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Agosto 2013
MUDANÇA E RESISTÊNCIA NOS MODOS DE VIDA EM COMUNIDA DES
RURAIS: UM ESTUDO DA COMUNIDADE DE VILA MANAUS, NO MUNICÍPIO DE
PARINTINS-AM-BRASIL.
Dilson Gomes Nascimento
Luís Fernando Belém da Costa
Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo principal analisar as práticas de resistências nos modos de
vida dos moradores da “Comunidade Vila Manaus”, localizada numa área rural de várzea, na margem
direita do Paraná do Ramos, no município de Parintins – AM, em uma ilha fluvial que periodicamente
é inundada durante a enchente dos rios. O modo de vida dos ribeirinhos encontra-se vinculado aos
saberes tradicionais e às mudanças em curso na comunidade e na região amazônica. A economia
baseia-se na agricultura familiar, na pecuária extensiva e na pesca artesanal. Constatou-se que na
comunidade estudada há aspectos da vida dos ribeirinhos semelhantes à realidade das demais
comunidades de várzea amazônicas onde o saber tradicional permite a permanência e reprodução do
varzeiro neste ecossistema criando condições para deslocamentos pelos rios, a construção de casas
com assoalhos altos para a proteção contra as enchentes, para o cultivo de plantas de ciclo curto, ou
ainda no uso comum dos recursos naturais. Porém, não se pode pretender que todas as
comunidades na Amazônia sejam homogêneas. Esta pesquisa é importante no sentido de contribuir
com os conhecimentos acerca do modo de vida em comunidades tradicionais da Amazônia, posto
que muitas vêm sofrendo transformações culturais significativas, porém, resistindo e ressignificando
essas mudanças, mantendo ainda certos costumes mesmo diante do avanço da modernidade.
Palavras-chave: comunidades tradicionais, resistência, cultura.
ABSTRACT
This study aimed to analyze the practices of resistance in the ways of life of the residents of "Manaus
Village Community", located in a rural area of floodplain on the right bank of the Paraná do Ramos, in
the city of Parintins - AM, on an island river that is periodically flooded during the flood of the rivers.
The livelihoods of riparian is linked to traditional knowledge and the ongoing changes in the
community and in the Amazon region. The economy is based on family farming in extensive livestock
and fishing. It was found that in the community studied for aspects of the lives of the riparian similar
situation in other lowland Amazonian communities where traditional knowledge allows the
permanence and reproduction of this ecosystem of lowland creating conditions for displacements
along the rivers, building houses with floors high for protection against floods, to the cultivation of
short-cycle plants, or the common use of natural resources. However, one can’t assume that all
communities in the Amazon are homogeneous. This research is important in order to contribute to
knowledge about the way of life in traditional communities in the Amazon, since many have suffered
significant cultural transformations, however, resisting and giving new meaning to these changes while
still maintaining certain customs in the face of the advance of modernity.
Keywords : traditional communities, resistance, culture.
INTRODUÇÃO
A organização social dos povos da Amazônia guarda em sua história lutas e
conflitos com a cultura e as racionalidades impostas pelos ditos povos civilizados. Ao
longo dessa trajetória figuram não raro como atrasados em oposição clara ao
moderno, que envolto em princípios individualistas asseveram a dicotomia entre
homem e natureza e finalmente o próprio distanciamento dos homens entre si.
Diante de tais circunstâncias os amazônidas construíram modos de vida pautados
em seu relacionamento com a natureza e nas práticas de resistências empreendidas
em seus movimentos reivindicatórios ou nas suas atividades cotidianas.
Os “conhecimentos tradicionais” desses povos tornaram-se uma categoria do
direito e um instrumento político e de defesa de seus territórios (ALMEIDA, 2010) na
luta pelo reconhecimento do direito ao acesso e ao uso dos recursos naturais e dos
territórios. Embora a vida dos povos tradicionais na Amazônia seja marcada em
parte pelo uso comum dos recursos e dos territórios, isso não quer dizer relações
harmônicas, ou mesmo que as relações sociais homogêneas. Assim, o presente
estudo pretende contribuir com o entendimento sobre o modo de vida de uma
comunidade ribeirinha do interior do município de Parintins, Amazonas.
