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A coletânea Africanidades brasileiras e educação, organizada por Azoilda Loretto Trindade, é composta de textos que foram produzidos para o programa Salto para o Futuro, da TV Escola, ao longo da última década
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2
Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola
Coordenação editorial
Rosa Helena Mendonça
Diagramação e editoração
Norma Cury
Capa
Daniel Barroca
Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins
Revisão Final
Milena Campos Eich
DaDos InternacIonaIs De catalogação na PublIcação (cIP)
(câmara brasIleIra Do lIvro, sP, brasIl)
Africanidades brasileiras e educação [livro eletrônico] : Salto para o Futuro / organização
Azoilda Loretto Trindade.
Rio de Janeiro : ACERP ; Brasília : TV Escola, 2013.
1,58 Mb ; PDF
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-60792-06-1
1. África - História 2. afro-brasileiros - brasil 3. Diversidade cultural 4. educação - brasil 5. mul-
ticulturalismo 6. Preconceitos 7. Professores - Formação 8. Programa salto para o Futuro (tv
escola) I. trindade, azoilda loretto.
13-11695. cDD-370.117
Índices para catálogo sistemático: 1. afro-brasileiros e africanos : Diversidade : educação 370.117
Todos os direitos desta edição reservados à Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto
(ACERP) e à TV Escola (MEC)
reprodução de textos permitida para fins educativos e desde que citada a fonte.
e-mail: [email protected]
rua da relação, 18, 4º andar
ceP.: 20231-110 – rio de janeiro (rJ)
2013
3
Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO
SALtO pARA O FUtURO
Organização
Azoilda Loretto da Trindade
acerP
tv escola/mec
rio de Janeiro/ brasília
2013
AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO
SuMáRiO
Apresentação ........................................................................................................... 8
introdução ..............................................................................................................10
Capítulo 1 – ABORDAgEnS gERAiS SOBRE MultiCultuRAliSMO E DivERSiDADE
CultuRAl ................................................................................................................18
i. Multiculturalismo ou de como viver junto ..........................................................21
Mary Del Priore
ii. Por um multiculturalismo democrático ........................................................ ...28
Sueli Carneiro
iii. Pluralidade e diversidade ................................................................................. 33
Carla Ramos
iv. Saberes culturais e educação do futuro ............................................................ 39
Edgard de Assis Carvalho
v. Redes de convivência e de enfrentamento das desigualdades ............................ 47
Elizeu Clementino de Souza
vi. Diversidade e currículo .................................................................................... 55
Nilma Lino Gomes
vii. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para
todos ...................................................................................................................... 58
Azoilda Loretto da Trindade
Capítulo 2 – AFRiCAniDADES .................................................................................. 64
5
A. ASPECtOS gERAiS
i. Africanidades, afrodescendências e educação .................................................... 68
Henrique Cunha Júnior
ii. Humilhação, encorajamento e construção da personalidade ............................ 80
Azoilda Loretto da Trindade
iii. A lei n. 10.639/2003 altera a lDB e o olhar sobre a presença dos negros no Brasil
e transforma a educação escolar............................................................................ 86
Bel Santos
iv. áfrica viva e transcendente! ............................................................................. 92
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
v. Diversidade étnico-racial no currículo escolar do ensino fundamental ........... 101
Véra Neusa Lopes
vi. O legado africano e a formação docente .........................................................108
Marise de Santana
vii. As relações étnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto
político-pedagógico ............................................................................................... 119
Lauro Cornélio da Rocha
B. EDuCAÇÃO inFAntil
i. valores civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil ............................... 131
Azoilda Loretto da Trindade
ii. As relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileiras na educação
infantil ..................................................................................................................139
Regina Conceição
iii. tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira
(uma reflexão) .......................................................................................................144
Azoilda Loretto da Trindade
6
C. EDuCAÇÃO QuilOMBOlA
i. Os quilombos e a educação ...............................................................................153
Maria de Lourdes Siqueira
ii - Quilombo: conceito ..........................................................................................158
Gloria Moura
iii. Saberes tradicionais de saúde .........................................................................162
Bárbara Oliveira
iv. Organização social e festas como veículos de educação não-formal ...............168
Verônica Gomes
v. Kalunga, escola e identidade – experiências inovadoras de educação nos
quilombos .............................................................................................................172
Ana Lucia Lopes
vi. lei nº 10.639/2003 e educação quilombola – inclusão educacional e população
negra brasileira .....................................................................................................178
Denise Botelho
D. AFRiCAniDADES BRASilEiRAS
Documentário: “Africanidades Brasileiras e Educação” ........................................184
Capítulo 3 – EntRECRuZAMEntOS tEMátiCOS – MultiCultuRAliDADES,
DiSCiPlinARiDADES E AFRiCAniDADES ................................................................199
i. Ciência multicultural ........................................................................................202
Ubiratan D’Ambrosio
ii. Afroetnomatemática, áfrica e afrodescendência .............................................208
Henrique Cunha Junior
iii. A multiculturalidade na educação estética .....................................................220
Ana Mae Barbosa
7
iv. A Construção estético-cultural de um espaço .................................................226
Laura Maria Coutinho
v. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre
afro-brasileiros .....................................................................................................232
Heloisa Pires Lima
vi. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural ..........................237
Maria Elisa Ladeira
vii. no tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores ..............245
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
viii. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória iorubá ...................253
Juarez Tadeu de Paula Xavier
iX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras .................................257
Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza
X. Conto popular, literatura e formação de leitores ..............................................272
Ricardo Azevedo
Xi. literatura e pluralidade cultural ......................................................................280
Marisa Borba
Xii. novas bases para o ensino da história da áfrica no Brasil .............................288
Carlos Moore
Xiii. Enfrentando os desafios: a história da áfrica e dos africanos no Brasil na nossa
sala de aula ............................................................................................................301
Mônica Lima
Xiv. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e
afro-brasileira .......................................................................................................307
Mônica Lima
8
APRESENTAÇÃO
AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO
Rosa Helena Mendonça1
a coletânea Africanidades brasileiras e educa-
ção, organizada por azoilda loretto trinda-
de, é composta de textos que foram produzi-
dos para o programa salto para o Futuro, da
tv escola, ao longo da última década2.
o projeto surgiu e ganhou força durante a
produção do documentário Africanidades
brasileiras e educação, exibido em outubro
de 2008, pela tv escola.
Para a realização do documentário foi ne-
cessário realizar uma pesquisa que envolveu
uma seleção de textos sobre a temática nas
publicações eletrônicas, além do visiona-
mento de séries e transcrição de entrevistas
que compõem o acervo do programa. Daí
para esta coletânea, estava dado o primeiro
passo.
caberia à organizadora explicitar, a partir
da linha editorial, a concepção teórica que
fundamenta o trabalho e a organização
dos capítulos, de acordo com as temáticas
subjacentes aos textos. ela foi além, empre-
endendo uma busca que excedeu às séries
realizadas especificamente para subsidiar a
implementação da lei n. 10.639/03. nessa
perspectiva, a obra traz infinitas possibili-
dades de leitura e combinações temáticas
desafiadoras. o capítulo 1 trata de Abor-
dagens multiculturais amplas; o capítulo
2, que inclui o texto complementar ao do-
cumentário, enfoca as Africanidades; e o
capítulo 3 aponta para Entrecruzamentos
temáticos, ao destacar as contribuições da
ciência e da literatura nas abordagens mul-
ticulturais.
este livro é mais uma iniciativa da secretaria
de educação básica (seb), do ministério da
educação, que, por meio do programa sal-
to para o Futuro, da tv escola, tem buscado
contribuir para a formação continuada de
1 supervisora pedagógica do programa salto para o Futuro/tv escola (mec). Doutoranda no ProPeD-uerJ.
2 os créditos dos autores correspondem à época em que os textos foram escritos. considerando que um dos objetivos da publicação é refletir o pensamento sobre a temática ao longo desse tempo, optamos também em não solicitar aos autores a atualização dos textos, preservando, assim, a perspectiva histórica dos mesmos.
9
professores da educação básica na implan-
tação da lei 10639/03.
a realização desta obra não teria sido possí-
vel sem a colaboração de ana maria miguel
e de carla ramos, analistas educacionais do
programa, que participaram da seleção ini-
cial do material, e de magda Frediani mar-
tins, revisora, que foi responsável pela pre-
paração e revisão do livro, contribuindo na
edição com sua experiência e sensibilidade.
Devemos, ainda, a Fernanda braga, analista
educacional, a formatação inicial dos textos,
a organização de notas, títulos e outros as-
pectos gráfico-editorais, o que possibilitou a
primeira versão dos originais. também par-
ticiparam deste projeto a analista educacio-
nal mônica mufarrej, que organizou um cD
com os textos, e amanda souza, estagiária
do salto para o Futuro, que fez a transcrição
das fitas com entrevistas.
De minha parte, sinto especial satisfação em
ter idealizado esta publicação e supervisio-
nado todo o processo de edição. ao longo
de vários meses, tive o privilégio de fazer a
interlocução entre a organizadora da coletâ-
nea e os demais profissionais envolvidos, to-
dos empenhados em fazer chegar às escolas
brasileiras mais esta obra de referência para
a implementação da lei nº 10.639/03 e da lei
nº 11.645/08.
vale destacar que a maior parte dos textos
que compõem esta publicação foi produzida
para séries que foram realizadas pelo salto
para o Futuro/tv escola por demandas fei-
tas pela secretaria de educação continuada,
alfabetização, Diversidade e Inclusão (seca-
DI), do ministério da educação. o objetivo
comum é o de colocar em pauta a questão
da diversidade, tão significativa para a cons-
trução de uma escola mais equânime, numa
sociedade que precisa, cada vez mais, se
assumir como multicultural e pluriétnica,
ultrapassando exclusões e preconceitos de
todas as ordens.
É com prazer que fazemos chegar aos pro-
fessores e professoras esta obra, no ano em
se comemoram os 10 anos da promulgação
da lei 10639/03. Desejamos uma excelente
leitura, que possa se desdobrar em traba-
lhos e em outros textos, criando e alimen-
tando essa rede de educação que constitui o
programa salto para o Futuro.
10
INTRODUÇÃO
Azoilda Loretto da Trindade 13
A todas as pessoas irmãs da pátria (mátria) amada que não fogem à luta, nem
temem segurar a clava forte da justiça quando isto se faz necessário.
a tarefa de organizar um livro sobre Africani-
dades Brasileiras e educação, a partir do ma-
terial produzido pelo programa Salto para o
Futuro, foi, sem dúvida, muito desafiadora,
tendo em vista que a produção de saberes
e fazeres no campo da educação é um dos
compromissos que assumimos no enfrenta-
mento do racismo e na construção de uma
sociedade que respeite os direitos humanos,
sociais, civis e, em especial, o direito à vida
– em todas as suas manifestações. uma so-
ciedade em que a deusa Justiça, entidade
mitológica cultuada desde a antiguidade
clássica, seja, efetivamente, para todos e to-
das.
o acervo do programa salto para o Futuro
representa um patrimônio para a história da
educação do brasil. são mais de vinte anos
de programa, com a presença de educadores
e educadoras compartilhando suas reflexões
e ações educativas, seja como acadêmico(a)
s, docentes ou ativistas, atravessando gover-
nos e gestores diversos, sem perder o com-
promisso com a educação de qualidade neste
país.
o contato com todo este material escrito,
disponível na página do programa, também
nos coloca diante de reflexões sobre a diver-
sidade de visões, contradições e paradoxos.
são produções que nos inspiram e, a partir
delas, temos ideias que podem gerar, tanto
projetos para a ação pedagógica cotidiana,
quanto outras produções escritas e novos
documentários... sentimo-nos como o me-
nino do conto A função da arte, de eduardo
galeano4:
Diego não conhecia o mar. O pai, San-
tiago Kovadloff, levou-o para que desco-
brisse o mar.
Viajaram para o Sul.
3 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletânea
4 galeano, eduardo. O livro dos abraços. ed. lP&m, 2005.
11
Ele, o mar, estava do outro lado das du-
nas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcança-
ram aquelas alturas de areia, depois de
muito caminhar, o mar estava na frente
de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar,
tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!
são muitas informações, muitos conheci-
mentos, muitos conteúdos, muitos saberes,
quer no acervo das produções do salto, quer
nos espaços instituídos de produção de co-
nhecimento, como as escolas, as universi-
dades, as instituições da sociedade civil, or-
ganizada ou não. os textos são muito ricos
e inspiradores, os minidocumentários gera-
dores dos debates são igualmente ricos, so-
bretudo em possibilidades pedagógicas. Por
tudo isto, fica difícil escolher, decidir e sele-
cionar, inclusive pela atualidade dos temas
e dos textos a eles relacionados e pelo valor
que este material constitui para a educação
no brasil.com relação à organização do li-
vro, convém destacar dois pontos:
o primeiro relacionou-se à seleção dos tex-
tos e dos conteúdos a serem privilegiados
com sua presença nos currículos escolares
e no dia a dia propriamente dito. a relevân-
cia e a escolha foram mediadas pela menta-
lidade inclusiva e antirracista dos educado-
res e educadoras presentes nas instituições
de ensino e por sua força de convencimen-
to, argumentação e luta. Destaco, assim,
que se trata de compromisso político, de
desafio e de pacto com a justiça e com uma
proposta de escola feliz, inclusiva, capaz
de mudanças de mentalidade e comporta-
mentos. essa perspectiva também atende
às questões políticas, dentre elas a da com-
preensão de que currículo é um documento
de identidade. se o currículo é o documen-
to de identidade da escola, da sociedade e/
ou de um grupo, imaginem o desafio que
é mudá-lo. Porque, historicamente, a insti-
tuição escola vive processos contraditórios,
dialéticos, complexos. É, muitas vezes, uma
escola que tem uma identidade negadora
da sua população, da sua imagem, da sua
riqueza cultural e que precisa, por isso, se
modificar.
ao pensarmos qual é o papel da escola, fica-
mos de frente com a necessidade de mudar
essa sua identidade, mudar esse documento
de identidade, “trocar” este documento por
outro que olhe e que diga da riqueza que
é o brasil, da riqueza que é um país plural
como o nosso. a nossa escola frequente-
mente nega isso, hierarquiza as diferenças
humanas, frontalmente. o que acontece se
formos, em qualquer dia, numa sala de aula,
e observarmos o que mostram os murais e
quem são as crianças e os adolescentes que
12
estão naquela escola? observar é um exer-
cício simples, não só na nossa escola espe-
cificamente, mas também se ampliarmos
a observação para outros espaços. Que
identidade é essa? Que escola é essa? Que
imaginário é esse que atravessa e perpassa
a nossa prática e a nossa ação docente? a
escola e os currículos podem ter um papel
importante, na medida em que eles se pro-
ponham a se transformar, a se olharem no
espelho e a não ter vergonha do que veem. É
um grande desafio docente, este que se co-
loca para todos nós, educadores e educado-
ras, que queremos transformar essa escola,
transformá-la na sua imagem, na sua estru-
tura, nas suas ações, na sua eficácia e nos
seus conteúdos.
outro ponto relevante nesta introdução é
o fato de estarmos focados na história e
cultura africana e afro-brasileira, na im-
plementação da lei n. 10.639, de janeiro
de 2003, que neste ano completa dez anos,
num tema que faz parte de um dos mais
graves, viscerais e emblemáticos proble-
mas brasileiros: as desigualdades étnico-
-raciais.
sabemos e reconhecemos como importante
aspecto de análise e intervenção a questão
das desigualdades, dos preconceitos, dos es-
tigmas e do racismo na escola. e sabemos
também que esses processos não se limitam
aos pretos e pardos (negros), mas a vários
grupos: mulheres, indígenas, pessoas com
deficiências, com necessidades especiais...
a escola e a sociedade estão marcadas por
essa problemática que afeta, não só os afro-
-brasileiros(as), mas a outros grupos hu-
manos. estamos marcados pelo machismo,
pelo patrimonialismo, pelo elitismo... lidar
com isso é, portanto, uma escolha política,
uma vez que também sabemos o quanto de
invisibilização, de desconhecimento e de es-
tereotipias existem com relação às histórias
e culturas africanas e afro-brasileiras. Quem
sabe podemos ter, em breve, e o acervo do
programa indica isso, coletâneas sobre os
povos indígenas (lei n. 11.645/2008), sobre as
questões de gênero e orientação afetivo-se-
xual, como já temos sobre cultura popular
e outros temas? e quem sabe, um dia, não
precisemos mais nos ocupar com inclusão,
com preconceito e racismo? Por ora, como
poderemos ver na primeira parte desta cole-
tânea, temos ainda um longo caminho a ser
trilhado.
POR QuE tRABAlHAR AS
AFRiCAniDADES nAS ESCOlAS
BRASilEiRAS?
embora a pergunta feita seja única, ela tem
múltiplas e inúmeras respostas. vamos a al-
guns pontos de vista:
13
PROvéRBiO AFRiCAnO
“Até que os leões tenham seus próprios
historiadores, as histórias de caçadas
continuarão glorificando o caçador” 5.
Para elisa larkin6 (intelectual, pesquisado-
ra):
Eu acho que em primeiro lugar a gen-
te não pode falar em humanidade sem
falar nos africanos. Inclusive porque a
África, hoje existe um consenso na an-
tropologia, na arqueologia, a África foi
o berço realmente do nascedouro da
própria espécie humana. Então, há esse
aspecto que, na verdade, o próprio ser
humano nasce na África e vai desenvol-
vendo na África sua cultura, em épocas
muito remotas, vai povoando o mundo.
se a escola é um campo, um espaço de pro-
dução e de apropriação de conhecimentos,
então é fundamental, justo e função da es-
cola que os saberes africanos, que são um
patrimônio da humanidade, sejam compar-
tilhados, aprendidos, conhecidos. a escola
não deve negar à população este patrimô-
nio, não pode subtrair um direito, que é de
todos, de conhecer o repertório cultural dos
povos africanos. se a escola não veicula es-
tes saberes, está tirando o direito das pes-
soas de se informarem sobre isso. Isso não
é justo, não é bom. o patrimônio cultural
produzido pelos africanos tem muito mais
do que 500 anos. e tudo que a África pro-
duziu e espalhou pelo mundo em termos
de conhecimentos, de sentimentos, de sa-
beres, de arquiteturas, de engenharia? Isso
foi como que subtraído da nossa memória
social. assim, nossa escola hoje tem esse de-
safio, a educação formal tem esse desafio,
os educadores e as educadoras têm esse de-
safio, de aprender o que a África produziu,
que patrimônio é esse que foi tirado da nos-
sa formação. e há um outro desafio maior
ainda: que nós, educadores, educadoras, ao
aprendermos sobre isso, transformemos a
nossa prática docente, de modo a incorpo-
rar todo este conhecimento no cotidiano. e
incorporar não só na “cabeça”, no campo
da racionalidade, mas incorporar também
nas entranhas, no campo da corporeidade,
do ser humano na sua completude. Porque
não basta, por exemplo, trabalharmos com
a história africana, afro-brasileira e indíge-
na, isso só não dá conta. É preciso incorpo-
rar esses saberes no cotidiano da escola. É
possível, a partir desse patrimônio africano
ou indígena, ou de outros patrimônios cul-
turais, transformar o cotidiano da escola?
Isso, sem dúvida, é bastante desafiador! e
fantástico! Imaginem o que de revolucioná-
rio pode acontecer quando incorporarmos
na escola os valores civilizatórios afro-bra-
sileiros, que levem em conta, por exemplo,
5 Provérbio africano citado por eduardo galeano em “o livro dos abraços”.
6 série currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira (2006).
