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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
Águas santas da Terra Indígena Xapecó/SC
Terezinha Guerreiro Ercigo1
Helena Alpini Rosa2
Resumo: O objetivo desta pesquisa é relatar a importância das águas santas para os
Kaingang da Terra Indígena Xapecó/SC em suas práticas religiosas e de cura. Os mais
velhos (kófa) contam que as águas santas existem há muitos anos, desde o surgimento do
povo Kaingang, e também apareceu na época durante e pós conflito do Contestado,
(segunda década do século XX) um santo com o nome São João Maria ele andava nas
terras entre os Kaingang realizando rituais de reza e cura. Três fontes de águas santas foram
deixadas por ele e por isso, segundo a tradição, nunca se acabam, pois são águas abençoadas
que todos devem sempre beber, e fazer o batismo das crianças. Na Terra Indígena Xapecó
existem quatro fontes de água santa, que se localizam nas aldeias: Barro Preto, Sede e
Pinhalzinho, sendo que uma dessas águas santas foram benzidas pelos Kujá e se tornou
sagrada, as outras fontes foi São João Maria que passou e abençoou. Até hoje essas águas
são respeitadas e cuidadas. É o lugar onde os Kaingang fazem o batismo das crianças e
utilizam para o consumo, no entanto há um desrespeito por parte de algumas pessoas que
acabam desmatando para fazer lavouras no entorno dessas fontes, provocando inclusive
contaminação por agrotóxicos. Os mais velhos (kófa), dizem que por ser uma água sagrada
ela nunca terá fim. Considera-se importante e necessário desenvolver essa pesquisa para
mostrar a importância dessas fontes e seus benefícios para a saúde dos Kaingang, havendo
mais respeito e conscientização em protegê-las. Essa pesquisa será desenvolvida através da
metodologia da História Oral com entrevistas às pessoas mais velhas (kófa) Kaingang, pois
são eles os detentores desse conhecimento.
Palavras-chaves: Águas santas, Monge João Maria, Kujá, cultura.
O presente artigo tem por objetivo principal relatar a importância das águas santas
para os Kaingang da Terra Indígena Xapecó/SC em suas práticas religiosas e de cura. Para
tanto, se desenvolveu uma pesquisa, através da metodologia da História Oral, com entrevistas
realizadas com as pessoas mais velhas Kaingang, que tiveram alguma experiência relacionada
às águas santas e são eles os detentores desse conhecimento.
A Terra Indígena Xapecó/TIX se localiza no oeste de Santa Catarina, com 15.623
hectares de terra, onde vivem aproximadamente 7000 indígenas Kaingang e uma pequena
parcela de Guarani, distribuídos em 16 aldeias, ou comunidades que são: Sede ou Jacu,
1 Acadêmica da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, UFSC, Bolsista Iniciação Científica do
Observatório da Educação/OBEDUC/ CAPES/DEB/INEP – LABHIN UFSC. [email protected] 2 Orientadora, Doutoranda do PPGH/UFSC, Bolsista de doutorado do Observatório da Educação/OBEDUC/
CAPES/DEB/INEP – LABHIN UFSC. [email protected]
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
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Pinhalzinho, Campos Oliveira, Água Branca, Baixo Samburá, Barro Preto, Fazenda São José,
João Veloso, Matão, Paiol de Barro, Guarani, Limeira, Manduri, Olaria, Cerro Doce e
Serrano. Em toda a TIX existem nove escolas, duas escolas de Educação Básica, com Ensino
Médio e 7 de Ensino Fundamental, sendo que entre as sete escolas há uma escola Guarani.
Ainda há a presença de diversas religiões com predominância das religiões pentecostais.
(OBEDUC/CAPES/DEB/INEP/LABHIN, Relatório parcial, 2013).