A pesquisa teve como objetivo geral analisar as práticas de resistências nos
modos de vida dos moradores da “Comunidade Vila Manaus”. Tendo como
específicos: entender a forma como os moradores conseguem reproduzir sua cultura
ribeirinha através das praticas cotidianas de trabalho, das atividades econômicas e
hábitus, e também compreender de que forma o modo de vida ribeirinho se adéqua
(ressignifica) as imposições das condições de mudanças impostas pela
racionalidade urbana e capitalista. Assim, concentrou-se na temática das relações
de uso e de troca no modo de utilização das propriedades ribeirinhas na
comunidade, no conhecimento das relações de trocas estabelecidas entre a várzea
e sua circunvizinhança, e nas ações cotidianas que lhe permitem a resistência frente
às mudanças impelidas pela racionalidade urbana e capitalista.
Para a realização do estudo utilizou-se uma pesquisa de cunho qualitativa
explicativa, e como alicerce fundamentador o método fenomenológico. Os
procedimentos metodológicos foram baseados na observação direta, e nas
entrevistas realizadas com os moradores da comunidade com questões sobre
atividades econômicas, habitus e circularidade da cultura.
O artigo está estruturado da seguinte forma: Comunidades rurais:
concepções teóricas acerca do termo comunidades tra dicionais , onde é
abordada a temática das comunidades buscando identificar alguns usos e
significados do termo comunidades tradicionais; Comunidades Tradicionais e a
cultura ribeirinha na Amazônia , em que se expõem as peculiaridades das
comunidades tradicionais relacionadas ao conhecimento desenvolvido pelos
ribeirinhos em seu convívio com os rios e as florestas amazônicas; Comunidade
Vila Manaus: característica da cultura ribeirinha , onde são abordados os modos
de vida dos ribeirinhos em suas relações com o rio e as peculiaridades do
ecossistema de várzea; Relações sociais de produção na Comunidade Vila
Manaus , neste ponto procura-se compreender a forma de como os ribeirinhos
procedem no desenvolvimento de suas econômicas frente as racionalidades
capitalistas impostas; O saber/fazer na comunidade e os modos de resistên cia ,
refere-se ao fazer cotidiano dos ribeirinhos e a manutenção/conservação de
elementos culturais que remetem ao passado desses povos.
Comunidades rurais: concepções teóricas acerca do t ermo comunidades
tradicionais
A vida dos homens em comunidade é uma busca pela garantia do convívio
pautado nas relações proximais que permitam aos indivíduos a sua inserção na
coletividade. A comunidade é para Tedesco (1999) uma integração fundamental
para a estrutura do conjunto social e para o desenvolvimento do homem; ela tende a
promover a consciência em relação aos outros. É uma forma de manter o
funcionamento da estrutura social por meio do reconhecimento do outro em
detrimento da individualidade.
A sua representação mais ampla refere-se ao campo da política e da
cidadania, implica a própria construção humana por meio do mundo da vida, sendo a
comunidade seu espaço mais fecundo. A comunidade torna-se “a expressão
deontológica do ser social que se exterioriza na luta pela garantia de acesso a bens
para usufruto coletivo (TORRES, 2012, p. 19)”.
No âmbito da comunidade como organização social e política o termo ganha
significados diversos e implica a autodesignação dos povos ou comunidades
tradicionais. De antemão não se pode designar quais sejam as comunidades
tradicionais, posto que os meios para tal passa antes de tudo, pela própria
autoafirmação desses grupos sociais e pela forma como se relacionam e como
usufruem dos recursos naturais.
No campo jurídico a autodesignação é condição necessária para o
reconhecimento do direito desses povos. A saber, a Convenção no169 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais não
define a priori quem são esses “povos indígenas e tribais”, apenas oferece
instrumentos para que o próprio sujeito se auto-defina, como o da “consciência de
sua identidade” (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 46), cabendo a cada país que a
ratifique a deliberação a respeito dos grupos sociais aos quais a Convenção deva
ser aplicada.
Em âmbito nacional o Decreto no 6.040 de 7 de fevereiro de 2007 em seu
Inciso I, do Art. 3o, considera como:
Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (apud SHIRAISHI NETO, 2007, p. 46).