14
a questão do comunitarismo? Juntos com-
partilharemos os conhecimentos, a alegria,
a ludicidade e a ciência, para fazerem parte,
não apenas de uma grade curricular, mas
também da vida e do dia a dia da escola,
com potência, riqueza, garra.
Para muniz sodré (intelectual e escritor):
Não há como negar a presença da cultu-
ra europeia e das ciências nas escolas do
Brasil. Mas em relação à cultura negra,
dá pra negar e é por isso que demorou
tanto, porque se esqueceu deliberada-
mente de colocar nos livros escolares,
nas mentalidades dos professores das
escolas, a contribuição que o negro deu
para a formação da sociedade brasilei-
ra, da cultura, historicamente, ao longo
dos tempos. Essa contribuição não foi só
de trabalho. (...) Foi principalmente cul-
tural (...). É ai que se dá o esquecimento,
a contribuição foi também na cultura
erudita, porque não se diz ao estudan-
te na escola e não se fazem manuais
para dizer que até a abolição os gran-
des escultores e pintores da Academia
Imperial fundada pelo imperador, eram
negros, nas igrejas da Bahia, nas igrejas
de Minas, nas igrejas do Rio de Janeiro,
os pintores e escultores eram negros e
mulatos. Não se diz que os músicos da
corte do Império eram negros e mula-
tos, não se diz que o maior compositor
da corte no Império, o padre José Mauri-
cio, era um negro, grande compositor e
grande maestro da corte, e que estadis-
tas, deputados, parlamentares do Im-
pério também eram negros e mulatos.
Há um livro que recomendo muito para
as escolas A mão negra brasileira, que
foi editado por Emanuel Araújo, artista
plástico, que foi diretor do museu de
Arte Moderna de São Paulo, livro edita-
do por Valter Brest, onde se faz um rela-
to dessas figuras que integraram a cha-
mada cultura erudita. O maior escritor
brasileiro de todos os tempos, Machado
de Assis, se diz que era mulato escuro.
Machado de Assis era crioulão mesmo.
Lima Barreto era negro, ninguém diz
que o Brasil teve um presidente negro,
não se conta essa história, todo mundo
pensa que só houve presidente branco
no Brasil! Tivemos um presidente qua-
se negro chamado Nilo Peçanha, que é
retocado nos retratos para parecer que
não é negro. Assim como se retoca o
senhor Rui Barbosa, grande intelectu-
al baiano, mulato escuro, se retoca no
retrato para parecer que era branco.
Nilo Peçanha era negro, mulato escuro,
negro. Agora a família dele não era, era
mais clara. Então, o que eu quero dizer
é que a presença dos negros na cultu-
ra erudita foi forte com a abolição. E
o século XX foi esquecer isso, começou
a deixar de lado e, a partir daí, toda a
inserção do negro na cultura brasileira
foi só através da chamada cultura popu-
15
lar, através da música, que foi gloriosa:
Pixinguinha, os grandes compositores,
o samba vem daí, o futebol, o carna-
val, os folguedos. (...) Por isso que digo
que houve uma denegação histórica da
contribuição do negro, da sua presen-
ça. É importante que o negro atue em
novelas, apareça em publicidade, mas
eu acho mais importante começar a di-
zer às pessoas, aos meninos nas escolas
sobre tudo isto (...). Na cultura erudita,
tanto quanto na cultura popular, o ne-
gro brilhou, é preciso contar também às
pessoas que até os anos 20, na Bahia, os
professores de matemática e de piano
eram todos negros malês, que sabiam
ler muito bem, inclusive em árabe, liam
árabe, liam o Alcorão e ninguém conta
isso.
e, para completar estas reflexões, nada me-
lhor que os versos da canção de nei lopes e
Wilson moreira:
Em toda cultura nacional
Na arte, até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
O negro brasileiro
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas origens .
entre fundamentos, argumentos e informa-
ções sobre africanidades, organizamos esta
coletânea.
“ME AjuDA A OlHAR”
nosso processo de organizar e selecionar os
textos não foi fácil, já que nos deparamos
com muitas vicissitudes acerca do tema. o
acabamento, o embelezamento, os ajustes
e os retoques ficaram sob a responsabilida-
de da equipe pedagógica do salto – fato que
merece destaque, pois produções para o co-
letivo são também coletivas, por mais indivi-
duais que pareçam. ao pesquisar, ler e reler
o material selecionado, nós nos conectamos
com algumas percepções que não nos fur-
taremos a compartilhar. Deparamo-nos com
caminhos que chamo de “exunicidades”, por
tratarem-se de encruzilhadas, possibilidades
que demandam encontros, comunicação,
articulação, negociação, conflitos... e, as-
sim, devemos fazer esta alusão a um deus
da mitologia africana: exu.
assim como não existe a África homogênea,
nem a história e a cultura africana e afro
-brasileira, já podemos dizer, com certeza,
que não existe um pensamento único sobre
a temática. Isso tudo, articulado com a di-
versidade de pensamento e de ações peda-
gógicas brasileiras, nos permite afirmar que
7 ao povo em forma de arte. composição de nei lopes e Wilson moreira.
16
a implementação da lei também é plural e
complexa. Por exemplo, existe uma varieda-
de de denominações, concepções, conceitos
e visões que podem se associar a essa diver-
sidade pedagógica, como educação bancá-
ria, tradicional, formal, conservadora, sócio-
-histórica, liberal, conteudista...
Paradoxalmente, não há uma relação biuní-
voca entre o acesso ao conhecimento ou ao
patrimônio africano e afro-brasileiro e a di-
minuição das desigualdades étnico-raciais.
o sistema de apropriação, o racismo e o pa-
trimonialismo não estão abalados na nossa
sociedade. temos muito a aprender e a ca-
minhar na direção da eliminação do racismo
e das mentalidades e práticas racistas.
embora esteja na lei maior da educação bra-
sileira, a lbben, não temos a garantia da
introdução nos currículos escolares da(s)
história(s) e da(s) cultura (s) africana(s) e
afro-brasileira(s), nos mais de 5.000(cinco)
mil municípios brasileiros. a temática das
relações étnico-raciais ainda é controversa,
o mito da democracia racial ainda é forte,
muitos não acham este tema relevante e o
racismo recrudesce no brasil e no mundo.
temos, por outro lado, um significativo acer-
vo sobre as temáticas da lei n. 10.639/2003
em livros, sítios, núcleos de estudos nas
universidades, organizações do movimento
negro, organizações governamentais, filmes
e documentários, experiências pedagógicas,
quer na sua especificidade (segunda parte
desta coletânea), quer em interação com
áreas diversas de conhecimento (terceira
parte deste livro), o que nos leva a afirmar
que, a despeito do esforço abnegado de mui-
tas pessoas, sejam educadoras, educadores
ou ativistas, esta temática necessita de
compromisso político por parte, sobretudo,
dos gestores e dos definidores e definidoras
de recursos e ações para coletivos, incluindo
aí o reconhecimento dos saberes e fazeres
dos(das) docentes e dos educadores/as das
instituições escolares e da comunidade es-
colar como um todo. cremos que a imple-
mentação da lei precisa, para tal, suplantar
as visões equivocadas de ação afirmativa
como sinônimo de paternalismo e condes-
cendência, para visões de ação afirmativa
como potência e reconhecimento do direito
e potência do outro.
Posto isto, esta coletânea, tentando estar
em sintonia com o que foi dito nesta intro-
dução, está dividida em três capítulos;
1º – ABORDAGENS MULTICULTURAIS AM-
PLAS: uma articulação da temática do
livro com o multiculturalismo, a diver-
sidade, as narrativas e a complexida-
de, além, obviamente, do currículo;
2º – AFRICANIDADES: as africanidades em
foco;
17
3º – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS
– MULTICULTURALIDADES, DISCIPLI-
narIDaDes e aFrIcanIDaDes: nesta
parte da coletânea se pretende uma
interseção entre as temáticas das afri-
canidades e áreas de conhecimento,
como uma trama, uma tessitura.
FiOS DO tEAR DAS MOiRAS
FiAnDEiRAS8
MULTICULTURALISMOS | DIVERSIDADE CULTURAL |
INTERCULTURALISMOS | PLURALIDADE CULTURAL |
AFRICANIDADES | EDUCAÇÃO INDÍGENA | EDUCA-
ÇÃO ESPECIAL | EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
| EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | PEDAGOGIA QUEER
| ESTUDOS CULTURAIS | EDUCAÇÃO RELIGIOSA |
EDUCAÇÃO POPULAR | EDUCAÇÃO PÚBLICA | AFRI-
CANIDADES | PEDAGOGIA DIASPÓRICA | PEDAGOGIA
DA DIFERENÇA | PEDAGOGIA BRASILIS.
existe um rico repertório metodológico no
campo da multiculturalidade e, no que se
refere à educação étnico-racial, várias abor-
dagens podem e devem ser experimentadas,
vivenciadas, saboreadas: pedagogia griot, do
axé, dos terreiros, do samba, dos valores ci-
vilizatórios afro-brasileiros, em diálogo, em
confronto, encontro, encanto com as de-
mais pedagogias, quer sejam as oficiais, do-
minantes, quer sejam a dos povos indígenas
ou das florestas, ou dos ciganos, ou dos ára-
bes, judeus, orientais, das pessoas com defi-
ciência, com necessidades especiais... todo
este repertório, como o fio do destino tecido
pelas moiras, pode contribuir para construir
as bases da pedagogia brasilis, uma pedago-
gia voltada para a real e diversa população
brasileira.
8 na verdade, colocar as moiras ou mouras neste contexto é provocar as/os leitora/es acerca dos nomes e mitos das várias origens que povoam nosso imaginário.as moiras e/ou as mouras?
18
CAPÍTULO 1
ABORDAgENS gERAIS SOBRE mULTICULTURALISmO
E DIvERSIDADE CULTURAL
neste capítulo selecionamos, entre os textos
do salto para o Futuro, alguns que lidam di-
retamente com questões conceituais gerais
que dão suporte para as reflexões ligadas às
africanidades ou que com elas dialogam.
a opção de não seguir uma linearidade cro-
nológica dos textos tem como objetivo visi-
bilizar a não linearidade do pensamento e
das reflexões sobre os temas em questão:
multiculturalismo e diversidade cultural.
esta introdução antecipa algumas indaga-
ções, presentes no texto da organizadora
desta coletânea, que encerram este primei-
ro capítulo. afinal, uma educação multi-
cultural, criativa e inclusiva, no sentido de
incluir na pauta as diferenças, o contato, o
diálogo e a interação com as diferenças, co-
loca a própria escola num lugar de questio-
namento quanto ao seu papel, seu sentido e
seu significado.
vamos aos questionamentos:
• Qual deve ser o papel da escola num con-
texto multicultural que se sabe político,
e que não se supõe racista, nem elitista,
nem machista, nem etnocêntrico?
• o que nós, como educadores, devemos fa-
zer na escola? e como o faremos? como
nosso currículo se configurará?
• como serão e deverão ser nossas aulas,
nossa avaliação, nossa sala de aula? como
será nossa postura?
• como não sermos tão individualistas e
julgarmos que os outros são muito dife-
rentes de nós? e como não sermos tão
universalistas a ponto de apagarmos as
singularidades culturais, políticas, sexu-
ais, sociais, intelectuais?
• como levar em consideração todos os
segmentos da escola? como enfrentar
que nossas mais belas intenções e ações
são ainda incipientes, que são muito pou-
cas, embora necessárias?
ao formular essas questões buscamos evi-
denciar que trabalhar o multiculturalismo
na escola não é apenas colocar imagens de
todas as etnias que compõem nossa escola
nos murais ou, simplesmente, festejar o Dia
do Índio e o Dia nacional da consciência
negra. não é apenas debater as políticas de
19
cotas e outras ações afirmativas. ou, ainda,
ter a imagem de uma virgem negra como
padroeira do brasil. tampouco ter o atleta
do século l, um homem preto, como um íco-
ne nacional (sobretudo se o que se destaca,
nesse caso, é o dinheiro como submetendo
as questões relacionadas à cor da pele).
Para buscar respostas para essas e outras
questões, selecionamos os textos que se se-
guem, acreditando que, ao reorganizá-los
nesta coletânea, sob o tópico multicultura-
lismo e diversidade cultural, estaremos pro-
pondo novas e possíveis leituras:
i. Multiculturalismo, ou de como viver
junto, de mary Del Priore - onde a au-
tora faz uma apresentação panorâmi-
ca de questões muito caras à temática
multicultural deixando-nos a questão
desafio: como vIver Junto?
ii. Por um multiculturalismo democráti-
co, de sueli carneiro – destacando a
democracia como um fim, a autora
apresenta-nos variáveis contemporâ-
neas que põem em fragilidade a pers-
pectiva universalista e hegemônica de
conformação de sujeitos, convidando-
-nos a pensar um multiculturalismo
democrático brasileiro
Depois de dois textos, com seus desafios,
apresentamos o texto anunciado pelo título:
iii. Pluralidade e diversidade, de carla
ramos – objetivando discutir os con-
ceitos do título num mundo em movi-
mento, em mudanças, focando-se na
cidade como espaço onde estes movi-
mentos nos desafiam a pensar outra
geopolítica
iv. Saberes culturais e educação do futu-
ro, de edgard de assis carvalho. Dis-
cutindo os saberes culturais na pers-
pectiva da integração dos saberes, o
texto transita entre a poesia, a arte
e os saberes culturais como pistas
para a educação na sua complexida-
de e inclusividade, apresentando-nos
autores e perspectivas não hegemô-
nicas de pensar o mundo a partir do
paradigma, digamos, europeu, mas
como que anunciando um hibridismo,
mestiçagem cultural, e termina apre-
sentando-nos Fernando Diniz, talvez
paradigmático para este livro.
v. identidade e diferença no cotidiano
escolar: práticas de formação e de fa-
bricação de identidades docentes, de
elizeu clementino de souza. este texto,
nesta coletânea, coloca os e as docen-
tes no centro da roda como produtores
e produtoras de histórias de vida (s), no
fio de prumo da Identidade e da Dife-
rença.
20
vi. Diversidade e Currículo, de nilma
lino gomes. De volta à discussão da
diversidade, agora focando-se o cur-
rículo, o que se torna mais um dos
desafios da escola que “normatiza”
a diferença sem hierarquizá-la e bus-
cando não ser uniformizadora. o tex-
to indica, prescreve e sinaliza alguns
desafios para esta arrojada ação polí-
tico-pedagógica.
vii. Reinventando a roda: experiências
multiculturais de uma educação para
todos, de azoilda loretto da trindade.
este texto é um convite à criação e ao
compromisso com uma educação para
a vida em expansão.
21
I. mULTICULTURALISmO OU DE COmO vIvER jUNTO1
Mary Del Priore2
MultiCultuRAliSMO: COMO
vivER juntO?
nas democracias pluralistas, assistimos a
um movimento generalizado de incremento
das identidades particulares. minorias, po-
pulações autóctones, grupos de migrantes
e imigrantes manifestam seu desejo de re-
conhecimento cultural. “viver junto” é uma
questão cada vez mais premente.
o termo “multiculturalismo” designa tanto
um fato (sociedades são compostas de gru-
pos culturalmente distintos) quanto uma
política (colocada em funcionamento em
níveis diferentes) visando à coexistência pa-
cífica entre grupos étnica e culturalmente
diferentes. em todas as épocas, sociedades
pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de
10% dos países do planeta podem ser consi-
derados como culturalmente homogêneos.
Por outro lado, o tratamento político da di-
versidade cultural é um fenômeno relativa-
mente recente.
Há menos de trinta anos, as primeiras me-
didas políticas de inspiração multicultura-
lista foram colocadas em ação na américa
do norte (canadá e eua). lá, a indiferença
frente à cor da pele foi substituída pelo prin-
cípio de consciência da cor. o debate sobre
multiculturalismo foi crescendo de intensi-
dade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na
europa e américa do sul. a doutrina multi-
culturalista avança essencialmente na ideia
de que as culturas minoritárias são discri-
minadas e devem merecer reconhecimen-
to público. Para se realizarem ou consoli-
darem, singularidades culturais devem ser
amparadas e protegidas pela lei. É o Direito
que vai permitir colocar em movimento as
condições de uma sociedade multicultural.
EntRE univERSAliSMO E
MultiCultuRAliSMO
mas, de que diferenças culturais nós fala-
mos? muitas vezes reduzidas à questão da
1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 1.
2 Historiadora e coordenadora geral do arquivo nacional.
22
etnicidade (condição ou consciência de per-
tencer a um grupo) ou, em alguns casos,
reduzidas até mesmo à “questão racial”, as
diferenças culturais não concernem apenas
aos particularismos de origem ou de tradi-
ção (religiosas ou linguísticas).
as reivindicações se enraízam cada vez mais
no particularismo dos mores (preferências
sexuais, por exemplo), de idade, de traços
ou de deficiências físicas (obesos, cegos,
paraplégicos). o multiculturalismo comba-
te o que ele considera como uma forma de
etnocentrismo, ou seja, combate à visão de
mundo da sociedade branca dominante que
se toma – desde que a ideia de raça nasceu
no processo de expansão europeia – por
mais importante do que as demais. a políti-
ca multiculturalista visa, com efeito, resistir
à homogeneidade cultural, sobretudo quan-
do esta homogeneidade afirma-se como
única e legítima, reduzindo outras culturas
a particularismos e dependência.
um detalhe importante nesta discussão é
que, em nossos dias, um cidadão raramen-
te “esquece” sua condição particular para
encarnar um pretenso universalismo. o
universalismo dificilmente se combina com
as condições da modernidade. com a libe-
ração dos mores e a emancipação sexual, a
vida privada foi maciçamente reconstruída,
revestindo-se de grande potencial político.
nesta perspectiva, identidade e individuali-
dade quase se sobrepõem. Isto pode parecer
paradoxal, mas a reivindicação cultural está
claramente associada ao individualismo
moderno, ao primado do “sujeito individu-
al”. ela emana da subjetividade pessoal da-
queles que se reconhecem neste ou naquele
particularismo e resolvem se engajar coleti-
vamente em reivindicações identitárias.
o debate de ideias entre monoculturalismo
e multiculturalismo funciona, de certa for-
ma, em duas vertentes de pensamento. ele
se organizou, primeiramente, em torno de
uma querela de filosofia política norte-ame-
ricana: os liberais, ou individualistas, sus-
tentavam que o indivíduo é mais importante
e antecede à comunidade. liberais recusam
a ideia de que direitos minoritários possam
ferir a preeminência legítima do indivíduo.
o comunitarismo ou coletivismo, ao contrá-
rio, acredita que os indivíduos são o produto
das práticas sociais e que é preciso prote-
ger os valores comunitários ameaçados por
valores individuais e, principalmente, reco-
nhecer as diferenças culturais.
tal debate, contudo, já é coisa do passado.
Pensadores como charles taylor e michael
Walzer avançaram posições mais nuança-
das. Inúmeros teóricos acreditam que os
direitos minoritários podem promover as
condições culturais de liberdade potencial
dos membros de grupos minoritários. na
europa, este “multiculturalismo liberal” pa-
rece ter se imposto por falta de alguma ideia
melhor. abandonou-se, então, o modelo que
23
prevalecia desde a revolução Francesa e que
propugnava o cidadão unificado.
vejamos, num exemplo, como procede esta
vertente: a sopa passada no liquidificador
transforma tudo num todo homogêneo, no
qual não se distinguem mais os elementos
que a compõem. apenas um paladar avisa-
do poderá adivinhar, no sabor, cada um dos
ingredientes. na salada composta, por outro
lado, cada ingrediente se distingue dos ou-
tros, conservando sua aparência, seu gosto
e sua textura. nos eua, o mito do “melting-
-pot”, ou seja, da encruzilhada na qual todas
as culturas se fundem ao adotar o “ameri-
can way of life” – jeito americano de viver –,
sucedeu o modelo do mosaico, ou da “sala-
da”, imagem possível do multiculturalismo:
uma justaposição um pouco heterogênea de
grupos étnicos e minorias culturais coabi-
tando num mundo de concordância.