A TIX pertence aos municípios de Ipuaçu e Entre Rios, no Oeste do estado de Santa
Catarina, no cruzamento dos Rios Chapecó e Chapecózinho, com várias nascentes em seu
interior. O relevo é de planalto com predominância de agricultura extensiva, com o cultivo de
soja e milho, apenas próximo às moradias que há agricultura de subsistência, como plantação
de mandioca, batata-doce, amendoim, feijão, milho cateto, abóbora, hortas e fruteiras.
No passado, viviam da caça de aves e mamíferos, da pesca e coleta. Dentre os
alimentos coletados destacavam-se pinhão, palmito, mel, frutos silvestres, larvas e
erva-mate. Coletavam ainda plantas medicinais, gramíneas e cipós utilizados na
confecção de cestaria, cordas e outros objetos de uso cotidiano ou religioso.
(MURARO, 2003, p 17.).
Existe um percentual baixo de mata nativa próxima aos rios, igualmente a mata de
araucárias é bem limitada se comparada ao início do século XX. Isso se deve a fato da
exploração da madeira pelo Serviço de Proteção ao Índio /SPI e depois pela Fundação
Nacional do Índio/ FUNAI.
Da mata de pinheiros que havia restaram bem menos de 10% - Antes da ampla
exploração de madeireira da região, o pinhão fazia parte da alimentação básica dos
Kaingáng. O hábito da FUNAI engajar-se numa pratica expansionista permitiu com
que a exploração madeireira entre as décadas de 40 e 70 chegasse numa quase
dizimação das antigas matas (Santos, 1969) e, especificamente no PI Xapecó em
torno de trinta madeireiras ali atuaram, entre 1964 e 1966, sendo que o próprio SPI
promovia ocorrências públicas para o corte dos pinheiros (Santos, 1981). Sessenta
mil pinheiros, aproximadamente foram derrubados na reserva indígena. (Santos,
1969:63-6; APUD: OLIVEIRA, 1996, p 36, 38.)
A cultura Kaingang baseia-se na tradição oral que são passados de pais para filhos,
toda cultura, costumes e conhecimento são transmitidos pelos kófa3 da T.I que são os sábios
que conhecem a natureza e seus benefícios e tudo o que ela tem a nos oferecer tanto para
alimentação como para a saúde. Ainda hoje são utilizados os remédios do mato, alguns
alimentos como folhas e raízes, coleta do mel, caça e pesca, mas em menor quantidade, pois
3 Kófa é uma palavra Kaingang, é usada para identificar o mais velho.
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algumas práticas culturais estão limitadas devido ao espaço territorial e os recursos naturais
serem poucos.
A economia para o sustento das famílias é baseada na agricultura e trabalho
assalariado dentro e fora da aldeia, bolsa família, aposentadoria; algumas famílias ainda
fazem a confecção de artesanatos para venda, tais como, tuias, cestos, balaios, cocares,
colares, brincos, lança, arco e flecha, presilha para o cabelo, anéis, pulseiras, sendo que para a
confecção dos mesmos é retirado matéria prima da natureza, entre elas a taquara, cipó,
sementes de timbó, semente de uva japonesa, rosário, penas de aves, semente de cinamomo,
etc. Na TIX existem dois tipos de floresta, a floresta ombrófila mista constituída por
araucárias e a floresta estacional decidual caracterizada por árvores de grande porte que em
certas épocas do ano caem às folhas.4
Através das peculiaridades culturais, da língua, dos costumes e das tradições, e pelos
conhecimentos serem transmitidos de forma oral pelos kófa da comunidade, o tema
desenvolvido a seguir baseia-se na história oral contada pelos detentores de toda sabedoria da
cultura Kaingang, os kófa, a respeito das águas santas existentes na TIX. Estas águas santas
dividem-se em duas e tem igualmente dois significados. A primeira refere-se às águas santas
deixadas pelo Monge João Maria, de tradição e crença católica e a segunda é a água santa dos
Kujá5, de tradição e crença Kaingang.
