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica

predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31

Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os

bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens

internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois

o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode

muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse

sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status

sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa

Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo

proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus

resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo

se daacute de maneira uniacutevoca

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular

O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular

eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude

Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu

conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da

seguinte maneira

30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash

but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and

even exclusive featurerdquo

61

seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32

O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada

vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade

ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV

de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da

vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica

ou ainda da teoria socioloacutegica

O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da

maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida

eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos

quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida

puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33

Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do

indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha

Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada

como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista

por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute

constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente

MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese

a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)

Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis

impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de

MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel

Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia

32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each

such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo

33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo

62

questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa

mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor

Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida

humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de

algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que

se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as

abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana

individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre

homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu

cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave

morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p

205)35

O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a

oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se

limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a

problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas

Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)

A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do

conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma

vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser

articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e

essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A

perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa

ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade

34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life

that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as

narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of

human actionsrdquo

63

somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes

de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na

forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a

compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros

Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37

A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular

pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras

Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na

unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e

palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o

indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a

essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem

a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso

enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de

respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida

moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38

A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca

narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais

primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos

isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira

caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas

A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente

caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras

vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter

pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si

A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a

noccedilatildeo macintyreana de virtude

37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms

of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo

38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo

64

As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39

O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios

nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes

necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre

conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para

o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa

para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo

necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas

esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave

vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de

vida e tempo segmentados

424 Tradiccedilatildeo

O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de

uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de

significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma

identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma

identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da

cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de

limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de

partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando

pelas particularidades busca-se o bem o universal

A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles

que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das

39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices

and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo

40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo

65

marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute

mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido

Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer

reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas

sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a

compreende e a transmite

Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas

como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de

tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma

tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente

incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que

constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior

de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura

do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as

circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura

se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica

vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e

caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio

da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi

transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa

ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo

A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do

exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as

virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia

ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes

A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem

e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem

as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo

(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia

41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument

precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made

intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo

66

das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras

que o passado tornou disponiacutevel no presente

O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo

complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem

natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias

conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral

como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria

Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da

exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de

resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter

sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral

Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista

Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo

compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria

moral

O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu

pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma

Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou

em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre

o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de

Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea

67

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO

A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em

tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto

atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do

pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que

a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava

simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo

(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como

objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o

Aristotelismo

A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do

pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes

acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa

psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por

consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e

lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado

Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de

homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de

uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa

indicada por MacIntyre

A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a

necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos

e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as

disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa

direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem

prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre

pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira

sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma

reflexatildeo sobre a teoria dos atos

Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o

autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial

68

prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao

conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir

de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um

retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria

uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica

Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para

o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira

que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa

compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente

moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf

ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato

moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas

em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o

viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que

frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar

relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees

Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a

importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de

boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma

Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque

as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo

moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria

aristoteacutelica dos atos

A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos

fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa

filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses

elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que

se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de

Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na

tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui

conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por

MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode

69

afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo

semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se

refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade

Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute

desconhecidos deles

O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo

como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia

moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma

consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se

essa leitura cristatilde natildeo for considerada

O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o

horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes

dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui

como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem

Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia

central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de

Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com

os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava

inserida

O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo

primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o

desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de

que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que

encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se

desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica

de Aristoacuteteles

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8

Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em

relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de

seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que

70

a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como

o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8

Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a

emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados

ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em

seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores

definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III

1 1109 b30)

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio

A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos

voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores

na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem

Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se

apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees

praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43

Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama

a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo

indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos

navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas

accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que

satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio

entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44

Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz

que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade

natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma

classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma

43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo

71

accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por

exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante

da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os

navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a

jogaram no mar

Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato

ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve

possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda

provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1

1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e

penoso ao agente

Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-

voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf

ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o

nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o

arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se

arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria

Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de

ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em

estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer

que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem

encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de

homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do

homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto

ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente

alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os

criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se

acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento

45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν

μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo

72

Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente

a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados

natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso

dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos

por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu

arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que

conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49

512 A escolha deliberada

Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles

entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria

(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que

a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais

abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos

voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada

A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e

que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual

a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo

do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente

quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute

acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010

III 4 1112 a15)52

No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha

deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A

escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado

49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ

ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo

51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo

52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo

73

deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios

que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer

A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate

latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso

muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles

inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo

de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja

suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma

coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo

de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente

percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se

o querer diz respeito ao fim

Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54

A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que

o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-

se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este

fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para

Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a

escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute

querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que

53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου

ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo

74

o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira

considerar a escolha errada tambeacutem um bem

Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um

modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do

agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do

querer

Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese

na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve

dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que

aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6

1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto

o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o

virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude

consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos

a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a

entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer

ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica

Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56

Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem

enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma

coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a

conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo

Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)

A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma

aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se

55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo

75

relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de

bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser

humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada

uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113

a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro

em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente

bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto

faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em

relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas

O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma

relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a

phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da

phroacutenesis

Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)

O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida

que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o

ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita

de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se

deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees

Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas

mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro

que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo

dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o

homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa

A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-

se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave

visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que

posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de

bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas

57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo

76

aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais

age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano

acrescenta que

enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)

Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo

homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado

caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A

relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento

primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto

mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em

seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo

A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer

esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua

relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios

para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se

que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O

acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por

escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das

virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113

b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente

agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo

um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada

e os diversos outros atos humanos

Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser

o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-

se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que

para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio

Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso

Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um

77

certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a

sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa

Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio

natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente

obscurecer o juiacutezo

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os

conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que

medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo

Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram

traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos

A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta

observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o

concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel

estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar

que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio

Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma

coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute

possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento

fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa

necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave

iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio

mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal

Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo

latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai

retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor

assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa

necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste

modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem

Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria

embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista

78

dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte

da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista

dos atos se justifica

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino

O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo

de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse

de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus

O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos

atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na

bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da

semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de

Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo

O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das

paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir

aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos

mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma

apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para

posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da

reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo

amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em

consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-

se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra

profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem

se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins

O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute

pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as

accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber

uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos

humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo

sobre as paixotildees da alma

79

522 Sindeacuterese e consciecircncia

Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um

aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em

virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se

ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se

move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os

princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua

funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos

primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a

Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde

com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto

que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute

realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela

A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da

consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf

AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a

medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino

esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que

se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se

que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando

se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63

58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive

reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum

hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum

et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo

80

Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se

necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO

Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela

entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como

um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando

os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da

consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de

homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado

como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65

Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece

como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela

natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse

modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese

que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na

atualizaccedilatildeo da consciecircncia

Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66

A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de

homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute

o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma

vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel

defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um

mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar

523 O conceito de vontade

64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est

potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo

81

Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de

necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade

que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de

necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis

A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta

em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente

eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente

eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a

dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de

necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como

causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67

A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo

convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da

alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino

pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente

eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada

como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69

Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se

constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma

compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do

conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma

ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da

noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer

uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a

liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em

relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da

vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito

de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-

67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno

modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo

68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo

69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo

82

se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo

deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir

pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-

lo a querer fazer

Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma

certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute

segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a

inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite

denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-

se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel

A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem

chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel

quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em

irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute

prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da

ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela

voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o

bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal

Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido

como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute

segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de

vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir

esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar

o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q

82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em

Tomaacutes de Aquino

Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia

de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a

vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a

70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit

universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo

71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo

83

bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-

se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma

vontade livre

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira

a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos

serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana

o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese

entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a

felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la

Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre

os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer

que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua

escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de

todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica

um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem

ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de

Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em

virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra

nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor

o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade

O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais

adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade

possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de

liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua

manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que

na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento

do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre

vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade

pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o

pensamento cristatildeo

72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo

84

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade

A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte

da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a

relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de

superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o

sentido de absoluto e relativo

A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73

Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem

desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido

a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do

intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-

se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto

considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade

Tomaacutes de Aquino esclarece

O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82

a3)74

A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica

cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no

Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a

vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas

73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo

sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo

74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo

85

Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo

status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu

operar satildeo chamados de voluntaristas

Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao

intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute

melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa

na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta

coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O

bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o

proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca

desse bem que eacute a felicidade perfeita

Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino

No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste

na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)

Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a

considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria

mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja

Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de

pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto

entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa

coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento

O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a

felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade

75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per

comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo

86

mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-

suficiente Aristoacuteteles acrescenta

Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)

A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na

totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica

num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da

felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda

revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A

eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro

lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes

de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute

realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do

cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente

adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio

A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender

o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o

empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta

existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da

vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais

que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio

e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

posterior

O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira

parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese

geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que

87

este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do

querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute

condicionado

O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das

proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes

de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras

que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o

julgamento livre

Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76

A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo

mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma

distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o

julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que

possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento

Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas

somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto

pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela

racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio

Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes

deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem

seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma

76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter

omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo

88

em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo

impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste

sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um

determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias

inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que

ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser

por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre

e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em

cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83

a1)78

Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos

livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a

agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na

verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer

Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste

artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de

Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne

a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79

Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional

ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo

da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO

Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de

liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o

assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem

constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela

na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O

livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe

o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81

77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium

est potentiardquo

89

Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo

implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode

negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo

de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se

pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre

propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute

possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre

eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este

escolhe o mal

Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant

seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma

terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A

terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o

sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave

escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada

somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium

brutum) (cf KANT 2003 p 63)

A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-

arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e

livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo

Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber

o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo

A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da

autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute

uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de

Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade

O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na

Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e

ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude

de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de

82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo

90

telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e

autonomia

Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-

arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos

distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes

de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da

Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus

quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento

ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)

Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio

Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem

encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees

1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus

particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de

beatitude

A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o

resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo

reside na accedilatildeo em si mesma

A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83

Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela

atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes

de se pensar em termos de teleologia e autonomia

83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non

esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo

91

526 A intenccedilatildeo

A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da

filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma

meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A

intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-

se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na

questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro

artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu

objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)

Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere

agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84

Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo

se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da

alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute

propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85

Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender

ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o

movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme

ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira

primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde

que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a

intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )

Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade

promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada

na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de

Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da

intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios

alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo

84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum

est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo

92

Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas

simultaneamente Tomas de Aquino afirma

A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86

Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar

finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse

sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins

podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a

intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens

se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a

razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo

Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na

descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem

pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute

um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que

implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que

os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a

intenccedilatildeo voluntaacuteria

Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino

afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a

vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave

vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios

para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute

constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre

intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra

O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava

em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo

havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao

86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et

ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo

87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo

93

Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos

atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES

Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de

modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao

pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo

verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto

aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute

Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que

contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa

Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do

cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que

mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no

pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer

entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno

contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento

cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para

a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o

conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo

de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das

Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral

Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino

opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um

lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que

muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta

compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao

pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade

agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do

MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado

94

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista

Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro

aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma

ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na

inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As

reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas

da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz

do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao

pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte

integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral

Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do

pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da

mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino

Assim Agostinho afirma no De Beata Vita

Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88

Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus

Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos

criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo

(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos

interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a

proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo

de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior

de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz

88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod

loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo

95

Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a

vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem

no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a

felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta

nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes

de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as

principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus

por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus

Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou

vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus

mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em

Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente

humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais

satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode

ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento

Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida

beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma

gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao

amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas

A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de

como devem agir aqueles que nela inspiram-se

As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem

praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo

A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer

uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as

Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas

escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um

espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a

concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)

Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem

como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade

e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No

96

livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando

responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes

Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a

Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico

fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que

se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte

especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica

como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu

de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas

ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou

para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos

97

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia

Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a

seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia

tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas

satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como

Tomaacutes de Aquino responde a este problema

No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao

problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema

agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes

coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um

espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo

Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus

viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no

agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em

Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de

Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com

efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o

homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de

Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral

centrada no agente

Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos

como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que

a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo

Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre

sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A

explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia

a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)

