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Agrupamento de Escolas de Montemor-o-Novo

Ano letivo 2014-2015

Oficina de Escrita Criativa

Contos

Autores

Joaquim Quadrado

Mateus Lopes Bregas

Dinamização e coordenação João Luís Nabo

Revisão

Helena Roquete

Apoio

Câmara Municipal de Montemor-o-Novo

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A ÚLTIMA PÁGINA

Joaquim Quadrado

O tempo passou demasiado depressa e continuava a pesar na mente de Júlio…

Talvez demasiado…

Tudo começou quando a mulher morreu, arrastando consigo a filha de sete anos e o

filho por nascer. Desde então, as questões com a mente de Júlio agravaram-se. Os anos

foram escritos em depressão, droga e álcool, enquanto as vozes na sua cabeça falavam cada

vez mais alto e as imagens nos olhos ficavam cada vez mais claras. Ansiedade, paranóia e

tantas outras coisas levaram-no àquele sítio… Uma cela branca sem janelas e selada com

uma porta de ferro. Nas paredes pairava o sofrimento sob a forma de frases dolorosas e

espelhado nos riscos a negro que contavam o tempo da sua agonia.

Júlio sentia a sanidade a arder a cada dia que passava e os comprimidos que os

homens de branco lhe davam apenas alimentavam esse fogo. As paredes brancas eram

ocupadas por figuras sombrias, como se fossem retiradas de pesadelos de criança, e o

silêncio aparente era ocupado por gritos e sussurros. Porém, havia algo que soava mais

alto: uma canção… A canção que ele próprio ensinara à filha e que ela repetira, vezes sem

conta, com a sua voz doce de criança. Essa voz tinha vindo a atormentá-lo nas últimas

semanas… Talvez nos meses mais recentes… Tinha perdido a noção.

Júlio sentia-a quando se passeava pelo corredor do lado de fora da porta de ferro.

Era como se a filha estivesse por ali quase ao alcance dos dedos… A ansiedade de Júlio

crescia à medida que a voz vagueava nos seus ouvidos. Sentia o corpo a tremer enquanto

uma onda de impaciência lhe invadia os sentidos… Era como se a memória da filha o

fizesse querer ver de onde vinha a canção… Quem a cantava… Como vieram ambos a

conhecê-la…

Esta impaciência foi interrompida pelo som de passos suaves. Para além da canção,

havia agora passos… Passos de uma criança que brincava com o próprio andar. O ruído

dos pequenos sapatos ouvia-se cada vez mais alto até que os passos pararam à frente da

porta da cela. A porta abriu-se com o barulho de chaves a bater e o movimento imediato da

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fechadura a rodar. O ranger da porta rasgou o silêncio à medida que os passos se afastavam

e a canção se ouvia cada vez mais longe.

Júlio olhava paralisado para a porta entreaberta. O pensamento debatia-se na

tentativa de perceber o que tinha acontecido. Queria perseguir a voz. No entanto, havia

algo a segurar-lhe os movimentos. Sentia que alguma coisa não estava certa. Fosse como

fosse, levantou-se de forma lenta e dolorosa de quem não se mexia havia semanas e andou

em passos cambaleantes até ao outro lado da porta de ferro.

O corredor, com cinco celas de cada lado (não se pode chamar quarto a um espaço

fechado à chave), era escuro. A única claridade que se via era a da luz de emergência no

fundo desse corredor. Agora sim, sabia que havia alguma coisa totalmente errada.

Júlio avançou lentamente em direção à luz, à medida que as sombras brincavam à

sua volta. Estavam vivas, adquirindo as formas e as imagens de tudo aquilo que ele alguma

vez havia visto. Parecia que a companhia de Júlio lhes agradava, levando-as a passar de

corredor para corredor à medida que ele vagueava naquele labirinto sem luz.

Ele sabia que tudo aquilo era uma ilusão. Não mais do que a sua insanidade a falar

mais alto. Antes de sair da cela, Júlio contou os traços todos – um ano. Um ano desde que

tudo tinha acontecido. Para Júlio devia ser possível apagar o passado. Mas não era… E até

mesmo depois de a justiça o ter declarado inocente, a sua mente não partilhava a mesma

opinião. Aquilo não era mais do que o regresso de memórias só para o castigar… Para o

torturar…

Ao passar por uma das imensas portas, Júlio entrou numa sala onde a claridade que

vinha das luzes da rua era suficiente para lhe dar alguma capacidade de visão. Com um

movimento lento do braço, colocou a mão no bolso e retirou uma folha de papel branco -

uma carta. Com um movimento silencioso de lábios, leu-a várias vezes, até conseguir fazê-

-lo em voz alta: “Um asilo não te pode proteger para sempre. Fica a saber que nós não nos

esquecemos e, se esperámos um ano, podemos esperar muitos mais”. Com um grito de

agonia, Júlio caiu em lágrimas sobre os joelhos, enquanto murmurava maldições e

impropérios contra a sua vida. As pessoas erradas, nos sítios errados e na altura errada

eram condições para o desastre e Júlio tinha aprendido isto da pior maneira. Aprendeu

também que carros sabotados são algo perigoso, ainda mais quando são usados pelas

pessoas erradas.

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Ergueu-se lentamente, espreitou pela janela e focou o olhar na luz do candeeiro da

rua. A luz ficou cada vez mais forte, até que a mente se separou do corpo. Já não estava

dentro do asilo, mas sim numa sala de interrogatório, onde o detective lhe atacava os olhos

com a luz intensa do candeeiro.

- Onde estavas tu quando o acidente aconteceu?

- Em casa…

- O que levou a que a tua mulher e a tua filha fossem à casa da tua mãe sem ti? É a

tua mãe, afinal de contas!

- A pequena já não via a avó há semanas… Insistiu em ir… Eu queria tê-las

acompanhado, mas estava afogado em trabalho…

- E depois disto, aposto que estás grato em não ter ido… - Júlio baixou o olhar para

as mãos trémulas, ainda em choque pelo que tinha acontecido.

- Sim… - respondeu hesitante.

O detetive limitou-se a ouvir a resposta à medida que se encostava na cadeira e

esfregava os olhos cansados.

- Ouve. Estivemos nisto o dia todo e eu sei que isto é a última coisa de que

precisas, depois de perder a família, mas eu preciso de alguma coisa! – num movimento

rápido de cabeça, assinalou a janela da sala por onde se viam pessoas do outro lado.

- Eles querem alguma coisa, algo que lhes permita começar a apontar o dedo. Até

podes ser tu a pessoa para quem eles vão apontar, sabe-se lá.

- Eu não fiz nada… Eu estava em casa… Longe delas…

- Eu acredito, mas eles são difíceis de convencer, para além de não ser necessário

estar no local para sabotar um carro. Isso é algo que se faz antes de chegarem as vítimas e é

isso que eu quero saber.