Na TIX existem três águas santas de São João Maria que se localizam nas aldeias
Barro Preto, Sede ou Jacu e Pinhalzinho, e uma água santa benzida pelos Kujá que também se
localiza na aldeia Sede ou Jacu. Essas águas são consideradas pelos Kaingang como sagradas,
capazes de curar os males da alma e do corpo. Elas existem até os dias atuais.
São João Maria, como é chamado, era um monge do período e oriundo dos conflitos
do Contestado, que andava entre os Kaingang da TIX tempos atrás. Segundo Valmir Muraro
“Os mitos e as crenças continuaram na tradição oral e escrita das gerações que seguiram”.
(MURARO, 2003, p 88.). Assim aconteceu com os Kaingang da TIX, até hoje levam seus
ensinamentos na memória e contam que ele fazia práticas de cura através de rezas e de ervas
medicinais. Era um senhor de idade muito simples, ele não tinha morada, passeava pelas
casas, onde havia pessoas bondosas ele chegava, e se alguém oferecia alimento ele pedia que
lhe fizessem couve, era somente isso que ele comia, também não dormia na casa de ninguém,
4 Aulas Expositivas do Curso de licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC, na disciplina de
Biodiversidade e Socio-diversidade, com o Professor Nivaldo Peroni e Natalia Hanazaki, semestre 2012.1. Anotações
pessoais. 5 Kujá – Líder Espiritual Kaingang, rezador, benzedor, responsável pelas curas espirituais e físicas.
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gostava de conversar com as pessoas mais velhas que acreditavam nele, fazia suas pregações
sobre o futuro e logo ele desaparecia novamente e ninguém mais o via, a não ser quando
alguém estava precisando de sua ajuda. Alguns o encontraram no meio da mata sentado ao
redor de um pequeno fogo de chão, assim diz Bepino Ercigo de 79 anos de idade. (ERCIGO,
2014, Entr.)
O curioso é que segundo alguns autores não era somente um monge, mas vários que
respondiam ao nome de João Maria. “Não há, entretanto, possibilidades de se identificar
quantos “monges” percorreram o planalto catarinense, sob o nome de João Maria.” (SANTA
CATARINA, 1987, p 80.).
O monge que fazia as andanças na TIX, João Maria desapareceu, mas sua crença
permaneceu, e até hoje os Kaingang o tem como um santo e acreditam no seu poder de cura e
nas águas que ele benzeu, principalmente os mais velhos ainda dizem que ele não morreu e
que não voltará mais no mundo, porque existem muitos pecados por parte dos humanos.
Contam que o próprio monge dizia que ele não poderia mais ficar entre os humanos, pois
estava ficando tudo escuro e tinha muitos espinhos no caminho e estava chegando muitas
coisas erradas, remédios que não eram bons, muitas religiões, e o povo estava desacreditando
nele, então não poderia mais continuar andando pelo mundo, mas dizia para todos terem fé
nele e fazer o uso das águas santas que ele deixou, pois eram benzidas e podem curar doenças.
(ERCIGO, 2014, Entr.).
Até nos dias atuais existe as águas santas que ele benzeu. Essas águas são sagradas
pelo seu valor espiritual e de cura; nessas fontes são realizados os batismos das crianças, é
uma água boa, fresca e límpida e nunca tem fim, é boa para beber e se lavar. Segundo o Kujá
Claudemir Pinheiro da TIX, com essa água é bom molhar a cabeça três vezes pensando em
São João Maria, isso ira eliminar os pensamentos maus e clarear as ideias, isso livrará a
pessoa das coisas negativas. (PINHEIRO, 2014, Entr.).