98

Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que

se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando

toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se

atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais

suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute

possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes

de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio

de seu pensamento ontoloacutegico

Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino

adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus

atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos

conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40

2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina

o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem

a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta

hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel

secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico

Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma

parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel

tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento

sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus

natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional

constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem

de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-

arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute

justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o

permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual

Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral

conhece-se a lei divina

89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus

nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et

arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo

99

A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91

A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e

estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus

Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo

torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios

atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo

de uma parte moral na Teologia

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista

Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a

construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute

vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei

eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo

Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual

deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos

interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute

2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais

na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula

fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo

eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo

ponto a ser aqui explicitado

O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi

nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre

esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras

liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve

bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos

depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de

91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus

humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo

100

inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de

Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de

Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como

eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo

da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o

desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida

tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p

27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista

A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral

na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos

de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que

possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a

ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia

moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees

humanas Assim ele inicia a Prima Secundae

Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92

A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta

maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma

unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para

adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave

ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar

92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad

hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo

101

do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o

homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de

poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que

o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma

imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem

de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota

ldquobrdquo p 29)

A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia

agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho

mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto

o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos

que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem

uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os

atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um

ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e

os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja

exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)

O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio

pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus

governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave

vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o

governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza

a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o

processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo

relacionadas ao ser do homem

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes

A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as

virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do

homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que

diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas

a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos

102

habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor

diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho

agrave beatitude

A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade

substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como

recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute

como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do

corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as

coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo

(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93

A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo

que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino

espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de

Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal

Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94

Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado

a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o

assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o

homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as

criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar

o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua

vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o

homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem

nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras

93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter

complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo

103

moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu

forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As

potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus

que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o

homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz

Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95

As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem

considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as

potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da

razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a

irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta

totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar

um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza

poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente

pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma

O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar

95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes

appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo

104

inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96

Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta

determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou

conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto

noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse

nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta

de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os

princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a

ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave

concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao

corpo

Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem

seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por

essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da

justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da

fortaleza

Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das

potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente

compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e

humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em

conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma

vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age

(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)

A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que

eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se

96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum

subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo

97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa

105

pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um

lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser

adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias

virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as

virtudes

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das

virtudes

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo

Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o

modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila

faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo

aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees

de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude

enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os

atos excelentes requeridos pela vida beata

Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert

Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se

enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005

tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras

disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas

A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo

da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos

Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia

consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo

regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida

felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados

pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo

ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins

virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca

da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo

106

da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem

ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida

em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O

primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por

Aristoacuteteles

A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta

maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto

as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do

homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas

natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias

racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se

prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a

funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes

que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo

nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo

Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito

operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do

ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em

buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza

naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de

habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao

conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude

humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo

Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das

potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito

bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-

se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo

de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude

humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim

eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55

98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue

consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo

107

a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com

efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia

dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos

humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus

53132 As virtudes teologais

As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca

de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades

naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo

as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a

Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza

humana natildeo seria capaz de proporcionar

A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites

volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim

Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na

articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias

virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes

de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande

conta

Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano

segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento

do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo

entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no

agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute

a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo

dinacircmica entre a razatildeo e o apetite

53133 A virtude da Justiccedila

99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo

108

Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente

individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice

da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a

revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance

dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da

maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila

A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as

virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V

da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades

Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58

da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude

Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida

moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde

Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo

tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social

Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia

espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor

atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista

pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social

Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da

justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem

vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da

Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da

conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes

A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que

ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia

entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o

que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente

Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se

tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral

109

que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os

viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE

1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a

consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa

contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um

reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de

Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma

de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as

decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas

contraacuterias

A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100

A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo

podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel

sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo

de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute

possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam

atualizadas na forma de viacutecios

Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda

proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes

correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute

apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a

diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de

que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser

humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as

paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento

desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental

Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes

estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas

100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde

Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo

110

virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas

potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as

outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma

iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do

homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as

virtudes estatildeo relacionadas e conectadas

A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra

como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma

relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes

Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles

Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101

Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia

aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo

pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a

prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois

enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a

retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia

quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo

virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes

Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes

dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo

Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais

importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas

entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a

caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes

S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a

101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which

moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo

102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo

111

unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas

eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade

A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de

Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes

intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-

II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por

meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a

prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite

denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as

teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas

se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes

teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e

o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees

53135 O habitus e vontade livre

Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave

concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se

estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute

uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)

A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem

mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo

contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do

determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas

capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira

indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos

Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam

112

indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)

Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se

possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de

liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o

melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente

da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103

Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de

liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma

substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em

Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem

Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo

aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo

iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a

capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os

atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre

Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo

nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza

indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade

A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre

arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio

pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de

S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo

significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude

a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por

um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade

por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples

reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta

conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que

103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO

2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est

id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo

113

Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)

A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o

posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como

o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente

que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade

possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo

Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao

conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo

Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo

enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino

acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo

a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de

accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins

Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)

A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira

os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele

tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais

adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana

nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei

eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos

Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela

razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza

Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem

ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006

p 398)

114

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa

Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se

encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas

as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute

existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo

Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica

e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes

Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105

Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo

estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma

105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum

quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo

115

essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua

vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na

exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do

ser humano

Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no

homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres

humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no

aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora

as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas

potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa

tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)

Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da

consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no

homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo

e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de

praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar

a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das

mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito

de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de

maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas

suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de

indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do

conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles

o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a

significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui

que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos

proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo

A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia

o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a

116

articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral

Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia

aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da

Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo

Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de

integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um

equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e

o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a

questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude

A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica

da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes

O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de

natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio

interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num

universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo

(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o

pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo

ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da

ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus

eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele

retorna

A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute

em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles

Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista

da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da

ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem

da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto

uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte

dela

Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se

compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico

Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o

117

teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)

No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur

mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da

Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a

Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria

pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que

aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de

uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do

cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador

Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o

Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim

uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma

condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem

atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo

homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da

Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja

o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude

cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural

Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica

constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os

atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o

desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da

natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em

Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real

existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)

106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio

questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17

118

A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica

dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou

cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica

aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia

de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos

modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave

Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e

da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais

aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor

do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo

do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de

entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-

se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa

Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou

um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o

foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica

Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente

harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua

teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das

conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se

encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor

encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo

de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo

compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo

eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das

criaturas sensiacuteveis

119

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto

de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo

desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma

heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui

desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes

proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos

forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica

O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia

denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta

expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente

constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem

contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo

desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua

indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor

afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a

unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino

realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

e o Aristotelismo

Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo

tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo

satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de

modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que

incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como

pensamento epocal nas palavras de Hegel

A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento

de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a

continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises

Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral

contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre

120

a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo

poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um

caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em

relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes

No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o

modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e

quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind

Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves

morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o

pensamento de MacIntyre eacute devedor

A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude

com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a

moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de

sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa

A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino

intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta

parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a

compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em

seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave

psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes

Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance

filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e

da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto

A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave

contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever

pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de

si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees

agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a

uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas

expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que

por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por

outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas

121

Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute

possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico

contemporacircneo

Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes

eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo

da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um

achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver

justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo

emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por

tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos

agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco

Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre

na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas

agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e

Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe

explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees

relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma

psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo

serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e

nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino

Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em

primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um

desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos

empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais

posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as

teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute

propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um

discurso moral

Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a

fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa

adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as

virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu

na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se

122

compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de

Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes

de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre

pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de

Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais

desta pesquisa

Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes

tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral

O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo

com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um

agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A

questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio

ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem

e contribui na sua realizaccedilatildeo

Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a

ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela

necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente

em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia

conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu

agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma

do ser humano

Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um

conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que

internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma

estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida

pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa

corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos

outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila

O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude

sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles

quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do

homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem

que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros

123

O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se

constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia

vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave

fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios

praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros

princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento

acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para

desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso

conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo

A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento

constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a

solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo

do homem como animal racional implicaria necessariamente num

funcionamento constante da consciecircncia

As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num

sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na

independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do

proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade

mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo

racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo

aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o

movimento interno do querer fazer

Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em

vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade

nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude

promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do

divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a

concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino

compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o

intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que

eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada

124

por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo

implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre

Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo

Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca

de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido

designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo

enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus

voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse

sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que

implica posteriormente em uma unidade da vida moral

No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute

presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo

consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e

em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos

concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo

desenvolvimento das accedilotildees

O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em

que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo

filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos

Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos

termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia

moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na

proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica

quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento

cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia

inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento

contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu

processo de fundamentaccedilatildeo

A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias

iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo

permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram

forjados no seio do pensamento cristatildeo

125

Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes

passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute

como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de

encontro dos dois filoacutesofos

Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que

de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que

compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral

e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem

verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto

uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que

existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das

virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que

ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre

posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma

psicologia filosoacutefica

O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em

encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu

conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana

que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos

na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas

Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes

como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas

circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento

histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas

Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio

MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de

Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna

entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma

hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma

consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade

das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma

vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave

noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo

126

similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma

unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das

virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos

foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de

consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo

pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram

127

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Page 5: ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana

AGRADECIMENTOS

Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo

A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar

A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o

processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa

Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela

educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo

Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia

Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho

Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in

memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon

Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo

incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia

Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo

enxergavam

Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa

Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa

A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das

Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande

do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes

Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos

A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que

pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em

representar-lhes

Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta

Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo

A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo

Gilfranco Lucena

Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel

especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o

meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina

Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual

de Alagoas minha nova casa

A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias

e Letras de Caruaru ndash FAFICA

Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen

Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL

A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse

trabalho

Meus sinceros agradecimentos

ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum

quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad

infinitus effectusrdquo

ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos

oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos

para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)

RESUMO

A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta

pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude

o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta

proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio

investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o

pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes

de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente

de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a

de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas

contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa

bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de

atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e

a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte

abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou

ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada

numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que

sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da

Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista

que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica

Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo

ABSTRACT

The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting

from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort

of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to

Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation

which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian

thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of

aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of

thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the

one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to

the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of

inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos

Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal

themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the

contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of

dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following

part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well

as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own

indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses

the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the

thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics

Keywords Ethics Virtues Christian thought

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 13

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20

212 A incoerecircncia do dever moral 25

213 Criacutetica ao utilitarismo 29

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de

Gertrude Anscombe 32

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO

DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA ORALIDADE 37

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo

e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

MORAL DE MACINTYRE 49

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49

411 Vida social e conceitos morais 50

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51

413 O emotivismo 52

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55

422 O conceito de praacuteticas 57

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60

423 Tradiccedilatildeo 64

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO

E O ARISTOTELISMO 67

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70

512 A escolha deliberada 72

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78

522 Sindeacuterese e consciecircncia 79

523 O conceito de vontade 80

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio 86

526 A intenccedilatildeo 91

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista

da teoria das virtudes 105

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105

53132 As virtudes teologais 107

53133 A virtude da justiccedila 107

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108

53135 O habitus e vontade livre 111

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119

REFEREcircNCIAS 127

13

1 INTRODUCcedilAtildeO

A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para

definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e

possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a

preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-

reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a

contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta

compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O

homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma

deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre

o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade

O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de

Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que

o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado

individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave

compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o

conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto

representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles

estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que

em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto

daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo

O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica

Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno

em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do

dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras

de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica

a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada

no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento

eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas

encontra sua fonte no sujeito

14

Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica

ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas

MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai

causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso

moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande

siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor

a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento

contemporacircneo

Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa

considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para

efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes

MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina

Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e

deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a

saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora

tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com

as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar

O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica

efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir

de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica

centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio

testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi

apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e

Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de

sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa

precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a

reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre

deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre

o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do

MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa

O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que

significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo

15

com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo

retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na

tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se

apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do

pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais

da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento

Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre

Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral

Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico

que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou

em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se

constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa

Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura

do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica

das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das

virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo

A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata

da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea

resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da

moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto

iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral

de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se

mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo

aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia

Moral

16

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES

O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa

do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia

em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna

como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de

compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta

esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como

tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos

pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe

A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada

Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica

das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento

da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira

via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente

instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia

moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que

justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica

deste capiacutetulo

Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das

Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia

moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia

influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS

Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um

termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas

virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras

denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees

1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No

Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot

17

denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)

Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo

Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)