Nesse sentido, a designação desses povos e o seu reconhecimento jurídico
constitui-se em importante campo de luta pelo reconhecimento destes sobre os
direitos ao uso de territórios e os recursos que são imprescindíveis para sua
reprodução.
Cada povo ou comunidade possui uma organização social e política
diferenciada e realiza também de forma diversa o uso dos recursos naturais, sendo,
portanto heterogêneas. O modo de organização social e política dessas
comunidades diferem-se em função de suas reivindicações serem distintas em
alguns casos. Essa heterogeneidade resulta das diferenciações sociais econômicas
e religiosas entre esses povos, embora eles estejam em alguma medida unidos por
critérios político organizativos e por modalidades diferenciadas de uso comum dos
recursos naturais (ALMEIDA, 2007, p. 16).
Em Mendonça et. al. (2007) é abordado o termo “população tradicional”, que
segundo a autora vem sendo bastante discutido, porém não havendo consenso
sobre uma definição universalmente aceita, mas faz referência à forma como o
conceito vem sendo empregado para indicar a autodesignação de populações rurais
na reivindicação de seus direitos e políticas públicas.
Para Torres (2012, p. 20) os conceitos não são sinestésicos ou espécies de
unidades de pensamento encapsulados, são devires dinâmicos que sobrevoam a
realidade social se ressignificando e/ou se transmutando de acordo com os
processos históricos.” Este parece ser um aspecto importe para o entendimento das
“comunidades tradicionais” como grupos sociais que lutam pelo reconhecimento de
seus direitos. Porém, a autora enfatiza que o conceito de comunidade elaborado
pelo etnógrafo Charles Wagley na década de 1940, focado no aspecto sociocultural
da religiosidade e das crenças, vigorou por longo período.
Não havendo consenso sobre a definição do termo comunidades tradicionais,
e considerando que um conceito fechado poderia causar o seu congelamento
desconsiderando as transformações pelas quais passam, o importe é que se
trabalhe com os significados como proposto pelo antropólogo Alfredo Wagner
(2008).
Comunidades Tradicionais e a cultura ribeirinha na Amazônia
A Amazônia é abordada neste artigo sob o ponto de vista das relações
existentes em uma comunidade rural ribeirinha, não privilegiando os elementos
comumente destacados na vasta literatura existente a cerca de suas dimensões
continentais e riquezas de recursos naturais. Assim destacamos inicialmente que
trabalhamos com a noção de “ecossistema amazônico” sendo marcado pelas
relações sociais antagônicas, em que se estabelece um campo de lutas em torno da
apropriação do patrimônio genético, do uso das tecnologias e dos conhecimentos ou
pelo uso dos recursos naturais (ALMEIDA, 2008).
Na Amazônia os povos tradicionais não-indígenas possuem um modo de vida
baseado na atividade extrativista seja ela aquática ou florestal, vivendo grande parte
nas margens de rios, igarapés, várzeas e lagos (MENDONÇA, et. al., 2007). São
povos que aprenderam por meio do uso dos recursos naturais e das relações sociais
a conviver com o rio, a floresta, fazendo destes, elementos de representações de
sua própria vida, as identidades coletivas.
O ribeirinho também está inserido entre os povos tradicionais da Amazônia,
cujo termo refere-se àquele que anda pelos rios. O rio constitui a base de
sobrevivência dos ribeirinhos, fonte de alimento e via de transporte, graças,
sobretudo às terras mais férteis de suas margens. (MENDONÇA, et. al., 2007, p.
94). Esses povos possuem estreita relação com os rios nos quais tem muito mais
que o alimento, tem todo um complexo cultural forjado nas suas múltiplas relações
que com ele estabeleceram ao longo da ocupação de suas margens como
localização estratégica e da consolidação das comunidades como forma
organização social.
Para Gonçalves (2010) o ribeirinho reúne os aspectos culturais de toda a
diversidade de povos da Amazônia, sendo, portanto o mais característico da região.
Para ele ao relacionar-se com o rio e com a floresta o ribeirinho desenvolveu uma
gama de conhecimentos sobre o ecossistema amazônico:
O interessante é que esses amazônidas têm uma visão e uma prática nas quais solo, floresta e rio se apresentam como interligados, um dependendo do outro, dos quais todo um modo de vida e de produção foi sendo tecido, combinando essas diferentes partes dos ecossistemas amazônicos com a agricultura, o extrativismo e a pesca. São produtores polivalentes. (p. 155).