Conta seu Cezário Pacífico que:
Antigamente o Santo São João Maria, andava por aqui na nossa Terra Indígena
Xapecó ele vinha do guarani e passava por paiol de Barro em direção no Banhado
Grande passear em seu compadre, ele tinha um compadre no Guarani e um no Paiol
de Barro e no Banhado Grande (...)Ele era um senhor já de idade com barbas bem
branca já um senhor bem humilde mesmo, quando ele vinha do Guarani em direção
ao Banhado Grande ele sempre dormia ali no pozinho, onde tem um oio da água e
nesse lugar ele sempre dormia, ali então ele fazia sua alimentação pra se alimentar
ele tinha uma pequena panelinha para fazer comida pra ele, e sua alimentação era
couve então depois de se alimentar ele bebia água nesse oio de água e como ele era
um santo ele sempre benzia esse oio d’água pra ele beber(...).(PACÍFICO, 2014,
Entr.).
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De acordo com o relato do senhor Cezário Pacífico, o monge São João Maria era um
santo que andava entre os Kaingang tinha amizades e alguns eram compadres dele, ele andava
de um lugar para o outro não tinha morada certa, dormia próximo a um olho d’água e antes de
beber essa água, ele a benzia. A relação de compadrio entre os Kaingang é muito forte na
cultura, a partir do batismo da criança essa relação de compadres torna-se de muito respeito
para um com o outro.
O monge João Maria era um senhor bem de idade, bem humilde e com muita
sabedoria, sabia muitos remédios relacionados às ervas medicinais ou remédios do mato, mas
o bem mais precioso que ele deixou foi as “aguinhas”, ou seja, as águas santas. Quando ele se
refere que ele dormia no pozinho, é o nome do local onde tem essa fonte de água, nome que
os Kaingang deram a esse lugar.
Ainda há muitas outras histórias contadas sobre o Monge São João Maria, ele foi uma
pessoa muito respeitada entre os Kaingang devido aos seus ensinamentos e sua grande
sabedoria, ele passou por muitas casas, como explica o senhor Bepino Ercigo, de 79 anos de
idade, que um dia esse velhinho chegou a sua casa onde morava com sua mãe seu padrasto e
seu avô, convidaram-no para entrar, e ele pediu se tinham sal, então ele pegou um punhado de
sal de um pequeno saco que estava pendurado próximo ao fogo de chão e deu a ele. Então
com aquele sal nas mãos abriu um livrinho de orações e começou a ler e ao mesmo tempo
colocava um pouquinho daquele sal na sua boca, nesse momento eles estavam cozinhando
canjica no fogo de chão e ofereceram para ele comer, então os respondeu que não estava com
fome que aquele sal foi o suficiente. (ERCIGO, 2014, entr.).
Águas Santas como fonte de cura
Antigamente não existiam postos de saúde e nem remédios de farmácia, então havia
mais valorização das ervas medicinais e das águas santas como fonte de cura para as
enfermidades das pessoas, quando alguém ficava doente era o Kujá que era procurado ou as
benzedeiras. Sobre esses aspectos, Claudemir Pinheiro relata que:
Então pra mim na nossa cultura as águas santas tem um grande significado, pra
todos nós tanto os kujás quanto os que não são kujá eles preservam a água desde,
desde que veio o surgimento do povo Kaingang conforme agente tem observado
essas águas santas eles existem desde o passado, por exemplo, tem um kujá lá na
comunidade quando ele ia fazer um trabalho pra, pra curar um doente, uma criança
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ou qualquer mais outra pessoa mais velha ele sempre venzia a água, sempre pegava
a água no poço ou na fonte e trazia ali e colocava perto dos seus santos e fazia seus
trabalhos pra abençoa a água pra dar pra aquele paciente, então sempre existiu a
água santa pro povo Kaingang, sempre existiu além daquelas outras águas que nem a
água santa de São Joao Maria ela, ela veio acontecendo junto com o povo Kaingang
então eles sempre crêem nas águas santas desde o passado e também no passado eles
cultivavam mais ou eles usavam mais essas águas como fonte de cura, é no passado
não tinha, por exemplo, posto de saúde não existia então eles confiavam bastante nas
ervas medicinais, junto com as ervas medicinais entrava as águas santa é pra cura os
paciente tanto criança como pessoa mais velha então eles davam pra tomar , davam
pra lavar, lava a cabeça lava o rosto undé que tivesse ferimento era só fazer
puxamentos com aquela água que iria curar (...). (PINHEIRO, 2014, entr.).