Júlio baixou novamente o olhar. O detetive levantou-se de rompante e sentou-se na

mesa para poder estar mais perto dele.

- O que sabes desta tal organização?

- N-nada…

- Vamos ver as coisas doutra forma…Levantou-se e agarrou em Júlio pelo

colarinho – Estou a ficar cansado desta treta toda! Eu sei que os suspeitos falam pouco mas

tu não falas nada! Como explicas a tua relação com a organização?

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- Eu não sei nada!

- Temos registos de contactos entre ti e um membro da organização! Explica-te!

Júlio reagiu de forma brusca e pontapeou o detective que o largou de imediato:

- Seu filho da… - não teve tempo de terminar a frase, pois Júlio reagiu de imediato.

- Como esperas que fale contigo enquanto luto para conseguir algum ar? – Júlio

endireitou-se e fez frente ao outro que parecia pronto para o espancar – Queres

informações? É isso que tu e aqueles idiotas querem?! Okay! A organização é um género

de… sei lá!... Máfia, talvez ou lá como vocês lhe queiram chamar! É uma organização com

elevado poder político e controlo sobre os negócios de droga e armas da região!

Satisfeito?!

- E em que parte disso tudo é que tu entras? – disse o detetive com um brilho de

satisfação nos olhos.

- Um antigo colega meu… Ele faz parte da organização e pediu que me juntasse a

eles… Achava que o meu poder político viria a ser vantajoso para eles…

- E tu que fizeste? – perguntou o detetive, enquanto se encostava na mesa.

- Olha, fulano, seja qual for o teu nome, pensa lá! Se eu tivesse aceitado eles

estariam a tentar matar-me?!

- Dispenso esse tipo de sarcasmo. Recusaste, já percebi, e eles querem matar-te por

isso?

- Sim… - Júlio hesitou e engoliu em seco antes de retomar a fala – a sabotagem do

carro tinha-me a mim como alvo…

- Mas que viragem de eventos… Então porque é que foi a tua família a usá-lo?

- Eu sabia que corria perigo e não queria que elas fossem envolvidas… Elas iam

para casa da minha mãe em busca de refúgio… Como é óbvio, não fui com elas… Era

demasiado perigoso…

- E olha quem está vivo e quem morreu – disse o detetive com um sorriso malicioso

nos lábios. – Mas que irónico.

Aquelas palavras queimaram Júlio. Ficou atordoado até que, num movimento

rápido, agarrou no candeeiro e usou-o para dilacerar a cabeça do detective. Bastaram

segundos para que chegassem outros dois polícias, que o prenderam pelos braços. O

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polícia levantou-se com raiva no olhar, limpou o lábio que agora sangrava e cravou dois

muros no estômago de Júlio.

Acordou de rompante deste seu estado de transe. Estava de joelhos com ambas as

mãos a segurar a carta, que agora se encontrava manchada de lágrimas. Apoiou-se na borda

da janela e com um esforço tremendo levantou-se, dando um ou dois passos cambaleantes,

como se fosse perder o equilíbrio. Limpou as lágrimas e caminhou pelo corredor. Júlio

sentia que se estava a queimar com o fogo que ele próprio ateou e isso preocupava-o…

Sentia que o seu livro estava a chegar à última página, o que para ele parecia um alívio.

Chegou à porta que se encontrava no fundo do corredor e, espreitando, viu que a

única luz que havia na sala era a de um candeeiro do teto que iluminava uma figura

humana vestida de fato e gravata negros e com um chapéu de feltro igualmente negro de

fita branca.

Com um suspiro prolongado, Júlio abriu a porta por inteiro e entrou pela sala até

estacar, completamente direito, à frente do homem de negro que, sacudindo as cinzas do

charuto, se levantou calmamente de braços abertos em direcção a Júlio como se fosse dar-

lhe um abraço:

- Júlio! Há quanto tempo! Eu e os rapazes tivemos saudades tuas! – Com um

barulho de passos, havia agora um grupo de homens vestidos de preto a formar uma fila

que ia desde Júlio ao homem – Lamento que tenhas vindo parar aqui. Ouvi falar dos teus

problemas… de sanidade… Como estás? Sentes-te bem?

- Phillip… devo dizer que o sentimento não é mútuo… não tive lá muitas saudades

tuas… E sim. Sim, estou bem… Que tens feito durante a minha ausência?

- Júlio… não sejas assim… Eu aqui cheio de vontade de fazer as pazes e tu a dar-

-me para trás… Em relação à tua questão, tenho de admitir: é necessário uma quantidade

imensa de recursos para cortar a energia a um asilo e levar a que toda a gente seja evacuada

excepto tu… Tu sempre me deste tanto trabalho…

- Se é esse o caso, por que não me deixaste aqui o resto da vida a apodrecer…

Aposto que é um fim muito mais divertido de ver, tendo em conta que eu sei o tipo de

“pazes” que vens cá fazer comigo – disse Júlio olhando em volta para os cintos dos

restantes homens que se encontravam cheios de armas carregadas.

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- Não aguentei… Ver-te sofrer desta forma deu-me cabo do coração! Vi jeito de

perder a minha sanidade! – Disse Phillip, rindo, enquanto olhava para a cara enjoada de

Júlio. – Isto não tinha de acabar assim. Tu eras tão bom naquilo que fazias… Tinhas tudo!

Dinheiro! Poder! Tinhas o mundo a teus pés a nosso lado! Mas tinhas de viver uma vida

diferente!

- Aquela vida não era a minha! Matar, chantagear, manipular! Eu não era feito para

aquilo! Ainda para mais tinha uma família! O que aconteceria se fosse apanhado!? O que

lhes acontecia!? Só não percebo o porquê de vocês insistirem em manter-me lá quando, na

verdade, eu não queria nada daquilo…

- Eu respeito pessoas que saibam fazer o seu trabalho e se há coisa que eu não

posso negar é que tu eras um mestre! Lembras-te quando o infeliz do presidente da câmara

se recusou a fazer-nos um favorzinho muito pequenininho? O que lhe aconteceu?

Júlio sabia a horrível resposta àquela pergunta e só isso era suficiente para o enojar

e o fazer engolir em seco:

- Foi dar com a filha pendurada ao teto com a garganta… a sangrar…

- A masterpiece! Uma obra-prima de morte e de medo! A partir do momento em

que fizeste essa obra de arte nós ficámos com ele na palma da mão! Eras o melhor

assassino que alguma vez conheci, e agora olha para ti… A madman whose book is running

low on pages… - Disse Phillip dando um sinal quase impercetível com a cabeça. Num

movimento rápido, os homens formaram uma fila à frente de Júlio e começaram a tirar as

pistolas dos seus esconderijos – Lamento Júlio… a sério que lamento… Mas tu sabes como

o trabalho é feito…

- Nunca se deixam pontas soltas… - disse Júlio de sorriso rasgado nos lábios. Ele

sabia que o seu sofrimento acabava ali, mas se havia coisa que ele não podia permitir era

que os seus inimigos vissem o medo nos seus olhos.