AS POlítiCAS MultiCultuRAiS
além do canadá (desde 1982), vários países
têm constituições multiculturais: austrália,
África do sul, colômbia, Paraguai. mas fo-
ram os eua que, antes de qualquer outro
país, colocaram a luta contra a discrimi-
nação no centro de suas preocupações. no
prolongamento da luta dos afro-americanos
por direitos cívicos, militantes e intelectuais
consideraram uma injustiça que as culturas
minoritárias não acedessem a um mesmo
patamar de reconhecimento do que a cul-
tura dominante branca, saxônica e protes-
tante.
em reação a esta “etnicização majoritária”,
na verdade, uma assimilação dissimulada –
leia-se, o mito do “melting pot” – operou-se
uma “etnicização das minorias”. o reconhe-
cimento público das identidades coletivas
resultou, por sua vez, de redes políticas vol-
tadas para a consolidação da ideologia do
“politicamente correto”.
na europa, as práticas multiculturalistas
são ainda pouco desenvolvidas. o modelo
do estado-nação afirmou-se no século XIX,
praticando uma política de redução de dife-
renças culturais e de assimilação de popula-
ções imigradas. nos países europeus, apesar
das importantes diferenças nacionais (na
Inglaterra, por exemplo, está bem avançada
a luta contra discriminações étnicas), o par-
ticularismo é percebido como uma divisão e
uma regressão culturais. o multiculturalis-
mo, por sua vez, é um desafio fundamental
para a consolidação da união européia. so-
bretudo, quando lá se pergunta se a europa
irá optar por uma cultura comum ou por
um regime multicultural constituído por
um mosaico de nações.
na França, por exemplo, as políticas de tra-
tamento preferencial são aplicadas para
combater as desigualdades socioeconômi-
cas ou as desigualdades entre gêneros (ho-
24
mem-mulher). lá, cada vez mais, a etnicida-
de é reconhecida e respeitada nas práticas
(no Direito, ainda não): são dadas subven-
ções diretas a associações étnicas, são cria-
das políticas em favor de imigrantes, exis-
tem Fundos de ação social voltados para a
questão.
o modelo da diversidade francesa foi come-
morado no campeonato mundial de Fute-
bol de 1998, quando os jogadores de origens
diferentes (França, África do norte e África
central) tornaram-se campeões do mundo.
a imagem de uma equipe multiétnica fun-
diu-se com aquela de uma “equipe que ga-
nha”.
OS liMitES DO
MultiCultuRAliSMO
Para vários autores, o multiculturalismo
aparece como um mal necessário. Discute-
-se muito como aperfeiçoar o sistema, limi-
tando seus efeitos perversos e melhorando
a vida dos atores sociais. em alguns casos,
o multiculturalismo provoca desprezo e in-
diferença, como acontece no canadá entre
habitantes de língua francesa e os de língua
inglesa.
nos eua, esta militância só fez acentuar as
rivalidades étnicas. ao denunciar seus ad-
versários, tais políticas terminam por estig-
matizá-los e acabam, também, por dar uma
dimensão étnica às relações sociais.
a pergunta a fazer é: será que os fins justi-
ficam os meios? o princípio da discrimina-
ção positiva se choca com as exigências de
igualdade do Direito e à imparcialidade do
estado? caminhamos no sentido da justiça
social? a busca de uma igualdade real pode
ser incompatível com os princípios de igual-
dade formal?
sabemos que nem todos os membros das
minorias são desfavorecidos e os que sabem
aproveitar as vantagens são raramente os
mais desfavorecidos. Por outro lado, exis-
tem grupos da população realmente desfa-
vorecidos que não pertencem às minorias
étnicas.
neste caso, todas as diferenças podem ser
defendidas? sabemos que há o risco de
opressão do grupo cultural sobre seus mem-
bros: como proteger a minoria das outras
minorias, os explorados dos excluídos? Por
vezes, ocorre até o contrário, pois foi invo-
cando a noção de Direito que os brancos de
origem holandesa defenderam o sistema do
“apartheid”. muitos pensadores, entre eles
charles taylor, autor de Multiculturalismo,
Diferença e Democracia, acreditam que ne-
nhuma política identitária deveria ultrapas-
sar a liberdade individual. Indivíduos, no seu
entender, são únicos e não poderiam ser ca-
tegorizados.
a quem cabe a legitimidade de atribuir uma
identidade? não é o indivíduo o único capaz
25
de escolher a sua, ou as suas identidades de
pertença? mais ainda, quando pensamos que
identidades individuais são construídas em
oposição ao grupo de pertença, os especia-
listas concordam sobre o princípio de que as
diferenças culturais não podem colocar em
causa os direitos do homem e do cidadão.
nOvAS PERSPECtivAS
não podemos analisar tudo em termos de
culturas. a denúncia das discriminações e as
reivindicações pelo reconhecimento cultu-
ral parecem ter se sobreposto à luta de clas-
ses e à denúncia da exploração socioeconô-
mica que caracterizaram a primeira metade
do século na europa, e na segunda metade,
no brasil.
mas, na luta contra as discriminações, o es-
quema dominados/dominantes não é mais
possível. os conflitos sociais são cada vez
menos óbvios, menos maniqueístas. cada
um de nós pode ser ao mesmo tempo discri-
minado e discriminador. um operário pode
ser discriminado socialmente, mas também
discriminar como homem, como pai e como
marido. existe, hoje, uma oposição entre as
políticas sociais e as políticas multiculturais.
os que são objeto de discriminação cultural
são também os que mais sofrem as desigual-
dades socioeconômicas. Por trás da tensão
entre brancos e negros, há, antes de qual-
quer coisa, a tensão entre ricos e pobres.
vale lembrar, ainda, que o reconhecimento
de uma cultura minoritária não implica o fim
de sua alienação socioeconômica. o grande
desafio consiste em conciliar as políticas de
reconhecimento e as de redistribuição.
Pesquisadores de todas as áreas insistem
sobre a necessidade de construir uma ver-
dadeira “educação intercultural”. apresen-
ta-se, aí, a ocasião de um aprendizado de-
mocrático. É a ideia de uma democracia de
mores proposta por Farhad Khosrokhavar,
na qual a comunicação cultural é possível:
democracia feita de respeito à alteridade
cultural e de tolerância. É, também, a ideia
de uma “democracia inclusiva”, na qual as
comunidades não se definiriam mais pela
exclusão.
É também a vontade de viver junto que
funda uma cultura e permite uma relativa
homogeneidade social. Quando uma socie-
dade se diz multirracial, ela se bate, igual-
mente, contra a desigualdade racial. taylor,
por exemplo, definiu a democracia como a
política do reconhecimento do outro, logo,
da diversidade. mais adiante, o debate so-
bre o multiculturalismo obriga também a
redefinir o conceito de cultura, sobretudo,
a alargá-lo para aí incluir um conjunto de
diferenças comportamentais. as culturas
são menos feitas de tradição do que de re-
presentações construídas pela história, sus-
cetíveis de mudanças tal como vemos nas
reivindicações de uns e outros.
26
como já demonstraram o sociólogo michel
Wieviorka e o historiador serge gruzinski,
o hibridismo e a maleabilidade das cultu-
ras são, igualmente, fatores positivos de
inovação. considerar a cultura como algo
que não é variável, bem como julgar sobre
diferenças culturais são também formas de
marcar a cultura com um selo de autenti-
cidade que não existe e fixá-la num molde
único. uma saída possível seria considerar
as vantagens da mestiçagem cultural, este
poderoso fator de mudanças, de criativida-
de e de invenção, e que não é objeto de ne-
nhuma reivindicação. mas o que dizer de
mulatos que, na bahia e no caribe, despre-
zam os negros?
Foi se apoiando em suas raízes culturais
que a ação dos negros brasileiros tomou a
dimensão de um movimento social de mas-
sas. nas ruas das grandes cidades brasilei-
ras já é possível ler, em muitas camisetas,
“100% negro!”. Desde os anos 80, a questão
racial está nos espaços públicos e teve iní-
cio um debate interno sobre as representa-
ções coletivas, sua história, sua diversidade
cultural e racial. a maior parte deles acedeu
à consciência negra pela brecha da cultura
popular. a música afro-brasileira e as escolas
de samba tiveram aí um importante papel
mobilizador. a busca da “pureza africana”
acompanhou-se também de uma crítica fe-
roz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação
de cotas para os afro-brasileiros na univer-
sidade e no funcionalismo público acabou
por negar a fábula do encontro harmonioso
entre as três raças. Durante muitos anos, os
negros aceitaram a ilusão de que a mestiça-
gem poderia ser a solução para a discrimi-
nação racial, diluindo a cor em casamentos
mistos. mas a questão da raça está também
ligada à da posição social: quanto mais so-
bem na escala social, mais os negros se tor-
nam brancos.
o processo de reafricanização do brasil tal-
vez melhore o status social, artístico ou reli-
gioso de muitos de nós. mudanças, contudo,
dependem diretamente da redistribuição
de renda e do fim das desigualdades imen-
sas entre ricos e pobres. aí, sim, estaremos
prontos para construir uma democracia in-
clusiva e intercultural.
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27
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WIeWIorKa, michel; oHana, Jocelyne (dir.).
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des débats. Paris: balland, 2001.
28
II. POR Um mULTICULTURALISmO DEmOCRáTICO1
Sueli Carneiro 2
gênero, raça/etnia, orientação sexual, reli-
gião e classe social são algumas das variá-
veis que se impõem contemporaneamente,
conformando novos sujeitos políticos que
demandam ao estado e à sociedade por re-
conhecimento e políticas inclusivas.
a emergência desses novos atores decorre
da insuficiência da perspectiva universalista
para contemplar as diferentes identidades
sociais e realizar um dos fundamentos da
democracia, que é o princípio de igualdade
para todos. a imposição de um sujeito uni-
versal ao qual todos os seres humanos seriam
redutíveis obscureceu, ao longo dos tempos,
as ideologias discricionárias que promovem
as desigualdades entre os sexos, as raças, as
classes sociais, as religiões etc... são elas: o
patriarcalismo, que, ao instituir como natu-
ral a hegemonia do sexo masculino, justifi-
ca todas as formas de controle, violência e
exclusão social da maioria dos seres huma-
nos que pertencem ao sexo masculino; o eli-
tismo classista determinado por modos de
produção que instituem classes minoritárias
abastadas, que submetem e exploram maio-
rias despossuídas; homofobia decorrente da
imposição da heterossexualidade como for-
ma exclusiva de relacionamento afetivo e se-
xual e condenação arbitrária, muitas vezes
violenta, do relacionamento entre pessoas
do mesmo sexo; fundamentalismo religioso,
responsável por grande parte dos martírios
ocorridos na história da humanidade, em
que cada denominação religiosa, ao buscar
impor o seu Deus aos outros, transforma-o,
paradoxalmente, em uma das principais fon-
tes de intolerância do mundo; racismo que,
ao eleger que um grupo racial é superior ao
outro, provoca a desumanização de grupos
humanos, justificando as formas mais abje-
tas de opressão, tais como a escravidão, os
holocaustos e genocídios e a discriminação
étnica e racial.
essas são algumas das ideologias que cons-
piram contra a consolidação da democra-
cia e o pleno gozo dos direitos de cidadania
1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 2.
2 Diretora do geledés – Instituto da mulher negra, pós-graduanda em Filosofia da educação pela universidade de são Paulo e articulista do Jornal correio braziliense.
29
para a maioria da população em nosso país,
tornando o homem branco, de classe supe-
rior e heterossexual, no único tipo humano
a desfrutar plenamente do exercício de di-
reitos e poder em nossa sociedade. Por isso,
esse tipo humano, embora se constitua uma
minoria, está em absoluta maioria nas ins-
tâncias de mando e de poder da sociedade.
É em função dessa evidência que adentram
à cena política os movimentos de minorias
políticas, como o movimento de mulheres
lutando pela igualdade de gênero, de gays
e lésbicas pelo direito e respeito à orienta-
ção sexual diferente, de negros ou afrodes-
cendentes por igualdade de direitos, etc. ou
seja, a afirmação da diferença constitui-se
num pressuposto para conquistar a igualda-
de. e, dentre esses movimentos, a questão
racial aparece no momento como aquela
que maior peso tem na estruturação das
desigualdades sociais no brasil, impactando
todos os indicadores sociais, como se pode
auferir pelos estudos realizados pelo Ibge,
IPea, DIeese entre outros. Por isso, a enfati-
zamos nesse texto.
a temática da diversidade sempre esteve
presente no debate nacional e informou as
principais teses sobre a identidade nacional
ou a formação do País enquanto nação.
triunfou, neste debate, um discurso ufa-
nista em relação ao caráter plural de nossa
identidade nacional, a despeito de esta ter
sido construída a partir de uma perspectiva
hierárquica, segundo a qual, no topo, se en-
contram os brancos responsáveis pelo nosso
processo civilizatório e, na base, os negros e
indígenas, contribuindo com pinceladas cul-
turais exóticas, que caracterizariam o jeito
especial de ser do brasileiro.
a primeira questão que esta visão coloca é
a despolitização dos processos de exclusão
e discriminação que os “diferentes” sofrem
em nossa sociedade, como também escamo-
teia a forma pela qual historicamente este
“diferente” vem sendo construído em opo-
sição a uma universalidade cultural branca
e ocidental, supostamente legítima para se
instituir como paradigma, segundo o qual
os diversos povos do mundo são avaliados.
Há um outro viés neste debate sobre diver-
sidade. ele é tão mais aceito quanto mais
for capaz de encobrir um elemento básico
e estruturante da nossa sociedade, que é o
racismo, o maior tabu da sociedade brasi-
leira, em relação ao qual há uma verdadeira
conspiração de silêncio.
as organizações negras vêm, ao longo das
últimas três décadas, denunciando os pro-
cessos de exclusão a que os negros estão
submetidos na sociedade brasileira, seja no
mercado de trabalho, sensibilizando as enti-
dades sindicais para a incorporação da luta
contra o racismo e pela utilização dos me-
canismos internacionais que combatem as
30
discriminações no âmbito do trabalho, seja
no setor empresarial, sensibilizando-o para a
adoção de políticas de diversidade em seus
processos de seleção. ocupam-se ainda em
projetos de capacitação e reciclagem da mão-
-de-obra negra para o mercado de trabalho.
as ações que vêm sendo realizadas pelas
organizações negras no campo da educa-
ção expressam-se em diferentes dimensões
dessa temática, incidindo sobre a educação
formal nos diferentes níveis; na produção e
avaliação crítica de instrumentos didáticos;
em projetos de formação para o exercício da
cidadania, para a capacitação para o merca-
do de trabalho e/ou para o fortalecimento
da capacidade de pressão sobre o estado.
a compreensão de que o racismo e a discri-
minação impedem a distribuição igualitária
da Justiça no brasil vêm motivando diversas
iniciativas. a constiuição de 1988, ao tornar
o racismo crime inafiançável e imprescrití-
vel, criou uma oportunidade nova de enfren-
tamento do racismo na esfera legal. Desde
então, essa perspectiva jurídica fez surgir
projetos exemplares e pioneiros, como os
sos racismo, serviços de assistência legal
para vítimas de discriminação racial, uma
experiência exitosa que já se multiplicou em
diversos estados do país e em alguns dos pa-
íses da américa latina.
no campo da cultura, são inúmeras as ex-
periências de politização das expressões cul-
turais negras, no sentido do fortalecimento
da identidade étnica e racial da população
negra, tais como as oriundas dos terreiros
de candomblé, das bandas de rap ou dos
blocos afros. avançou a organização política
das comunidades remanescentes de quilom-
bos, adquirindo dimensões nacionais, e elas
demandam, cada vez com maior contun-
dência, ao estado, o direito pela titulação
de suas terras ancestrais e a um desenvolvi-
mento sustentado.
as organizações negras vêm monitorando
e denunciando as práticas discriminatórias
presentes nos veículos de comunicação de
massa e, através dos casos exemplares de
discriminação, mobilizam a opinião pública
para o debate da questão racial. essas de-
núncias e críticas vêm obrigando os veículos
de comunicação a ampliarem e diversifica-
rem a presença de negros nesses veículos,
em especial na televisão.
as organizações de mulheres negras, por sua
vez, vêm desenvolvendo uma série de expe-
riências-modelo em diversos campos, tais
como em comunicação, novas tecnologias,
advocacy em mídia; atendimento jurídico e
psicossocial a mulheres vítimas de violência
doméstica e sexual; experiências inovado-
ras na abordagem das sequelas emocionais
produzidas pelo racismo. e, sobretudo, as
organizações de mulheres negras impulsio-
naram a intervenção do ponto de vista racial
na questão da saúde, dando visibilidade às
31
questões das doenças étnicas/raciais ou do-
enças de maior incidência entre a população
negra, denunciando o viés controlista sobre
a população negra que a esterilização tem
no brasil.
Portanto, as organizações negras vêm de-
senvolvendo um conjunto de “boas práti-
cas”, ou de experiências exemplares, em
nível nacional, para a inclusão efetiva dos
negros na sociedade brasileira.
essas experiências expressam a responsabili-
dade que os negros organizados têm em re-
lação à população negra, na busca de cons-
trução de uma rede de solidariedade baseada
na identidade racial e na consciência do per-
tencimento a uma comunidade de destino
fundada numa experiência histórica com-
partilhada. essas práticas visam à superação
da discriminação racial e, sobretudo, visam
oferecer ao estado e aos governos modelos
para políticas públicas que, ao beneficiarem
a comunidade negra, promovam a realização
da igualdade de direitos e oportunidades.
a sociedade civil negra vem fazendo a sua
parte: denuncia, reivindica, formula e im-
plementa propostas inclusivas. no entanto,
essas ações alcançam baixa visibilidade e
pouca adesão e solidariedade do conjunto
da sociedade.
a problemática racial requer vontade políti-
ca dos governos, empresas e demais institui-
ções da sociedade para a adoção de políticas
que rompam com a apartação racial existen-
te no brasil, que se exprime nos índices de
desigualdades raciais em alguns indicadores
superiores aos encontrados para a África do
sul.
como indica uma propaganda, “é hora de
mudar os nossos conceitos”. Isso implica,
por exemplo, desnaturalizar a heterossexua-
lidade, a hegemonia masculina, a suprema-
cia branca. nesse último caso, exige, sobre-
tudo, no rompimento com o “conforto” do
mito da democracia racial, em prol do reco-
nhecimento de que é imperiosa a correção
das injustiças sociais motivadas pela exclu-
são dos negros, em especial das mulheres
negras em nossa sociedade.
É uma exigência ética, um pressuposto para
a consolidação da democracia e condição de
reconciliação do país com sua história, no
sentido da construção de um futuro mais
justo e igualitário para todos.
uma inspiradora abordagem da questão do
multiculturalismo no brasil nos é oferecida
por Jacques Dadesky em seu livro Racismo
e anti-racismo no Brasil. Partindo da noção
hegeliana de reconhecimento, Dadesky nos
anuncia que é o desejo de reconhecimento
que nos leva à luta. Desejo de reconhecimen-
to de nossa igualdade e dignidade humanas,
o que se traduz politicamente na luta pelo
direito igualitário aos bens materiais e sim-
32
bólicos de prestígio da sociedade. Desejo de
reconhecimento de nossa identidade cultu-
ral diferenciada, do qual decorre a luta pelo
direito de sermos quem somos, sem precisar
nos negar para sermos aceitos.