Como podemos perceber, as águas santas fazem parte da cultura Kaingang desde o
surgimento do povo Kaingang, sempre foi utilizada para tratamentos de doenças, através da
ingestão ou banhos e até mesmo “puxamentos”, aquelas pessoas que tem fé sempre foram
curadas. É notável a relação da cultural Kaingang com as águas santas, pois a água é um bem
sagrado que pertence à mãe terra e sem ela não vivemos. A água corrente elimina os males do
corpo. Antes ainda de o monge João Maria aparecer já existia águas santas para os Kaingang,
era a água que os Kujá benziam. O Kujá ainda nos relata que já fez curas com um simples
copo de água que ele benzeu com suas orações.
(...)Acho que a sete oito anos atrás na minha casa mesmo eu dei uma água santa
dessa pra uma mulher que foi lá, ela tava bastante doente e que tava parece que
enxergando a morte ela dizia que via a morte nela, ela tava tomada do amarelão e
com uma simples água que agente venzeu pra ela eu, eu dei pra ela um copo de água
pra ela tomar e a tarde ela veio buscar mais um pouco de água e foi tomando aquela
água com uma semana que ela tava tomando aquela água santa, ela melhorou até
hoje veio agradecer eu mesmo lá em casa pela cura que eu fiz pra ela com uma
simples água então as águas santas elas faz milagre desde que a pessoa confie, desde
que ela tenha fé, por exemplo essa mulher que chegou lá em casa ela era uma mulher
evangélica, ai eu chamei ela do lado e perguntei pra ela né, eu disse mas a tua
religião não vai impedi, digo se você ta pensando na tua religião e pensa na água
santa não adianta nem você pensa na tua religião e nem na minha você pensa em
dois lado, você não tem, por exemplo não tinha um lado tem que ter um lado ou bem
do lado do kujá ou da religião dela, por que ela era evangélica ai ela disse que ela
confiava em mim, que na minha pessoa como um kujá que tava me preparando na
época e agente fez o remédio pra ela e ela melhorou(...) (PINHEIRO, 2014, entr.).
Existem hoje, dentro da TIX muitas religiões evangélicas e pentecostais, são várias as
doutrinas e muitas delas influenciam nos costumes proibindo as práticas de cura próprias da
cultura; muitas vezes são barrados pelo preconceito e a descriminação, considerando ritos
pagãos e dizem que não é certo, que a coisa certa a se fazer é frequentar a igreja, pois lá
encontrarão a cura para todos os males. No entanto, os conhecimentos tradicionais são
passados de geração em geração. Há muitos anos, que o povo Kaingang luta para manter viva
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a cultura até os dias atuais, fica bem claro no relato do Kujá Claudemir Pinheiro que há um
saber muito profundo que envolve a natureza e a fé da pessoa.
(...)São João Maria sempre dizia para o pai de Cezário(...) aqui vai ficar duas águas
santas pra vocês então quando ficarem doente bebam dessas águas santas que vocês
sempre vão ficar curados de todo mal(...) a pessoa que tem fé, tando doente bebendo
dessa água é curada e o caeté que fica na beira dessa fonte também serve de remédio
pra qualquer dor que você sente no corpo, também o barro do fundo da fonte
também serve de remédio(...)(PACÍFICO, 2014, entr.)
Percebe-se o valor sagrado que há no local dessa fonte, não só a água é santa, mas a
natureza no seu entorno, algumas plantas que tem perto da fonte é remédio assim como o
barro do fundo do poço também é remédio capazes de curar qualquer dor que a pessoa sentir.
Desde o contato com o não índio uma série de fatores influenciaram nos costumes e
crenças dos Kaingang, principalmente com a chegada dos postos de saúde e os remédios de
farmácia as pessoas deixaram de usar com frequência as águas santas e as ervas medicinais.