- Exato… Finish him! – Com um movimento rápido os homens apontaram para

Júlio e num som de disparos coordenados, as balas cravaram-se em Júlio, umas no peito,

outras nos braços, mas nenhuma na cabeça. Era como se eles não quisessem que ele

morresse instantaneamente.

Júlio perdeu as forças. A dor rasgou-lhe os sentidos de forma tão bruta que perdeu a

noção do espaço e do tempo e, de súbito, uma luz encandeou-lhe a vista à medida que caía

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de joelhos no chão. Era a filha. Apareceu no seu último instante como um anjo pronto para

o levar para o além, ou para onde quer que fosse, e na sua voz doce de criança começou a

cantar a canção que o tinha vindo a perseguir.

Júlio sentiu a força a restaurar-se ligeiramente e, num esforço tremendo, começou a

gatinhar na direção da filha. Ele ansiava poder alcançá-la. No entanto, os esforços foram

interrompidos quando Phillip se colocou à frente dele. Olhou para cima, para os olhos do

seu opositor, que lhe apontava uma pistola à cara:

- Die, bloody dog! – disse Phillip, de rosto pesado e sério.

- Burn in hell, British bast… - O som da pistola interrompeu Júlio, que caíu morto

na poça do seu próprio sangue.

Seguiu-se um momento de silêncio que durou alguns segundos até ser

interrompido:

- Pobre homem – disse um dos homens de negro.

- Death is like painless freedom… Não tenham pena dele… Finalmente livrou-se do

seu sofrimento… - disse Phillip colocando a pistola no casaco e saindo da sala seguido

pelo seu exército.

Júlio ficou. Exposto no chão à luz do candeeiro da sala.

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ROUBADO

Mateus Lopes Bregas

O relógio digital topo de gama que se encontrava na mesa-de-cabeceira do lado

esquerdo da cama marcava 3:29 da manhã, sendo esses algarismos brilhantes os únicos

pontos luminosos de toda a divisão. Apesar da escuridão que o rodeava, Richard não

dormia ainda, nesta que estava a ser uma Quinta-feira particularmente silenciosa, apesar do

constante movimento daquela rua de Washington. Não que isso interessasse muito, pois a

origem das suas insónias era uma conversa que tinha tido há dois dias com o seu amigo de

infância, Peter, na qual se inteirara da transferência do mais valioso diamante do mundo

para uma coleção privada nos arredores da cidade.

Desde essa altura, o elegante luso-americano nascido em Seattle, pensara bastante

no seu futuro como talentoso assaltante profissional, talento esse que já lhe tinha valido a

alcunha de “maior génio do crime do século” por parte de vários jornais em todo o mundo.

Já tinha decidido executar um último plano, arrojado, por sinal, que, se corresse bem, lhe

asseguraria uma vida de luxo até ao fim dos dias, funcionando ao mesmo tempo como o

seu grand finale: iria tentar apoderar-se dos cinco diamantes mais valiosos de sempre.

Mas faltava-lhe qualquer coisa: um cúmplice. Ia precisar de um cúmplice muito

competente e no qual confiasse. Isto trazia-lhe um problema: nenhum dos colegas de

“profissão das suas relações” cumpria ambos os requisitos simultaneamente. Ponderou essa

questão e decidiu valorizar mais a primeira característica, pois preferia que o seu parceiro

lhe roubasse a mercadoria, após todo o seu trabalho, a correr o risco de que este lhe

arruinasse o plano e os levasse aos dois para uma fria cela de cadeia.

A resposta a esta necessidade surgiu-lhe quase instantaneamente: teria de persuadir

a sua ex-companheira (quer de trabalho, quer amorosa), Susan, a acompanhá-lo nesta

viagem. Ela fora, sem dúvida, a única pessoa que, em termos de qualidade para assaltos,

conseguira causar-lhe inveja. Mas como não há bela sem senão, o problema residia

exactamente em conseguir convencê-la. Ele não tinha nem a confiança nem a companhia

dela desde a última missão que realizaram juntos, durante a qual ele a abandonara numa

situação que poderia ter resultado na sua morte. Apesar de tudo, sabia que ela ainda se

preocupava com ele e, honestamente, ele sentia o mesmo por ela.

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Levantou-se, visto que era inútil tentar dormir, e dirigiu-se à casa de banho, onde

tomou um rápido duche de água fria. Secou-se e admirou ao espelho o corpo moldado por

treze anos de treino militar. Olhou pela janela, abriu o armário que continha as suas T-

shirts favoritas e retirou aquela que já causara esgares nas caras de desconhecidos que por

ele passavam. Retratava o álbum de ’94, Battles in the North, da sua banda de black metal

preferida: os Immortal. Não continha, no entanto, nada de violento ou púdico, apenas

mostrava dois elementos da banda com a vestimenta e a maquilhagem associada ao género

musical. Vestiu também umas calças de ganga pretas e um casaco de cabedal. Penteou os

cabelos pretos e compridos e, seguidamente, saiu para a rua com um ar confiante e sereno,

pensando que era um bom dia para mostrar quem verdadeiramente era.

Sentia uma brisa gélida a percorrer aquela gélida madrugada e a bater-lhe no rosto,

mas o frio não o incomodava. Olhou para o relógio de pulso banhado a ouro que trazia no

braço direito e que marcava já 5:47 da manhã. Se bem conhecia Susan, ela já se encontrava

acordada e sabia bem que só saía de casa às 7:30 para correr 5 quilómetros à volta do seu

bairro. Decidiu que iria a pé, pois não tinha pressa, e que também passaria numa florista

para levar um bouquet a Susan, com vista a tentar facilitar o reencontro. Porém, sabia

perfeitamente que nada que ele lhe oferecesse poderia evitar a discussão que se avizinhava.

Visto que o caminho iria ser longo, sacou do mp4 e dos fones e colocou-os nos

ouvidos. Deu uma vista de olhos às suas playlists e achou apropriado ouvir os ritmos

violentos da banda norueguesa que trazia na T-shirt.

Passado algum tempo, chegou a uma florista sua conhecida, onde comprou um

simples ramo de violetas (flores que sempre agradaram a Susan), ficando depois a tagarelar

com a simpática dona da loja, uma senhora de 53 anos com a qual Richard conversava

sempre que por lá passava, quer porque sentia um bocado pena daquela senhora que lhe

lembrava de certa forma a sua querida mãe que já falecera, quer devido ao facto de nunca

ter um horário rígido nas alturas em que se encontrava na cidade. Mas, se Richard soubesse

o que iria encontrar em casa da sua ex-companheira, sem dúvida que se tinha apressado.

