5
É pau, é pedra, é o fim do caminho É um resto de toco (stub, stump), é um pouco sozinho É um caco (bit, shard) de vidro, é a vida, é o sol É a noite, é a morte, é o laço (lazo 1 ), é o anzol (fishhook) É peroba do campo, é o nó da madeira Caing, candeia (candeia), é o !atita "ereira É madeira de vento, tombo da ribanceira () É o mistério profundo, é o #ueira ou n$o #ueira É o vento ventando, é o fim da ladeira É a viga, é o v$o, festa da cumeeira % É a chuva chovendo, é conversa ribeira & 'as guas de março, é o fim da canseira É o pé, é o ch$o, é a marcha estradeira "assarinho na m$o, pedra de atiradeira É uma ave no céu, é uma ave no ch$o É um regato, é uma fonte, é um pedaço de p$o É o fundo do poço, é o fim do caminho o rosto, o desgosto, é um pouco sozinho É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto É um pingo pingando, é uma conta, é um conto É um pei e, é um gesto, é uma prata brilhando É a luz da manh$, é o ti*olo chegando É a lenha, é o dia, é o fim da picada É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada É o pro*eto da casa, é o corpo na cama É o carro enguiçado, é a lama, é a lama É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma r$ É um resto de mato, na luz da manh$ +$o as guas de março fechando o ver$o É a promessa de vida no teu coraç$o 1 cair no l.fig - fam caer en la trampa. errar o l. fig - fam errar el tiro 2 cumeeira - A parte mais alta do telhado; cumeada, cavalete de telhadoestr vive nas estradas 3

Aguas de Mar

  • Upload
    schaheb

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

t

Citation preview

pau, pedra, o fim do caminho um resto de toco (stub, stump), um pouco sozinho um caco (bit, shard) de vidro, a vida, o sol a noite, a morte, o lao (lazo[footnoteRef:1]), o anzol (fishhook) [1: cair no l.fig&famcaer en la trampa;errar o l.fig&famerrar el tiro]

peroba do campo, o n da madeiraCaing, candeia (candeia), o Matita Pereira madeira de vento, tombo da ribanceira () o mistrio profundo, o queira ou no queira o vento ventando, o fim da ladeira a viga, o vo, festa da cumeeira[footnoteRef:2] a chuva chovendo, conversa ribeira[footnoteRef:3]Das guas de maro, o fim da canseira [2: cumeeira - A parte mais alta do telhado; cumeada, cavalete de telhadoestradeira- que vive nas estradas] [3: ]

o p, o cho, a marcha estradeiraPassarinho na mo, pedra de atiradeira uma ave no cu, uma ave no cho um regato, uma fonte, um pedao de po o fundo do poo, o fim do caminhoNo rosto, o desgosto, um pouco sozinho um estrepe, um prego, uma ponta, um ponto um pingo pingando, uma conta, um conto um peixe, um gesto, uma prata brilhando a luz da manh, o tijolo chegando a lenha, o dia, o fim da picada a garrafa de cana, o estilhao na estrada o projeto da casa, o corpo na cama o carro enguiado, a lama, a lama um passo, uma ponte, um sapo, uma r um resto de mato, na luz da manhSo as guas de maro fechando o vero a promessa de vida no teu corao uma cobra, um pau, Joo, Jos um espinho na mo, um corte no pSo as guas de maro fechando o vero a promessa de vida no teu corao pau, pedra, o fim do caminho um resto de toco, um pouco sozinho um passo, uma ponte, um sapo, uma r um belo horizonte, uma febre terSo as guas de maro fechando o vero a promessa de vida no teu coraoAu, edra, im, minhoEsto, oco, ouco, inhoAco, idro, ida, ol, oite, orte, ao, zolSo as guas de maro fechando o vero a promessa de vida no teu coraovigoram : tre en vigueur

So Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Prximo Texto | ndice

"J conheo os passos dessa estrada/ Sei que no vai dar em nada/ Seus segredos sei de cor"Retrato em Branco e Preto "guas de Maro" e o contorno do silncio