Ressalte-se que mesmo tendo usufruído por longo período dos recursos
naturais esses povos são detentores apenas de fato, mas não de direito desses
recursos, e isto tem sido motivo de inúmeros conflitos e disputas por interesses e
racionalidades diversas, envolvendo os recursos pesqueiros e/ou florestais.
Comunidade Vila Manaus: característica da cultura r ibeirinha
O presente estudo foi realizado na Comunidade Vila Manaus, Parintins,
Amazonas, Brasil. A comunidade está localizada acerca de 10km em linha reta ao
sul da sede municipal, numa ilha fluvial à margem direita do Paraná do Ramos. Sua
economia está baseada na agricultura familiar, na pecuária extensiva e na pesca
artesanal.
A educação ofertada atende somente os alunos das séries iniciais do ensino
fundamental, para as séries seguintes é preciso deslocar-se para as comunidades
de terra firme mais próximas, ou ainda para as escolas na cidade de parintins. Na
comunidade não há posto de saúde, conta apenas com os serviços do Agente
Comunitário de Saúde com a medicina preventiva, nos casos de urgencia médica os
ribeirinhos também buscam atendimento em outras comunidades ou na cidade.
A relação dos ribeirinhos com as comunidades de terra firme e com a cidade
acontecem ao longo do ano sendo intensificadas durante as inundações dos diques
fluviais, quando muitos procuram abrigo para as famílias e para os animais nas
terras mais altas.
Diante das peculiaridades sociais e ecológicas, a convivência no ecossistema
amazônico fez surgir em meio os ribeirinhos distantes do amparo das políticas
públicas, um modo de vida próprio por meio da tradição de construção de barcos e
moradias adaptados às particularidades regionais, conhecimentos que se encontram
ameaçados pelo privilégio ao transporte rodoviário numa região com grande
potencial hidroviário (GONÇALVES, 2010).
A vida dos ribeirinhos é marcada pelo conhecimento profundo que possui das
várzeas, materializado nos seus modos de vida. O rabeta (Figura 00) é um tipo de
embarcação que permite o transporte na Amazônia durante todo o ano, porém sua
maior utilidade está ligada ao período de vazante do rio, quando as águas dão lugar
às terras impedindo a circulação/acesso de grandes embarcações aos lagos e as
comunidades mais distantes dos rios principais.
Figuras 01 e 02: A: Rabeta, embarcação utilizada pelos ribeirinhos. B: Palafita com trapiche para facilitar o acesso ao Paraná do Ramos. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
As palafitas (Figura 02) também traduzem e materializam o conhecimento do
ribeirinho, são casas construídas sobre estacas acima do nível de transbordamento
do rio e que lhes permitem a reprodução e o convívio com as peculiaridades desses
ecossistemas.
Nas comunidades ribeirinhas da Amazônia e não diferentemente na
Comunidade pesquisada, o rio figura-se para os ribeirinhos como um importante
meio de transporte permitindo seu deslocamento nas atividades mais rotineiras
como o acesso aos lagos de pesca, o transporte escolar das crianças, o
deslocamento de pessoas e mercadorias para a cidade, para as comunidades
próximas onde praticam atividades esportivas, de lazer e religiosas. Mas a vida nas
várzeas onde as estradas são os próprios rios, ultrapassa as questões práticas do
uso da água, pois possui uma dimensão simbólica construída e alimentada pelo
imaginário ribeirinho. O rio passa então ser símbolo cultural seja por meio das
lendas, seja por meio dos causos, das histórias contadas que acabam sendo
relacionadas à própria história dos lugares.
Relações sociais de produção na Comunidade Vila Man aus
Ainda que a agricultura possa parecer incipiente a priori, é preciso pensar a
atividade diante dos conflitos e da exigência por espaços pelos criadores de gado
bovino na comunidade1. O arrendamento de uma gleba de terra realizada pelos
comunitários para os proprietários de gado (que nem sempre são da própria
comunidade) constitui-se uma importante atividade mercantil. O arrendamento
assegura a renda familiar, sendo rentável à medida que a pastagem recompõe-se
naturalmente nos dique marginais, assim o uso do solo para cultivo de leguminosas
e hortaliças acaba ficando em segundo plano.