Ao chegar ao prédio onde ficava o apartamento de Susan, reparou que a porta da

rua se encontrava entreaberta. Estranhou bastante o facto e, por isso mesmo, entrou em

casa com a Glock na mão, depois de a ter retirado calmamente do coldre no tornozelo.

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Gesto desnecessário. A acção já tinha ocorrido, sendo agora apenas visíveis resquícios de

uma luta violenta.

Em cima da mesinha que decorava o hall encontravam-se um envelope e uma caixa

pequena, ambos com uma assinatura que pertencia a Peter. Se o pobre coitado já se

encontrava desorientado e confuso, os presentes deixados para trás e aquela assinatura só

pioraram as coisas.

Abriu a carta e leu-a:

Surprise, my friend!

I bet you didn´t see this one coming, did you?

I could ask you “How’s it going?” but both of us know what the answer is, right?

You are probably confused right now so let’s get straight to the point. I didn’t tell about

the diamond by accident. I know who you are and what you do. And I think I also know

what your next plan would be. You wanted to steal the most valuable diamonds in the

world. How am I doing so far?

But don’t be upset, being predictable can be useful… eventually. Anyway, what I

really wanted was to ask you a favor, ok? Could you please steal the diamonds and hand

them to me in about… let’s say… two weeks? Don’t look so terrified. In return you get

back the one you love (and betrayed). But be aware, because the clock keeps ticking and

the two weeks start today.

If this letter isn’t enough to persuade you to cooperate then please open the

package I left there. I guess an image can really be worth a thousand words.

Peter.

P.S.: Did I mention that I always found Susan extremely attractive? And also that

she’s now my prisoner and I can force her into anything? Think about it.

No fim da leitura as suas pernas cederam sob o peso de todas as emoções que o

atormentavam (horror, ódio e preocupação foram das poucas para as quais existem nomes)

e caiu desolado no chão. A tremer, estendeu o braço em direção à mesa do seu lado direito

e agarrou na embalagem branca. Abriu-a e largou-a imediatamente de choque e repulsa. Lá

dentro encontrava-se o dedo anelar da mão direita de Susan com o característico anel de

prata que lhe fora oferecido por ele e que ela usara sempre. Esta imagem veio contribuir

mais ainda para a mistura revolta de sentimentos que eram sentidos por ele, mas todos

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foram rapidamente dominados pela raiva que sentia e que o fez gritar como nunca antes

gritara.

Richard levou a cabo os roubos planeados, mas a pressão sob a qual se encontrava

fê-lo temer que alguma coisa corresse mal e que fosse apanhado, mas sabia que necessitava

de concluir a missão de modo a salvar Susan. Ah, Susan… aquele nome que ele

murmurara vezes sem conta enquanto realizava os assaltos, como que com o intuito de

convocar as habilidades dela, de modo a que a operação corresse bem, uma vez que este

trabalho fora o mais arriscado de todos os que tinha realizado até então.

O assaltante necessitara de toda a sua perícia para levar a cabo estes ataques

furtivos a autênticas fortalezas do século XXI. Não só tivera de ludibriar autênticos

batalhões de seguranças armados, como também precisara de estudar as características de

todos os mecanismos de defesa que protegiam as jóias: os ângulos cobertos pelas câmaras

de vigilância e a localização das barreiras de laser, por exemplo. Fora ainda obrigado a

memorizar elaboradíssimos planos de fuga para o caso de ser detectado. Tudo isto num

curtíssimo espaço de tempo e, para piorar, sem o auxílio de um cúmplice.

Mas, no fim, tudo se resolve e, sem saber muito bem como, passados doze dias,

Richard já possuía os dez diamantes mais caros do planeta. A coleção não era extensa, mas

bastante diversificada, apresentando jóias de variadas cores (desde transparentes, as mais

comuns, até vermelhas, bastante raras) e englobando o famoso diamante conhecido

mundialmente pelo nome de Star of Africa (o mais valioso de toda a coleção), que até

agora costumava pertencer à coroa britânica.

Ao confirmar que o trabalho estava feito, sentou-se na poltrona vermelha-escarlate

que herdara dos pais, pegou no telemóvel e marcou o número de Peter. Nesse momento

sentiu uma fúria a nascer de novo dentro dele, no entanto, sabia que necessitava de

permanecer calmo se quisesse reaver Susan. De repente, ouve-se um estalido – Peter havia

atendido:

- Então… Como se encontra o meu assaltante preferido? Já concluíste a missão? É

que o prazo está a acabar, sabias? – Cumprimentou com um tom trocista o ex-amigo.

- De facto, já a acabei! E entrego-te estes malditos diamantes de bom grado, mas

primeiro quero uma prova de que a Susan está viva. Só depois podemos conversar sobre a

entrega.

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- Ora, ora… Já não confias no teu amigalhaço, hã? Isso não se faz… Esse

comportamento vai ter de ser corrigido se queres voltar a ver esta beleza. Vai ter às 15:45

de amanhã àqueles armazéns abandonados onde costumávamos descontrair. Vai sozinho e

desarmado e leva os diamantes contigo. Não tentes nenhuma estupidez, ok? Adeus. – E

desligou a chamada.

-Filho da mãe! Eu juro que te mato! – Ameaçou Richard entre dentes.

No dia seguinte, à hora marcada, no sítio marcado, Richard entrou no armazém com

um saco cheio de diamantes na mão esquerda e deu de caras com o velho conhecido a

apontar uma arma à cabeça da sua amada, que estava algemada, amordaçada e bastante

violentada: o cabelo estava sujo e embaraçado, nódoas negras eram visíveis em toda a cara

e ao longo dos braços, a testa estava coberta de sangue seco, o top vermelho e os jeans,

justos, encontravam-se sujos com terra e pó e rasgado… Tudo apontava para o facto de ela

ter sido brutalmente tratada e até mesmo violada por Peter. Esta visão toldou-lhe, quer os

sentidos, quer os instintos de sobrevivência ganhos com os anos em que havia sido militar,

impossibilitando o seu cérebro de assimilar o cheiro a gasolina que aquele lugar emanava.

- Tenho aqui os diamantes neste saco. Como queres fazer a troca?

- Boa tarde para ti também! Não dês mais um passo. Tira todos os diamantes do

saco, mostra-mos e coloca-os nesse aí ao pé de ti. Isto se quiseres ter a sorte de viver o

resto da tua vida ao lado da Susan, claro.

- Calma, não lhe faças nada. Já fiz o que mandaste. E agora?

- Dá dez passos para a tua direita e põe as mãos no ar. Vou afastar-me dela e pegar

no saco, percebes?

Richard obedeceu, achando que talvez tivesse sorte e o conhecido cumprisse a

promessa. Quando Peter agarrou no saco, gesticulou para Richard dois sinais: com o

primeiro, deu-lhe permissão para se aproximar de Susan; com o segundo, avisou-o de que

iria abandonar o local e deixá-los-ia sozinhos lá.