Para Jacques Dadesky, são esses os eixos de
luta que estruturam o discurso e a práxis
antirracista dos movimentos negros brasi-
leiros, em resposta ao racismo característi-
co de nossa sociedade que, segundo ele, ao
fundar-se num tipo de pluralismo étnico que
prescinde de um tratamento igualitário das
diferentes culturas, legitima as hierarquias
e desigualdades materiais e simbólicas entre
os grupos étnicos e raciais.
Da exegese das contradições colocadas por
essa forma de racismo e do tipo de antirracis-
mo que ele produz, Dadesky retirará o subs-
trato para a formulação de sua concepção de
um multiculturalismo democrático capaz de
realizar, a um só tempo, o reconhecimento
da igualdade da cidadania e do valor igualitá-
rio intrínseco das diferentes culturas.
tal como afirma o jurista Jorge da silva: “a
cidadania plena se afirma pela conjugação
do desfrute dos direitos civis, dos direitos
políticos e dos direitos sociais. a situação
dos cidadãos negros pode ser aferida pela
garantia desses direitos: de liberdade de ir
e vir (e não ser molestado pela polícia como
‘suspeito’ em função da cor da pele); de ser
lembrado para ocupar posições de confian-
ça e destaque; da possibilidade de acesso ao
trabalho digno e à moradia; de educar-se
nas mesmas condições dos cidadãos da clas-
se média e de acesso aos sistemas de saúde,
público ou privado”.
Portanto, da forma pela qual a sociedade
brasileira enfrentar estas questões depen-
de o projeto de nação inclusiva que todos
desejamos ou a consolidação do projeto
de nação excludente que vem sendo cons-
truído há mais de 500 anos de extermínio
dos povos indígenas e de marginalização
social dos negros em prol do desejado em-
branquecimento racial, étnico e cultural do
país.
REFERênCiAS
D’aDesKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multi-
culturalismo - racismos e antirracismos no
brasil. ed. Pallas, 2001.
33
III. PLURALIDADE E DIvERSIDADE1
Carla Ramos2
uMA PEQuEnA HiStóRiA Ou
QuAnDO SigniFiCADOS E
SEnSAÇõES EStÃO juntOS
gosto da idéia de que as palavras têm sen-
tido e de que muitas delas carregam sensa-
ções3. Primeiramente, vamos ao significado:
Diversidade: qualidade daquilo que é diver-
so, diferente, variado; Pluralidade: fato de
existir uma grande quantidade, de não ser o
único; multiplicidade, diversidade4.
e, para debater estes conceitos, reporto-
-me a uma pequena história. em outubro de
2005, um homem com aproximadamente 60
anos para o seu carro numa rua da tranquila
cidade de malmo, sul da suécia, e inicia uma
discussão fervorosa com um grupo de jovens
estudantes. os gritos começam a chamar a
atenção dos vizinhos, que abrem as janelas
para olhar o que estava acontecendo. eu e
a minha amiga, na época radicada naquele
país, saímos apressadas para a rua, na ten-
tativa de entender o motivo daquele inusita-
do acontecimento. Quando chegamos bem
perto, um carro de polícia tinha acabado de
estacionar. o homem, visivelmente trans-
tornado, afirmava que aqueles jovens “só
podiam ser estrangeiros”, “só podiam ser
árabes” “porque não sabiam e nem respeita-
vam as regras de trânsito”. ao passo que os
estudantes, um deles mais exaltado, respon-
deu que os seus pais eram “chilenos”, e que
ele era “sueco”! a briga durou cerca de duas
horas e terminou com os policiais contem-
porizando a situação, os vizinhos fechando
silenciosamente as janelas, o homem indo
embora e os estudantes dispersando-se pelo
caminho.
a razão deste sério desentendimento foi
uma suposta infração do código de trânsito
cometida por um daqueles jovens, quando
andava de bicicleta. as regras para o trá-
1 a cidade como espaço educativo – 2008 / Pgm 5
2 mestre em sociologia e antropologia pela uFrJ/PPgsa e analista educacional do salto para o Futuro
3 bauman, Zygmunt. comunidade. A busca por segurança no mundo atual (cf. bibliografia).
4 Dicionário Houaiss. rio de Janeiro, editora objetiva, 2001.
34
fego em vias suecas são rígidas e dizem
respeito também às pessoas que utilizam a
bicicleta como meio de transporte diário.
mas qual seria a importância deste evento
para pensarmos as noções de diversidade e
pluralidade? além de nos dar uma pequena
mostra das relações sociais daquele país, o
conflito nos permite observar, por exemplo,
que percepções de ordem moral e racial,
como o fato de atribuir comportamentos
desviantes a grupos estigmatizados social-
mente – neste caso: “árabes” e “estrangei-
ros” – fazem parte do repertório do nosso
mundo contemporâneo, tão marcado pelo
fenômeno da imigração e de um regime de
verdades, de um sistema de representações
– por que não dizer? – ainda tributário do
colonialismo5.
todos os dias somos bombardeados com
imagens, capturadas por agências de notí-
cias internacionais, que trazem o mundo
para dentro das nossas casas via telejornais,
jornais impressos, revistas, internet e outras
mídias. no entanto, cabe perguntar: como o
mundo está sendo representado? como as
“pessoas” aparecem? De que modo os luga-
res são retratados? Podemos observar, por
exemplo, uma notícia bastante conhecida
por todos nós: o conflito envolvendo israe-
lenses e palestinos. na maioria das reporta-
gens, os palestinos são mostrados como hor-
das de homens barbudos, que correm de um
lado para outro, aos berros, carregando cor-
pos de companheiros vitimados no confron-
to. as suas mulheres vestem exóticos trajes
cobrindo a cabeça e o rosto e perambulam
como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas
devastadas; uma paisagem inóspita, digna
dos filmes de ficção científica hollywoodia-
nos. na África, que vale sublinhar, não é um
país, mas um continente, o que em geral é
mostrado são epidemias, mortes, guerras,
fome, desespero e brutalidade. Diante disso,
cabe perguntar: quem são estes “árabes pa-
lestinos” e quem são estes “africanos”? eles
sequer têm uma língua porque não têm voz;
não têm família, porque vivem aos bandos
e raramente são mostrados seus núcleos fa-
miliares. o que resta deste diferente, senão
a sua diferença estereotipada pela mídia? e
a pluralidade de vozes, de visões de mundo,
de pensamentos, de ideologias, de corpos,
de histórias, de História? tudo é facilmen-
te suplantado diante do fast food diário de
onde retiramos punhados de narrativas es-
tereotipadas sobre o Outro6.
ainda sob este aspecto, o filme do diretor ca-
nadense Paul Haggis, Crash: no limite, mos-
tra a população da cidade de los angeles,
nos estados unidos, na iminência de um co-
5 no brasil padecemos do mal causado pela discriminação racial, de gênero, religiosa, de classe, motivada pela opção sexual, etc. estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso país.
6 só precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais atenção nas nossas atitudes cotidianas para perceber as práticas discriminatórias, os nossos preconceitos e a dificuldade explícita de conviver com a diferença.
35
lapso causado por um excesso de, digamos,
diversidade e pluralidade, e pela consequente
impossibilidade de convívio e comunicação
em tal contexto. neste caso, a emergência
das diferenças e do fundamentalismo das
identidades guetorizadas com nuanças es-
sencialistas desarticularam o aparato das
regras de convívio social que, idealmente,
serviria a todos da mesma maneira. a partir
de então, qualquer desentendimento pas-
sou a ser motivo para acusações de cunho
racial, todo problema é interpretado como
de fundo étnico, todos os desencontros são
causados por barreiras linguísticas ou de
costumes/tradições particulares, e as insti-
tuições operam de maneira a privilegiar gru-
pos religiosos, castas, etc. estes são momen-
tos profundamente dolorosos e traumáticos
para todo e qualquer grupamento humano.
não obstante este cenário pouco atraente,
os personagens permaneciam ligados; to-
dos estavam implicados nos rumos da tra-
ma, nos rumos daquela sociedade; os laços,
mesmo esgarçados, sobreviviam e aponta-
vam para algumas saídas e uma delas foi
o afeto. o afeto foi/é um dispositivo capaz
de reordenar, por exemplo, contextos mar-
cados por dinâmicas violentas de conflito e
cisão, como aconteceu na África do sul, no
pós-apartheid7.
DinâMiCAS DE CiSÃO E DE
RECOnStRuÇÃO
alguns autores apontam, e eu me identifi-
co com esta perspectiva, que estamos em
meio a um turbilhão de mudanças que
atingem, em cheio, os padrões de identida-
de que conhecemos na chamada moderni-
dade tardia8. De acordo com isso, teríamos
o seguinte quadro interpretativo: temos o
mundo social e os indivíduos que, por sua
vez, se ligam ao primeiro por um conjun-
to de referências e estas podem ser cultu-
rais, por exemplo. tais referências atuam
“estabilizando” os indivíduos em seus con-
textos. o meu objetivo neste texto é fazer
um exercício de reflexão acerca da noção
de diversidade e pluralidade num mundo em
movimento, não é demais lembrar, onde
as tradicionais fontes de representações
culturais, de significados, como o estado-
-nação, deixam de ser hegemônicos. as
consequências são variadas e é preciso um
esforço de investigação amplo e extenso
para dar conta de mapeá-las. no entanto,
é importante seguir algumas pistas que po-
dem nos levar na direção destas mudanças
na ordem das identidades culturais: se por
um lado os padrões de identificação tradi-
cionais do estado-nação perderam força
7 esta “saída” foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana nadine gordimer chamado: Engate.
8 não vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor jamaicano stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade.
36
no embate com a diversidade e a pluralidade
reivindicadas pelos grupos que antes esta-
vam silenciados sob o plácido manto “na-
cional”; de outro lado, acompanhamos o
ressurgimento de um nacionalismo de tipo
étnico/racial e fundamentalista religioso.
Diante deste quadro, quem sabe, podería-
mos resgatar a tese de gramsci, e trabalhar
a partir do entendimento de que o mundo
das disputas políticas é o palco para a con-
quista de mentes e corações para esta ou
aquela ideologia. a diversidade e a plurali-
dade, como valores para serem celebrados,
não nascem por geração espontânea, não
são algo genético, alguma coisa inevitável.
Pelo contrário, são ideologias, forjadas, la-
pidadas, escolhidas e levadas a cabo por
obra e engenharia humana, dos grupos so-
ciais, portanto, são históricos9! o brasil, por
exemplo, no século XIX, foi condenado pela
ciência europeia eugenista a poucos anos
de sobrevivência como nação; isto porque
era escandaloso verificar as variações de
cores e tipos de pessoas que conviviam nas
cidades do antigo Império Português. “es-
candaloso” é uma boa palavra para resumir
o sentimento de estranhamento e horror
declarado por renomados cientistas e po-
líticos franceses e ingleses depois de um
pequeno passeio pelas ruas do rio de Janei-
ro. não tínhamos saída! estávamos fadados
ao fim por causa de um povo/raça fraco e
doentio; um contingente de homens e mu-
lheres resultante de assombrosos intercur-
sos sexuais entre negros, brancos e índios.
uma população cuja força havia se enfra-
quecido biologicamente, havia se tornado
impura, sem chances de vida.
sobrevivemos a isso? alcançamos o século
XXI! mas de que maneira nos livramos desta
sentença de morte e alcançamos a condição
de “País do Futuro”10? Que engenharia so-
cial foi responsável por este acontecimento?
vou ressaltar, de maneira bastante sintéti-
ca, apenas uma dimensão desta luta por um
contra-argumento bastante representativo:
foram muitos anos de intensa produção
intelectual por estas terras e pelo mundo
afora até que a tese das diferenças culturais
conseguisse um campo maior de hegemo-
nia, em prejuízo do biologismo, da hipótese
segundo a qual a humanidade devia as suas
diferenças às divisões raciais que classifi-
cavam os grupos humanos de acordo com
a sua localização numa linha evolutiva11. o
brasil começou a ganhar fôlego e horizonte
a partir da celebração da mistura – genéti-
ca e cultural – do povo que por estas terras
está12. misturar, mesclar, sincretizar, tornar
híbrido tanto pessoas quanto tradições cul-
turais: a celebração destas possibilidades
precisa ser inventada.
9 uma leitura interessante é o artigo de claude lévi-strauss chamado Raça e História.
37
A CiDADE COMO ESPAÇO A
SER PERMAnEntEMEntE
COnQuiStADO
visto isso, podemos pensar a respeito do
papel da cidade neste grande panorama
que acabamos de desenhar. a cidade é o
lugar onde estes embates se dão, ela é mol-
dada, ela está organizada, ela reflete e é
refletida nestes encontros promovidos sob
a égide da diversidade e da pluralidade. em
suma, a cidade é um ente pulsante neste
jogo. a geofísica, as fronteiras, a arquite-
tura, o seu desenho sociopolítico: a cida-
de é chão e abstração. Quando emigram,
as pessoas levam consigo as suas cidades.
com elas viajam hábitos, cheiros, gostos,
festas, paisagens, sotaques característicos,
etc. neste sentido, a cidade está inscrita
em nossos corpos. Dessa maneira, quão
desnorteador deve ser o desaparecimento
súbito de uma cidade que sucumbe à guer-
ra... Dá para imaginar o quanto de agonia
está disseminada entre milhares de pesso-
as que vivem há anos nos campos de re-
fugiados espalhados pelo planeta, que vi-
vem neste vácuo, neste espaço provisório
que teima em não permitir que elas deitem
raízes? mas a cidade também é raivosa e,
muitas vezes, dá as costas aos sujeitos. e
quando isso acontece, os movimentos so-
ciais – os coletivos organizados – precisam
retomá-la à força. Por isso, será necessário
apropriar-se do patrimônio da cidade, de
sua pedra e cal, da sua intangibilidade para
depois colocar no plural a História e, por
fim, afirmar como é diversa a cidade que
antes se fez arredia.
a cidade precisa ser constantemente captu-
rada por seus cidadãos, afinal de contas, são
eles que lhe imprimem sentido. a educação
formal e a não-formal nos dão instrumentos
mais eficazes para colocar em prática este
intenso processo de reelaboração das “his-
tórias locais” sem perder de vista os “pro-
jetos globais”13. Quando olhamos ao nosso
redor, quando descobrimos e organizamos
as histórias sobre o lugar onde nascemos,
o bairro onde vivemos, a cidade em que
transitamos, estamos refazendo a paisa-
gem, apresentando nossas vozes e nossas
percepções sobre aquele espaço. É como
me explicou um jovem participante do gru-
po “reperiferia”, do rio de Janeiro, dizendo
que “reperiferia” significa repensar a peri-
10 Para saber mais, indico a leitura do clássico livro de stefan Zweig: Brasil um país do futuro.
11 sobre este tema, as minhas fontes para estas questões costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de gilberto Freire; Raça, Ciência e Sociedade, organizado por marcos chor maio e ricardo dos santos ventura; Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no rio de Janeiro, da antropóloga olívia cunha.
12 ver gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933).
13 Fiz esta referência inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter mignolo. o livro em questão tem o título: Histórias locais, Projetos globais. colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. (2003).
38
feria; pensar novamente alguns lugares da
cidade que já estiveram submetidos ao olhar
de outras pessoas, muitas vezes descoladas
daquela realidade. a ideia é recolocar-se na
cidade a partir de um entendimento amplo
dos procedimentos de construção de sua ge-
opolítica e das dinâmicas culturais e sociais
que algumas vezes nos separam, e em ou-
tras refazem laços afetivos que imagináva-
mos não mais existir.
REFERênCiAS
bauman, Zygmunt. comunidade. A busca
por segurança no mundo atual. rio de Janei-
ro: Jorge Zahar editor, 2003.
cunHa, olivia m. gomes da. Intenção e Ges-
to: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)
diferença no rio de Janeiro, 1927-1942. rio
de Janeiro: arquivo nacional, 2002.
FreYre, gilberto. Casa-Grande & Senzala. rio
de Janeiro: editora record, 1998.
gorDImer, nadine. Engate. rio de Janeiro:
companhia das letras.
Hall, stuart. A Identidade cultural da pós-mo-
dernidade. rio de Janeiro: DP&a editora, 2006.
Dicionário HouaIss. rio de Janeiro: editora
objetiva, 2001.
lÉvI-strauss, claude. Raça e História. In:
raça e ciência I são Paulo: unesco/editora
Perspectiva, 1970.
maIo, marcos chor e santos, ricardo ven-
tura (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. rio de
Janeiro: Fiocruz/ ccbb, 1996.
mIgnolo, Walter D. Histórias locais/Proje-
tos globais. Colonialidade, saberes subalter-
nos e pensamento liminar. belo Horizonte:
Hb/ed. uFmg, 2003.
ZWeIg, stefan. Brasil um país do Futuro. Por-
to alegre: l&Pm, 2006.
39
Iv. SABERES CULTURAIS E EDUCAÇÃO DO FUTURO1
Edgard de Assis Carvalho2
o que são saberes culturais? são o acervo
de conhecimentos, entendimentos, realiza-
ções, progressos, regressões, utopias, desen-
cantamentos, produto de uma aventura que
nós construímos no planeta terra, datada
de pelo menos 130 mil anos. as sociedades
humanas, tal como as conhecemos hoje,
são o produto de uma longa evolução que
possibilitou a um pequeno bípede, com um
cérebro muito assemelhado ao de um chim-
panzé, e ainda mais ao de um bonobo, criar
cognições, transmiti-las, codificá-las. nos-
sas diferenças para com os primatas não hu-
manos diminuem a cada dia. o genoma das
duas espécies tem semelhanças de 99%. mês
passado, foi identificado o FoXP2. Humanos
que apresentam defeito nesse gene apre-
sentam graves problemas de fala. chimpan-
zés, orangotangos, resus e gorilas também
o possuem. talvez uma dissipação genética
tenha sido responsável pelo fenômeno da
fala, essa fantástica marca dos primatas hu-
manas que tornou possível criar e transmitir
saberes. De qualquer modo, denominou-se
cultura a esse patrimônio material e imate-
rial de proporções milenares.
Desde que o mundo passou a ser explica-
do pela ciência, instituiu-se uma fronteira
entre humanos e não humanos que nunca
foi suficientemente explicitada. essa divisão
entre animalidade e humanidade foi respon-
sável por muitas das definições pelas quais
o conceito de cultura passou a ser entendi-
do. em finais do século XIX, por exemplo, a
cultura era definida como a mera soma de
fatos que incluía desde tecnologias, artes,
até magias, religião, parentesco. em meados
dos anos XX, o conceito adquiriu contornos
mais precisos, dado que o ocidente voltou
seu olhar e sua cobiça para outros mundos,
considerados por uns como inferiores, por
outros simplesmente como diferentes, nati-
vos, primitivos, selvagens.
Instalou-se, a partir daí, a pulsão da desco-
berta e a compulsão da descrição, definido-
1 complexidade e seus reflexos na educação (2002).
2 Professor titular de antropologia. coordenador de comPleXus – núcleo de estudos da complexidade da Faculdade/Pg de ciências sociais da Puc/sP.