A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto

em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela

perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo

das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom

A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para

a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se

considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo

Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica

normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant

e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John

Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos

publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as

duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto

que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)

permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo

Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo

sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um

reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um

filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das

virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente

falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel

uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre

os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees

complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo

2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist

18

considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo

mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40

anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de

terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas

A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta

as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a

antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou

um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao

pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande

distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo

social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a

escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No

entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute

comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos

deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por

exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo

fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o

renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a

amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o

papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora

praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos

seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma

simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais

em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo

satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind

Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas

sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)

Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta

que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte

demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas

4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas

significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor

da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista

19

revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros

pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant

enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles

(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)

A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um

problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao

fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada

Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que

a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a

deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo

que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do

agente

O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para

Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens

Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas

a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)

A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se

promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um

reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo

lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta

abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica

centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir

humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo

20

apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do

aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes

A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras

particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958

Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention

consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e

amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma

das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua

inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e

fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica

No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses

A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute

que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute

uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer

uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta

Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral

contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta

seccedilatildeo

Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica

tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica

Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica

encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma

Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)

21

As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia

Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com

que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo

distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude

Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo

capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos

realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos

proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir

do ser humano

A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute

soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta

afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como

aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa

se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao

estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na

mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude

desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma

psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se

fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada

intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave

filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade

Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica

sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece

com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a

psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia

passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos

supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser

tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia

ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)

O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin

Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia

ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados

psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim

22

pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo

acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de

entender a moral

O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias

(FLANNERY 2009 p 45)

Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas

como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na

contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da

maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os

ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto

eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua

vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a

intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute

o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma

Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia

empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como

Edmund Husserl e Heidegger6

A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na

Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery

salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do

lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf

FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe

entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente

por uma Psicologia Filosoacutefica

6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como

fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo

23

Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a

moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma

Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)

Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta

Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz

respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas

como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve

explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele

fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato

voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua

vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e

involuntaacuterios

Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees

morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um

objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante

diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no

tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por

um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade

mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo

se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um

estado psicoloacutegico

Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se

considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da

questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de

Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente

e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica

O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do

pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a

Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as

24

virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem

estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por

funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes

Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)

A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em

relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos

se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi

apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos

humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O

aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode

oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem

os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos

Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente

desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o

modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o

desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem

obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes

Neste sentido expotildee Kevin Flannery

Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)

Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia

Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O

direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento

25

contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados

proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

212 A incoerecircncia do dever moral

Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um

propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um

questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral

moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia

praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as

tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque

pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por

fundamento primordial o sujeito moral

Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude

Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um

conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de

Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de

modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo

reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que

expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais

como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de

lsquointelectuaisrsquo

A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo

moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a

Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva

suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera

uma releitura na eacutetica aristoteacutelica

Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se

26

pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7

O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma

grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo

que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as

noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das

influecircncias recebidas

Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de

dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si

mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um

inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma

enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob

determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute

diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo

deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo

pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a

propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente

Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral

pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma

teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer

um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do

agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e

obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que

privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma

tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela

provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento

No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida

em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de

agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do

haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais

importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar

7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special

sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo

27

independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste

sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a

centralidade no agente

As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade

das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees

Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz

do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa

segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken

relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica

e a tese do chamado reducionismo conceitual

A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por

conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma

pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo

julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor

moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees

decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa

o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende

que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude

Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao

reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica

do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e

ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados

de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)

Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente

internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave

moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando

prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-

cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer

que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee

em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua

descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as

consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da

eacutetica hebraico-cristatilde

28

A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura

hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees

se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas

A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo

justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no

entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui

um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo

seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas

do indiviacuteduo

Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral

se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf

ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de

lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo

lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada

mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que

apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees

sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro

lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom

ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas

no agente

As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o

sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna

se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que

antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde

Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)

Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio

ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc

faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p

34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade

de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular

a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees

29

Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no

horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo

fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um

sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou

lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a

Lei Divina

Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral

moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que

a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os

conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de

serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos

trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)

213 Criacutetica ao utilitarismo

A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo

do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo

utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave

possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE

2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa

tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio

para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo

(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a

compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma

accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou

intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de

Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave

responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a

autora propotildee um exemplo

Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos

8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for

something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo

30

compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9

A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte

do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o

sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que

este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a

cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude

de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso

seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito

deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim

a responsabilidade pelo ato

Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a

antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela

accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando

apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se

apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram

antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso

desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto

A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente

soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente

previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes

consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas

consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo

se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se

preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que

acontecesse

9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore

deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo

31

A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora

expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre

se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve

ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada

accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve

fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um

consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo

desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso

limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais

O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)

A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite

uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se

o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa

determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista

contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do

convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um

determinado agente consentindo maacutes accedilotildees

[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)

O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo

utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer

dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar

assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser

feito

10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd

32

A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute

de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o

fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-

la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente

controverso

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe

A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de

MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que

encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a

vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais

proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme

afirma Jorge Garcia

A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11

O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois

no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat

(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento

Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus

operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer

salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza

fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais

Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a

felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o

11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply

recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo

12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224

13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic

33

antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute

herdeiro de Gertrude Anscombe

O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo

Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com

o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda

distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p

162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida

uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia

filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por

seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia

metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos

tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo

histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)

MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma

forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser

sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da

perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual

Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave

criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que

seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio

MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles

Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14

concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo

14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo

34

Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste

capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica

das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas

pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio

ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na

ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da

Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate

eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes

como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral

como um todo

A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na

tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia

Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave

contemporaneidade

35

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA MORALIDADE

A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas

centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento

preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que

a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na

modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o

chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos

modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre

Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais

teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da

histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram

A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta

seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de

justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da

argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois

da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que

MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo

dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo

discurso

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE

A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante

apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O

iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias

naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia

inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos

satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum

saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto

o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece

uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se

36

esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos

conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava

significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que

possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de

livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo

rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo

reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica

quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade

da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam

apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e

recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou

quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum

sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da

compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar

sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf

MACINTYRE 2001 p 14)

A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos

da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a

filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a

historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia

natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o

material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de

fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus

fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute

agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis

natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem

Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo

que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe

suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que

sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a

linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de

fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida

37

por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de

linguagem ordenada

O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem

ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral

moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE

O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de

tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus

governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a

moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral

claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral

moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si

proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente

marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica

termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo

(VAZ 1999 p 257)

Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo

eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses

modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que

propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica

Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs

grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral

kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de

Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio

Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente

moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento

de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de

fundamentaccedilatildeo da moral

15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in

something like fully-fledged formrdquo

38

Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs

grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a

escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral

a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na

escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia

do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista

de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho

proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral

contemporacircnea

David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do

gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza

Humana o autor afirma

A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16

Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram

postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma

ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando

este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza

a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com

uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois

realizadas em virtude das paixotildees

A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver

conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees

proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant

afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em

humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant

acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da

accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma

accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute

16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature

of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo

39

vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela

praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo

puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a

moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como

uma heteronomia por exemplo a religiatildeo

A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a

indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)

A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre

Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como

paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma

face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf

MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento

e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute

preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os

estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as

determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou

princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma

posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)

Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos

diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo

fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de

que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente

independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo

se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito

Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo

de MacIntyre

Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)

A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios

para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra

40

marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui

MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um

deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da

Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos

fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia

alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse

desacordo

A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais

existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta

perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo

existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva

passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma

uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da

moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da

norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA

A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade

natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria

afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha

A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e

Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas

morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao

fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)

Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta

incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da

moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo

41

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos

pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo

da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo

incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme

de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para

Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre

de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que

defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por

estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma

natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral

A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza

humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento

necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e

Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees

para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e

categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora

ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a

mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as

caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a

escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza

esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir

argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana

conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos

moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18

Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de

MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso

17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre

acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188

18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre

42

moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A

pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do

autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a

alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de

pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum

Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em

seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos

exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles

tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro

esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana

sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso

moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e

preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo

de natureza humana na moral moderna

O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado

segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria

desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma

relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso

MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi

ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade

Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de

caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que

Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo

homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza

essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o

homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e

Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este

esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios

43

satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o

verdadeiro fim

Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo

preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses

trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem

ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de

accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e

quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois

ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de

interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade

O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de

acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem

expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso

retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de

pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e

respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo

do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande

parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave

revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do

protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito

dando lugar a um novo conceito de razatildeo

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo

Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do

protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo

eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem

O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)

Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo

alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade

44

MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras

entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da

razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A

criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno

tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel

ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que

a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato

psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume

O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)

A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da

razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de

Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana

seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado

destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da

natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia

que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a

catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro

fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural

dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral

Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do

discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi

apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da

noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que

provocaraacute o ulterior desacordo moral

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII

ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada

frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum

45

Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave

terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que

natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento

sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo

das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato

conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e

consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das

possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito

eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre

A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)

MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e

protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono

da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade

Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele

qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia

E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a

felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas

claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente

todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o

homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana

representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque

na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo

pela noccedilatildeo de natureza humana

MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas

de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de

natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida

46

e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade

pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os

modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais

ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue

compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento

uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno

de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um

esquema ldquoestilhaccediladordquo

Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19

A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os

preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do

esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de

justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem

a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana

vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade

soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro

tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na

uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever

MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno

um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito

de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e

medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem

enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial

Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o

conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma

famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o

fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um

conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como

19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia

inquietante

47

indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees

valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave

falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada

O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o

segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro

Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de

juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda

da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado

de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre

conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente

e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta

de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais

Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo

realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua

finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas

expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da

compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute

bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute

justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por

conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)

Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos

A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade

de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade

lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo

Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da

invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso

acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em

questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis

Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal

48

natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles

satildeo categoacutericos

As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre

proporcionaram um desacordo moral

Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)

Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A

primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde

fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma

fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por

um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico

de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do

projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza

humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade

e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos

Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria

macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um

pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito

de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida

humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo

49

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE

A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da

Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a

Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que

marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram

a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma

alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees

A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da

terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe

conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento

contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de

Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do

pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea

A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do

lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave

apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla

criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que

aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns

dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa

desta seccedilatildeo do trabalho

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em

MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais

posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais

do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de

publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral

Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no

primeiro capiacutetulo deste trabalho

50

Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma

embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese

de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute

o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os

conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade

desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do

emotivismo

411 Vida social e conceitos morais

O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica

chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave

histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de

que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua

histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os

conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras

que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas

formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam

representados por estes conceitos

Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas

formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20

MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender

as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos

morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem

ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair

MacIntyre After Virtue and After acrescentam que

20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause

social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01

51

entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21

Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem

estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como

partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para

a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas

O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que

aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir

de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar

fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica

de uma ontologia

As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees

morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas

de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que

esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p

243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de

falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se

fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem

afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o

incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito

distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com

efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado

moral

A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o

modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro

21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral

concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo

52

seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber

que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos

realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem

e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de

bem MacIntyre citando George Moore questiona

O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22

O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor

que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente

simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem

como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua

presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o

indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente

age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo

que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude

413 O emotivismo

O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre

o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas

reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem

como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos

proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o

proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem

ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois

homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo

moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)

22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at

least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo

53

Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson

Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo

primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o

objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica

dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque

satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda

atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois

modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro

modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu

gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que

encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um

significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas

pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em

virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra

Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos

aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela

multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos

valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de

construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque

quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos

assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson

uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite

para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem

procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se

podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo

loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer

apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem

sua conveniecircncia

54

Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos

contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze

anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais

relevantes do autor

Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo

sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois

da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral

moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a

proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da

Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do

discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE

A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a

falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da

racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em

relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o

seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade

partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto

social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de

natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte

A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a

consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios

caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude

e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre

natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute

bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz

A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio

pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos

tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos

principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou

suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica

55

As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os

encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente

esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar

a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do

discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de

MacIntyre

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude

Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da

vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de

MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria

MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute

enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria

Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23

Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades

entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram

completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e

caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre

percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo

Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual

Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um

23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of

importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo

24Destaque nosso

56

bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25

Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um

meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro

Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles

MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute

realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo

eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo

(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em

Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio

Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a

possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de

virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral

fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a

distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou

que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo

comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar

inteligiacutevel o conceito de virtude

Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26

Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos

da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois

25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human

telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo

26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo

57

o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute

reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo

Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios

422 O conceito de praacuteticas

Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana

referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear

pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo

das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas

natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes

satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica

Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27

Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre

apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez

mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda

crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por

semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais

50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar

Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez

Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto

que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai

encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade

especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo

conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada

27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo

58

ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir

Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf

MACINTYRE 2007 p 188)

Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa

de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido

de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que

apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou

de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a

outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e

reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade

Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que

proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando

conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de

modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e

concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua

conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois

a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta

questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre

oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma

nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos

impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28

A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel

eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia

significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens

Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias

atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute

podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no

relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de

relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como

uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute

necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos

28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo

59

estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da

justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar

disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se

necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos

bens internos

A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre

dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma

praacutetica

Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29

Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo

sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece

poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As

virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens

relativos a elas

As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de

capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens

e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade

teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da

consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir

parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica

MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas

definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as

29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo

60

proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute

pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e

consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da

histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma

dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes

Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte

maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um

reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no

contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que

reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica

predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31

Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os

bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens

internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois

o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode

muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse

sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status

sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa

Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo

proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus

resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo

se daacute de maneira uniacutevoca

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular

O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular

eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude

Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu

conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da

seguinte maneira

30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash

but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and

even exclusive featurerdquo

61

seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32

O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada

vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade

ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV

de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da

vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica

ou ainda da teoria socioloacutegica

O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da

maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida

eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos

quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida

puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33

Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do

indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha

Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada

como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista

por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute

constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente

MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese

a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)

Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis

impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de

MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel

Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia

32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each

such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo

33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo

62

questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa

mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor

Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida

humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de

algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que

se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as

abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana

individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre

homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu

cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave

morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p

205)35

O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a

oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se

limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a

problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas

Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)

A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do

conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma

vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser

articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e

essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A

perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa

ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade

34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life

that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as

narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of

human actionsrdquo

63

somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes

de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na

forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a

compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros

Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37

A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular

pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras

Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na

unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e

palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o

indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a

essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem

a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso

enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de

respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida

moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38

A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca

narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais

primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos

isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira

caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas

A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente

caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras

vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter

pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si

A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a

noccedilatildeo macintyreana de virtude

37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms

of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo

38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo

64

As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39

O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios

nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes

necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre

conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para

o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa

para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo

necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas

esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave

vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de

vida e tempo segmentados

424 Tradiccedilatildeo

O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de

uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de

significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma

identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma

identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da

cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de

limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de

partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando

pelas particularidades busca-se o bem o universal

A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles

que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das

39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices

and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo

40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo

65

marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute

mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido

Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer

reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas

sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a

compreende e a transmite

Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas

como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de

tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma

tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente

incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que

constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior

de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura

do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as

circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura

se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica

vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e

caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio

da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi

transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa

ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo

A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do

exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as

virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia

ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes

A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem

e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem

as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo

(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia

41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument

precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made

intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo

66

das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras

que o passado tornou disponiacutevel no presente

O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo

complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem

natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias

conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral

como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria

Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da

exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de

resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter

sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral

Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista

Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo

compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria

moral

O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu

pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma

Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou

em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre

o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de

Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea

67

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO

A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em

tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto

atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do

pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que

a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava

simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo

(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como

objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o

Aristotelismo

A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do

pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes

acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa

psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por

consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e

lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado

Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de

homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de

uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa

indicada por MacIntyre

A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a

necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos

e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as

disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa

direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem

prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre

pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira

sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma

reflexatildeo sobre a teoria dos atos

Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o

autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial

68

prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao

conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir

de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um

retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria

uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica

Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para

o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira

que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa

compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente

moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf

ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato

moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas

em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o

viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que

frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar

relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees

Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a

importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de

boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma

Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque

as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo

moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria

aristoteacutelica dos atos

A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos

fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa

filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses

elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que

se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de

Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na

tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui

conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por

MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode

69

afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo

semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se

refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade

Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute

desconhecidos deles

O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo

como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia

moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma

consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se

essa leitura cristatilde natildeo for considerada

O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o

horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes

dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui

como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem

Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia

central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de

Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com

os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava

inserida

O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo

primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o

desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de

que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que

encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se

desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica

de Aristoacuteteles

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8

Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em

relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de

seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que

70

a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como

o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8

Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a

emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados

ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em

seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores

definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III

1 1109 b30)

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio

A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos

voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores

na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem

Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se

apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees

praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43

Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama

a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo

indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos

navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas

accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que

satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio

entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44

Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz

que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade

natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma

classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma

43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo

71

accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por

exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante

da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os

navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a

jogaram no mar

Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato

ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve

possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda

provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1

1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e

penoso ao agente

Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-

voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf

ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o

nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o

arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se

arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria

Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de

ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em

estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer

que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem

encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de

homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do

homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto

ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente

alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os

criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se

acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento

45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν

μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo

72

Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente

a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados

natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso

dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos

por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu

arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que

conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49

512 A escolha deliberada

Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles

entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria

(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que

a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais

abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos

voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada

A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e

que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual

a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo

do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente

quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute

acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010

III 4 1112 a15)52

No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha

deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A

escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado

49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ

ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo

51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo

52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo

73

deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios

que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer

A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate

latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso

muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles

inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo

de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja

suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma

coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo

de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente

percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se

o querer diz respeito ao fim

Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54

A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que

o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-

se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este

fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para

Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a

escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute

querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que

53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου

ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo

74

o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira

considerar a escolha errada tambeacutem um bem

Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um

modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do

agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do

querer

Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese

na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve

dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que

aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6

1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto

o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o

virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude

consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos

a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a

entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer

ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica

Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56

Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem

enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma

coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a

conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo

Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)

A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma

aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se

55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo

75

relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de

bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser

humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada

uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113

a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro

em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente

bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto

faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em

relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas

O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma

relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a

phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da

phroacutenesis

Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)

O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida

que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o

ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita

de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se

deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees

Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas

mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro

que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo

dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o

homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa

A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-

se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave

visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que

posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de

bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas

57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo

76

aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais

age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano

acrescenta que

enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)

Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo

homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado

caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A

relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento

primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto

mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em

seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo

A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer

esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua

relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios

para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se

que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O

acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por

escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das

virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113

b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente

agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo

um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada

e os diversos outros atos humanos

Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser

o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-

se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que

para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio

Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso

Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um

77

certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a

sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa

Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio

natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente

obscurecer o juiacutezo

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os

conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que

medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo

Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram

traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos

A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta

observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o

concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel

estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar

que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio

Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma

coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute

possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento

fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa

necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave

iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio

mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal

Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo

latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai

retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor

assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa

necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste

modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem

Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria

embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista

78

dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte

da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista

dos atos se justifica

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino

O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo

de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse

de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus

O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos

atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na

bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da

semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de

Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo

O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das

paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir

aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos

mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma

apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para

posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da

reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo

amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em

consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-

se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra

profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem

se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins

O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute

pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as

accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber

uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos

humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo

sobre as paixotildees da alma

79

522 Sindeacuterese e consciecircncia

Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um

aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em

virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se

ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se

move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os

princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua

funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos

primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a

Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde

com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto

que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute

realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela

A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da

consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf

AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a

medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino

esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que

se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se

que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando

se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63

58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive

reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum

hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum

et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo

80

Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se

necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO

Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela

entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como

um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando

os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da

consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de

homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado

como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65

Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece

como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela

natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse

modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese

que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na

atualizaccedilatildeo da consciecircncia

Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66

A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de

homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute

o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma

vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel

defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um

mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar

523 O conceito de vontade

64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est

potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo

81

Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de

necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade

que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de

necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis

A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta

em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente

eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente

eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a

dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de

necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como

causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67

A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo

convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da

alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino

pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente

eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada

como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69

Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se

constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma

compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do

conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma

ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da

noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer

uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a

liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em

relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da

vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito

de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-

67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno

modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo

68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo

69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo

82

se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo

deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir

pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-

lo a querer fazer

Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma

certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute

segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a

inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite

denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-

se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel

A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem

chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel

quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em

irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute

prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da

ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela

voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o

bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal

Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido

como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute

segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de

vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir

esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar

o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q

82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em

Tomaacutes de Aquino

Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia

de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a

vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a

70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit

universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo

71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo

83

bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-

se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma

vontade livre

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira

a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos

serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana

o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese

entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a

felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la

Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre

os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer

que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua

escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de

todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica

um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem

ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de

Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em

virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra

nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor

o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade

O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais

adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade

possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de

liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua

manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que

na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento

do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre

vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade

pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o

pensamento cristatildeo

72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo

84

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade

A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte

da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a

relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de

superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o

sentido de absoluto e relativo

A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73

Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem

desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido

a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do

intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-

se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto

considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade

Tomaacutes de Aquino esclarece

O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82

a3)74

A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica

cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no

Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a

vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas

73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo

sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo

74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo

85

Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo

status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu

operar satildeo chamados de voluntaristas

Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao

intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute

melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa

na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta

coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O

bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o

proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca

desse bem que eacute a felicidade perfeita

Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino

No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste

na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)

Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a

considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria

mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja

Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de

pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto

entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa

coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento

O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a

felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade

75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per

comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo

86

mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-

suficiente Aristoacuteteles acrescenta

Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)

A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na

totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica

num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da

felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda

revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A

eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro

lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes

de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute

realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do

cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente

adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio

A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender

o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o

empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta

existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da

vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais

que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio

e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

posterior

O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira

parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese

geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que

87

este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do

querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute

condicionado

O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das

proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes

de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras

que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o

julgamento livre

Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76

A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo

mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma

distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o

julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que

possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento

Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas

somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto

pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela

racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio

Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes

deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem

seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma

76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter

omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo

88

em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo

impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste

sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um

determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias

inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que

ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser

por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre

e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em

cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83

a1)78

Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos

livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a

agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na

verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer

Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste

artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de

Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne

a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79

Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional

ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo

da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO

Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de

liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o

assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem

constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela

na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O

livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe

o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81

77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium

est potentiardquo

89

Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo

implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode

negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo

de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se

pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre

propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute

possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre

eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este

escolhe o mal

Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant

seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma

terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A

terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o

sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave

escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada

somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium

brutum) (cf KANT 2003 p 63)

A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-

arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e

livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo

Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber

o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo

A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da

autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute

uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de

Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade

O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na

Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e

ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude

de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de

82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo

90

telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e

autonomia

Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-

arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos

distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes

de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da

Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus

quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento

ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)

Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio

Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem

encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees

1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus

particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de

beatitude

A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o

resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo

reside na accedilatildeo em si mesma

A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83

Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela

atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes

de se pensar em termos de teleologia e autonomia

83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non

esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo

91

526 A intenccedilatildeo

A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da

filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma

meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A

intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-

se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na

questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro

artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu

objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)

Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere

agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84

Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo

se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da

alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute

propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85

Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender

ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o

movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme

ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira

primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde

que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a

intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )

Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade

promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada

na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de

Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da

intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios

alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo

84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum

est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo

92

Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas

simultaneamente Tomas de Aquino afirma

A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86

Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar

finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse

sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins

podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a

intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens

se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a

razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo

Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na

descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem

pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute

um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que

implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que

os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a

intenccedilatildeo voluntaacuteria

Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino

afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a

vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave

vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios

para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute

constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre

intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra

O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava

em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo

havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao

86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et

ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo

87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo

93

Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos

atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES

Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de

modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao

pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo

verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto

aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute

Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que

contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa

Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do

cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que

mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no

pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer

entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno

contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento

cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para

a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o

conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo

de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das

Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral

Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino

opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um

lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que

muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta

compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao

pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade

agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do

MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado

94

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista

Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro

aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma

ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na

inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As

reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas

da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz

do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao

pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte

integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral

Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do

pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da

mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino

Assim Agostinho afirma no De Beata Vita

Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88

Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus

Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos

criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo

(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos

interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a

proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo

de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior

de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz

88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod

loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo

95

Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a

vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem

no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a

felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta

nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes

de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as

principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus

por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus

Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou

vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus

mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em

Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente

humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais

satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode

ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento

Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida

beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma

gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao

amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas

A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de

como devem agir aqueles que nela inspiram-se

As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem

praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo

A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer

uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as

Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas

escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um

espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a

concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)

Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem

como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade

e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No

96

livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando

responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes

Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a

Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico

fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que

se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte

especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica

como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu

de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas

ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou

para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos

97

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia

Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a

seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia

tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas

satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como

Tomaacutes de Aquino responde a este problema

No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao

problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema

agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes

coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um

espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo

Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus

viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no

agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em

Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de

Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com

efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o

homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de

Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral

centrada no agente

Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos

como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que

a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo

Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre

sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A

explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia

a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)

98

Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que

se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando

toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se

atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais

suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute

possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes

de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio

de seu pensamento ontoloacutegico

Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino

adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus

atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos

conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40

2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina

o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem

a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta

hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel

secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico

Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma

parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel

tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento

sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus

natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional

constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem

de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-

arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute

justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o

permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual

Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral

conhece-se a lei divina

89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus

nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et

arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo

99

A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91

A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e

estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus

Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo

torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios

atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo

de uma parte moral na Teologia

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista

Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a

construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute

vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei

eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo

Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual

deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos

interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute

2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais

na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula

fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo

eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo

ponto a ser aqui explicitado

O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi

nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre

esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras

liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve

bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos

depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de

91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus

humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo

100

inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de

Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de

Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como

eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo

da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o

desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida

tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p

27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista

A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral

na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos

de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que

possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a

ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia

moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees

humanas Assim ele inicia a Prima Secundae

Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92

A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta

maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma

unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para

adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave

ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar

92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad

hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo

101

do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o

homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de

poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que

o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma

imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem

de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota

ldquobrdquo p 29)

A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia

agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho

mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto

o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos

que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem

uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os

atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um

ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e

os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja

exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)

O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio

pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus

governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave

vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o

governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza

a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o

processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo

relacionadas ao ser do homem

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes

A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as

virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do

homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que

diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas

a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos

102

habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor

diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho

agrave beatitude

A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade

substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como

recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute

como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do

corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as

coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo

(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93

A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo

que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino

espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de

Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal

Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94

Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado

a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o

assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o

homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as

criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar

o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua

vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o

homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem

nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras

93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter

complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo

103

moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu

forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As

potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus

que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o

homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz

Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95

As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem

considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as

potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da

razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a

irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta

totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar

um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza

poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente

pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma

O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar

95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes

appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo

104

inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96

Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta

determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou

conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto

noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse

nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta

de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os

princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a

ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave

concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao

corpo

Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem

seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por

essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da

justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da

fortaleza

Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das

potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente

compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e

humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em

conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma

vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age

(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)

A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que

eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se

96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum

subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo

97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa

105

pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um

lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser

adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias

virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as

virtudes

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das

virtudes

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo

Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o

modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila

faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo

aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees

de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude

enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os

atos excelentes requeridos pela vida beata

Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert

Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se

enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005

tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras

disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas

A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo

da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos

Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia

consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo

regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida

felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados

pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo

ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins

virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca

da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo

106

da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem

ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida

em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O

primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por

Aristoacuteteles

A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta

maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto

as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do

homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas

natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias

racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se

prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a

funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes

que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo

nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo

Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito

operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do

ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em

buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza

naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de

habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao

conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude

humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo

Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das

potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito

bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-

se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo

de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude

humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim

eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55

98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue

consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo

107

a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com

efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia

dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos

humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus

53132 As virtudes teologais

As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca

de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades

naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo

as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a

Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza

humana natildeo seria capaz de proporcionar

A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites

volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim

Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na

articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias

virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes

de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande

conta

Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano

segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento

do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo

entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no

agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute

a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo

dinacircmica entre a razatildeo e o apetite

53133 A virtude da Justiccedila

99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo

108

Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente

individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice

da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a

revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance

dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da

maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila

A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as

virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V

da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades

Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58

da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude

Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida

moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde

Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo

tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social

Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia

espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor

atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista

pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social

Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da

justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem

vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da

Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da

conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes

A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que

ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia

entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o

que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente

Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se

tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral

109

que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os

viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE

1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a

consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa

contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um

reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de

Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma

de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as

decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas

contraacuterias

A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100

A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo

podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel

sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo

de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute

possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam

atualizadas na forma de viacutecios

Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda

proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes

correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute

apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a

diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de

que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser

humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as

paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento

desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental

Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes

estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas

100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde

Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo

110

virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas

potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as

outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma

iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do

homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as

virtudes estatildeo relacionadas e conectadas

A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra

como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma

relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes

Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles

Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101

Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia

aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo

pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a

prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois

enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a

retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia

quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo

virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes

Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes

dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo

Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais

importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas

entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a

caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes

S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a

101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which

moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo

102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo

111

unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas

eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade

A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de

Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes

intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-

II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por

meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a

prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite

denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as

teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas

se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes

teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e

o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees

53135 O habitus e vontade livre

Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave

concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se

estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute

uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)

A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem

mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo

contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do

determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas

capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira

indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos

Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam

112

indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)

Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se

possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de

liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o

melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente

da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103

Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de

liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma

substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em

Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem

Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo

aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo

iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a

capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os

atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre

Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo

nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza

indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade

A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre

arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio

pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de

S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo

significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude

a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por

um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade

por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples

reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta

conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que

103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO

2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est

id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo

113

Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)

A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o

posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como

o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente

que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade

possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo

Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao

conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo

Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo

enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino

acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo

a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de

accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins

Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)

A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira

os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele

tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais

adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana

nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei

eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos

Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela

razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza

Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem

ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006

p 398)

114

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa

Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se

encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas

as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute

existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo

Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica

e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes

Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105

Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo

estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma

105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum

quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo

115

essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua

vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na

exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do

ser humano

Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no

homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres

humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no

aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora

as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas

potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa

tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)

Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da

consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no

homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo

e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de

praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar

a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das

mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito

de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de

maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas

suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de

indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do

conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles

o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a

significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui

que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos

proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo

A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia

o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a

116

articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral

Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia

aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da

Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo

Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de

integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um

equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e

o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a

questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude

A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica

da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes

O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de

natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio

interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num

universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo

(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o

pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo

ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da

ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus

eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele

retorna

A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute

em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles

Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista

da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da

ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem

da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto

uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte

dela

Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se

compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico

Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o

117

teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)

No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur

mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da

Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a

Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria

pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que

aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de

uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do

cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador

Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o

Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim

uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma

condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem

atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo

homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da

Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja

o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude

cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural

Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica

constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os

atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o

desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da

natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em

Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real

existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)

106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio

questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17

118

A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica

dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou

cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica

aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia

de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos

modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave

Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e

da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais

aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor

do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo

do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de

entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-

se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa

Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou

um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o

foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica

Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente

harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua

teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das

conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se

encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor

encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo

de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo

compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo

eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das

criaturas sensiacuteveis

119

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto

de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo

desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma

heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui

desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes

proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos

forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica

O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia

denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta

expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente

constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem

contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo

desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua

indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor

afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a

unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino

realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

e o Aristotelismo

Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo

tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo

satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de

modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que

incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como

pensamento epocal nas palavras de Hegel

A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento

de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a

continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises

Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral

contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre

120

a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo

poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um

caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em

relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes

No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o

modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e

quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind

Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves

morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o

pensamento de MacIntyre eacute devedor

A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude

com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a

moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de

sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa

A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino

intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta

parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a

compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em

seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave

psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes

Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance

filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e

da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto

A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave

contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever

pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de

si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees

agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a

uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas

expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que

por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por

outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas

121

Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute

possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico

contemporacircneo

Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes

eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo

da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um

achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver

justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo

emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por

tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos

agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco

Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre

na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas

agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e

Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe

explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees

relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma

psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo

serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e

nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino

Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em

primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um

desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos

empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais

posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as

teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute

propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um

discurso moral

Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a

fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa

adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as

virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu

na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se

122

compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de

Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes

de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre

pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de

Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais

desta pesquisa

Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes

tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral

O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo

com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um

agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A

questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio

ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem

e contribui na sua realizaccedilatildeo

Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a

ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela

necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente

em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia

conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu

agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma

do ser humano

Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um

conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que

internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma

estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida

pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa

corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos

outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila

O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude

sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles

quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do

homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem

que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros

123

O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se

constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia

vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave

fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios

praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros

princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento

acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para

desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso

conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo

A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento

constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a

solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo

do homem como animal racional implicaria necessariamente num

funcionamento constante da consciecircncia

As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num

sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na

independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do

proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade

mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo

racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo

aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o

movimento interno do querer fazer

Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em

vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade

nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude

promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do

divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a

concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino

compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o

intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que

eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada

124

por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo

implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre

Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo

Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca

de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido

designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo

enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus

voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse

sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que

implica posteriormente em uma unidade da vida moral

No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute

presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo

consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e

em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos

concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo

desenvolvimento das accedilotildees

O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em

que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo

filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos

Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos

termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia

moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na

proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica

quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento

cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia

inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento

contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu

processo de fundamentaccedilatildeo

A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias

iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo

permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram

forjados no seio do pensamento cristatildeo

125

Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes

passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute

como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de

encontro dos dois filoacutesofos

Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que

de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que

compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral

e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem

verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto

uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que

existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das

virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que

ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre

posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma

psicologia filosoacutefica

O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em

encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu

conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana

que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos

na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas

Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes

como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas

circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento

histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas

Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio

MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de

Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna

entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma

hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma

consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade

das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma

vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave

noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo

126

similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma

unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das

virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos

foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de

consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo

pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram

127

REFEREcircNCIAS

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KANT Immanuel Sobre a pedagogia 3 ed Traduccedilatildeo de Francisco Cock Fontanella Piracicaba Unimep 2002

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Page 6: ALASDAIR MACINTYRE E TOMÁS DE AQUINO: a questão da “Ética … · 2019. 11. 29. · Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 B478a Benvinda, Nalfran

AGRADECIMENTOS

Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo

A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar

A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o

processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa

Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela

educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo

Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia

Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho

Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in

memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon

Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo

incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia

Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo

enxergavam

Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa

Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa

A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das

Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande

do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes

Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos

A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que

pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em

representar-lhes

Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta

Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo

A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo

Gilfranco Lucena

Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel

especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o

meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina

Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual

de Alagoas minha nova casa

A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias

e Letras de Caruaru ndash FAFICA

Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen

Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL

A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse

trabalho

Meus sinceros agradecimentos

ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum

quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad

infinitus effectusrdquo

ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos

oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos

para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)

RESUMO

A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta

pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude

o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta

proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio

investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o

pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes

de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente

de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a

de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas

contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa

bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de

atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e

a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte

abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou

ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada

numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que

sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da

Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista

que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica

Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo

ABSTRACT

The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting

from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort

of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to

Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation

which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian

thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of

aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of

thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the

one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to

the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of

inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos

Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal

themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the

contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of

dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following

part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well

as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own

indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses

the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the

thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics

Keywords Ethics Virtues Christian thought

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 13

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20

212 A incoerecircncia do dever moral 25

213 Criacutetica ao utilitarismo 29

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de

Gertrude Anscombe 32

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO

DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA ORALIDADE 37

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo

e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

MORAL DE MACINTYRE 49

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49

411 Vida social e conceitos morais 50

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51

413 O emotivismo 52

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55

422 O conceito de praacuteticas 57

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60

423 Tradiccedilatildeo 64

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO

E O ARISTOTELISMO 67

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70

512 A escolha deliberada 72

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78

522 Sindeacuterese e consciecircncia 79

523 O conceito de vontade 80

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio 86

526 A intenccedilatildeo 91

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista

da teoria das virtudes 105

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105

53132 As virtudes teologais 107

53133 A virtude da justiccedila 107

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108

53135 O habitus e vontade livre 111

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119

REFEREcircNCIAS 127

13

1 INTRODUCcedilAtildeO

A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para

definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e

possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a

preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-

reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a

contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta

compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O

homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma

deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre

o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade

O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de

Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que

o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado

individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave

compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o

conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto

representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles

estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que

em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto

daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo

O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica

Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno

em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do

dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras

de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica

a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada

no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento

eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas

encontra sua fonte no sujeito

14

Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica

ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas

MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai

causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso

moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande

siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor

a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento

contemporacircneo

Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa

considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para

efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes

MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina

Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e

deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a

saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora

tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com

as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar

O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica

efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir

de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica

centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio

testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi

apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e

Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de

sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa

precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a

reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre

deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre

o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do

MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa

O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que

significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo

15

com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo

retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na

tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se

apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do

pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais

da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento

Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre

Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral

Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico

que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou

em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se

constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa

Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura

do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica

das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das

virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo

A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata

da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea

resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da

moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto

iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral

de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se

mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo

aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia

Moral

16

2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES

O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa

do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia

em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna

como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de

compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta

esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como

tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos

pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe

A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada

Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica

das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento

da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira

via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente

instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia

moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que

justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica

deste capiacutetulo

Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das

Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia

moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia

influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre

21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS

Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um

termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas

virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras

denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees

1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No

Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot

17

denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)

Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo

Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)

A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto

em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela

perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo

das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom

A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para

a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se

considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo

Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica

normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant

e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John

Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos

publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as

duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto

que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)

permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo

Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo

sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um

reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um

filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das

virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente

falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel

uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre

os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees

complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo

2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist

18

considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo

mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40

anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de

terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas

A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta

as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a

antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou

um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao

pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande

distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo

social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a

escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No

entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute

comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos

deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por

exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo

fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o

renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a

amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o

papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora

praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos

seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma

simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais

em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo

satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind

Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas

sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)

Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta

que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte

demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas

4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas

significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor

da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista

19

revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros

pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant

enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles

(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)

A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um

problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao

fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada

Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que

a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a

deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo

que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do

agente

O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para

Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens

Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas

a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)

A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se

promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um

reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo

lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta

abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica

centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir

humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo

20

apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do

aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes

A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras

particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958

Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention

consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e

amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma

das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua

inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e

fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)

211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica

No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses

A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute

que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute

uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer

uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta

Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral

contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta

seccedilatildeo

Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica

tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica

Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica

encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma

Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)

21

As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia

Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com

que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo

distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude

Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo

capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos

realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos

proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir

do ser humano

A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute

soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta

afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como

aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa

se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao

estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na

mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude

desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma

psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se

fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada

intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave

filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade

Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica

sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece

com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a

psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia

passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos

supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser

tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia

ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)

O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin

Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia

ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados

psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim

22

pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo

acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de

entender a moral

O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias

(FLANNERY 2009 p 45)

Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas

como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na

contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da

maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os

ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto

eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua

vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a

intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute

o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma

Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia

empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como

Edmund Husserl e Heidegger6

A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na

Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery

salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do

lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf

FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe

entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente

por uma Psicologia Filosoacutefica

6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como

fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo

23

Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a

moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma

Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)

Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta

Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz

respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas

como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve

explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele

fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato

voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua

vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e

involuntaacuterios

Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees

morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um

objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante

diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no

tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por

um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade

mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo

se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um

estado psicoloacutegico

Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se

considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da

questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de

Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente

e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica

O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do

pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a

Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as

24

virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem

estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por

funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes

Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)

A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em

relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos

se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi

apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos

humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O

aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode

oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem

os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos

Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente

desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o

modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o

desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem

obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes

Neste sentido expotildee Kevin Flannery

Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)

Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia

Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O

direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento

25

contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados

proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

212 A incoerecircncia do dever moral

Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um

propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um

questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral

moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia

praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as

tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque

pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por

fundamento primordial o sujeito moral

Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude

Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um

conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de

Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de

modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo

reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que

expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais

como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de

lsquointelectuaisrsquo

A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo

moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a

Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva

suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera

uma releitura na eacutetica aristoteacutelica

Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se

26

pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7

O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma

grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo

que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as

noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das

influecircncias recebidas

Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de

dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si

mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um

inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma

enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob

determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute

diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo

deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo

pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a

propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente

Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral

pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma

teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer

um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do

agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e

obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que

privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma

tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela

provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento

No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida

em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de

agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do

haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais

importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar

7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special

sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo

27

independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste

sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a

centralidade no agente

As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade

das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees

Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz

do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa

segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken

relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica

e a tese do chamado reducionismo conceitual

A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por

conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma

pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo

julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor

moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees

decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa

o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende

que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude

Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao

reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica

do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e

ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados

de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)

Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente

internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave

moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando

prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-

cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer

que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee

em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua

descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as

consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da

eacutetica hebraico-cristatilde

28

A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura

hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees

se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas

A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo

justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no

entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui

um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo

seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas

do indiviacuteduo

Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral

se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf

ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de

lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo

lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada

mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que

apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees

sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro

lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom

ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas

no agente

As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o

sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna

se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que

antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde

Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)

Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio

ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc

faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p

34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade

de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular

a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees

29

Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no

horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo

fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um

sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou

lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a

Lei Divina

Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral

moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que

a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os

conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de

serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos

trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)

213 Criacutetica ao utilitarismo

A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo

do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo

utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave

possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE

2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa

tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio

para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo

(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a

compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma

accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou

intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de

Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave

responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a

autora propotildee um exemplo

Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos

8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for

something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo

30

compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9

A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte

do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o

sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que

este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a

cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude

de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso

seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito

deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim

a responsabilidade pelo ato

Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a

antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela

accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando

apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se

apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram

antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso

desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto

A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente

soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente

previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes

consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas

consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo

se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se

preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que

acontecesse

9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore

deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo

31

A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora

expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre

se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve

ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada

accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve

fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um

consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo

desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso

limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais

O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)

A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite

uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se

o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa

determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista

contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do

convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um

determinado agente consentindo maacutes accedilotildees

[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)

O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo

utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer

dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar

assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser

feito

10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd

32

A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute

de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o

fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-

la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente

controverso

214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe

A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de

MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto

moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que

encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a

vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais

proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme

afirma Jorge Garcia

A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11

O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois

no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat

(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento

Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus

operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer

salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza

fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais

Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a

felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o

11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply

recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo

12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224

13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic

33

antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute

herdeiro de Gertrude Anscombe

O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo

Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com

o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda

distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p

162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida

uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia

filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por

seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia

metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos

tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo

histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)

MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma

forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser

sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da

perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual

Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave

criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que

seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio

MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles

Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14

concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo

14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo

34

Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste

capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica

das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas

pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio

ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na

ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da

Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate

eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes

como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral

como um todo

A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na

tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia

Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave

contemporaneidade

35

3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO

DA MORALIDADE

A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas

centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento

preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que

a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na

modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o

chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos

modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre

Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais

teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da

histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram

A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta

seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de

justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da

argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois

da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que

MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo

dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo

discurso

31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE

A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante

apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O

iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias

naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia

inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos

satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum

saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto

o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece

uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se

36

esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos

conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava

significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que

possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de

livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo

rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo

reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica

quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade

da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam

apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e

recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou

quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum

sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da

compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar

sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf

MACINTYRE 2001 p 14)

A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos

da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a

filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a

historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia

natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o

material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de

fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus

fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute

agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis

natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem

Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo

que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe

suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que

sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a

linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de

fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida

37

por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de

linguagem ordenada

O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem

ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral

moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista

32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE

O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de

tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus

governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a

moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral

claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral

moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si

proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente

marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica

termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo

(VAZ 1999 p 257)

Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo

eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses

modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que

propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica

Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs

grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral

kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de

Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio

Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente

moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento

de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de

fundamentaccedilatildeo da moral

15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in

something like fully-fledged formrdquo

38

Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs

grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a

escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral

a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na

escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia

do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista

de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho

proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral

contemporacircnea

David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do

gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza

Humana o autor afirma

A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16

Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram

postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma

ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando

este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza

a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com

uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois

realizadas em virtude das paixotildees

A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver

conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees

proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant

afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em

humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant

acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da

accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma

accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute

16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature

of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo

39

vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela

praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo

puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a

moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como

uma heteronomia por exemplo a religiatildeo

A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a

indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)

A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre

Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como

paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma

face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf

MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento

e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute

preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os

estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as

determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou

princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma

posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)

Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos

diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo

fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de

que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente

independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo

se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito

Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo

de MacIntyre

Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)

A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios

para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra

40

marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui

MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um

deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da

Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos

fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia

alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse

desacordo

A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais

existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta

perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo

existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva

passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma

uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da

moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da

norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna

33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA

A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade

natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria

afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha

A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e

Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas

morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao

fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)

Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta

incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da

moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo

41

331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos

pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo

da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo

incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme

de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para

Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre

de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que

defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por

estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana

O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma

natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral

A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza

humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento

necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e

Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees

para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e

categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora

ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a

mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as

caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a

escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza

esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir

argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana

conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos

moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18

Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de

MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso

17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre

acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188

18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre

42

moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A

pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do

autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a

alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de

pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum

Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em

seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos

exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles

tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro

esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana

sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso

moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e

preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir

332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo

de natureza humana na moral moderna

O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado

segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a

noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria

desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma

relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso

MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi

ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade

Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de

caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que

Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo

homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza

essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o

homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e

Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este

esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios

43

satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o

verdadeiro fim

Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo

preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses

trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem

ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de

accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e

quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois

ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de

interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade

O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de

acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem

expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso

retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de

pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e

respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo

do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande

parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave

revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do

protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito

dando lugar a um novo conceito de razatildeo

3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo

Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do

protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo

eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem

O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)

Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo

alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade

44

MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras

entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da

razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A

criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno

tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel

ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que

a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato

psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume

O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)

A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da

razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de

Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana

seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado

destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da

natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia

que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a

catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro

fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural

dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral

Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do

discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi

apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da

noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que

provocaraacute o ulterior desacordo moral

3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII

ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada

frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum

45

Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave

terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que

natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento

sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo

das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato

conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e

consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das

possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito

eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre

A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)

MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e

protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono

da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade

Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele

qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia

E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a

felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas

claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente

todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o

homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana

representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque

na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever

3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo

pela noccedilatildeo de natureza humana

MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas

de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de

natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida

46

e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade

pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os

modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais

ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue

compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento

uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno

de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um

esquema ldquoestilhaccediladordquo

Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19

A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os

preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do

esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de

justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem

a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana

vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade

soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro

tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na

uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever

MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno

um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito

de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e

medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem

enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial

Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o

conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma

famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o

fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um

conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como

19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia

inquietante

47

indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees

valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave

falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada

O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o

segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro

Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de

juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda

da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado

de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre

conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente

e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta

de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais

3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais

Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo

realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua

finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas

expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da

compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute

bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute

justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por

conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)

Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos

A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade

de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade

lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo

Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da

invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso

acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em

questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis

Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal

48

natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles

satildeo categoacutericos

As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre

proporcionaram um desacordo moral

Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)

Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A

primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde

fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma

fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por

um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico

de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do

projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza

humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade

e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos

Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria

macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um

pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito

de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida

humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo

49

4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE

A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da

Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a

Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que

marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram

a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma

alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees

A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da

terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe

conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento

contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de

Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do

pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea

A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do

lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave

apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla

criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que

aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns

dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa

desta seccedilatildeo do trabalho

41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em

MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais

posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais

do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de

publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral

Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no

primeiro capiacutetulo deste trabalho

50

Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma

embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese

de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute

o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os

conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade

desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do

emotivismo

411 Vida social e conceitos morais

O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica

chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave

histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de

que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua

histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os

conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras

que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas

formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam

representados por estes conceitos

Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas

formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20

MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender

as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos

morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem

ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair

MacIntyre After Virtue and After acrescentam que

20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause

social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01

51

entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21

Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem

estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como

partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para

a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre

412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas

O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que

aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir

de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar

fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica

de uma ontologia

As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees

morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas

de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que

esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p

243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de

falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se

fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem

afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o

incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito

distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com

efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado

moral

A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o

modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro

21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral

concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo

52

seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber

que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos

realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem

e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de

bem MacIntyre citando George Moore questiona

O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22

O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor

que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente

simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem

como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua

presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o

indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente

age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo

que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude

413 O emotivismo

O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre

o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas

reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem

como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos

proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o

proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem

ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois

homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo

moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)