Richard não hesitou e correu para junto de Susan, tirando-lhe a mordaça. Trocaram

beijos e abraços sentidos. Ambos pareciam estar esquecidos da maneira brusca, violenta e

até mesmo imperdoável como se despediram no final da última missão em que

cooperaram, na África do Sul. Não se tinham ainda apercebido de que Peter os tinha

trancado lá dentro e ateado fogo ao armazém. Agora era tarde de mais.

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Nos últimos instantes de vida, Richard viu que Peter não mentira: ele deixara-os

viver juntos, num abraço terno e prolongado, os (escassos) momentos que lhes restavam de

vida.

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A FACE DO MAL

Mateus Bregas

Vinte e cinco de Dezembro de 2899, mais dia, menos dia. Mas isso não é muito

importante, uma vez que há já séculos que ninguém celebra o Natal ou qualquer outra data

festiva.

Tudo começou em 2109, com a 3.ª Guerra Mundial, que acabou por ser a mais curta

de sempre, durando apenas cinco meses. Lembro-me bem desses cinco meses: uma onda

de sofrimento e miséria percorreu toda a Terra, que, no final, acabou totalmente

contaminada pela radiação libertada durante os ataques, tornando-se um planeta estéril.

Oitenta e sete por cento da vida no planeta não sobreviveu.

No início dos conflitos, milhões procuraram refúgio nas grandes cidades do mundo,

mas de nada adiantou: tudo se transformou em pó e escombros. Ao contrário do esperado,

o número de mortos não ultrapassou os poucos milhares. A radiação modificou

geneticamente toda a população mundial, tornando-a infértil e, ao mesmo tempo,

invulnerável à passagem do tempo. Certas pessoas foram ainda mais afectadas, ganhando

diferentes “poderes”, como é o meu caso: sou capaz de controlar com a minha vontade

qualquer material inanimado.

E aqui estamos nós, quase oito séculos depois. Continuamos a não viver como

antigamente, mas já se consegue viver (em oposição a sobreviver), graças aos incríveis

instintos de sobrevivência e adaptação do ser humano. No fim de contas, talvez estejamos

melhor assim: vivemos numa espécie de povoamentos primitivos, como os primeiros

hominídeos, espalhados pelo planeta, onde todos dependem de todos e existe um forte

sentimento de entreajuda.

- Pai, podias vir ajudar-me a reparar as ferramentas da caça? - perguntou-me

Mariana.

Mariana é uma linda jovem nos seus 805 anos (790 dos quais não são visíveis na

sua aparência) que perdeu os pais durante a guerra. Foi encontrada por um amigo meu, que

morreu dias depois. Desde então, tem vivido comigo. Tornámo-nos bastantes chegados e

agora mantemos uma relação pai-filha.

Antes de o pó que paira no ar lhe assentar nos cabelos, estes apresentavam um tom

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dourado bastante brilhante. Os olhos dela são azuis, o que é uma característica única na

nossa povoação e que também a torna o centro das atenções de todos os rapazes. Admito

que me preocupo com isso, mas tento dar-lhe uma certa liberdade. Felizmente para mim,

ela nunca se mostrou interessada em retribuir essa atenção.

- Reparar as ferramentas? Não me digas que o descuidado do Miguel as deixou cair

do precipício outra vez? Ai, será que esse nunca aprenderá a ter cuidado com as coisas?

- Bem... Pois... - hesitou ela. - Na verdade, as ferramentas estão bem... Eu queria

mesmo era falar contigo de um assunto importante.

- O que foi, querida? O que se passa? - Perguntei eu, já em pânico, com medo que

alguma coisa grave se tivesse passado.

- Não é nada de grave mas tens de prometer que não ficas aborrecido comigo.

- Prometo - respondi, cada vez mais ansioso.

- Digamos que... Estou apaixonada - murmurou ela.

Dito isto, desatei-me a rir, pois temia coisas muito piores.

- Não estás zangado? - surpreendeu-se.

- Querida... Mas é claro que não. Isso é a coisa mais natural do mundo, mesmo

neste cenário pós-apocalíptico. Ai, que tonta. Posso só saber por quem?

- Pelo Miguel, pai. Gosto bastante dele. E ele também gosta de mim.

Ao ouvir isto, não pude deixar de ficar ligeiramente embaraçado devido aos meus

comentários anteriores.

- Ah, o Miguel. Ele é bom rapaz. Não te vai deixar ficar mal. Por mim, tudo bem.

- Obrigado, papá.

Abraçou-me e foi-se embora para casa, mais descansada. Eu continuei na rua a

terminar a minha tarefa: por causa do meu poder, era eu o responsável pela construção e

manutenção dos edifícios e outras edificações. Rapidamente, acabei de reparar as fendas no

poço da vila e dirigi-me para casa.

Quando cheguei, Mariana já tinha, como sempre, tratado da comida. Não que eu

considere essa uma tarefa para as mulheres. Pelo contrário, eu esforço-me sempre para

aprender, mas falta-me o jeito. Acho que, se a Mariana sair de casa, possibilidade agora

mais plausível, vou ter de passar a comer os alimentos crus.

- Cheira bem! O que é?

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- Toupeira estufada. Sei que não aprecias muito, mas foi o que veio nas armadilhas

deles.

- Deixa estar. Com a fome que trago, até comia ratazanas.

- Oh pai... Que horror! Isso não são conversas para se ter à mesa.

- Eu sei, estava só a brincar.

Depois de jantarmos, ela veio ter comigo e perguntou-me:

- Eu sei que amanhã não trabalhas e costumamos passar o dia juntos, mas tinha

combinado ir ter com o Miguel, depois de ele fazer as tarefas. Posso ir?

- Claro que podes. Mas volta para casa antes do anoitecer. E não faças nenhuma

asneira, está bem?

- Tu sabes que nunca faço, pai. Adoro-te.

Era verdade. Ela nunca fizera nenhuma palermice. Aliás, ela sempre fora muito

mais cautelosa e consciente do que eu. Ainda por mais, ia estar com o Miguel. Ele pode ser

bastante descuidado e distraído, mas sempre o considerei um bom rapaz.

- Eu também te adoro. Agora vai-te deitar, querida. Já é tarde.

Quando acordei, já estava ela em casa dos nossos vizinhos a ajudar a tecer roupas

que serviriam de camuflagem aos caçadores da comunidade. Este pensamento fez-me

lembrar a tragédia que aterrorizou a nossa população há uns anos: durante cinco semanas,

desapareceram três raparigas da aldeia sem deixar rasto. Esta fora a única altura em que

proibira Mariana de sair de casa sozinha. O culpado nunca fora descoberto, mas os corpos

das raparigas foram. Estavam enterrados num baldio ali perto, estripados e com sinais de

violação.