Ponto alto da carreira do msico, composio construda sobre jogo de contrastes que encenam a morte e a renovao

por Augusto Massi

guas de Maro" apresenta um desenvolvimento compacto, mergulhando o ouvinte num fluxo contnuo de palavras que deslizam sobre uma base rtmica bastante regular e simtrica. A extrema conteno dos versos contrasta com a extenso da letra, assim como a simplicidade meldica, construda basicamente com duas notas, destoa do fraseado sincopado das guas. fcil concordar com Chico Buarque: "s vezes, acho que "guas de Maro" o samba mais bonito do mundo". O difcil comentar com propriedade a origem de seu encanto e o seu permanente fascnio.Um terreno enlameado Em diferentes depoimentos, o compositor narrou em que situao a cano foi concebida. Ele estava no stio, Estado do Rio, numa casinha provisria, na beira do caminho, apelidada de "barraco 2", enquanto construa uma maior, no alto do morro. Havia comprado madeiras de lei, vigas imensas descarregadas por caminhes, deitadas ao relento, ao lado de pedras e tijolos, num terreno enlameado. Exaurido de tanto trabalhar em "Matita Per", quando sua mulher foi se deitar, comeou a cantarolar: " pau, pedra, o fim do caminho". Da cama, ela comentou que o tema era lindo. Ento, ele pediu lpis e papel. Ela arranjou um papel de embrulhar po no qual o compositor rabiscou a letra de "guas de Maro". interessante notar a riqueza de detalhes que recompe a cena. A matria biogrfica e circunstancial remodelada por meio dos resduos sedimentados na memria. Na construo da letra convivem dois movimentos. O primeiro da ordem do geral, sugere uma viso de conjunto, pressupe um carter unificador, a narrativa da renovao de um ciclo: do fim do caminho s promessas de vida. O segundo pertence ordem do particular, sugere um excesso de fragmentao, um acmulo de elementos heterogneos, uma tcnica anloga ao pontilhismo impressionista. A tenso entre os dois movimentos o que fortalece a imagem unificadora das guas de maro.Enumerao catica A primeira impresso de que se est diante do que Leo Spitzer definiu to bem em "A Enumerao Catica na Poesia Moderna". Seguindo de perto as idias contidas no famoso ensaio, possvel ver como o estilo enumerativo que remonta ao versculo e a sintaxe bblica de Whitman, alm de mesclar coisas concretas e abstratas, procura equilibrar a sensao de estilhaamento[footnoteRef:4] com a fixao imagtica de alguns versos. Tudo isso reforado pela arquitetura rtmica da msica, que procura harmonizar elementos mltiplos e dspares. No incio era o verbo: "". O recurso anafrico reafirma a existncia de um mundo substantivo -"pau/ pedra/ caminho"- ao mesmo tempo em que acentua o isolamento de cada elemento -"um pouco sozinho". Desde a primeira estrofe, uma srie de tenses estrutura a letra. A sensao inicial de sucessivas exploses sonoras que, num crescendo - pau, pedra-, logo encontram um obstculo, no afunilamento semntico de " o fim do caminho". Em vrias outras passagens o compositor demonstra um profundo conhecimento dos recursos estilsticos da lngua. A fatura sofisticadssima potencializa os contrastes. A cada estrofe, a cada verso busca-se um equilbrio entre extremos: uma ave no cu, uma ave no cho (espao); um espinho na mo; um corte no p (corpo); um estrepe[footnoteRef:5], um prego[footnoteRef:6] (natureza/ indstria); um sapo, uma r (masculino/ feminino). No centro dessas relaes de equivalncias e oposies esto em jogo pulses de morte e promessas de vida: " o mistrio profundo/ o queira ou no queira". [4: Estilhaar: hacer pedazos; estilhaar-se: hacerse pedazos.] [5: abrojo] [6: clavo]