22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at

least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo

53

Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson

Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo

primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o

objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica

dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque

satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda

atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois

modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro

modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu

gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que

encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um

significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas

pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em

virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra

Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos

aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela

multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos

valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de

construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque

quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos

assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson

uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf

MACINTYRE 1988 p 248)

Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite

para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem

procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se

podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo

loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer

apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem

sua conveniecircncia

54

Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos

contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze

anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais

relevantes do autor

Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo

sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois

da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral

moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a

proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da

Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do

discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista

42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE

A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a

falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da

racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em

relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o

seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade

partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto

social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de

natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte

A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a

consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios

caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude

e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre

natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute

bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz

A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio

pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos

tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos

principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou

suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica

55

As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os

encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente

esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar

a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do

discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de

MacIntyre

421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude

Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da

vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de

MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria

MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute

enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria

Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23

Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades

entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram

completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e

caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre

percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo

Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual

Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um

23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of

importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo

24Destaque nosso

56

bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25

Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um

meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro

Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles

MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute

realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo

eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo

(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em

Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio

Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a

possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de

virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral

fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a

distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou

que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo

comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar

inteligiacutevel o conceito de virtude

Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26

Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos

da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois

25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human

telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo

26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo

57

o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute

reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo

Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios

422 O conceito de praacuteticas

Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana

referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear

pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo

das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas

natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes

satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica

Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27

Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre

apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez

mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda

crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por

semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais

50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar

Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez

Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto

que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai

encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade

especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo

conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada

27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo

58

ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir

Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf

MACINTYRE 2007 p 188)

Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa

de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido

de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que

apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou

de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a

outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e

reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade

Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que

proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando

conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de

modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e

concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua

conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois

a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta

questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre

oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma

nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos

impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28

A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel

eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia

significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens

Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias

atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute

podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no

relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de

relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como

uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute

necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos

28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo

59

estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da

justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar

disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se

necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos

bens internos

A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre

dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma

praacutetica

Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29

Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo

sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece

poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As

virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens

relativos a elas

As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de

capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens

e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade

teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da

consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir

parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica

MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas

definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as

29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo

60

proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute

pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e

consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da

histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma

dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes

Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte

maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um

reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no

contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que

reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica

predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31

Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os

bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens

internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois

o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode

muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse

sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status

sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa

Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo

proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus

resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo

se daacute de maneira uniacutevoca

423 Ordem narrativa de uma vida humana singular

O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular

eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude

Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu

conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da

seguinte maneira

30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash

but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and

even exclusive featurerdquo

61

seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32

O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada

vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade

ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV

de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da

vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica

ou ainda da teoria socioloacutegica

O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da

maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida

eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos

quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida

puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33

Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do

indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha

Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada

como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista

por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute

constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente

MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese

a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)

Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis

impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de

MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel

Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia

32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each

such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo

33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo

62

questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa

mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor

Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida

humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de

algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que

se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as

abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana

individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre

homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu

cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave

morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p

205)35

O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a

oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se

limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a

problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas

Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)

A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do

conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma

vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser

articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e

essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A

perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa

ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade

34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life

that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as

narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of

human actionsrdquo

63

somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes

de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na

forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a

compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros

Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37

A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular

pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras

Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na

unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e

palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o

indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a

essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem

a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso

enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de

respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida

moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38

A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca

narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais

primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos

isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira

caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas

A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente

caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras

vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter

pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si

A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a

noccedilatildeo macintyreana de virtude

37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms

of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo

38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo

64

As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39

O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios

nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes

necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre

conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para

o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa

para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo

necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas

esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave

vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de

vida e tempo segmentados

424 Tradiccedilatildeo

O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de

uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de

significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma

identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma

identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da

cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de

limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de

partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando

pelas particularidades busca-se o bem o universal

A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles

que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das

39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices

and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo

40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo

65

marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute

mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido

Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer

reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas

sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a

compreende e a transmite

Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas

como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de

tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma

tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente

incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que

constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior

de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura

do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as

circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura

se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica

vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e

caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio

da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi

transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa

ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo

A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do

exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as

virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia

ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes

A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem

e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem

as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo

(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia

41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument

precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made

intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo

66

das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras

que o passado tornou disponiacutevel no presente

O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo

complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem

natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias

conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral

como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria

Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da

exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de

resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter

sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral

Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista

Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo

compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria

moral

O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu

pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma

Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou

em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre

o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de

Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea

67

5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO

A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em

tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto

atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do

pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que

a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava

simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo

(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como

objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o

Aristotelismo

A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do

pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes

acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa

psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por

consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e

lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado

Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de

homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de

uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa

indicada por MacIntyre

A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a

necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos

e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as

disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa

direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem

prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre

pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira

sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma

reflexatildeo sobre a teoria dos atos

Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o

autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial

68

prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao

conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir

de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um

retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria

uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica

Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para

o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira

que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa

compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente

moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf

ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato

moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas

em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o

viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que

frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar

relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees

Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a

importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de

boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma

Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque

as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo

moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria

aristoteacutelica dos atos

A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos

fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa

filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses

elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que

se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de

Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na

tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui

conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por

MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode

69

afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo

semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se

refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade

Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute

desconhecidos deles

O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo

como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia

moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma

consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se

essa leitura cristatilde natildeo for considerada

O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o

horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes

dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui

como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem

Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia

central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de

Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com

os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava

inserida

O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo

primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o

desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de

que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que

encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se

desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica

de Aristoacuteteles

51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8

Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em

relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de

seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que

70

a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como

o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8

Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a

emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados

ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em

seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores

definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III

1 1109 b30)

511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio

A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos

voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores

na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem

Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se

apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees

praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43

Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama

a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo

indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos

navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas

accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que

satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio

entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44

Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz

que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade

natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma

classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma

43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo

71

accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo

(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por

exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante

da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os

navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a

jogaram no mar

Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato

ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve

possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda

provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1

1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e

penoso ao agente

Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-

voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf

ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o

nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o

arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se

arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria

Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de

ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em

estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer

que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem

encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de

homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do

homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto

ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente

alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os

criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se

acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento

45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν

μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo

72

Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente

a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados

natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso

dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos

por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu

arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que

conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49

512 A escolha deliberada

Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles

entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria

(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que

a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais

abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos

voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada

A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e

que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual

a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo

do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente

quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute

acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010

III 4 1112 a15)52

No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha

deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A

escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado

49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ

ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo

51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo

52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo

73

deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios

que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53

513 A definiccedilatildeo do objeto do querer

A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate

latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso

muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles

inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo

de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja

suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma

coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo

de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente

percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se

o querer diz respeito ao fim

Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54

A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que

o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-

se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este

fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para

Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a

escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute

querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que

53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου

ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo

74

o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira

considerar a escolha errada tambeacutem um bem

Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um

modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do

agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do

querer

Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese

na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve

dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que

aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6

1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto

o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o

virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude

consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos

a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a

entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer

ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica

Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56

Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem

enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma

coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a

conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo

Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)

A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma

aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se

55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo

75

relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de

bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser

humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada

uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113

a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro

em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente

bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto

faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em

relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas

O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma

relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a

phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da

phroacutenesis

Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)

O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida

que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o

ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita

de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se

deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees

Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas

mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro

que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo

dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o

homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa

A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-

se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave

visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que

posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de

bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas

57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo

76

aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais

age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano

acrescenta que

enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)

Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo

homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado

caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A

relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento

primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto

mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em

seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo

A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer

esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua

relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios

para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se

que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O

acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por

escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das

virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113

b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente

agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo

um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada

e os diversos outros atos humanos

Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser

o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-

se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES

Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que

para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio

Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso

Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um

77

certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a

sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa

Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio

natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente

obscurecer o juiacutezo

52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os

conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que

medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo

Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram

traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos

A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta

observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o

concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel

estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar

que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio

Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma

coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute

possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento

fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa

necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave

iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio

mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal

Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo

latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai

retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor

assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa

necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste

modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem

Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria

embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista

78

dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte

da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista

dos atos se justifica

521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino

O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo

de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse

de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus

O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos

atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na

bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da

semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de

Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo

O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das

paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir

aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos

mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma

apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para

posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da

reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo

amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em

consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-

se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra

profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem

se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins

O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute

pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as

accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber

uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos

humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo

sobre as paixotildees da alma

79

522 Sindeacuterese e consciecircncia

Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um

aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em

virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se

ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se

move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os

princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua

funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos

primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a

Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde

com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto

que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute

realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela

A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da

consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf

AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a

medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino

esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que

se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes

de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se

que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando

se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63

58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive

reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum

hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum

et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo

80

Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se

necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO

Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela

entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como

um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando

os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da

consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de

homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado

como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65

Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece

como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela

natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse

modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese

que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na

atualizaccedilatildeo da consciecircncia

Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66

A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de

homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute

o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma

vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel

defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um

mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar

523 O conceito de vontade

64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est

potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo

81

Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de

necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade

que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de

necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis

A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta

em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente

eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente

eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a

dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de

necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como

causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67

A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo

convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da

alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino

pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente

eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada

como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69

Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se

constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma

compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do

conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma

ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da

noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer

uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a

liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em

relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da

vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito

de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-

67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno

modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo

68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo

69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo

82

se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo

deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir

pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-

lo a querer fazer

Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma

certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute

segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a

inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite

denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-

se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel

A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem

chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel

quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em

irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute

prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da

ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela

voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o

bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal

Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido

como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute

segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de

vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir

esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar

o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q

82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em

Tomaacutes de Aquino

Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia

de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a

vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a

70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit

universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo

71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo

83

bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-

se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma

vontade livre

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira

a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos

serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana

o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese

entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a

felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la

Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre

os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer

que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua

escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de

todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica

um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem

ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de

Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em

virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra

nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor

o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade

O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais

adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade

possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de

liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua

manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que

na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento

do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre

vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade

pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o

pensamento cristatildeo

72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo

84

524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade

A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte

da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a

relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de

superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o

sentido de absoluto e relativo

A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73

Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem

desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido

a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do

intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-

se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto

considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade

Tomaacutes de Aquino esclarece

O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82

a3)74

A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica

cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no

Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a

vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas

73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo

sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo

74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo

85

Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo

status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu

operar satildeo chamados de voluntaristas

Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao

intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute

melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa

na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta

coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O

bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o

proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca

desse bem que eacute a felicidade perfeita

Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino

No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste

na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)

Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a

considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria

mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja

Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de

pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto

entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa

coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento

O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a

felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade

75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per

comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo

86

mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-

suficiente Aristoacuteteles acrescenta

Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)

A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na

totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica

num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da

felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda

revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A

eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro

lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes

de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute

realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do

cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente

adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio

525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-

arbiacutetrio

A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender

o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o

empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta

existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da

vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais

que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio

e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

posterior

O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira

parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese

geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que

87

este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do

querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute

condicionado

O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das

proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes

de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras

que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o

julgamento livre

Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76

A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo

mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma

distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o

julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que

possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento

Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas

somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto

pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela

racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio

Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes

deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem

seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma

76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter

omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo

88

em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo

impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste

sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um

determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias

inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que

ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser

por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre

e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em

cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83

a1)78

Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos

livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a

agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na

verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer

Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste

artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de

Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne

a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79

Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional

ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo

da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO

Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de

liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o

assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem

constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela

na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O

livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe

o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81

77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium

est potentiardquo

89

Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo

implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode

negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo

de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se

pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre

propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute

possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre

eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este

escolhe o mal

Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant

seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma

terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A

terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o

sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave

escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada

somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium

brutum) (cf KANT 2003 p 63)