Afastei estes pensamentos da cabeça e desloquei-me à estante onde estavam os

livros que consegui salvar dos escombros. Peguei n'O Último Segredo do José Rodrigues

dos Santos, sentei-me no sofá e comecei a relê-lo.

Passadas algumas horas, Mariana entra em casa e diz que vai ter com o Miguel ao

trabalho, fazer-lhe uma surpresa. Despedimo-nos, peço-lhe que tenha cuidado, ela parte e

eu retomo a leitura.

Qual não é a minha surpresa quando, duas horas depois, ela chega a casa a correr e

a chorar convulsivamente.

- Filha, o que foi? Que aconteceu?

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- Foi ele, pai. Foi ele... - disse-me ela, entre lágrimas. - Como pude ter sido tão

inocente?...

- Calma, calma. Explica-te melhor. Ele tratou-te mal, foi?

- Não, pai, não foi isso - soluçou. Mais recomposta, explicou: – Cheguei ao trabalho

e ele não estava. Contaram-me que ele lhes tinha dito que ia ter comigo à clareira. Quando

estava perto, escondi-me atrás de um arbusto e vi-o a acabar de violar uma pobre rapariga,

atada a uma árvore. De seguida, puxou de uma faca, cortou-lhe o abdómen e retirou-lhe as

entranhas para fora. Depois...

Nesta altura, desatou a chorar e, desta vez, demorou mais tempo a recompor-se:

- Depois masturbou-se a olhar para o corpo da pobre coitada. Não aguentei ver mais

e desatei a correr para casa. Foi ele que matou aquelas raparigas. O que faço agora, pai?

Tenho tanto medo…

- Pronto, pronto... Agora diz-me: ele sabe que tu o viste?

- Não... Acho que não... Porquê?

- Para confirmar que não estavas em perigo. Isso é o mais importante. Ouve-me

bem. Eu sei que deve ser difícil mas tens de tentar agir o mais normalmente possível e,

acima de tudo, não podes contar nada a ninguém, muito menos confrontá-lo. Agora vai

para a cama e vê se dormes. Tenta descansar. Bem precisas.

Fiquei ao pé dela até ela adormecer. Depois, saí lentamente do quarto e ponderei

sobre o que tinha ouvido. Não consigo imaginar até que ponto toda aquela experiência terá

afectado a minha menina. Na minha cabeça só havia uma prioridade: garantir que ela

ficasse a salvo.

Nessa noite, tomei a decisão que achei mais adequada: iria eliminar aquele mal pela

raiz. Não via outra solução. Era impossível provar que ele era o assassino, por isso teria de

acabar com a sua vida, de modo a proteger a da minha filha.

No dia seguinte, voltei a consolar a Mariana e pedi-lhe, mais uma vez, para ser

forte. Despedi-me calorosamente dela e assegurei-lhe que, no final do dia, tudo estaria

resolvido.

Dirigi-me ao pé dele e atraí-o para um beco sob o pretexto de que precisava de

ajuda para mover uns materiais de construção. Nesse beco, encurralei-o e peguei numa

faca que já havia utilizado antes para matar. Ao ver este meu gesto, Miguel demonstrou

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sinais de nervosismo:

- O que está a fazer, João? Se não quer que namore a sua filha, podia simplesmente

pedir-me... - Disse-me com o humor forçado de quem já teme pelo pior.

Mas nada me demoveu: dei-lhe um murro que o pôs inconsciente, levei-o para a

clareira na floresta, atei-o a uma árvore e abri-lhe a barriga com a faca. Enquanto ele estava

vivo, repeti o ritual que ela descrevera no dia anterior.

Enquanto o fazia, lembrei-me de todas as outras vítimas: depois das três primeiras

raparigas descobertas, foram outras quatro miúdas e mais cinco rapazes. Doze ao todo. O

género não importa: é o sangue que me excita, que me altera profundamente e que me leva

a cometer todos estes actos horríveis.

No fim de tudo isto, enterrei-o a três metros de profundidade, onde nunca seria

encontrado.

Quando voltei a casa, encontrei Mariana no sofá a chorar. Sentei-me com ela e

garanti-lhe que nunca mais teria de preocupar-se com ele na vida. Ela percebeu o que eu

queria dizer e olhou para mim. Estava indecisa: aceitaria o que fiz por ela ou questionaria a

minha decisão? Acabou por convencer-se de que eu fizera o que era preciso para a

proteger.

E essa era a verdade. Mas não toda a verdade: eu não suportava que ela corresse

perigo. E também não suportava imitadores como aquele idiota.

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A MORTE

LENDA TRIBAL

Mateus Lopes Bregas

“Há quinze mil anos, na América do Sul, teve lugar a mais sangrenta batalha que o

mundo alguma vez vira. Mas, ao contrário do que seria de esperar, poucos ouviram falar

dela e menos ainda conhecem qual a verdadeira razão dela ter ocorrido. Eu sou

descendente direto de uma das tribos que nela participou.

A história que vou contar foi passando de geração em geração ao longos dos anos,

até chegar a mim, de modo a que o meu povo nunca se esquecesse de que não devemos

confiar cegamente em desconhecidos. Não peço que acreditem em mim, uma vez que não

posso provar nada do que irei contar, nem sequer as coisas mais simples e muito menos as

que parecem tocar no imaginário e no surreal. Espero, apenas, que aceitem e compreendam

que isto é uma parte importante da minha cultura, pela qual parecem mostrar-se tão

interessados. E é com aquele pedido que eu, agora, lhes conto a fantástica história da

batalha de Axchémopti:

Muito antes de os Incas, Maias e de todas essas famosas grandes civilizações,

existia apenas um grande povo – o meu povo – que era conhecido pelo nome de Ihmtópétc,

que significava Os Que Vivem Em Harmonia. Durante milénios, o nosso povo governara

todo o território agora conhecido por América do Sul, sob a orientação de sábios

imperadores e competentes conselheiros.

Todos eram felizes e levavam uma vida boa: o nosso povo respeitava a Natureza

acima de tudo e adorava mais de duas dezenas de deuses, oferecendo-lhes regularmente

sacrifícios, quer fossem de animais, quer fossem sacrifícios humanos voluntários (uma vez

que era uma honra morrer em nome dos deuses). E os deuses sempre retribuíram estes

gestos, ajudando a nossa civilização a prosperar. Não espero que entendam como

primitivos estes atos do nosso povo. Se fizermos uma comparação com os dias de hoje,

ainda encontramos os chamados fanáticos dispostos a morrer pela religião. Mas isso já é

outro assunto...

Voltando à nossa história... À minha história.