40
ras do metiê antropológico. as sociedades
humanas passaram a ser identificadas a or-
ganismos, cujas partes garantem, por vezes
precariamente, a continuidade harmoniosa
do todo. embora a analogia fosse precária,
os pesquisadores passaram a admitir que o
funcionamento das instituições era o único
responsável pela regulação da engrenagem
da sociedade. se, por um lado, esse tipo de
explicação propiciou uma radiografia por-
menorizada de usos e costumes, delibe-
radamente não levou em conta que essas
diferenças já faziam parte de um processo
histórico altamente desigual, que opunha, e
opõe até hoje, oriente a ocidente, civilizado
a primitivo, moderno a arcaico, capitalista a
nativo ou indígena.
no final dos anos 40, a distinção entre o
natural e o cultural passou por alteração
significativa, mesmo que a ideia da nature-
za como universalidade dos instintos e a de
cultura, como diversidade de padrões tenha
sido mantida. Passou-se a postular que entre
a natureza e a cultura havia algo simultane-
amente universal e particular, um fenôme-
no que se encontrava presente em todas as
sociedades humanas e que, ao mesmo tem-
po, era diferente em muitas delas. esse algo
mais era a proibição do incesto. o respon-
sável por este estudo foi claude lévistrauss.
se o incesto não tinha nada a ver, neces-
sariamente, com uniões consanguíneas, o
apelo da “voz do sangue” tornou-se inútil,
preconceituoso para explicar a essência dos
interditos. De qualquer forma, a proibição
passou a sinalizar a passagem da natureza
à cultura, da universalidade à diversidade,
garantia da perpetuação e reprodução do
mundo, propiciada pela circulação de mu-
lheres, bens econômicos e mensagens.
em decorrência disso, passou-se a questio-
nar se essas alteridades eram mesmo dife-
rentes em natureza (primitivo/civilizado),
em grau (inferior/superior) e pensamento
(pré-lógico e lógico). admitir que outros po-
vos pensavam como nós e, por vezes, me-
lhor do que nós, representou um duro golpe
para muitos, já narcisicamente abalados pe-
las impertinências e ferimentos provocados
pelas revoluções copernicana, darwiniana e
freudiana. mesmo que não tivessem escri-
ta para registrar seus saberes, os mitos que
construíram para entender melhor a reali-
dade em que viviam atravessaram gerações
e, até hoje, surpreendem leitores e pesqui-
sadores.
o arrogante pensamento domesticado, mo-
derno, científico, que se consolidou a partir
do século Xv, cercado de certezas, leis, de-
terminismos, causalidade, teleologias, dei-
xou de lado a preocupação com a totalidade,
com a intuição, com o imaginário, passando
a se concentrar no entendimento do frag-
mento, da parte, supondo que através deles
seria possível atingir uma objetividade sem
parênteses. com isso, virou as costas para
41
o sujeito, para a incerteza e para a comple-
mentaridade, privatizou terras e mares, con-
siderou magias e mitos como algo irracio-
nal, produto descartável criado pela mente
obscura de selvagens, ou por alucinações
dos civilizados.
a principal consequência dessa visão de
mundo, no plano da educação, acabou por
consagrar, em décadas posteriores, a figura
do especialista, esse humano fechado em si
mesmo, egoísta, que descarta e desconsi-
dera tudo aquilo que ocorre para além dos
contornos infinitamente pequenos de sua
existência e de seu objeto de pesquisa.
o final dos anos 60 provocou outra altera-
ção no entendimento entre nós e os outros,
só que agora referente às formas materiais
de vida, às relações com a natureza pro-
priamente dita. um número considerável
de pesquisadores, identificados com o ma-
terialismo histórico, debruçou-se sobre po-
pulações não capitalistas, demonstrando
que uma vida igualitária, regida por normas
coletivas e solidárias não era coisa do outro
mundo. constatou-se, também, que não era
necessário trabalhar arduamente em tempo
integral para que a comunidade sobrevives-
se dignamente. maurice godelier e tantos
outros foram os responsáveis por essa esto-
cada no relativismo substantivista, que sem-
pre se traveste de tolerante para justificar e
manter a dominação.
Para surpresa de muitos, esses estranhos
mundos passaram a ser considerados como
as primeiras “sociedades da afluência”, pois
dedicavam poucas horas ao trabalho e, em
muitas delas, a palavra trabalho nem existia.
o restante do tempo era dedicado aos ritu-
ais reforçadores da vida e da solidariedade
coletivas.
essa ampliação cognitiva não conseguiu
abalar o sólido edifício do grande paradigma
do ocidente, e isso porque ainda mantinha
a definição do humano dentro de padrões
normativos demais. afinal de contas, fazen-
do parte do gênero homo, a espécie sapiens é
igualmente faber, porque fabrica instrumen-
tos, loquens, porque articula fantásticos jo-
gos de linguagem, ludens, porque se encan-
ta com jogos e rituais, simbolicus, porque
atribui significados ao mundo e acumula e
transmite saberes.
não foi fácil admitir que não éramos ape-
nas sapiens. se chimpanzés, bonobos, gori-
las já exibem sapientalidade, ganhamos um
segundo adjetivo e passamos a ser definidos
como sapiens sapiens. a repetição do ter-
mo não se deu por acaso. as pesquisas de
richard e louis leakey, Jane goodall, Frans
de Waal mostram a todos nós que a cultu-
ra, antes privilégio nosso, é algo muito mais
amplo do que supúnhamos anteriormente.
o “antropocentrismo satírico” de Wall fun-
damenta-se no pressuposto de que chim-
42
panzés, por exemplo, vivem em sociedades
complexas, e se arranjam como podem para
enfrentar alianças, conflitos e lutas pelo po-
der. bonobos preferem fazer amor sob for-
mas as mais variadas, para que as contendas
se anulem e a reconciliação seja reposta.
a diminuição da distância intelectual e cog-
nitiva entre primatas exigiu que o conceito
fosse visto de modo menos excludente, o
que de fato ocorreu a partir dos anos 70. ao
manter acopladas as noções de unidade e
diversidade, a cultura passou a ser entendi-
da como um conjunto complexo de saberes,
por vezes contraditório, por outras harmô-
nico, de regras, normas, valores, mitos, so-
nhos, que primatas, humanos preferencial-
mente, acionam ao se defrontarem com os
desafios do ecossistema circundante.
semelhantes e diferentes, universais e par-
ticulares, produzimos diferenças locais que
não devem ser entendidas como ilhas inco-
municáveis de um arquipélago, mas como
um continente de objetos complexos, mani-
festações de algo mais profundo e universal,
construído num longo processo evolutivo
não linear, que envolveu sempre perdas, ga-
nhos, avanços e recuos.
longe de serem consideradas como uma
dualidade de fronteiras intransponíveis, é
preciso acionar os operadores da recursivi-
dade e da dialógica e enxergar a natureza na
cultura e vice-versa. somos naturais porque
inscritos numa complexa ordem biológica;
somos culturais porque capazes de elaborar
estratégias de sobrevivência e adaptação, a
curto, médio e longo prazos, onde quer que
nos encontremos. em resumo, e a ideia é de
edgar morin, somos 100% natureza, 100%
cultura, ou melhor dizendo, somos seres vi-
vos uniduais, carregamos conosco uma tra-
jetória biológica milenar, ao mesmo tempo
em que somos portadores de um vasto acer-
vo cultural constituído pela memória coleti-
va da espécie.
Porque falamos, comunicamos, planejamos,
calculamos, competimos, amamos e odia-
mos, passamos a nos autoatribuir uma su-
perioridade ímpar perante os demais seres
vivos. em cada um de nós existe algo que es-
capa a essas características normativas de-
mais, sistemáticas demais. a cada momen-
to, somos invadidos por delírios, sonhos,
excessos, loucuras, descomedimentos que
escapam a nosso controle explícito, cons-
ciente.
treinados pela educação familiar e escolar a
afastá-los de nossa imaginação e a recalcá-
-los em nossa psique, temos que reaprender
a conviver e dialogar com eles, ou seja, in-
trojetar em nossas cabeças que somos sá-
bios e loucos, unos e múltiplos, duplos, e
que é exatamente isso que vialibizará, sem
excessos, processos civilizatórios solidários
e processos educativos religados. Sapiens sa-
piens demens, eis nossa condição, plano de
43
imanência que nos permite viver, sobreviver,
afrontar, e talvez superar, a insignificância
dos mal-estares pós-modernos comandados
pela unidimensionalidade da tecnociência,
pela compulsão da conectividade, pela des-
razão da política, pela insuficiência dos afe-
tos.
Precisamos de um novo sujeito do conhe-
cimento, que não seja tecnofóbico e muito
menos antropofóbico, que reconheça o pa-
pel das tecnologias do infinitesimal, sem
atribuir-lhes papel determinante para desti-
nos futuros. o planeta tem urgência de ser
mais integrativo e interdependente. se fosse
possível traduzir esse ponto de vista em slo-
gans de um programa político, as palavras de
ordem dessa biocosmopolítica serão: conser-
vação em lugar de destruição, religação em
lugar de fragmentação, cooperação em lugar
de competição, partilha em lugar de concen-
tração, inclusão em lugar de exclusão.
a unesco, ao promover os quatro pilares
da educação para o século XXI, em torno de
quatro formas de aprendizagem, a saber:
conhecer, fazer, viver junto e ser, estava cer-
tamente imbuída da ideia de que a humani-
dade, a terra-Pátria, não pode ser concebida
como um meio de obter lucros e vantagens
para poucos, mas como um fim a ser cons-
truído por todos e para todos. na verdade,
trata-se de um aprendizado complexo, a ser
exercitado não apenas nas escolas, mas na
vida em geral. um amplo processo partici-
pativo, restaurador do homem genérico,
que envolve princípios, valores, utopias e,
certamente, um contrato planetário, social
e natural, no qual animais e homens, natu-
reza e cultura não se separem mais.
traduzir esses pilares para a sala de aula é
uma tarefa complexa, dadas as condições
em que o ensino se encontra, debatendo-
-se entre uma utopia democrática, a escola
para todos, e uma realidade meritocrática, a
escola para alguns. além disso, a fragmen-
tação disciplinar, empenhada em transmitir
conteúdos e gerar competências, esquece-se
de que a formação do sujeito responsável re-
quer como ponto de partida a religação dos
saberes, cabeças bem-feitas, como preten-
dia montaigne.
uma vez perguntaram a um poeta, mais
exatamente a Yves bonnefoy, porque ele
considerava fundamental o ensino da po-
esia nas escolas. sua resposta foi direta e
incisiva. Disse ele que a poesia propiciava
a prática da liberdade para com as palavras
e a vivência da responsabilidade com um
mundo melhor, com o sentido da vida. a po-
esia e a literatura em geral, as artes, com as
imagens que constroem, criam uma fantás-
tica reserva de emoções, abrem janelas para
o mundo, acionam níveis de realidade não
percebidos pela linguagem fria e distante
dos conceitos. Quando se aprende um po-
ema de cor, quando se lê um romance pela
décima vez, ou se guarda a imagem de uma
44
pintura, eles permanecem para sempre em
nossa mente, como fiéis companheiros que
nos convidam a encarar a desregulação do
mundo de modo menos pessimista, a per-
ceber a realidade de forma menos linear, a
descrer dos ditames da razão, a usufruir das
delícias do imaginário.
essa escuta do mundo não implica obrigar
as escolas a incluírem a poesia em seus cur-
rículos, embora isso fosse até desejável. ela
alerta, porém, para o fato de que ciência e
imaginação não se excluem, mas se comple-
mentam, empenhadas que estão na decifra-
ção dos enigmas da vida. não é mais possí-
vel que a educação do século XXI mantenha
a separação entre as duas culturas, a saber: a
cultura científica e a cultura das humanida-
des. refiro-me, mais uma vez, aos propósi-
tos da unesco que pregam os princípios de
educação permanente, sociedade educativa,
reciclagem e atualização contínua dos con-
teúdos, sinergia entre alunos e professores.
um ensino compartimentalizado não conse-
guirá jamais promover esses objetivos. a re-
ligação exige não apenas cabeças bem-feitas,
mas disponibilidade e revolta docentes para
abrir compartimentos, fomentar incertezas,
promover o diálogo, reinventar o mundo.
se o século XX presenciou a irrupção da de-
sordem, da incerteza e da complementari-
dade e expôs como nunca a interface en-
tre ciência e política, o século XXI tem pela
frente a inédita possibilidade de restaurar o
conhecimento pertinente e não se deixar se-
duzir pelos confortáveis apelos da fragmen-
tação e da hiperespecialização. restaurar o
conhecimento pertinente implica integrar
razão e paixão, onda e partícula, unidade e
multiplicidade, arte e ciência, em acionar
uma espécie de significante flutuante, uma
força primordial que circula por toda parte,
que atravessa todos os códigos, que recupe-
ra o sentir, o agir e o pensar, que religa indi-
víduo, sociedade e cosmo, que se situa além
e aquém da vida e da morte.
toda vez que pensadores instauradores de
discursividade utilizaram-se da forma meta-
fórica da arte para aclarar o conteúdo som-
brio e metonímico da ciência, os saberes
culturais se enriqueceram, as duas culturas
se interligaram, a educação sentiu-se mais
gratificada. vejamos alguns poucos momen-
tos escolhidos ao acaso na vasta história do
pensamento em que isso ocorreu.
claude lévistrauss, em 1962, muniu-se de
um pequeno quadro de François clouet do
século XvI (1515-1572), elisabeth da Áustria,
para construir a ideia de modelo reduzido
como elemento propiciador da emoção es-
tética e da visibilidade dialógica entre a par-
te e o todo, magia e ciência, arte e ciência,
jogo e rito.
Humberto maturana e Francisco varela
abrem seu fabuloso livro, A Árvore do conhe-
cimento, com Hieronimus bosch (1450-1516),
45
“o cristo coroado de espinhos”. Para ma-
turana e varela, o quadro expressa as ten-
tações da certeza. cristo, no centro, revela
imensa paciência diante dos verdugos, coisa
que precisamos muito diante da vigilância
cognitiva que nos ataca constantemente. o
personagem do canto direito segura Jesus
pelo manto. restringe sua liberdade, parece
dizer “eu sei, eu sei”. certezas demais, con-
vicções demais.
edgar morin refere-se, com certa frequência,
a guiseppe archimboldo (1527-1593). Quan-
do tomamos contato com suas pinturas,
nos surpreendemos com o caráter alegórico
da harmonia e do caos, a interdependência
dos quatro elementos, das estações do ano,
a comple¬mentaridade de flores, frutos e
peixes, as agruras e o peso da acumulação
dos saberes. o livreiro, um de seus quadros
mais comentados pelos críticos de arte, en-
contra-se literalmente embriagado de livros,
tragado pelo conhecimento. Descarnado, a
cortina o livra das intempéries do frio. um
pouco de todos nós estamos contidos nas
imagens desse livreiro, que acumula e religa
saberes sem saber ao certo o que fazer com
eles, como operacionalizá-los.
Ilya Prigogine, Prêmio nobel de Química de
1977, debruçou-se recentemente sobre rené
magritte (1898-1967). Para Prigogine, magrit-
te enfatiza sempre os mistérios da existên-
cia humana, insistindo que a obra de arte
os explicita e a ciência pretende, apenas, de-
cifrá-los e analisá-los. se a história humana
possui sempre um caráter não determinista,
devemos privilegiar as experiências da cria-
tividade, esse algo mais que resiste ao pen-
samento em detrimento das experiências da
repetição, prosaicas, equilibradas demais.
a arte de viver expressa exatamente isso: a
luminosidade da criatividade e a singeleza
da repetição. simetricamente irreversíveis,
nos debatemos entre essas duas dimensões
existenciais, pulsões constitutivas do serno-
mundo, como se a ordem nascesse sempre
da desordem, a vida sempre da morte, e as-
sim sucessivamente.
Finalmente, reencontramos Fernando Diniz
(1918-1999). em 1944, foi preso e levado para
o manicômio judiciário, porque, segundo
dizem, andava nu pelas areias de copacaba-
na. em 1949, foi internado no centro Psiqui-
átrico D. Pedro II, de onde não saiu nunca
mais. Iniciou-se nos ateliês de artes coorde-
nados por nise da silveira, a doutora nise,
odiada pela vigilância cognitiva instalada
na psiquiatria cartesiana, que considerava
os coterapeutas utilizados pelos clientes
simplesmente como animais destituídos de
emoções. a doutora sabia muito bem que
seus gatos e cachorros sofreriam muito nos
corredores hospitalares do Pedro II. não
esmoreceu. colocou tintas, pincéis, barro,
tecidos, linhas nas mãos de artur bispo do
rosário, adelina, carlos, raphael, emygdio,
Fernando, permitindo que “inumeráveis es-
tados do ser” aflorassem, mesmo diante das
46
tristes consequências que choques, medica-
mentos, desafetos e abandonos provocam
na psique. Qualquer visita ao museu das
Imagens do Inconsciente, criado em 1952 no
rio de Janeiro, produz uma infinita sensação
de êxtase diante dos símbolos que as forças
do inconsciente acionam e explicitam.
Fernando Diniz produziu não apenas tape-
tes digitais e mandalas, mas um mosaico de
imagens figurativas, abstratas, orgânicas,
inorgânicas. trinta mil obras: telas, dese-
nhos, modelagens, tapetes, alguns titulados
outros não. Diz ele: “mudei para o mundo
das imagens”. Instado a definir o que era
um pintor afirmou: “o pintor é feito um livro
que não tem fim”. Desfez a separação entre
arte e loucura, consciente e inconsciente,
religou saberes.
afinal de contas, como ele mesmo afirma
num texto que escreveu, “a estrela existe,
antes de tudo, em cima da estrela se dese-
nham círculos, e em cima dos círculos bor-
boletas ou margaridas”. em 1996, foi pre-
miado no Festival de gramado na categoria
de melhor curta-metragem com o desenho
animado “a estrela de oito pontas”, para o
qual realizou cerca de 40 mil desenhos. rea-
lizou sua última exposição em 1998, no mu-
seu nacional de belas artes, rio de Janeiro.
morreu em 1999.
47
v. REDES DE CONvIvêNCIA E DE ENFRENTAmENTO DAS DESIgUALDADES1
Elizeu Clementino de Souza2
“Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio: pilar da ponte
de tédio que vai de mim para o outro”
(Mário de Sá Carneiro).
SinOPSE
o texto aborda questões relativas à identi-
dade e à diferença no cotidiano escolar e
as implicações nas práticas de formação.
busca discutir aspectos concernentes à fa-
bricação de identidades docentes e formas
historicamente construídas de regulação no
cotidiano escolar e no desenvolvimento pro-
fissional dos professores, a partir das práti-
cas pedagógicas implementadas na cultura
escolar, no tocante à homogeneização das
identidades, em negação à cultura da dife-
rença.
neste texto, que visa oferecer subsídios aos
debates do terceiro programa da série, pre-
tendo discutir questões teóricas e práticas
relacionadas à construção da identidade e à
vivência das diferenças no cotidiano escolar.
Pretendo, também, analisar as implicações
da construção da identidade profissional no
processo da formação docente e do desen-
volvimento profissional de professores, no
que se refere às diferenças e à intercultura-
lidade na escola.
vivemos numa sociedade marcada pela plu-
ralidade de imagens e diferenças sociais
e culturais. a escola, por sua vez, buscará
desenvolver seu projeto pedagógico com
ênfase nas diferenças e nas relações que os
indivíduos estabelecem consigo mesmos e
com os outros. convém questionar se nós,
professores, desenvolvemos nossas práticas
tendo em vista a assunção das identidades
e o respeito às diferenças. como podemos
viver os projetos de igualdade e do respei-
to à diversidade, tão presente e marcada na
sociedade brasileira? De que maneira a es-
cola pode tornar-se um território favorável à
aprendizagem do convívio com a diferença?
1 espaços de encontro: corporeidade e conhecimento – 2005 / Pgm 3.
2 Doutor em educação pela FaceD-uFba, Professor do Programa de Pós-graduação em educação e contemporaneidade da universidade do estado da bahia e das Faculdades Integradas olga mettig.