A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-

arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e

livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo

Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber

o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo

A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da

autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute

uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de

Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade

O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na

Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e

ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude

de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de

82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo

90

telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e

autonomia

Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-

arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos

distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes

de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da

Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus

quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento

ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)

Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio

Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem

encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees

1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus

particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de

beatitude

A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o

resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo

reside na accedilatildeo em si mesma

A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83

Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela

atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes

de se pensar em termos de teleologia e autonomia

83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non

esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo

91

526 A intenccedilatildeo

A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da

filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma

meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A

intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-

se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na

questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro

artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu

objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)

Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere

agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84

Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo

se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da

alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute

propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85

Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender

ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o

movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme

ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira

primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde

que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a

intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )

Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade

promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada

na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de

Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da

intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios

alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo

84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum

est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo

92

Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas

simultaneamente Tomas de Aquino afirma

A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86

Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar

finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse

sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins

podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a

intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens

se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a

razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo

Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na

descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem

pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute

um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que

implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que

os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a

intenccedilatildeo voluntaacuteria

Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino

afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a

vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave

vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios

para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute

constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre

intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra

O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava

em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo

havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao

86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et

ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo

87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo

93

Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos

atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees

53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES

Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de

modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao

pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo

verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto

aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute

Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que

contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa

Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do

cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que

mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no

pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer

entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno

contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento

cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para

a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o

conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo

de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das

Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral

Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino

opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um

lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que

muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta

compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao

pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade

agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do

MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado

94

531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista

Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro

aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma

ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na

inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As

reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas

da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz

do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao

pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte

integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral

Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do

pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da

mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino

Assim Agostinho afirma no De Beata Vita

Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88

Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus

Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos

criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo

(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos

interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a

proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo

de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior

de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz

88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod

loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo

95

Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a

vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem

no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a

felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta

nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes

de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as

principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus

por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus

Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou

vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus

mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em

Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente

humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais

satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode

ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento

Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida

beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma

gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao

amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas

A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de

como devem agir aqueles que nela inspiram-se

As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem

praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo

A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer

uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as

Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas

escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um

espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a

concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)

Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem

como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade

e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No

96

livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando

responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes

Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a

Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico

fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que

se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte

especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica

como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu

de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas

ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou

para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos

97

5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia

Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a

seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia

tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas

satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como

Tomaacutes de Aquino responde a este problema

No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao

problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema

agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes

coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um

espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo

Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus

viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no

agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em

Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de

Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com

efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o

homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de

Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral

centrada no agente

Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos

como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que

a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo

Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre

sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A

explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia

a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)

98

Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que

se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando

toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se

atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais

suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute

possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes

de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio

de seu pensamento ontoloacutegico

Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino

adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus

atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos

conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40

2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina

o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem

a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta

hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel

secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico

Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma

parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel

tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento

sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus

natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo

(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional

constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem

de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-

arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute

justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o

permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual

Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral

conhece-se a lei divina

89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus

nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et

arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo

99

A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91

A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e

estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus

Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo

torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios

atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo

de uma parte moral na Teologia

5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista

Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a

construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute

vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei

eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo

Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual

deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos

interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute

2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais

na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula

fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo

eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo

ponto a ser aqui explicitado

O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi

nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre

esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras

liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve

bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos

depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de

91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus

humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo

100

inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de

Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de

Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como

eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo

da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o

desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida

tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p

27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude

532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo

5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista

A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral

na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos

de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que

possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a

ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia

moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees

humanas Assim ele inicia a Prima Secundae

Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92

A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta

maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma

unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para

adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave

ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar

92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad

hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo

101

do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o

homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de

poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que

o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma

imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem

de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota

ldquobrdquo p 29)

A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia

agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho

mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto

o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos

que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem

uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os

atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um

ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e

os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja

exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)

O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio

pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus

governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave

vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o

governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza

a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o

processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo

relacionadas ao ser do homem

5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes

A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as

virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do

homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que

diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas

a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos

102

habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor

diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho

agrave beatitude

A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade

substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como

recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute

como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do

corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as

coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo

(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93

A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo

que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino

espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de

Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal

Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94

Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado

a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o

assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o

homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as

criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar

o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua

vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o

homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem

nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras

93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter

complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo

103

moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu

forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As

potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus

que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o

homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz

Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95

As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem

considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as

potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da

razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a

irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta

totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar

um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza

poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente

pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma

O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar

95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes

appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo

104

inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96

Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta

determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou

conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto

noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse

nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta

de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os

princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a

ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave

concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao

corpo

Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem

seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por

essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da

justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da

fortaleza

Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das

potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente

compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e

humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em

conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma

vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age

(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)

A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que

eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se

96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum

subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo

97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa

105

pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um

lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser

adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias

virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as

virtudes

5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das

virtudes

53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo

Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o

modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila

faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo

aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees

de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude

enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os

atos excelentes requeridos pela vida beata

Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert

Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se

enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005

tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras

disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas

A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo

da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos

Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia

consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo

regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida

felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados

pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo

ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins

virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca

da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo

106

da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem

ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida

em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O

primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por

Aristoacuteteles

A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta

maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto

as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do

homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas

natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias

racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se

prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a

funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes

que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo

nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo

Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito

operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do

ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em

buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza

naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de

habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao

conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude

humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo

Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das

potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito

bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-

se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo

de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude

humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim

eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55

98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue

consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo

107

a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com

efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia

dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos

humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus

53132 As virtudes teologais

As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca

de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades

naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo

as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a

Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza

humana natildeo seria capaz de proporcionar

A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites

volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim

Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na

articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias

virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes

de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande

conta

Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano

segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento

do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo

entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no

agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute

a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo

dinacircmica entre a razatildeo e o apetite

53133 A virtude da Justiccedila

99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo

108

Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente

individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice

da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a

revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance

dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da

maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila

A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as

virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V

da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades

Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58

da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude

Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida

moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde

Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo

tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social

Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia

espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor

atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista

pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social

Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da

justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem

vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da

Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da

conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)

53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes

A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que

ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia

entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o

que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente

Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se

tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral

109

que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os

viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE

1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a

consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa

contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um

reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de

Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma

de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as

decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas

contraacuterias

A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100

A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo

podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel

sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo

de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute

possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam

atualizadas na forma de viacutecios

Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda

proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes

correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute

apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a

diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de

que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser

humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as

paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento

desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental

Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes

estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas

100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde

Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo

110

virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas

potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as

outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma

iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do

homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as

virtudes estatildeo relacionadas e conectadas

A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra

como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma

relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes

Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles

Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101

Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia

aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo

pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a

prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois

enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a

retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia

quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo

virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes

Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes

dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo

Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais

importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas

entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a

caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes

S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a

101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which

moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo

102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo

111

unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas

eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade

A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de

Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes

intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-

II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por

meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a

prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite

denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as

teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas

se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes

teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e

o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees

53135 O habitus e vontade livre

Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave

concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se

estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute

uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)

A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem

mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo

contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do

determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas

capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira

indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos

Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam

112

indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)

Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se

possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de

liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o

melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente

da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103

Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de

liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma

substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em

Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem

Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo

aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo

iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a

capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os

atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre

Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo

nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza

indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade

A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre

arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio

pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de

S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo

significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude

a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por

um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade

por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples

reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta

conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que

103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO

2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est

id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo

113

Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)

A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o

posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como

o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente

que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade

possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir

53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo

Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao

conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo

Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo

enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino

acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo

a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de

accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins

Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)

A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira

os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele

tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais

adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana

nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei

eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos

Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela

razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza

Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem

ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006

p 398)

114

53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa

Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se

encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas

as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute

existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo

Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica

e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes

Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105

Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo

estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma

105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum

quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo

115

essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua

vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na

exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do

ser humano

Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no

homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres

humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no

aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora

as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas

potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa

tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila

(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)

Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da

consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no

homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo

e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de

praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar

a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das

mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito

de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de

maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas

suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de

indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do

conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles

o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a

significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui

que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos

proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)

532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo

A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia

o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a

116

articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral

Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia

aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da

Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo

Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de

integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um

equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e

o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a

questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude

A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica

da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes

O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de

natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio

interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num

universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo

(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o

pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo

ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da

ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus

eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele

retorna

A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute

em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles

Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista

da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da

ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem

da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto

uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte

dela

Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se

compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico

Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o

117

teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)

No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur

mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da

Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a

Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria

pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que

aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de

uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do

cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador

Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o

Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim

uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma

condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem

atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo

homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da

Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja

o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude

cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural

Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica

constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os

atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o

desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da

natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em

Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real

existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)

106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio

questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17

118

A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica

dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou

cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica

aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia

de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos

modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave

Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e

da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais

aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor

do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo

do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de

entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-

se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa

Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou

um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o

foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica

Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente

harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua

teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das

conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica

Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se

encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor

encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo

de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo

compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo

eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das

criaturas sensiacuteveis

119

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto

de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo

desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma

heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui

desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes

proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos

forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica

O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia

denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta

expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente

constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem

contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo

desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua

indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor

afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a

unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino

realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica

e o Aristotelismo

Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo

tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo

satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de

modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que

incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como

pensamento epocal nas palavras de Hegel

A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento

de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a

continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises

Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral

contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre

120

a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo

poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um

caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em

relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes

No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o

modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e

quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind

Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves

morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o

pensamento de MacIntyre eacute devedor

A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude

com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a

moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e

o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de

sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa

A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino

intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta

parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a

compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em

seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave

psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes

Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance

filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e

da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto

A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave

contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever

pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de

si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees

agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a

uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas

expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que

por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por

outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas

121

Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute

possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico

contemporacircneo

Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes

eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo

da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um

achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver

justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo

emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por

tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos

agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco

Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre

na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas

agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e

Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe

explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees

relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma

psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo

serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e

nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino

Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em

primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um

desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos

empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais

posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as

teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute

propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um

discurso moral

Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a

fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa

adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as

virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu

na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se

122

compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de

Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes

de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre

pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de

Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais

desta pesquisa

Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes

tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral

O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo

com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um

agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A

questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio

ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem

e contribui na sua realizaccedilatildeo

Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a

ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela

necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente

em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia

conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu

agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma

do ser humano

Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um

conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que

internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma

estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida

pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa

corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos

outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila

O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude

sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles

quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do

homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem

que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros

123

O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se

constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia

vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave

fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes

A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios

praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros

princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento

acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o

conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para

desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso

conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo

A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento

constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a

solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo

do homem como animal racional implicaria necessariamente num

funcionamento constante da consciecircncia

As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num

sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na

independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do

proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade

mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo

racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo

aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o

movimento interno do querer fazer

Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em

vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade

nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude

promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do

divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a

concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino

compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o

intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que

eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada

124

por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo

implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre

Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo

Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca

de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido

designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo

enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus

voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse

sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que

implica posteriormente em uma unidade da vida moral

No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute

presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo

consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e

em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos

concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo

desenvolvimento das accedilotildees

O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em

que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo

filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos

Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos

termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia

moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na

proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica

quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento

cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia

inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento

contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu

processo de fundamentaccedilatildeo

A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias

iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo

permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram

forjados no seio do pensamento cristatildeo

125

Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes

passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute

como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de

encontro dos dois filoacutesofos

Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que

de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que

compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral

e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem

verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto

uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que

existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das

virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que

ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre

posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma

psicologia filosoacutefica

O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em

encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu

conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana

que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos

na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas

Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes

como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas

circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento

histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas

Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio

MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de

Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna

entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma

hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma

consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade

das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma

vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave

noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo

126

similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma

unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das

virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos

foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de

consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo

pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram

127

REFEREcircNCIAS

ABBAacute Giuseppe A filosofia moral como investigaccedilatildeo sobre a melhor vida a se conduzir exposiccedilatildeo breve e completa sobre o enfoque eacutetico no pensamento de Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Aquinate n 6 p 1-44 2008

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