No entanto, é sabido que mesmo com essas novas práticas de cura e cuidado com a saúde, há
muitas pessoas dentro da TIX que ainda acreditam nas águas santas e faz uso delas para curas,
especialmente relacionadas ao estado de espírito, à harmonia da mente com o corpo e
relacionadas à fé. Mas o Kujá ainda diz:
(...) as pessoas mais velha da comunidade ainda eles vão bastante nessas águas santa
que existe, eles vão faze um propósito uma coisa ou outra, faze um pedido por
exemplo, tem uma criança doente, tem varias mães que faz pedido lá nas águas
santa pra criança pra ela não fica doente, ela faz um pedido por exemplo de um
menino, faz um pedido pra ele crescer sem fica doente pra ele crescer com saúde ela
faz o pedido nas água santa na água São João Maria ou qualquer outra água santa
que tem, que ela só vai cortar o cabelo a partir dos sete anos de idade, ai a partir dos
sete anos de idade ela corta o cabelo dele, ai pra ele crescer com saúde e não ficar
doente pra família. (PINHEIRO,2014,entr.).
Próximo à água santa há uma capelinha com vários santos do panteão católico dentro e
realmente tem vários pedaços de cabelos, são mães que fazem pedidos para que seus filhos se
curem ou nunca fiquem doentes e para isso se realizar prometem cortar o cabelo deles
somente quando completarem sete anos de idade, então quando o cabelo é cortado é levado
até essa capelinha e deixado lá, como que a promessa foi cumprida e que a benção foi
recebida.
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Águas Santas e sua Conservação
Fotos da água santa da Aldeia Barro Preto, conhecida como
“Pozinho”. Acervo LABHIN, 25/04/2014. Imagem de Nathan
Marcos Buba.
Essas fotos são da água santa de São João Maria que se localiza na Aldeia Barro Preto,
pode-se visualizar que próximo, há uma capelinha construída de alvenaria e sempre há uma
identificação como essa, dentro há santos do panteão católico. Essa é uma água abençoada e
protegida, é límpida e fresca, no entorno há pouca mata devido ao aumento das lavouras,
somente as pessoas mais velhas da comunidade têm maior respeito e cuidado por essas águas,
ensinam aos mais jovens de seu alto valor de cura por ser abençoada, mas não são todos que
acreditam e respeitam. O local onde se encontram essas águas, é sagrado, é calmo, tranquilo e
de difícil acesso, a pessoa encontra alguns obstáculos para chegar até lá, mas no final a
recompensa é valiosa, pois se sente uma paz inexplicável, aliviando todo estresse que há na
pessoa.
(...)Hoje a água santa protegida ela não deve ser limpada água santa protegida ela
tem que ficar dentro da mata virgem ela, por que a coisa que ela é sagrada ela nunca
deve ser fácil pro homem, ela nunca tem que ser fácil pro homem chegar lá, pro
homem chegar lá naquele local ele tem que fazer a sua prece ou seus trabalho, ele
tem que ter trabalho pra chegar então se você quiser ir numa água santa que esteja
ali no limpo aquele não é um trabalho que agente ta fazendo então as água santa ela
tem que ta dentro da mata pra ela ta bem protegida e não no limpo conforme agente
vem vendo hoje tem muitas água santa que estão desprotegidas mas em alguns
lugares ainda agente leva trabalho pra chegar lá, aquilo é agua santa de verdade por
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que a água santa ela não pode ficar a vista de qualquer pessoa ela tem que ta a vista
das pessoas fiel a ela né, se não ela, ou aquela pessoa que não é fiel a água santa vai
acaba estragando a nascente, vai acaba né, (...) Tirando madeira dali desprotegendo,
ela tem que ta 100% protegida. (PINHEIRO, 2014, entr.).