48
compreendo a educação como um processo
de autotransformação do sujeito, que en-
volve e provoca aprendizagens em diferen-
tes domínios da existência, evidenciando o
processo que acontece em cada indivíduo,
traduzindo-se na dinâmica que estrutura ou
é estruturada por cada um no seu modo de
ser, estar, sentir, refletir e agir. sendo assim,
a educação e, por consequência, também
a formação, não se esbarram na transmis-
são e aquisição de saberes, na transferência
de competências técnicas e profissionais e,
tampouco, na assertiva das potencialidades
individuais. Filio-me à perspectiva epistemo-
lógica da formação experiencial, por enten-
der que a noção de processo de formação
que ela implica possibilita o centramento
no sujeito na globalidade da vida, entendida
como interação da existência com as diver-
sas esferas da ‘con-vivência’ como perspec-
tiva educativa e formativa.
É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas
no nosso cotidiano que aprendemos dimen-
sões existenciais e experienciais sobre nós
mesmos, sobre os outros e sobre o meio em
que vivemos. no entrecruzamento de nossas
aprendizagens, a escola exerce um papel sin-
gular, visto que neste espaço ‘convivemos’
e internalizamos papéis sociais apreendidos
no cotidiano familiar. o investimento na for-
mação de professores e no trabalho coletivo
na escola poderá possibilitar outras formas
de trabalho didático e pedagógico, que con-
tribuam para a reafirmação de identidades,
para a vivência, para a tolerância e para o
respeito ao exercício da cidadania.
Discutir a fabricação da igualdade, tomada
aqui como projeto de homogeneização dos
indivíduos e da negação das diferenças no
espaço da escola, é uma tarefa que exige re-
afirmação de novas e constantes opções que
cruzam e entrecruzam a compreensão do
mundo, da vida, das aprendizagens e expe-
riências construídas ao longo da existência.
a vivência escolar se entrecruza, no seu co-
tidiano, com valores produzidos no coleti-
vo e no âmbito social, na medida em que
esses valores se modificam de acordo com
os condicionantes econômicos, políticos,
institucionais, culturais, físico-ambientais e
ético-estéticos. compreendo que é desse en-
trecruzamento que são apropriados, cons-
truídos e reconstruídos diversos processos
e formas da vida dos sujeitos como produ-
tores e construtores da história. Por isso,
penso que não devemos fechar a noção de
“identidade” como algo fixo, imutável e cris-
talizado, porque significa construção, daí a
necessidade de compreendê-la como pro-
cesso que comporta subjetividades, comple-
xidades, diferenças e não igualdades.
É fundamental desconfiar de tudo que é
naturalizado, especialmente, em relação às
práticas cotidianas engendradas na escola e
no espaço familiar, as quais são ancoradas
em padrões, envolvendo os sujeitos e refor-
49
çando o projeto de igualdade, reforçando a
marginalização e escamoteando as diferen-
ças3 daqueles que transitam e optam por
formas de expressão e de manifestação que
não se enquadram nas legitimidades sociais
e institucionais.
teoricamente, busco em louro (1997, 1998),
Hall (2000) e silva (1999, 2000) princípios te-
óricos que me possibilitem apreender con-
ceitos e políticas de sentido sobre a iden-
tidade e a diferença no cotidiano escolar,
visto que “[...] consideramos a diferença
como um produto derivado da identidade.
nesta perspectiva, a identidade é a referên-
cia, é o ponto original relativamente ao qual
se define a diferença [...]” (sIlva, 1999, p. 74-
5). numa outra perspectiva, e no que con-
cerne à fabricação de identidades docentes,
busco em lawn (2000), moita (1992) e nóvoa
(1992a, b), aspectos teóricos sobre a cons-
trução de identidades profissionais e práti-
cas de regulação engendradas nas políticas
de formação.
ao abordar a subjetividade e o processo de
formação e (auto) formação do “devir pro-
fessor”, Pereira afirma que: “Quando pensa-
mos a construção das identidades, também
somos perseguidos por esse modelo de es-
tabilidade, de harmonia e de cristalização
como padrão desejado. a sociedade nos
dá, prontas, algumas identidades: homem,
mulher, professor, artista, mãe, pai, família,
escola etc.” (Pereira, 2000, p. 36). Desta for-
ma, reitera o autor que: “uma identidade é,
nesse caso, uma configuração cristalizada,
estereotipada de uma maneira de ser ou um
ritmo determinado em responder às figuras
demandadas [...]. a institucionalização das
identidades é uma forma de homogeneizar
o cotidiano e construir os grupamentos e as
coletividades [...]” (idem, p. 37). evidencia-
-se que a identidade não é uma construção
do sujeito por ele mesmo em suas relações
individual e coletiva, mas sim uma diferen-
ça que o sujeito produz em si. Por isso, a
identidade é produzida e forjada conforme
os modelos e padrões estabelecidos, como
quer a nossa sociedade, com base nas es-
tratégias e estratificações convencionadas
socialmente.
ao discutir sobre “os professores e a fabri-
cação de identidades” lawn4 (2000) afirma
que a construção e as alterações na identi-
3 Para o aprofundamento dessa questão, consultar o trabalho de stela rodrigues dos santos (2001): ‘o mito da homogeneidade no cotidiano da escola: um ideal insensato’, quando a autora analisa implicações e práticas discriminatórias e homogeneizadoras no cotidiano escolar, no tocante à fabricação de identidades dóceis e subservientes.
4 embora, como salienta o autor, o texto trate de um caso particular – os professores e a sociedade inglesa –, entendo que as questões por ele colocadas são cabíveis em outras esferas, que não especificamente o sistema público inglês. afirma o autor que “[...] a identidade do professor tem o potencial para não só refletir ou simbolizar o sistema, como também para ser manipulada, no sentido de melhor arquitetar a mudança [...]” (lawn, 2000, p. 71).
50
dade são forjadas e governadas pelo estado,
o qual utiliza discursos como forma de con-
trolar as “identidades oficiais”. o discurso
revela-se como elemento de governação das
identidades oficiais e gerencia as reformas
pensadas como estratégias políticas de um
determinado momento histórico.
o controle da identidade dos professores e
o estabelecimento de ações de fiscalização
instauram-se como matriz da gestão da pro-
fissão, porque a mesma deve refletir e ade-
quar-se ao projeto educacional do estado e
representar a ideia de “identidade nacional e
de trabalho” (p. 69), como forma de garantir
mudanças no sistema educativo.
evidencia-se que a identidade é produzida
e performatizada através do discurso legal,
do administrativo e do pedagógico, os quais
são expressos através de parâmetros, regu-
lamentos, manuais, portarias, discursos pú-
blicos, projetos e programas de formação.
a relação posta pelo autor entre a fixação de
uma identidade nacional ou oficial e o mun-
do do trabalho torna-se visível pelos efeitos
práticos e ideológicos da administração e
da governação dos professores, seja através
das políticas de formação, das exigências
e ‘competências’ requeridas para seleção
ou contratação, o que evidencia que “[...] a
identidade pode ser um aspecto chave da
tecnologia do trabalho [...]” (p. 71). as mu-
danças e reformas educativas vinculam-se
aos modelos político-econômicos e refletem
as alterações que são impressas no trabalho
docente, relacionando-se às formas de con-
trole sobre a identidade dos professores e as
tecnologias impostas pelo trabalho.
Historicamente, as questões sobre fabrica-
ção da identidade e políticas reguladoras de
fronteira são ilustradas pelas lutas e tensões
dos professores nos movimentos trabalhis-
tas ao longo do século XX, na vinculação a
partidos de esquerda, na eleição ou candi-
datura de professores e na participação em
movimentos sociais.
em diferentes períodos e reformas, a fixação
da identidade dos professores, gerenciada
através dos discursos, materializa-se nas
mudanças e na reestruturação do trabalho.
estruturas e políticas tácitas são pensadas
pelo estado como forma de regulação das
identidades dos professores, seja para a ma-
nutenção das identidades oficiais ou para o
policiamento das fronteiras identitárias. os
professores contrapõem-se, através dos mo-
vimentos associativos e sociais da profissão,
ao discurso de governação e às políticas de
fronteira. a autonomia e o domínio exerci-
do no espaço da sala de aula, assim como
o controle por parte do sujeito professor do
seu fazer, podem criar dimensões de não
subserviência, de oposições e tensões sobre
a manutenção e as políticas de fronteiras
pensadas e reguladas pela nação, visto que
a “[...] existência de professores que não se
51
adequam às identidades oficiais causa pâni-
co. Da mesma forma, as ideias que os pro-
fessores têm, e as pessoas às quais se asso-
ciam, também causam pânico [...]” (p. 76).
este princípio configura-se como um dos
problemas relacionados à manutenção das
fronteiras, estabelecendo dificuldades para
controlar e manter fidedignas as identidades
oficiais.
novos problemas são impostos cotidiana-
mente à identidade dos professores e às
políticas de fronteira. gerir a identidade
docente, através da polifonia de discursos
construídos na modernidade – como forma
de um novo controle sobre a profissão, ou
para as transformações exigidas pela socie-
dade do aprender a aprender – instala uma
nova crise sobre a profissão e os saberes da
profissão. as mudanças na forma de pensar
e de viver a identidade docente são constru-
ídas desde a década de 80, e se consubstan-
ciam na emergência de uma sociedade tec-
nológica, numa economia globalizada e no
acirramento das injustiças e desigualdades
entre as pessoas e as nações.
tais mudanças mexem significativamente
com a forma de pensar e de exercer a pro-
fissão docente, incluindo os formatos de
controle e de regulação das identidades. se,
nos anos 80, a identidade dos professores re-
presentava um domínio sobre o fazer e cir-
cunscrevia-se no espaço da sala de aula e na
organização da escola, num modelo de des-
centralização como sinônimo de qualidade,
a partir do início dos anos 90 as identidades
e os mecanismos de controle são explicita-
dos nas políticas de formação e de certifica-
ção, as quais configuram modelos de com-
petências, de uma cultura da excelência e na
diversidade de imagens e de representações
de professores que é engendrada pelos dife-
rentes modelos de escolarização.
outra vertente de reflexão sobre a identida-
de é construída na perspectiva dos estudos
culturais5, apreendendo a identidade como
‘aquilo que é’ e a diferença, como o oposto
à identidade, como ‘aquilo que não é’, visto
que ambas estão numa relação de estreita
dependência. ou seja, a forma de expressão
da identidade, como fixa e imutável, demar-
ca e escamoteia as relações postas nesta
relação, ou como algo que se esgota em si
mesmo. “a identidade está ligada a estru-
turas discursivas e narrativas. a identidade
está ligada a sistemas de representação. a
identidade tem estreitas conexões com rela-
ções de poder” (silva, 1999, p. 97). Identidade
e diferença são produções históricas, resul-
tantes de processos de produção simbólica e
5 em relação às teorizações construídas no campo dos estudos culturais sobre identidade e diferença, busco em louro (1997, 1998), Hall (2000) e silva (1999, 2000) princípios teóricos que me possibilitem sistematizar aspectos sobre tal abordagem.
52
discursiva que envolvem poder, saber, disci-
plinamento, inclusão, exclusão e que se ca-
racterizam em representações.
conforme louro (1997), “a escola delimita
espaços”6, os quais são instituídos a par-
tir de símbolos e códigos, mapeando o que
cada um pode ou não pode fazer, separando,
agregando, elegendo, classificando e legiti-
mando diferenças em suas identidades ‘es-
colarizadas’.
Das representações, sentimentos, gestos e
olhares, aprendemos, no cotidiano escolar,
a construir identidades e diferenças. É nesse
movimento de ‘arquitetura’ das identidades
que busco entender os mecanismos e movi-
mentos pensados ideológica e tacitamente
sobre as produções das identidades docentes
em suas transformações históricas. Identida-
des que são reguladas, imitadas, performati-
zadas conforme os modelos estabelecidos.
Para moita, a identidade profissional “[...] é
uma construção que tem uma dimensão es-
paço-temporal, que atravessa a vida profis-
sional desde a fase da opção pela profissão
até a reforma, passando pelo tempo con-
creto da formação inicial e pelos diferentes
espaços institucionais onde a profissão se
desenrola [...]” (1992 p. 115-6). a identidade
profissional assenta-se em saberes cientí-
ficos e pedagógicos e tem como referência
axiomas éticos e deontológicos. Pode-se
apreender que é forjada e performatizada
a partir do contexto e dos interesses postos
historicamente como forma de controle e
de organização das mudanças educativas
ou, ao contrário, como forma de não assu-
jeitamento ao estabelecido. ainda assim, a
autora reitera que a identidade profissional:
“É uma construção que tem marca das ex-
periências feitas, das opções tomadas, das
práticas desenvolvidas, das continuidades e
descontinuidades, quer ao nível das repre-
sentações, quer ao nível do trabalho concre-
to” (idem, p. 116).
conforme nóvoa (1992b, c), a identidade é
entendida como um lugar de lutas, tensões e
conflitos, caracterizando-se como um espa-
ço de construção do ser e estar na profissão,
que parte do pessoal para o profissional e
vice-versa. “[...] É um processo que necessita
de tempo. um tempo para refazer identida-
des, para acomodar inovações, para assimi-
lar mudanças” (1992b, c, p. 16).
as histórias de vida, as representações e as
narrativas de formação marcam, tanto na
6 segundo louro, “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. [...] e todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferenças. evidentemente, os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente” (1997, p. 61).
53
dimensão pessoal, quanto profissional, e
entrecruzam movimentos potencializado-
res da profissionalização docente, porque
“[...] um professor tem uma história de vida,
é um ator social, tem emoções, um corpo,
poderes, uma personalidade, uma cultura,
ou mesmo culturas, e seus pensamentos e
ações carregam as marcas do contexto nos
quais se inserem” (tardif, 2000, p. 15). nesta
perspectiva, a epistemologia da prática, os
saberes e a história de vida são significativos
para a aprendizagem profissional. não po-
demos separar os saberes das histórias, dos
contextos que os instituem, modelam e defi-
nem, visto que eles implicam a forma de ser
e estar na profissão e demarcam possibilida-
des de trabalhar o desenvolvimento pessoal
e profissional do professor, bem como po-
tencializam práticas pedagógicas centradas
na pedagogia da diferença.
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54
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professores e conhecimentos universitários:
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sequências em relação à formação para o
magistério. revista brasileira de educação,
campinas, anPeD – autores associadas, nº
13, pp. 05-21, jan./abr. 2000.
55
vI. DIvERSIDADE E CURRÍCULO1
Nilma Lino Gomes2
a diversidade, do ponto de vista cultural,
pode ser entendida como a construção his-
tórica, cultural e social das diferenças. ela
é construída no processo histórico-cultural,
na adaptação do homem e da mulher ao
meio social e no contexto das relações de
poder. os aspectos tipicamente observáveis,
que se aprende a ver como diferentes, só
passaram a ser percebidos dessa forma por-
que os sujeitos sociais, no contexto da cultu-
ra, assim os nomearam e identificaram.
o grande desafio está em desenvolver uma
postura ética de não hierarquizar as diferen-
ças e entender que nenhum grupo humano
e social é melhor do que outro. na realida-
de, todos são diferentes. tal constatação
e senso político podem contribuir para se
avançar na construção dos direitos sociais.
a cobrança hoje feita à educação, de inclusão
e valorização da diversidade, tem a ver com
as estratégias por meio das quais os grupos
humanos e sociais considerados diferentes
passaram a destacar politicamente as suas
singularidades e identidades, cobrando tra-
tamento justo e igualitário, desmistificando
a ideia de inferioridade que paira sobre dife-
renças socialmente construídas.
não é tarefa fácil trabalhar pedagogicamen-
te com a diversidade, sobretudo em um país
como o brasil, marcado por profunda exclu-
são social. um dos aspectos dessa exclusão
– que nem sempre é discutido no campo
educacional – tem sido a negação das dife-
renças, dando a estas um trato desigual.
Para avançar na discussão, é importante
compreender que a luta pelo reconhecimen-
to e pelo direito à diversidade não se opõe
à luta pela superação das desigualdades so-
ciais. Pelo contrário, ela coloca em questão
a forma desigual pela qual as diferenças vêm
sendo historicamente tratadas na socieda-
de, na escola e nas políticas educacionais.
essa luta alerta, ainda, para o fato de que, ao
desconhecer a diversidade, pode-se incorrer
1 esse artigo faz parte de um texto maior publicado na coletânea Indagações sobre Currículo – MEC. Parte do mesmo também integra o Documento-Referência da Conferência Nacional de Educação Básica (mec).
2 Professora adjunta da Faculdade de educação da uFmg. Doutora em antropologia social/usP e coordenadora do Programa ações afirmativas na uFmg.
56
no erro de tratar as diferenças de forma dis-
criminatória, aumentando ainda mais a de-
sigualdade, que se propaga via conjugação
de relações assimétricas de classe, raça, gê-
nero, idade e orientação sexual.
compreender a relação entre diversidade e
currículo implica delimitar um princípio ra-
dical da educação pública e democrática: a
escola pública se tornará cada vez mais pú-
blica na medida em que compreender o di-
reito à diversidade e o respeito às diferenças
como um dos eixos norteadores da sua ação
e das práticas pedagógicas. Para tal, faz-se
necessário o rompimento com a postura
de neutralidade diante da diversidade que
ainda se encontra nos currículos e em vá-
rias iniciativas de políticas educacionais, as
quais tendem a se omitir, negar e silenciar
diante da diversidade.
a inserção da diversidade nas políticas edu-
cacionais, nos currículos, nas práticas peda-
gógicas e na formação docente implica com-
preender as causas políticas, econômicas e
sociais de fenômenos como: desigualdade,
discriminação, etnocentrismo, racismo, se-
xismo, homofobia e xenofobia.
Falar sobre diversidade e diferença implica,
também, posicionar-se contra processos de
colonização e dominação. Implica compre-
ender e lidar com relações de poder. Para tal,
é importante perceber como, nos diferentes
contextos históricos, políticos, sociais e cul-
turais, algumas diferenças foram naturaliza-
das e inferiorizadas, tratadas de forma de-
sigual e discriminatória. trata-se, portanto,
de um campo político por excelência.
cabe destacar, aqui, o papel dos movimen-
tos sociais e culturais em prol do respeito
à diversidade. os movimentos negro, femi-
nista, indígena, juvenil, dos trabalhadores
do campo, das pessoas com deficiência, gl-
bts3, dos povos da floresta, entre outros, são
atores políticos centrais nesse debate. eles
colocam em xeque a escola uniformizadora,
que, apesar dos avanços dos últimos anos,
ainda persiste nos sistemas de ensino. Ques-
tionam os currículos, imprimem mudanças
nos projetos pedagógicos, interferem na po-
lítica educacional, na elaboração das leis e
das diretrizes curriculares nacionais.
os movimentos sociais vão além da com-
preensão da diversidade como a construção
histórica, social e cultural das diferenças.
eles politizam as diferenças e as colocam no
cerne das lutas pela afirmação dos direitos.
ao atuarem dessa forma, questionam a ma-
neira como as escolas, o estado e as políticas
públicas lidam com a diversidade e cobram
respostas públicas e democráticas.
aos poucos, vêm crescendo, também, os co-
letivos de profissionais da educação, sensí-
veis à diversidade. muitos deles têm a sua
3 gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e transexuais.
57
trajetória marcada pela inserção nos mo-
vimentos sociais, culturais e identitários, e
carregam para a vida profissional suas iden-
tidades coletivas e suas diferenças.