Sob o signo do isolamento Vamos retornar um pouco. A complexa construo da letra inicialmente est sob o signo do isolamento. Enredados no exlio sonoro do "", alguns motivos nos remetem cadeia de objetos fraturados e residuais: resto de toco, caco de vidro, estilhao[footnoteRef:7] na estrada. Mas, sutilmente as coisas voltam a se infiltrar na corrente coletiva do "So": o vento ventando, a chuva chovendo, o pingo pingando[footnoteRef:8]. As guas de maro esboam uma litania de vozes que contornam o silncio, tudo ruma para[footnoteRef:9] o ritmo de uma conversa ribeira, lembrando duas outras canes que Jobim comps quase na mesma poca, "Chovendo na Roseira" (1970) e "Correnteza" (1970), nas quais, mais uma vez, o ritmo da msica se casa com o movimento das guas, reencenando[footnoteRef:10] antigos mitos de renovao (1). [7: splinter] [8: gotear] [9: rumbear] [10: Remetant en scne]

"Eu nunca sonhei com voc/ Nunca fui ao cinema/ No gosto de samba/ No vou a Ipanema/ No gosto de chuva/ Nem gosto de sol" Lgia

Ainda assim no se penetra no ncleo problemtico da cano. em meio s imagens do mundo natural que se oculta o eu lrico: "No rosto o desgosto". A passagem decisiva para compreender como a natureza invade a subjetividade do sujeito, que, aps arrolar imagens simbolicamente elevadas -"festa da cumeeira"- , descreve um movimento de queda, descida melanclica at "o fundo do poo". Como no mencionar que o stio do compositor foi batizado curiosamente de Poo Fundo? A inverso descortina um ngulo novo, confere uma perspectiva indita letra. Arqutipo infernal da solido A partir desse arqutipo infernal da solido -guas paradas do poo- , da aguda sensao de morte em vida, o sujeito consegue reatar com os ritmos do dia e do trabalho: " a luz da manh, o tijolo chegando". Para usar uma imagem cara a Manuel Bandeira, somente depois de submergir "entre os destroos do presente" que o sujeito supera os aspectos mais destrutivos e os dota de um sentido novo. As imagens anteriormente isoladas adquirem nova moldura temporal e tudo comea a se encaixar, ndice poderoso dos movimentos de construo, afirmao do esforo humano: " o projeto da casa".Nesse momento se d a passagem do "" para o "So". A conversa ribeira rompe os diques e desgua no refro, repetido quatro vezes: "So as guas de maro/ fechando o vero/ a promessa de vida/ no teu corao". No ltimo verso, mestre Jobim ainda reserva um mistrio. Do mesmo jeito que o "eu" lrico se oculta num resto de rosto, o "teu" contempla a presena afetiva e ntima do "outro". Seria aquele corpo deitado na cama? Seria o ouvinte annimo e secreto da cano? Ter-se-ia que remexer, cavar mais fundo, no barro da cano. Por hora, melhor no turvar guas passadas."guas de Maro" (1972) est para Antonio Carlos Jobim como "Construo" (1971) para Chico Buarque de Holanda. Ambos mimetizam respectivamente os ritmos do campo e da cidade, demonstram um alto grau de maturidade no trato com as palavras, atingem um patamar[footnoteRef:11] raramente alcanado por seus contemporneos. Antonio Carlos Jobim tinha 45 anos de idade quando comps "guas de Maro". Tinha um significado especial para ele, abria um novo ciclo criativo. Promessa de felicidade. [11: Sockel (der): pedestal; socket; ]

Nota1. Na poca do lanamento do disco, Tom Jobim transcreveu um trecho de "O Caador de Esmeraldas", de Olavo Bilac: "Foi em maro, ao findar das chuvas, quase entrada/ Do outono, quando a terra, em sede requeimada,/ Bebera longamente as guas da estao...".

Augusto Massi poeta, autor de Negativo (Companhia das Letras).Este texto dedicado a Therezinha Caldeira Moreira.