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Toda esta felicidade tinha de, eventualmente, encontrar um fim. E isso aconteceu

quando, no começo de uma Primavera, chegou às nossas cidades um povo nunca antes

visto (a que mais tarde deram o nome de Tchétaucotl, que significa Demónios Com Forma

Humana): todos vestiam coletes de pele de lobo e adornavam o peito com colares feitos

com os dentes destes animais. Os homens apresentavam cabelos e unhas invulgarmente

compridos, enquanto as mulheres eram incrivelmente fortes e violentas. Apesar disso,

diziam que eram pacíficos e que um terramoto os obrigara a abandonar as suas terras, no

Norte, tendo por isso rumado ao Sul, com vista a procurarem abrigo e lugares onde

pudessem restabelecer-se. Como nunca fora confrontado com uma situação destas, e não

conhecia inimigos, o nosso povo concedeu-lhes abrigo nas nossas cidades, nas nossas

casas...

No princípio tudo decorria com a maior naturalidade: não criavam problemas e até

nos ajudavam nas nossas tarefas. Contudo, houve um comportamento que suscitou a

curiosidade dos meus antepassados: todas as noites de lua cheia, os membros desta tribo

enveredavam floresta adentro para, diziam eles, levarem a cabo um ritual religioso.

Desde que eles haviam chegado que começaram a desaparecer mulheres das nossas

cidades, sem que alguém ligasse os dois acontecimentos. Até que a minha tribo começou a

aperceber-se de que a maioria desses desaparecimentos ocorria nos dias em que os nossos

hóspedes se juntavam na floresta.

Começando a suspeitar das intenções daquela gente, os chefes dos Ihmtópétc

decidiram que, quando os visitantes se fossem reunir, iriam ser enviados os melhores

guerreiros da tribo para os espiar e descobrir o que tramavam.

E assim foi: na lua cheia seguinte, os vinte e cinco mais bravos guerreiros de toda a

população foram enviados em perseguição do estranho povo. Quando chegaram ao amplo

local das reuniões (a maior clareira de toda floresta), viram algo que nem eles nem

ninguém esperava e o qual, certamente, não estavam preparados para ver. Centenas de

indivíduos pertencentes à recém-chegada tribo (mais do que alguma vez haviam visto)

estavam dispostos numa espécie de círculo, a entoar cânticos, rodeando uma pedra, à qual

estavam acorrentadas mais de vinte das jovens desaparecidas.

Com o passar de algum tempo, o luar iluminou a clareira onde se encontravam.

Nessa altura, os nativos testemunharam o que nunca antes tinham visto: assim que foi

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iluminado pela lua cheia, o povo que eles acolheram nas suas casas, junto das suas

famílias, começou a uivar e a transformar-se fisicamente. Todos eles ficaram rapidamente

cobertos por uma espessa camada de pêlos semelhantes aos dos lobos, com a única

diferença de que eram completamente brancos. De seguida, converteram-se em criaturas

parecidas com esses animais selvagens, mas quase do tamanho de um urso-pardo.

No fim deste espetáculo, as estranhas criaturas viraram o seu interesse para as

pobres raparigas. Atacaram-nas e alimentaram-se delas com brusquidão e violência. Ainda

assim, mantiveram-se sempre vivas, enquanto os monstros lhes despedaçavam e

devoravam os corpos.

Ao testemunharem a força e o poder destes seres, e mesmo em desvantagem

numérica, os guerreiros decidiram que iriam tentar combater aquele mal, com vista a

proteger a sua civilização. Escolheram um deles (Chactiác, o mais rápido) para voltar à

cidade e contar o que haviam visto. De seguida, entraram pela clareira, de armas em punho

e prontos a morrer. Nessa noite, apenas Chactiác regressou à tribo.

Ao ouvirem tudo o que o bravo (e rápido) guerreiro tinha para contar, o imperador e

os seus conselheiros não podiam acreditar que, havia já meses, abrigavam aquelas criaturas

nas suas povoações. Ordenaram, então, que todos os soldados espalhados se preparassem

para os duros tempos de guerra que se avizinhavam.

De seguida, o imperador foi ao encontro da sumo-sacerdotisa, em busca de

conselhos e de ajuda divina. Ela afirmou-lhe que os deuses estavam com ele e que eles lhe

disseram que os seus inimigos estavam refugiados no desfiladeiro de Axchémopti (Casa Da

Sombra, um lugar onde o sol nunca chegava) e que deveria atacar o mais cedo possível.

Mas avisou-o de que, apesar de a vitória estar garantida pelos deuses, as perdas seriam

incalculáveis.

No dia seguinte, e com estas sábias palavras em mente, o imperador partiu em

direção ao desfiladeiro, liderando um exército de 24 500 homens. Ao chegarem lá,

aperceberam-se de que o lugar fazia jus ao nome. A visibilidade era quase nula, o que os

obrigou a diminuírem o passo. Por fim, encontraram o acampamento pertencente aos

inimigos, mas, surpreendentemente, estava abandonado.

De repente, do topo do desfiladeiro ouviram-se uivos. Através da névoa eram

visíveis sombras a aterrarem no chão à volta dos soldados. Numa questão de segundos, os

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nativos encontraram-se rodeados por milhares daquelas criaturas horrendas e sedentas de

sangue. Durante alguns minutos, que mais pareceram uma eternidade, ambas as facções

ficaram a fitar-se, como que a estudar o inimigo. De súbito, o nosso imperador irrompe

pelas fileiras e a batalha começa.

Foi uma batalha bastante sangrenta, esta que se realizou entre uma tribo disposta a

tudo para defender o seu território e as feras que pretendiam alimentar-se dela. Apesar de o

meu povo estar em superioridade numérica, as bestas possuíam uma força incrível: com

uma só patada podiam separar um homem em dois.

No fim daquele conflito que durou um dia e metade do outro, a minha civilização

saiu vitoriosa, tendo matado todos os invasores. Mas, como a sacerdotisa previra, as nossas

perdas foram imensas, e não só numericamente. A calma que existe sempre no final de

uma batalha veio pôr a descoberto os corpos de todos os nossos mortos, incluindo o único

filho do nosso imperador.

Ao saber da notícia, a imperatriz não aguentou a angústia e suicidou-se. O marido

culpou-se então de ambas as mortes, o que só piorou a frágil condição psicológica em que

se encontrava, levando-o à loucura. Apesar de tudo, proibiu que alguém lhe retirasse o

cargo e condenou à morte todos os que se opunham a ele. A partir daí, o nosso outrora

grande império entrou em declínio, acabando mesmo por colapsar. O nosso povo viu-se,

por isso, obrigado a abandonar os territórios e a vaguear pelo Mundo.

Portanto... Em última análise, mesmo depois mortos, os invasores vindos do Norte

conseguiram misteriosamente acabar com a nossa civilização.”

- Então… O que achas da minha história? – perguntou ele.

- Está uma grande porcaria! – Respondeu o outro.

- O quê?!?!