Há uma nova sensibilidade nas escolas pú-
blicas em relação à diversidade e suas múl-
tiplas dimensões na vida dos sujeitos, a qual
vem se traduzindo em ações pedagógicas
concretas de transformação do sistema edu-
cacional público em um sistema inclusivo,
democrático e aberto à diversidade.
os desafios postos pela diversidade na edu-
cação básica estão a exigir medidas políticas
que garantam para todos os grupos sociais,
principalmente para aqueles que se encon-
tram histórica e socialmente excluídos, o
acesso a uma educação de qualidade. Para
tal, é preciso desencadear ações articuladas
entre o estado, a comunidade, as escolas e
os diversos movimentos sociais que consi-
derem:
a) a necessidade de reorganização dos tem-
pos e espaços escolares, com vistas a
atender a diversidade presente nas es-
colas;
b) a inserção da discussão sobre diversidade
e currículo na formação inicial e conti-
nuada de professores e professoras;
c) a adoção de medidas que garantam às
comunidades indígenas a utilização
de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem, com ensino
bilíngue e formação de profissionais da
educação oriundos dos próprios povos
indígenas;
d) a implementação de novas formas de
organização e gestão para a educação
de jovens e adultos, para as escolas do
campo, para os povos da floresta e para
os estudantes com deficiência e /ou al-
tas habilidades/superdotação;
e) reconhecimento, garantia e construção
de projetos político-pedagógicos volta-
dos à educação das comunidades rema-
nescentes de quilombos;
f) a adoção de medidas político-pedagógi-
cas que garantam tratamento ético e
espaço propício às questões de raça/et-
nia, gênero, juventude e de sexualidade
na prática social da educação.
g) a criação de condições políticas e peda-
gógicas que garantam a implementa-
ção da lei n. 10.639/03 (obrigatoriedade
do ensino de História da África e da cul-
tura afro-brasileira na educação básica)
e as Diretrizes curriculares nacionais
para a educação das relações Étnico-
-raciais e para o ensino de História e
cultura afro-brasileira e africana, as
Diretrizes operacionais para a educa-
ção básica nas escolas do campo e as
Diretrizes nacionais para a educação
especial na educação básica.
58
vII. REINvENTANDO A RODA: ExPERIêNCIAS
mULTICULTURAIS DE UmA EDUCAÇÃO PARA TODOS1
Azoilda Loretto da Trindade2
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante (...)
do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”
raul seixas
esse texto, na verdade, se propõe a fazer uma
aliança com a nossa potência de vida, com
nossa autonomia, com nossa criatividade
de professoras e professores. Pretendemos
dialogar com nossa parcela, com nossa di-
mensão educadora que se inquieta e se sente
desafiada a cada dia, parcela/dimensão dese-
jante, que ora se alegra, ora se desespera, que
se sente encantada pela vida, que não se can-
sa de ler no mundo palavras e ações que pos-
sam nos valer e nos possibilitam aprender a
trabalhar pedagogicamente, numa perspec-
tiva multicultural crítica, criativa e inclusiva,
num mundo marcado por desigualdades e
injustiças sociais, étnicas e culturais.
É bom sinalizar que qualquer caminho tri-
lhado no sentido de lidar com as diferenças
no cotidiano educacional não é neutro, nem
ideal. todas nós estamos marcadas por nos-
sas visões de mundo, por valores incorpora-
dos ao longo da nossa existência, por ideias
e ideais construídos ou apreendidos, por
concepções a respeito da vida e do mundo.
É bom lembrar que a vida, no singular e no
plural, é muito mais abrangente do que nos-
sa condição humana pode captar, compre-
ender, capturar.
Quando nos predispomos, quando somos
fisgadas pela percepção da existência da
diferença como valor, como expansão da
riqueza humana e não como um demérito,
perdemos o chão das verdades, da razão,
das certezas fechadas e absolutizadas e nos
colocamos no campo da dúvida, do devir, da
pergunta, da inquietação, da errante busca,
da incerteza.
Qualquer concepção teórica ou prática de
trabalhar com as diferenças na sala de aula,
no cotidiano escolar, é passível de críticas,
1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 5.
2 mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ, Doutora em comunicação pela eco/uFrJ. organizadora desta coletânea.
59
de análise, de necessidades, de acertos, ajus-
tes. toDas são insólitas, na medida da me-
tamorfose constante da própria vida, afinal,
“nenhum rio passa duas vezes no mesmo lu-
gar”, lembram? ora, se a diferença é a regra,
se tudo é devir, se tudo é movimento, é di-
nâmica, o problema que nos coloca a vida,
o problema que nos desafia é como sermos
capazes de ver, perceber, conhecer, intera-
gir com o diferente de nós. e é bom desta-
car que somos diferentes, inclusive, de nós
mesmos... somos diferentes de nós mesmos
a cada momento: um livro que lemos, um
filme que vemos, um acontecimento que vi-
venciamos, um carinho que recebemos ou
damos, uma injustiça que presenciamos,
praticamos ou sofremos, o tempo passado,
o sol, o frio, o calor, o amor ou desamor,
a violência, o dia-a-dia... tudo nos altera a
cada instante.
estamos diante do desafio, talvez similar ao
momento que antecedeu à invenção da roda,
talvez um desafio menos conceitual e mais
prático, mais vivencial, mais visceral, que
nos coloca diante dos nossos próprios pre-
conceitos, do nosso racismo, do nosso ma-
chismo, do nosso elitismo. ora, nosso maior
desafio, talvez, seja enfrentar o que está den-
tro de nós, no nosso sangue, no nosso cora-
ção, na nossa mente, em nós mesmos.
trabalhar com a percepção da existência da
Diferença, como uma constante, obriga-nos
a rever valores, posições, preconceitos:
• Imagine, por exemplo, quanto esforço é
necessário para que possamos admitir
que fazem parte da espécie humana tira-
mos como Hitler, ou um pedófilo, ou um
criminoso. É fácil perceber a humanidade
no que é espelho, no que consideramos
ser semelhante a nós, ou no que deseja-
mos ser e valorizamos. É fácil reconhecer,
portanto, a humanidade de gandhi, da
criancinha que achamos lindinha, lim-
pinha e arrumadinha. mas naquele ou
naquela que desprezamos, abominamos,
desqualificamos, desejamos ver longe de
nós, tal reconhecimento é de fato muito
difícil.
• o que demanda em nós de energia para a
desconstrução de preconceitos ao vermos
inteligência, por exemplo, numa criança
com algum tipo de síndrome, ou numa
criança ou adulto com paralisia cerebral.
ao percebermos força e potência em pes-
soas com alguma deficiência, não admi-
tindo pensar nelas como “coitadinhas”.
ao percebermos essas pessoas como mais
uma expressão da vida humana, e não
como vítimas de um castigo, de uma des-
graça, de uma infelicidade para a pessoa
ou para os seus pais.
• o que demanda de desconstrução de ver-
dades percebermos a sabedoria nas popu-
lações indígenas, ou para desarticularmos
a sinonímia entre a palavra “escravo” e
os povos afrodescendentes no brasil. ou,
60
ainda, para conseguirmos deixar de ver
como “natural” a ideia contida na expres-
são “manda quem pode e obedece quem
tem juízo”, muito cara nos espaços de
trabalho, sobretudo no escolar, expressão
elitista que coloca a obediência como um
valor, um mérito, e desqualifica o sujeito,
subtrai dele a inteligência, sua capacidade
de pensar, ponderar, discordar, ter contri-
buições, criar.
• o que se exige de nós, em termos de força,
não nos silenciarmos diante de qualquer
tipo de discriminação, de injustiça social,
cultural, ou de qualquer espécie? o que
de energia é exigido de nós, em termos
de aprendizagem, crítica e reflexão, para
conseguirmos reconhecer, analisar e ava-
liar tais situações?
• Imagine ver, no analfabeto, sabedoria, afi-
nal, a alfabetização em massa é um fenô-
meno recente na história da humanidade
e ainda hoje há culturas eminentemente
orais. constatar que a escola não é o úni-
co espaço de desenvolvimento dos seres
humanos (embora seja um espaço privi-
legiado para isto). Imagine ver e valorizar
o saber que não é cientifico, a sabedoria
popular que diz, por exemplo, que galo ve-
lho bota ovo, que tem cobra que de noite
mama o leite da mulher e coloca o rabo
na boca da criança, que os astros influen-
ciam a nossa vida, que tem gente com
olhar de “seca-pimenteira”!
• Imagine admitir que a escola não é o lu-
gar, como muitos dizem, onde a criança
se prepara para “ser alguém na vida”, ou
para “ser gente”, ou para se preparar para
a vida. gente e alguém todos nós já somos
e a vida já está sendo, aqui e agora, onde
quer que estejamos.
• Quanto de energia física, mental, intelec-
tual precisamos dispender para ver que
nossa visão religiosa, pedagógica, polí-
tica, sexual, não é a melhor para toda a
humanidade, é apenas a nossa visão, que
pode, ou não, ser compartilhada por mui-
tos? Que a ideia da maioria não é necessa-
riamente a melhor para todos?
• e se a gente não sofrer em admitir tudo
isto, quanto de humildade precisamos ter
para não nos sentirmos melhores ou pio-
res que aqueles que consideramos erra-
dos, reacionários e conservadores...
ora, uma educação multicultural, criativa e
inclusiva, no sentido de incluir na pauta as
diferenças, o contato, o diálogo, a interação
com as diferenças, coloca a própria escola
num lugar de questionamento quanto ao
seu papel, seu sentido, seu significado. Qual
o papel da escola num contexto multicultu-
ral que se sabe político, e que não se propõe
racista, nem elitista, nem machista, nem
etnocêntrico... É essencial percebermos a
dimensão disto tudo. o que nós, como edu-
cadores, faremos? e como faremos? como
61
nosso currículo se configurará? como serão
e deverão ser nossas aulas, nossa avaliação,
nossa sala de aula? como será nossa pos-
tura? como não sermos tão individualistas
e julgarmos que os outros são muito dife-
rentes de nós, a ponto de nos transformar-
mos numa ilha cercada de ilhas por todos
os lados? como não ser tão universalistas a
ponto de apagarmos as singularidades cul-
turais, políticas, sexuais, sociais, intelectu-
ais? como levar em consideração todos os
segmentos da escola?como enfrentar que
nossas mais belas intenções e ações são ain-
da incipientes, que são muito poucas, em-
bora necessárias? Por exemplo, trabalhar
o multiculturalismo na escola não é ape-
nas colocar imagens de todas as etnias que
compõem nossa escola nos murais, festejar
o Dia do Índio e o Dia nacional da consciên-
cia negra. não é apenas debater as políticas
de cotas e outras ações afirmativas. nem
ter a imagem de uma virgem negra como
padroeira do brasil. tampouco ter o atleta
do século como um ícone nacional (se o que
conta, nesse caso, é o dinheiro e não a cor
da pele).
acreditamos que uma educação multicul-
tural, inclusiva, crítica e criativa demanda
mudanças radicais nas estruturas de poder
da escola e da sociedade, demanda mudan-
ças em nós mesmos e mudanças de para-
digmas. aliás, para as mudanças de para-
digmas, para incorporarmos outros atores
e interlocutores, é necessário revermos os
saberes socialmente valorizados e historica-
mente construídos. a Psicologia, a sociolo-
gia, a História, a matemática, a biologia, a
Física, as ciências de um modo geral terão
que ser revistas e rediscutidas. as disciplinas
poderão até ser ultrapassadas, como aponta
o professor ubiratan D’ambrósio (2002).
É um campo delicado, sobretudo num mun-
do que assiste ao recrudescimento do racis-
mo, do conservadorismo, da intolerância,
que assiste a guerras religiosas e vê a violên-
cia se expandir galopantemente. Que perce-
be que o poder do capital se fortalece a cada
dia, em detrimento da vida e da sobrevivên-
cia da própria espécie e do planeta.
temos que nos saber aprendizes, eternos
aprendizes, na medida em que estamos no
momento de inventarmos a roda de um tra-
balho multicultural na educação. Iremos
inventar, porque não existirá O trabalho úni-
co, que deverá ser seguido, imitado, copiado
pelos demais. cada grupo, cada coletivida-
de, cada comunidade escolar deverá bus-
car construir sua roda (ou suas rodas), mas
como não se trata de ilhas de pessoas, como
o conhecimento é coletivo e construído em
comunhão, algumas palavras-ações básicas
devem ser fortalecidas:
a autonomia, como capacidade de cada um
tomar suas próprias decisões, mas a partir
da interação e diálogo com pontos de vistas
deferentes e diversos dos nossos;
62
o diálogo, que implica ouvir o outro, escu-
tar e se deixar preencher com a palavra, com
a idéia, com a perspectiva do outro;
o movimen,to que concretiza a ação, que
realiza a mudança e a criação; e
o contato. não dá para se trabalhar com
educação multicultural apenas no gabinete,
na sala de estudo individual, no computa-
dor, através dos textos, da palavra escrita. o
outro e nós temos um cérebro, uma mente,
produzimos palavras, poesia, virtualidade,
distanciamentos. mas temos também um
corpo que tem cheiro ou cheiros, cor, textu-
ras, odores, sabores, expressões corporais...
e esta percepção só acontece realmente
como contato, com o encontro.
como diz a cosmovisão dominante, judaica
cristã, somos descendentes de babel, des-
cendentes de um povo que falava a mesma
língua e que tentou chegar aos céus através
de uma torre, desafiando Deus. castigados
por Deus, homens e mulheres perderam a
harmonia e foram condenados à multiplici-
dade, a falarem várias línguas e a se descen-
trarem na terra. sendo assim, que sejamos
pelo menos uma babel feliz, encantada com
a multiplicidade, com o outro.
como conta uma lenda africana Iorubá, da
criação do ser humano e do mundo, somos
resultantes da ação de um Deus – o orixá
que tinha bebido vinho de palma – e fomos
criados em meio a soluços ébrios. segundo
a lenda, a cada momento um ser foi criado
e nunca um era igual ao outro. logo, somos
seres diversos, singulares e irregulares, so-
mos todos diferentes, mas nos reconheça-
mos a todos como uma criação divina.
como prêmio, contingência ou como casti-
go, somos fadados à multiplicidade e a his-
tória nos coloca diante do grande desafio de
aceitar a diferença e aprendermos ecologi-
camente, com respeito, sabedoria, humil-
dade, quiçá com amor, a lidar com elas em
todos os espaços, sobretudo, o que é o nos-
so caso, na escola. neste caso, precisamos
fortalecer nossa autonomia, nossa capaci-
dade de ler e aprender no/com o mundo,
assumirmos a nossa responsabilidade em
escrever no e para o mundo nossas experi-
ências na busca da invenção da nossa roda,
a roda de trabalhos multiculturais cons-
cientes, críticos, criativos e, assim, contar
essas experiências, esse exercício, sair dos
muros da escola no sentido de compartilhar
nossas ações com outros coletivos e fortale-
cer a complexa rede de produção de saberes
da humanidade.
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lher: Pequena história das transformações do
corpo feminino no Brasil. são Paulo: editora
senac. são Paulo, 2000.
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cotidiano escolar. rio de Janeiro: Fgv/Iesae.
Dissertação de mestrado, 1994.
64
CAPÍTULO 2
AFRICANIDADES
o segundo capítulo do livro pretende apre-
sentar uma panorâmica de reflexões rela-
cionadas à temática afrodescendente, ou
afro-brasileira. embora tenha o título de afri-
canidades, seus textos são de diversas visões
positivadas acerca do patrimônio africano e
afro-brasileiro. nossa intenção é garantir a
possibilidade de observarmos a riqueza teó-
rica, social, política, histórica, psicológica e
cultural deste patrimônio.
certamente não contemplaremos todas as
autorias significativas... algumas lacunas se
farão presentes, assim como algumas abor-
dagens... mas nenhum livro pode ser maior
que um patrimônio milenar como o africano
e, assim, fica o convite para novas pesquisas
e novas descobertas.
Dividiremos este capítulo do livro em quatro
blocos:
A. ASPECtOS gERAiS. selecionamos textos
com a expectativa de fundamentarmos a te-
mática.
i. Africanidades, afrodescendências e
educação, de Henrique cunha Júnior.
esse texto apresenta força argumenta-
tiva em articulação com a história, a
política e a cultura, afirmando a pers-
pectiva das africanidades na educação
brasileira, como presença e como par-
ticipação na construção de uma edu-
cação emancipatória.
ii. Humilhação, encorajamento, e cons-
trução da personalidade, de azoilda
loretto da trindade. esse texto, sim-
ples e leve no seu aspecto teórico,
escrito antes de 2003, tem atualida-
de no que se refere a acontecimen-
tos do cotidiano que legitimam sua
presença nesta coletânea, sobretudo
por nos ajudar a pensar que, além da
lei n. 10.639/2003, temos desafios na
construção de práxis educativas in-
clusivas.
iii. A lei n. 10.639/2003 altera a lDB e o
olhar sobre a presença dos negros no
brasil e transforma a educação esco-
lar, de bel santos. temos aqui um tex-
to rico em fundamentos do cotidiano
para a implementação da lei, e mais
65
rico ainda pelo seu caráter de otimis-
mo em relação a políticas públicas
transformadoras e a eliminação da ex-
clusão.
iv. áfrica viva e transcendente!, de narci-
mária correia do Patrocínio luz. esse
texto é uma expressão da rica e exube-
rante complexidade que a implemen-
tação da lei pode oferecer e significar
para as bases, diretrizes e práxis da
educação brasileira.
v. Diversidade étnico-racial no currícu-
lo escolar do ensino fundamental, de
véra neusa lopes. aqui, a perspecti-
va das narrativas se afirma e o texto,
além de revelador no que se refere ao
projeto de desafricanização embuti-
da na filosofia e política educacionais
brasileiras, obriga-nos a refletir sobre
as bases filosóficas e conceituais hege-
mônicas que fundamentam nossas es-
colas. Para além da constatação, apre-
senta uma inspiradora experiência de
práxis transformadora.
vi. O legado africano e a formação do-
cente, de marise de santana. baseado
em observações e em dados oficiais,
o texto é um convite ao trabalho co-
letivo para a implementação da lei n.
10.639/2003, com algumas importan-
tes sugestões nesta direção.
vii. As relações étnico-raciais, a cultura
afro-brasileira e o projeto político-
-pedagógico, de lauro cornélio da ro-
cha. o foco aqui está no diálogo Pro-
jeto Político Pedagógico e a educação
das relações étnico-raciais e a cultura
afro-brasileira no cotidiano escolar
brasileiro. ao apresentar propostas
significativas nesta direção, o autor
exemplifica as proposições com o rela-
to de um trabalho exitoso – o Projeto
raiz.
B. EDuCAÇÃO inFAntil. acreditamos que
a educação infantil mereça um destaque no
que se refere à implementação da lei. temos
muitos relatos que sinalizam que crianças
de 2 ou 3 anos já percebem sua cor de pele
e observam as imagens que as representam
no entorno, como cartazes, outdoors, co-
merciais de tv, livros infantis... sabemos,
também, do despreparo de muitos(as) do-
centes no trato com as crianças afro-bra-
sileiras de pele escura. sabemos, ainda, da
importância deste período na formação da
personalidade e os prejuízos que uma desa-
tenção a certas temáticas, por exemplo, da
pedagogia da diferença, pode causar na for-
mação de autoimagem e da autoestima de
toDas as crianças. conhecemos, também,
algumas experiências individuais e de redes
de ensino voltadas para a educação Infantil
e a implementação da lei n. 10.639/2003, e
vemos como é fundamental este trabalho.