Na área estudada verificou-se casos em que os ribeirinhos arrendatários2 não
utilizam o solo de várzea para o cultivo de plantas por não deterem a posse da terra.
Ao contrário, da terra firme onde são proprietários da terra e plantam pimenta de
cheiro, pimentão, pepino, cheiro verde e, principalmente, mandioca para a
fabricação de farinha, os quais visam apenas a subsistência da família.
1 A criação de gado bovino na comunidade exige grande espaço em função da pecuária ser extensiva. A maioria dos terrenos não possui cercas delimitando as estremas o que permite ao gado transitar livremente pelos terrenos podendo causar danos às plantações. 2 Pequenos criadores de gado com moradia fixa na terra firme que alugam temporariamente terrenos de várzea para a locação dos rebanhos. Estes não praticam a agricultura temporária na comunidade em função do curto período de tempo em permanecem na várzea.
Outro aspecto importante sobre agricultura familiar local refere-se a uma
atividade que não atende exigências externas de mercado, passa impreterivelmente
pelas necessidades de consumo interno das famílias e das trocas estabelecidas com
outras comunidades próximas, assim como ocorre com a atividade da pesca que é,
em parte, destinada às trocas por produtos como a farinha de mandioca com as
comunidades de terra firme. Essa lógica se encaixa em Oliveira (2007) quando o
mesmo chama atenção para a manutenção das relações não capitalistas no campo
em pleno século XXI, relações mediadas por uma lógica onde os processos de
resistência a incorporação da economia capitalista cria e recria condições para a
manutenção de relações não capitalistas dentro de um contexto capitalista, como se
verifica no caso específico da comunidade pesquisada.
As relações de trocas entre as comunidades são práticas rotineiras e
possuem dias marcados para acontecerem. Esse intercâmbio de produtos também
possui uma dimensão simbólica presente nas relações entre as pessoas, sendo
responsável pela manutenção da comunicação entre os lugares estimulando modos
de produção que privilegiam os conhecimentos tradicionais.
As trocas permitem aos ribeirinhos o suprimento de alimentos, como os
derivados da mandioca, que não são produzidos na várzea, seja pelas
características ambientais de seu ecossistema, seja pela dedicação quase exclusiva
à pecuária, à pesca artesanal, ou ao cultivo de hortaliças. Assim, a vida dos
varzeiros3 não se reduz ao seu local imediato, mas relaciona-se constantemente
com a circunvizinhança constituindo-se numa complementaridade.
As relações entre várzea e terra firme estendem-se pelos meses posteriores
às inundações em que muitos ribeirinhos deslocam-se para as terras mais altas.
Durante o período de varão mais intenso, em outubro e novembro, a qualidade da
água do Paraná do Ramos4, fica imprópria ao consumo humano devido o volume e a
velocidade da água ser reduzido no canal. A situação agrava-se com o despejo de
animais mortos no Paraná, como bois e cavalos, ou ainda com o abate ilegal de
jacarés5.(figura 03)
3 População que interage com os dois ambientes - terra firme e várzea - independente do regime das águas marcado pela mobilidade. Moreira (2004). 4 Por definição Paraná é “o próprio rio ou um braço deste, na terminologia amazônica...” (GUERRA & GUERRA, 2011, p. 463). 5 Embora não possua plano de manejo, os jacarés são abatidos pelos ribeirinhos por representarem uma ameaça à segurança principalmente das crianças nas margens do Paraná do Ramos.
Figura 03: Abate de jacaré no Paraná do Ramos. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
Com a poluição da água, os ribeirinhos para consumi-la, precisam hidratá-la
com hipoclorito de sódio distribuído pelo Agente Comunitário de Saúde ou
deslocarem-se para a comunidade de terra firme mais próxima para a retirada da
água de um poço artesiano. Esse é um dos maiores problemas principalmente
porque a produção de queijo consome muita água. Por outro lado, permite uma
conexão entre várzea e terra firme que não se encerra com a vazante dos rios,
embora não deixe de estar associado às condições climáticas regionais.