Isto era demais… Isto era um ultraje… Ele não podia admitir que alguém dissesse

isso de uma história sua. Nem mesmo o outro… Pegou no taco de basebol favorito e, num

ataque súbito de loucura e raiva que ninguém conseguia compreender, espancou o outro

brutalmente – espancou o seu melhor e mais honesto amigo de tal modo que este só pôde

ser identificado pelo número de série do implante que tinha na perna.

No dia seguinte, antes de ser preso, foi, como era hábito, tomar o pequeno-almoço

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ao café ao lado do seu prédio e, até ser preso, ninguém desconfiou de nada.

Em vida, nunca confessou o crime. Quatro meses depois, foi encontrado morto na

sua cela de prisão: tinha deixado crescer as unhas de modo a conseguir cortar os próprios

pulsos. Ao seu lado, na cama, estava uma carta escrita por ele, onde confessava não só o

homicídio, mas também a violação de dezenas de prostitutas, desaparecidas nos últimos

dois anos.

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UM QUALQUER ACTO DE LOUCURA

Mateus Lopes Bregas

“O bullying existe desde sempre.” Refletiu ele. “Se bem que no início dos tempos

era uma forma de seleção natural, na qual os mais fortes rejeitavam os mais fracos, com

vista a preservar a espécie. Já hoje em dia serve apenas como fonte de prazer – como uma

demonstração de (falsa) superioridade. ”

Olhou em volta: a sala onde se encontrava era ampla, mas as paredes e o teto

pareciam aproximar-se dele como que a tentar observar a cena mais de perto – era escura e

taciturna, mas transmitia-lhe sentimentos de alegria. O espaço estava repleto de quadros

que retratavam nobres dignos e decentes, mas parecia aplaudir com fulgor a sua mente vil e

perversa. Depois focou a atenção nas pessoas à sua frente: apesar de apresentarem sinais de

desidratação, pareciam calmas e serenas. Estavam dispostas em três filas de quatro

cadeiras. Doze ao todo. Treze com ele.

Retirou da sua mala preta um conjunto de folhas A4 e entregou-o à mulher que

estava mais próxima de si. Esta deu uma vista de olhos pelos papéis e, reconhecendo o que

se encontrava escrito, questionou:

- Queres mesmo que leia isto?

- Se não for muito incómodo…

Ela começou a ler:

- “Se estão a ler isto, é tarde de mais. Vou colocar a mensagem em cima da mesa da

cozinha, agarrar na primeira faca que está na gaveta e, sem demoras, cortar a garganta com

violência. Este fim triste era o reflexo da minha triste vida.”

Apesar de a história não acabar ali, ele deixou de prestar atenção à leitura,

perdendo-se nos seus pensamentos e imaginando como seria estar hoje, daquele lado, no

lugar dos seus antigos colegas de turma. Concluiu que a situação não era tão má como

parecia.

Estavam todos ali reunidos. Eram seus reféns. Apesar de tudo, permaneciam

tranquilos. Não acreditavam que ele fosse capaz de lhes fazer qualquer coisa. Continuavam

a considerá-lo um cobarde – um zé-ninguém. No final desta noite, isso mudaria.

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“Será que ainda se lembram da história que estão a ouvir?” Pensou ele.

Logo se apercebeu que sim: as suas expressões faciais haviam mudado

ligeiramente. Mas a história, escrita por ele há dez anos, naquele período horrível chamado

universidade, não fazia parte do que iria acontecer no fim. Servia apenas para eles se

lembrarem dos velhos tempos. Tempos que tinham sido de glória para eles, mas que

tinham deixado marcas profundas nele, devido a toda a violência a que fora sujeito durante

esse período.

“Mas hoje à noite os papéis vão inverter-se. Hoje sim, eles irão passar por uma

ínfima parte de tudo aquilo que eu sofri.” Imaginou ele.

Houve sempre quem tentasse aproximar-se dele, mas acabavam, mais cedo ou mais

tarde, por desistir devido à sua personalidade.

Quanto mais refletia sobre o que poderia ter mudado em si próprio de modo a tentar

convencê-los a todos de que não era louco, mais se apercebia de que era realmente bastante

louco. Mas nada disso importava agora. Já estava farto: farto de estar ali sentado à espera,

farto da expetativa que, dentro daquela sala, parecia palpável, enfim... estava farto de tudo.

Chegara a hora.

Levantou-se, empurrou para o lado a ex-colega que lia a sua história, chamou a

atenção de todos e despiu o casaco preto, mostrando o colete de explosivos que envergava

e o respetivo detonador.

Apreciou o terror na cara dos seus ex-companheiros e, com um sorriso que deixava

transparecer toda a sua loucura, fez explodir o colete, ceifando a sua vida e levando atrás

outras doze.

Durante uma semana, os media trataram daquele caso com toda a histeria e

excitação associada a qualquer acto de loucura.

De súbito, o despertador tocou, acordando-o. Levantou-se. Para quê? Para mais um

dia de aulas? Ou para mais uma sessão de humilhação pública na escola? Insultou-se,

utilizando todas as ofensas que conhecia, mas não achou que fossem suficientes para

expressar o que sentia por não ter a coragem de levar a cabo aquele sonho e vingar-se dos

seus atormentadores.

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Posfácio

Para um verão negro

As histórias que acaba de ler foram escritas por alunos do 9º. e 10º. anos da Escola Secundária de Montemor-o-Novo, que participaram na Oficina de Escrita Criativa, uma atividade extracurricular dinamizada na Escola Secundária de Montemor-o-Novo, durante o ano letivo 2014-2015.

Estes alunos, gostando de escrever, necessariamente apreciam também a leitura, pois os textos que oferecem ao leitor remetem para os universos imaginários que povoam a literatura, do fantástico ao gótico, passando pelo policial e pelo psicológico.

Personagens atormentadas, de muitas maneiras, desde o Júlio de “A última página” até ao rapaz de “Um qualquer ato de loucura”, revelam cambiantes psicológicos capazes de prender a atenção e levar o leitor a correr avidamente atrás dos momentos descritos, para os acompanharem até desfechos surpreendentes. Richard, durão e galanteador, sucumbe de forma violenta – mas romântica! - após um caleidoscópio de cenas dignas do melhor clássico.

As histórias aqui apresentadas primam também pela riqueza dos enredos. “A morte – lenda tribal” exemplifica a construção intricada de uma narrativa, com um desfecho inesperado, após peripécias variadas, com um ritmo que faz desejar uma adaptação cinematográfica.

Os temas são negros, a concretização luminosa!

As ilustrações são de dois alunos do 10ºano, Luís Jorge e Ricardo Santos.

Estão todos de parabéns, o professor João Luís Nabo, por ter inspirado os alunos, os ilustradores e sobretudo os autores, que trarão com certeza novos textos para nos deliciarem após este verão negro.

Obrigada, Joaquim Quadrado e Mateus Lopes Bregas!

A professora bibliotecária

Helena Paula Roquete

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