Devido aos tempos modernos não são todas as pessoas que preservam as águas santas
e somente os mais velhos cuidam dessas fontes, mas há um desrespeito por parte de algumas
pessoas que desmatam para fazer lavouras e ainda utilizam agrotóxicos contaminando no
entorno dessas fontes e desprotegendo-as com o desmatamento. Seria necessário que
houvesse a conscientização de todos em proteger esse bem natural deixado para o povo
Kaingang da TIX, respeitando os limites de mata ciliar no entorno das nascentes que
inclusive, está protegido por lei.
O Batismo nas Águas Santas
Os batizados nas águas santas sempre acontecem e são sagrados, são batizadas
crianças às vezes até os adultos, também acontece o batismo da pessoa que está sendo
preparada para ser Kujá um ritual de muita devoção por ser num local sagrado e abençoado.
Esse batismo é muito importante na preparação de um Kujá. O batismo das crianças também é
muito importante para a sua espiritualidade a partir do batismo seu espirito esta livre de coisas
ruins relacionadas à saúde. Seu Cezário Pacífico conta que, “São João Maria sempre dizia
para o seu pai, quando os filhos de vocês nascerem vocês sempre batizem eles nessas águas
santas, fazendo isso eles nunca ficaram doentes e vão crescer com saúde muito boa”.
(PACÍFICO, 2014, entr.)
Esse batismo nas águas santas é realizado por um padre, os padrinhos e os pais da
criança, os padrinhos são escolhidos de acordo com as amizades da família, o compadrio é
muito respeitado entre os Kaingang, os padrinhos tornam-se protetores da criança lhes dão
conselhos para o bem e também são muito respeitados pelo afilhado (a) pela vida toda.
O batismo de uma pessoa que está sendo preparada para ser um Kujá é um ritual que
faz parte da sua formação envolvendo a espiritualidade, a partir do batismo nas águas santas
ele estará protegido por uma força espiritual maior que ajuda ele nas suas práticas de cura. O
batismo é feito pelos velhos Kujá. Mas é importante ressaltar que a formação de um kujá não
envolve somente o batismo, a pessoa escolhida para ser Kujá ela já é escolhida desde o ventre
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de sua mãe e a vida toda é preparada para assumir os conhecimentos do Kujá mais velho é
sempre este que ensina e prepara o mais novo.
Considerações finais
Através dessa pesquisa foi possível perceber que há uma crença muito forte em
relação às águas santas deixadas por São João Maria e as águas benzidas pelos Kujá. Para os
Kaingang são águas abençoadas capazes de curar doenças desde que a pessoa tenha fé, por
isso da importância da preservação dessas fontes.
Devido à influência das diversas crenças existentes dentro da TIX, a prática de cura e
de batismo tornou-se momentos esporádicos, mas cercados de grande movimentação dentro
das comunidades e pelas pessoas que ainda cultivam os valores, os costumes e a tradição
Kaingang. Há, mesmo entre os crentes de outras religiões, um respeito recíproco para a
participação nos rituais e ainda há os que crêem em segredo.
As fontes de águas santas ainda existem na TIX. É o lugar onde os Kaingang fazem o
batismo das crianças e utilizam para o consumo. Os kófa, dizem que por ser uma água sagrada
ela nunca terá fim. Considera-se importante e necessário desenvolver essa pesquisa para
mostrar a importância dessas fontes e seus benefícios para a saúde dos Kaingang, havendo
mais respeito e conscientização em protegê-las.
Com essa pesquisa foi possível perceber a importância da água santa nos rituais de
cura, pois com um simples copo de água benzida é possível curar uma pessoa da dor que ela
esta sentindo, mas a pessoa precisa acreditar e ter fé na água ela esta tomando. Não só a água
santa é sagrada, mas o local onde ela esta se torna sagrado muitas vezes de difícil acesso para
o homem, não é qualquer pessoa que pode chegar até lá, então por isso ela está protegida, pelo
motivo de que muitos não acreditam e podem fazer algum mal no local, como desmatando,
fazendo lavouras, levando animais para beber água nessa fonte, destruindo a fonte.