O trabalho artesanal na produção do queijo assegura a sua aceitação
(consumo) no mercado da cidade. Para o atendimento das exigências de mercado
os ribeirinhos dispõem do domínio da técnica e do processo produtivo dispensando
a mecanização ou a industrialização. Durante a produção “é preciso ter paciência”
sendo necessário considerar a proporção de leite para a quantidade de massa a ser
cosida, pois, se houver “pouco leite para muita massa o queijo pode ficar duro ou
azedo”, como nos relatou uma comunitária.
Para o ribeirinho não é vantajoso “economizar” em qualquer um dos
ingredientes, posto que isso possa levar a uma má qualidade do produto, observado
nos termos “azedo” ou “duro”. O queijo é um dos produtos mercantis local, sendo
comercializado na cidade de Parintins. A relação com a cidade neste caso é um dos
fatores que determinam a qualidade do produto, uma vez que a produção visa o
mercado externo e não as necessidades internas das famílias.
Para manter a qualidade do queijo, principalmente no período de estiagem de
agosto a novembro quando a produção de leite diminui, é comum ocorrerem trocas
ou empréstimos de leite ou manteiga entre os vizinhos para suprir as necessidades
da produção. Os empréstimos em si não guardam a obrigatoriedade do pagamento,
pois ocorrem de modo informal, nem tampouco requer serem pagos com a mesma
quantidade, porém é uma prática que implicitamente exige ser retribuída. Para
Tedesco (1999, p. 117) a solidariedade não é natural e gratuito:
Há princípios de solidariedade que se fundem na auto-ajuda, na prestação de serviços, na troca de bens e/ou mercadorias, no empréstimo de produtos no momento de carência, bem como de dias de serviços, etc. No entanto, a solidariedade precisa ser recíproca; há um grau de cobrança que não é explicito, mas que regula o grau de solidariedade e o crédito futuro.
Por mais que no momento dos empréstimos não se firmem compromissos
com o pagamento este se torna imprescindível para assegurar as trocas futuras.
O saber/fazer na comunidade e os modos de resistênc ia
A propriedade privada da terra e dos meios de produção é parte das
condições primordiais para a existência da sociedade capitalista. É somente por
meio da expropriação da terra e dos meios de produção que se torna possível as
relações de exploração das classes inferiores pelas classes superiores. Para
Gonçalves (2011, p. 47-48) “Se não houver, por exemplo, uma parte da sociedade
totalmente desprovida de meios próprios para produzir sua vida, o trabalho
assalariado não existe e sem ele o capital não tem sentido...”. Diante do exposto, a
permanência do trabalhador não assalariado no campo está condicionada à posse
da propriedade onde pratica a agricultura familiar, onde a terra é tida enquanto valor
de uso, do contrário passa a vender sua força de trabalho nas grandes lavouras ou
fazendas onde a propriedade privada assume valor de troca.
Na comunidade Vila Manaus ocorrem diferentes usos da terra, hora como
valor de uso, hora como valor de troca. O uso de cercas para a delimitação e
“proteção” das propriedades pode ser observado apenas em algumas fazendas. Em
outros casos os terrenos não possuem cercas e permitem o uso comum dos
recursos naturais. Animais como porcos, bois e cavalos transitam livremente pelas
propriedades. Tal situação representa a manutenção de uma relação de produção
não especificamente capitalista (MESQUITA, 2011).
Entretanto, o uso comum dos recursos não está livre das disputas e conflitos
entre os moradores. Como não há regras formais estabelecidas para o uso comum
das propriedades é preciso que cada morador apreenda-as no próprio convívio, nas
relações estabelecidas entre os sujeitos. Quando tais regras são desconhecidas ou
descumpridas situações de conflitos podem ocorrer. Em um dos casos, um morador
novo na comunidade teve sua roça atacada por porcos de um vizinho, revoltado com
o prejuízo prometeu matar os animais, atitude que foi reprovada pelos demais, pois
nesses casos em que a propriedade não é cercada o “correto” é o domo cercar a
sua plantação (Figura 04).
Figura 04: Uso de cercas para proteção dos cultivos na Comunidade Vila Manaus. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
É inerente ao trabalho do colono em seu relacionamento com a terra
(natureza) um complexo jogo de equilíbrio (TEDESCO, 1999). O modo como os
ribeirinhos lidam com as características ambientais revelam seu saber-fazer no
ecossistema Amazônico. As plantas de ciclo curto, o consorciamento de culturas
(Figura 05) e o cultivo de plantas em balcões suspensos (Figura 06) mostram aquilo
que essas pessoas sabem sobre a dinâmica do rio, das estações do ano, etc.
Figura 05: Consorciamento de culturas na Comunidade Vila Manaus. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
Entre os ribeirinhos há dois sistemas de cultivo: a) diretamente no solo e b)
em balcões suspensos. O primeiro ocorre em pequenos terrenos cercados onde
plantam de forma consorciada melancia, pepino, feijão, macaxeira, banana, jerimum,
etc. Esta prática ao mesmo tempo em que diminui a ocorrência de pragas como
insetos e ervas daninha, também permite maior diversidade alimentos para as
famílias. O segundo, com o cultivo de plantas como cebolinha, pimenta e couve em
balcão suspenso assegura o consumo interno das famílias mesmo no período em
que as terras da várzea estão submersas por ocasião das enchentes do rio.
Figura 06: Cultivo em balcões suspensos na Comunidade Vila Manaus. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
Vê-se que o uso da terra está vinculado à reprodução familiar, atendendo as
necessidades imediatas das famílias e respeitando as características naturais dos
ecossistemas de várzea.
O período de plantio, o não uso de herbicidas, o consorciamento das culturas
implicam no domínio de técnicas tradicionais de manejo de culturas e da própria
terra, relações entre homem-terra-trabalho que a modernidade não tomou por
completo, sendo “... todos elementos constitutivos do sistema de trabalho, de um
saber/fazer que se atualiza e se traduz constantemente (TEDESCO, 1999, p. 97)”.
O fato dos ribeirinhos serem detentores de um saber tradicional em seu
procedimento na pesca, na agricultura, na fabricação do queijo de forma que lhe é
própria, mas também apreendida (de forma não institucionalizada), torna esse saber
familiar um elemento de resistência e tende a facilitar o processo de trabalho. Todos
esses conhecimentos trazem em seu bojo uma relação estreita com a família, sendo
que “o habitus familiar no ramo desenvolve uma dimensão mais afetiva com o
processo de trabalho que a atividade envolve (TEDESCO, 1999, p. 98)”.
Em seu modo de vida, os ribeirinhos na Comunidade Vila Manaus mantêm o
costume de conservar o peixe em salmoura6 constituindo-se num elemento cultural
da vida desses povos (Figura 07).
Figura 07: Peixes desidratados guardados no teto da casa na Comunidade Vila Manaus. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
6 Salmourado na expressão dos ribeirinhos. Refere-se à conservação de alimentos em sal.
O ato dos ribeirinhos conservarem peixe em salmoura não seria uma tradição
ou não implicaria uma resistência caso não houvesse outras formas de conservar os
alimentos. Primeiramente com base em Hobsbawm (2012) podemos dizer que
salgar o peixe apresenta: a) um lado prático, pois essa é uma técnica antiga entre os
ribeirinhos, remonta ao tempo em que não havia fábricas de gelo na sede municipal,
ou mesmo os aparelhos elétricos como a geladeira e o freezer que hoje são comuns
na comunidade, visto que a mesma está integrada ao Projeto Luz Para Todos do
Governo Federal (Figura 08); b) uma tradição, pois salgar o peixe foi uma forma de
conservá-lo para ser comercializado posteriormente, com a decadência dessa
atividade econômica realizada em outros tempos na Amazônia os ribeirinhos
passaram a manter esse costume, principalmente em função do sabor diferenciado
que o peixe salgado possui quando comparado ao mesmo alimento mantido
refrigerado.
Figura 08: Torres de transmissão de energia do Projeto Luz Para Todos na Comunidade Vila Manaus. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
O projeto que a princípio poderia trazer “conforto” aos ribeirinhos é motivo de
reclamações referentes às constantes interrupções no fornecimento e ao atraso no
envio das contas de luz pala empresa que fornece o serviço. Os moradores só
recebem as contas a cada três meses ficando acumulados os débitos. De acordo
com os dados obtidos em entrevista alguns pagam entre R$7,00 (sete reais) e
R$8,00 (oito reais) por mês, para outros o consumo mensal supera os R$100,00
(cem reais).