Então tudo o que existe no entorno dessa fonte de água sagrada é abençoado, sendo
que o barro que tem no fundo do poço de água é remédio os caeté que tem próximo também é
remédio. Essas águas tem um valor inexplicável para os kófa Kaingang, que devem ser
passados aos jovens de hoje para que respeitem e protejam essas fontes para as futuras
gerações também conhecerem e usufruírem desse bem valioso.
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Há uma série de fatores da ação humana que interferem na degradação dessas fontes,
entre eles estão o desmatamento, as lavouras, o uso de agrotóxicos, a criação de gado, seria
necessário que algumas pessoas respeitassem essas águas por serem sagrada e abençoada.
Até os dias atuais está viva na memória dos kófa Kaingang, quando o monge João
Maria esteve entre eles lhes passando os seus conhecimentos de cura, através de ervas e
rezas, ele deixou as águas santas que ele santificou tornou-a santa para o uso dos Kaingang
para curar suas doenças do corpo e da alma. Ainda recomendou que quando as crianças
nascessem que os pais as batizassem nessas águas então elas cresceriam saudáveis nunca
ficariam doentes. Já existia uma relação de compadrio nessa época muito respeitada, pois
segundo Seu Cezário Pacífico seu pai era compadre de São João Maria.
A partir da entrevista com um dos Kujá da TIX, foi possível perceber que a fonte de
água benzida pelos Kujá torna-se uma água sagrada pelo seu valor espiritual e de cura,
qualquer água pode ser sagrada desde que seja benzida por um Kujá, essa água é abençoada
para a pessoa beber e curar a dor que está sentindo, mas é necessário que ela acredite nos
conhecimentos do Kujá e tenha fé na água. Então a relação da cultura Kaingang com a
natureza é muito forte, e uma das coisas sagradas é a água, há muitas outras coisas a serem
registradas, pois não foi possível abordar muitos assuntos, a água pode tirar muitos males do
corpo humano aliviar o espírito da pessoa libertando-a das coisas negativas, por isso, é preciso
protegê-las enquanto elas existem.
O batismo da pessoa que está sendo preparada faz parte de um dos rituais de passagem
no qual são os Kujá mais velhos da TIX que fazem o batismo, a partir disso a pessoa que vai
ser Kujá está acompanhada pela vida toda por uma força espiritual que a protege e ajuda em
suas práticas de cura. Mas lembrando de que o batismo é só um dos rituais de passagem da
pessoa escolhida para ser Kujá, há muitos outros, pois a pessoa é escolhida desde o ventre de
sua mãe e é preparado pela vida toda para ser Kujá. Isso, no entanto, é tema para próximas
pesquisas.
Referências
ERCIGO, Bepino. Entrevista concedida a Terezinha Ercigo, na Comunidade de Linha
Limeira, TI Xapecó, SC, em 04 de junho de 2014.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
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MURARO, Valmir. História de Santa Catarina para ler e contar. Florianópolis, SC:
Ed.Cuca Fresca,2003.
OLIVEIRA, Maria Conceição de. Os curadores kaingáng e a recriação de suas práticas:
estudo de caso na Aldeia Xapecó (oeste. S.C). Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. UFSC1996. Tese de Mestrado.
PACÍFICO, Cezário. Entrevista concedida a Dalgir Pacífico, na Aldeia Sede ou Jacu, na
Terra Indígena Xapecó, em 09 de maio de 2014. Cedida a Terezinha Guerreiro Ercigo.
PINHEIRO, Claudemir, Entrevista concedida a Terezinha Guerreiro Ercigo, na
Universidade Federal de Santa Catarina UFSC, em 19 de maio de 2014.
SANTA CATARINA, Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Roberto Marinho.
Contestado. Rio de Janeiro: Ed Index. 1987.