Este é um dos exemplos das políticas governamentais implantadas na
Amazônia que em sua maioria guardam pouca ou nenhuma relação com a vida de
seus habitantes (GONÇALVES, 2010). Os problemas dessas ações do Estado para
a região tornam-se mais evidentes à medida que transformam modos de vida,
estabelecidos por meio de relações proximais entre seus pares e a própria natureza
de onde tiram grande parte dos insumos necessários a sua vida, transformando-os
em consumidores.
No entanto, nem todos os ribeirinhos fazem uso das comodidades oferecidas
pela energia elétrica. Há casas razoavelmente bem equipadas com geladeiras,
freezers, televisão, aparelhos de som ou máquina de lavar outros, porém, preferem
um modo de vida que lhes remete ao passado como o uso do rio, para lavar a roupa
(Figura 09).
Figura 09: Lavagem de roupa nas margens do Paraná do Ramos na Comunidade Vila Manaus. Fonte: Trabalho de campo, novembro de 2012.
Esta é uma forma de resistência empreendida pelos ribeirinhos de um lado
pela própria carência que lhes impedem de adquirir e usufruir dos eletrodomésticos,
de outro pelo receio que estes guardam com tais inovações como o surgimento das
dívidas com o consumo de energia ou seu fornecimento irregular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vida dos povos tradicionais na Amazônia tem sido marcada pela forma
como usam e se relacionam com os recursos naturais, pelo conhecimento que surge
em meio às vivencias, aos constantes desafios que lhes são impostos, aos
obstáculos que pretendem a sua eliminação ou transformação dos que muitos
chamam de “atrasado” em “moderno”.
Como se vê, esses povos estão inseridos em campos de lutas em torno da
manutenção de seus modos de vida e da garantia ao acesso aos recursos naturais
imprescindíveis a sua reprodução. Da sua luta resulta a resistência que se firma por
meio dos saberes tradicionais ou dos conhecimentos adquiridos nos próprios
embates travados no campo político, social, cultural ou econômico contra
racionalidades diferentes.
Na comunidade Vila Manaus os modos de resistência manifestam-se sob
diferentes aspectos da vida dos ribeirinhos, sem contudo, poder-se afirmar o
purismo dos seus modos de vida, posto que diferentes racionalidades fazem parte
de seu cotidiano. O ribeirinho exposto neste trabalho mantém relações sociais que,
de um lado apresentam-se relacionadas com seu saber tradicional, com sua vivência
no ecossistema de várzea, com suas manifestações culturais presentes no seu
modo de produção etc., de outro se mostra em meio a realidades culturais opostas
que surgem com políticas pensadas fora e sem a participação da comunidade como
o Projeto Luz Para Todos.
A manutenção da vida ribeirinha faz-se por meio das relações que
estabelecem entre si, da aceitação de regras informais estabelecidas para a
utilização comum dos recursos naturais, do uso dos conhecimentos adquiridos com
a dinâmica dos rios, as características dos solos, fatores que interferem nas
decisões do onde, como e quando fazer diante as peculiaridades locais e regionais,
das necessidades internas e externas das famílias.
As peculiaridades encontradas na Comunidade Vila Manaus são em parte
diferentes de muitas comunidades de várzea da Amazônia, onde o uso do solo é
realizado principalmente pelos agricultores familiares nas policulturas que visam a
comercialização principalmente com as cidades.
Na área estudada, porém mesmo diante das características dos solos e de
todo um conhecimento adquirido pelo ribeirinho sobre o manejo de culturas, não se
observa áreas cultivadas maiores àquelas que garantam o consumo imediato das
famílias e/ou alimentam as trocas entre as comunidades. Os motivos que contribuem
para esse fato ainda são pouco conhecidos e requerem esforços e desenvolvimento
de novas pesquisas para o esclarecimento destas e de outras questões levantadas
que fazem parte da vida destes ribeirinhos, mas que possuem por vezes
interpretações sob pontos de vistas que os colocam em condição de atrasados
frente à modernidade, o que em nada contribui para o conhecimento de suas
práticas e dos conflitos em que estão envolvidos.
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