66
nesta direção, destacamos três textos que
abordam esta temática, para início ou for-
talecimento de conversas e ações político-
-pedagógicas:
i. valores civilizatórios afro-brasileiros na
Educação infantil – Azoilda loretto da
trindade
ii. As relações étnico-raciais, história e
cultura afro-brasileira na Educação
infantil – Regina Conceição1
iii. tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras
e a criança afro-brasileira (uma refle-
xão) – Azoilda loretto da trindade
C. EDuCAÇÃO QuilOMBOlA. É impressio-
nante e animador observarmos a energia
vital que alguns povos nos apresentam. os
povos indígenas, os ciganos... uma infinida-
de de exemplos e situações. Povos e grupos
que afirmam a sua potência de vida, a des-
peito ou em meio a emaranhados genoci-
das da diferença ou da diversidade. nesta
coletânea, destacaremos a educação Qui-
lombola como vivências ensinantes e como
uma das pistas para a construção de uma
Pedagogia Brasilis.
i. Os quilombos e a educação, de maria de
lourdes siqueira com esse texto pre-
tendemos oferecer aos e às docentes
uma abordagem informativa e afetiva
da dimensão pedagógica da vivência
quilombola.
ii. Quilombo: conceito, de gloria mou-
ra. É um texto didático, não só sobre
o conceito de quilombo, mas por ser
uma genealogia deste conceito, ainda
em construção, pois uma história ain-
da está sendo construída.
iii. Saberes tradicionais de saúde, de bár-
bara oliveira. esse texto, que poderia
estar na última parte do livro, insere-
-se num campo pouco explorado, mas
fundamental para a compreensão da
vida do povo de origem africana: os
saberes tradicionais de saúde.
iv. Organização social e festas como ve-
ículos de educação não-formal, de
verônica gomes. com a focalização
da vida dos moradores das comunida-
des remanescentes de quilombos, so-
bretudo, no que se refere “ao uso das
ervas medicinais, no modo de trabalhar
a terra, de tirar dela seu sustento, nas
linguagens gestuais, na música, nas fes-
tas, no modo de se divertir, de cantar,
dançar e rezar”, defrontamo-nos com
uma pedagogia de afirmação positiva
da diferença, com destaque à questão
de gênero.
v. Kalunga, escola e identidade – experi-
ências inovadoras de educação nos
quilombos, de ana lucia lopes. Des-
tacamos dois aspectos deste texto: ele
aponta para uma visão de Quilombo
67
para além da hegemônica visão que
o atrela à fuga e à resistência e apre-
senta um valioso relato de experiência
que nos propicia refletir sobre um dos
dilemas que nos perpassa ao pensar-
mos a lei n.10. 639/2003 – “na tensão
entre a valorização do conhecimento
Kalunga[tradicional] produzido histori-
camente e o direito de acesso ao conhe-
cimento do novo por eles reivindicado.”
vi. lei nº 10. 639/2003 e educação quilombo-
la: inclusão educacional e população negra
brasileira, de Denise botelho. texto crítico
acerca dos impasses, resistências e insufici-
ências nacionais, na implementação de polí-
ticas públicas educacionais para a população
afro-brasileira e de enfrentamento de proble-
mas sociobrasileiros, “em especial, aqueles re-
lacionados com os chamados excluídos sociais
– negros, quilombolas, mulheres, indígenas, de-
ficientes físicos, pessoas com orientações sexu-
ais diferenciadas e outros”.
D. AFRiCAniDADES BRASilEiRAS
Apresentaremos o texto do documentário, e
esperamos que todas as escolas possam ter
acesso ao programa.
68
A. ASPECTOS gERAIS
I. AFRICANIDADES, AFRODESCENDêNCIAS E EDUCAÇÃO1
Henrique Cunha Júnior2
o educador negro Pretextato dos Passos sil-
va apresentou ao ministério Público uma
petição para a criação de uma escola desti-
nada a meninos pretos e pardos. no requeri-
mento, ele argumenta que, sendo ele negro
e compreendendo a vida daquelas crianças,
poderia “ensinar com perfeição e sem coação”.
considerava as escolas existentes discrimi-
natórias, portanto, ambiente pouco adequa-
do para o aprendizado dos pretos pardos,
que tinham seu desempenho escolar pre-
judicado. seu projeto foi acompanhado de
lista de assinatura dos pais dessas crianças,
solicitando a criação da escola em questão
(sIlva, 2000, p.14-18).
os temas de interesse da população afro-
descendente e as especificidades dessa
população na educação têm sido olhados
com descaso por uma parcela significativa
de educadores responsáveis pelos sistemas
educacionais e por parte da população em
geral, bem como por parte dos movimentos
sociais, partidos políticos e alguns setores
dos movimentos sindicais.
Pela predominância de um pensamento de
base universalista, as alegações contrárias
às reivindicações dos afrodescendentes fo-
ram sempre problematizadas no campo da
igualdade de oportunidades de todos e da
negação da existência de sistemas de inclu-
são controlada e diferenciada. sistemas em
que as regras etnocêntricas brancas e as sis-
temáticas de inferiorização da cultura e da
população afrodescendente não são denun-
ciadas como tais. Ignoram-se, nos universos
de análise, os processos históricos e os resul-
tados das estatísticas que indicam a existên-
cia de problemas de ordem específica e se
impõem silêncios no campo da educação so-
bre os diversos temas relativos à população
de origem africana. Desconhecem-se a exis-
tência e a importância desses temas, negan-
do-se a existência das diversidades culturais
e a incidência do tratamento dado a estas
1 Debate: educação, direito e cidadania – 2001 / Pgm 4.
2 Professor titular da universidade Federal do ceará (uFc) / membro da associação brasileira de Pesquisadores negros (abPn) e do centro de estudos sergipanos (ceser).
69
sobre os resultados educacionais e sociais
colhidos pelas diversas etnias. nem mesmo
a razão da assimetria dos resultados étni-
cos preocupou os diversos pesquisadores
ou formuladores de políticas educacionais.
os conformismos e os descasos processam
a ideia de que se trata apenas de um pro-
blema de pobreza, e deixam de questionar a
produção diferenciada da pobreza entre as
etnias. Persiste, ainda, a recusa do sistema
educacional em admitir a existência de um
racismo à brasileira, portanto, distinto dos
demais de outras nações na sua formulação
e expressão, produzindo entretanto, um sis-
tema de dominação e opressão com resulta-
dos similares aos dos outros países racistas.
sistema que reduz absurdamente o acesso
aos bens sociais para nós afrodescendentes
e limita as possibilidades de expressão cul-
tural e política.
Duas ideias têm dificultado o avanço do tra-
to dos temas de interesse dos afrodescen-
dentes nos últimos 50 anos. uma é a con-
solidação do ideário dos grupos dominantes
na sociedade e na cultura nacional sobre a
“democracia racial”. Ideário que impediu
em diversos setores uma reflexão mais acen-
tuada e problematizadora sobre as questões
das estruturas étnicas vigentes na socieda-
de e sobre os problemas daí decorrentes no
trato com a cultura e a educação. comple-
mentar ao ideário da democracia racial, es-
teve sempre a segunda ideia, a da base na-
cional miscigenada, portanto, negadora da
particularidade. miscigenação biológica é
tratada com propósitos da política. a ideia
da “casa grande e senzala” tornou-se mo-
delo não somente da interpretação da so-
ciedade, como das razões políticas. Foram
esquecidas, propositalmente, as relações de
produção representadas pelo eito. confun-
de-se um universo biológico como político,
mascara-se não somente a base racista e et-
nocêntrica dessa interpretação, mas a base
positivista. embora apareça na equação de-
terminante do brasil, tanto cultural como
constitutiva do povo, a ideia das três raças,
estranhamente, somente uma aparece lo-
calizada como possuidora e depositária de
processo civilizatório.
a História da educação presta um desserviço
ao não registrar e não problematizar a pre-
sença dos afrodescendentes nos sistemas
educacionais e nas ideias sobre a educação
anterior aos anos 50 do século passado. as
ideias são falhas em apresentarem a presen-
ça dos afrodescendentes na educação, a par-
tir do meados dos anos 50, como resultados
dos processos de urbanização da sociedade
brasileira e de universalização do ensino pú-
blico. Diversas evidências e resultados de
pesquisas demonstram tratar-se de mais um
equívoco, cujos resultados repercutem nas
perspectivas da compreensão do presente
pela história do passado (nunes cunHa,
1999), (sIlva, 2000), (rIbeIro, 2001).
venho há muito tomando consciência em-
pírica deste equívoco por diversas razões.
uma delas vinda da escolarização da minha
70
mãe, eunice de Paula cunha e de minha
madrinha Zobeida, ambas formadas como
professoras primárias nos anos 30 em são
Paulo e parte de um grupo de professores
negros da mesma geração. e do conheci-
mento de que meu pai e seus amigos mili-
tantes dos movimentos negros dos anos 20
e 30 também eram alfabetizados, bem como
minhas avós, o que leva a história para o fi-
nal do século XIX. esta percepção nos leva a
questionarmos onde se educaram diversos
afrodescendentes de renome nacional e in-
ternacional, que viveram no séc. XIX e início
do séc. XX. o problema da não percepção da
nossa participação retarda a correlação en-
tre o registro das demandas educacionais e
o enfoque da especificidade, como também
a problematização sobre os grupos étnicos
nos confrontos dos cotidianos dos sistemas
educacionais.
entretanto, como tratamos no artigo Pes-
quisa educacionais em temas de interesse
dos afrodescendentes (cunHa Jr., 1999), os
movimentos negros da década de 70 foram
fomentadores de uma preocupação particu-
lar sobre a problemática da educação e das
relações interétnicas. a partir destes movi-
mentos sociais surge uma geração de edu-
cadores e pesquisadores trabalhando as te-
máticas dos afrodescendentes nos sistemas
de produção e transmissão da cultura. nes-
te ciclo do enfoque das questões educacio-
nais sob o crivo da afrodescendência, pelos
anos 1989 e 1990, introduzimos os conceitos
de africanidades e afrodescendência, preten-
dendo ampliar a percepção da participação
das populações de origem africana na cul-
tura nacional e nos sistemas educacionais.
estes conceitos serviram de referência para
uma dezena de trabalhos de mestrado e
Doutorado no ceará, Piauí, Paraíba, Per-
nambuco, são Paulo e rio de Janeiro (rIbeI-
ro, 1995), (souZa, 1997), (PImentel, 1998),
(ballesteros, 1998), (nunes cunHa,1999),
(sIlva, 1999), (gomes, 2000), (guIa, 1999),
(matos, 1999), (cruZ, 2000), (nascImen-
to, 2000), (conceIção, 2001), (PereIra,
2001), (olIveIra, 2001), (lIma, 2001), (rIbeI-
ro, 2001), embora tenha existido apenas a
divulgação dos originais mimeografados,
nunca publicado, de um texto de 1996 com
o título Afrodescendência e Africanidades Bra-
sileiras: a condição necessária, porém não
suficiente para compreensão da história
sociológica do povo brasileiro. este artigo
apresenta uma versão modificada do referi-
do texto. a intenção do texto não está na
ênfase conceitual, mas sim em apresentar
as razões de um percurso na elaboração dos
conceitos, de forma correlata com a trajetó-
ria afrodescendente no contexto educacio-
nal brasileiro.
os conceitos de africanidades e afrodescen-
dência são vinculados ao enfoque de etnia,
sendo que este último permanece como
problema nos debates sobre educação. et-
nia e raça, como terminologia e perspectiva
71
teórica, fomentaram embates dentro da li-
teratura educacional. existem trabalhos que
oscilam entre um e outro, havendo mesmo o
uso etnia / raça. o importante neste artigo é
apresentar um enfoque, de caráter específi-
co, que recoloque a problemática da cultura
na orientação dos temas educacionais para
a sociedade brasileira. não se trata de um
problema novo, pois iniciei o texto relem-
brando o professor Pretextado e, proposital-
mente, omitindo a data do requerimento do
referido professor à corte no rio de Janeiro.
a data foi 1853, sendo que professor Pretex-
tado implantou e trabalhou em sua escola
por mais de 20 anos. não foi o único. outros
fazem parte da história dos movimentos so-
ciais negros na luta pela educação. outros
que têm sido sistematicamente esquecidos
pela literatura educacional brasileira.
OS MOtivOS
Desde os anos 90 venho fundamentando
os conceitos de afrodescendência e africani-
dades brasileiras, num processo não unica-
mente meu, mas presente em diversos tra-
balhos sobre cultura brasileira e negros(as)
no brasil.
o uso sistematizado de africanidades brasi-
leiras ocorreu em 1993, quando um grupo de
professores, composto por minha pessoa,
pela Profª Drª Petronilha beatriz gonçalves e
silva, o Prof. Dr. Álvaro risoli e o Prof. válter
silvério, da universidade Federal de são car-
los, apresentou uma disciplina em educação
como curso de extensão e com validade de
créditos para pós-graduação. em 1991, eu ti-
nha escrito um texto denominado Não mais
base zero para o estudo das Africanidades Bra-
sileiras, para um curso de formação de pro-
fessores da rede municipal de são Paulo, no
quadro de trabalhos da abrevIDa. são fon-
tes imprescindíveis para a elaboração destes
conceitos os trabalhos de muniz sodré, mar-
co aurélio luz e clóvis moura, para a crítica
cultural e historiográfica negra brasileira.
no campo internacional foram estruturais
as leituras de cheike anta Diop, rene Depes-
tre, edouard glissant, bem como dos inte-
lectuais da revolução Haitiana.
as viagens pelo brasil e caribe sedimenta-
ram o caráter empírico das reflexões e exer-
citaram a observação da existência de etnias
afrodescendentes. Foi marcante e signifi-
cativa a estada na guiana e na Jamaica. os
seminários da guiana de 1988 foram fontes
fundamentais de informação, nos quais se
pode ver a elaboração cultural dos afrodes-
cendentes sob um ângulo de uma cultura
universitária não massivamente branca, não
abusivamente eurocêntrica, dentro de um
país onde o racismo não é exercido na mes-
ma forma de dominação e no mesmo senti-
do que é dado na sociedade brasileira.
a sociedade guianense é Afro-Indo-Amerín-
dia-Européia, com predominância Afro-Indu,
sendo que 80% da população é desta for-
72
mação étnica. estas etnias expressam uma
fenomenal diversidade cultural. Dentro de
cada uma das etnias temos diversas religi-
ões e culturas. existe na guiana uma liber-
dade de expressão étnica não pensável na
sociedade brasileira. não se pensa aqui na
liberdade de expressão das culturas bra-
sileiras. estas são raramente organizadas
pelo pensamento universitário. geralmente
sequer são apresentadas ou minimamen-
te reconhecidas. as diversas culturas são
reprimidas e desconsideradas nos espaços
públicos promotores de transmissão cultu-
ral. o que está em discussão, neste texto,
são as percepções sombrias que os intelec-
tuais brasileiros conseguem ter destas cul-
turas. Penso que os intelectuais nacionais
são míopes para estas culturas. Inexiste pre-
ocupação em organizá-las nos centros de re-
presentação da cultura nacional. a título de
depoimento, devo dizer que as duas primei-
ras vezes que não me senti sufocado, que saí
deste estado de quase asfixia, pela branqui-
dade conceitual sistemática e ideológica da
cultura nacional brasileira, foram quando
cursava mestrado em História em nancy-
-França e quando estive no caribe. sobretu-
do na guiana, na universidade da pequena
cidade de georgetown, capital da guiana.
outras experiências posteriores, também
significativas, de poder respirar, vieram nos
eua e na África. os afrodescendentes brasi-
leiros não conhecem, nem imaginam a sen-
sação libertária de poder, intelectualmente,
respirar. o eurodescendente é compulsório
no brasil. Quase somente ele pensa cultu-
ralmente. Quando não diretamente, fica
como fantasma assombrando os pensamen-
tos. todos devem pensar através dele, ainda
que seja, pelo menos, pela obrigatoriedade
bibliográfica. não são lidos os intelectuais
africanos nas universidades brasileiras. nem
mesmo reconhecem a existência destes. nas
universidades do caribe posso dizer que sou
negro, penso negro, sem vetos de censura,
sem precisar provar o terrorismo da afirma-
ção, sem as desconfianças de estar traindo
o espírito nacional. sem que me coloquem
no banco dos réus, por um suposto racismo
invertido. melhor ainda, lá não preciso dizer
que sou negro, todos sabem e respeitam. as
vozes negras podem ter eloquência na orga-
nização do conhecimento e nas expressões
das culturas universitárias. certamente os
intelectuais locais sentem outras restrições
relacionadas com o ex-colonialismo e o im-
perialismo, diferente das minhas inquieta-
ções.
as universidades brasileiras não têm equi-
distância sistemática do pensamento eu-
ropeu. Da forma que se dá, o pensamento
europeu recozido e recopilado, não fertiliza,
reduz, enfaixa, cristaliza e provoca a necrose
pensada. no caribe me vi livre destes fantas-
mas. Do europeu compulsório em todos os
espaços e dimensões da cultura acadêmica.
lá não há medo que o ritmo africano emba-
le o pensamento. a reflexão pode ser dança-
da e cantada na voz da minha avó. as avós e
73
avôs africanos existem no cotidiano do pen-
samento e são reconhecidos no cotidiano
da vida. no pensamento africano, mesmo
o racionalismo matemático é representado
nas formas simbólicas da dança e da arte.
entretanto, os racismos, mesmo na guia-
na, trabalham nos processos de dominação.
É pertinente refletirmos sobre a sociedade
brasileira a partir do modelo guianense de
racismo. este opõe hindus aos negros. Hin-
dus, negros de cabelos lisos, a afro-negros
de cabelos crespos. tornam-se translúcidas
as bases culturais dos racismos, apagando
as ilusões do espectro das cores brasileiras.
os racismos se expõem na sua real função, a
de sistema de dominação, produzindo a ne-
cessidade da produção da alienação cultu-
ral para facilitar sua naturalização. racismo
que, no plano internacional, opõe europeus
a guianenses. o caribe negro, ex-colônia; a
europa branca, ex-colonizadora. as ideias de
etnias são muito fortes e amplas na guiana
e no caribe. mostram que racismos não têm
nada a ver com as ideias de raça, são proces-
sos de dominação, são construções tempo-
rais históricas.
o que está em discussão não são as cul-
turas brasileiras, mas as percepções que
os intelectuais brasileiros conseguem ter
desta. Percepções que instauram a produ-
ção da cultura nacional, aqui no singular,
significando a síntese oficial, genitora dos
programas de ensino e das práticas cultu-
rais legitimadas. Progenitora do que vai ser
pesquisado e admitido como novo no pen-
samento nacional, seja ele conservador ou
revolucionário.
Quais são os marcos exteriorizadores desses
pensamentos? apesar das eloquentes defe-
sas da constituição da nacionalidade brasi-
leira a partir de “três raças”, a pluralidade
daí resultante torna-se redução constante
do índio e do negro aos preceitos da inter-
pretação do branco. branco como resumo
do pensamento ocidental dominante e (re)
elaborado no brasil. Pensamento que tem
no seu centro a fonte inspiradora do ma-
nual do racismo e machismo, que é a gran-
de obra Casa Grande e Senzala, de gilberto
Freire. texto até agora não abolido, sequer
discutido quanto à sua validade nos cursos
de graduação. texto lido e relido como fun-
damento, indicado, reescrito na versão mais
sofisticada do povo brasileiro, visto como
fundamento, mas não explicado como fun-
damento do quê e para quem, mas sempre
com este status de fundamento. Fundamen-
to do controle étnico-sexual-social das mas-
sas contra nós, negros e índios, apesar dos
disfarces democráticos e intelectuais.
no pensamento nacional tornou-se siste-
mática a ideia do “escravo” como fator de
produção. não temos os escravizados como
fonte do pensamento e produção intelectu-
al, isto fica relegado ao branco, o europeu
magnífico. na cultura brasileira, o escravi-
zado não pensa, não cria, não tem noção
74
política, nem consciência de ser visto e se
ver como ser humano, como produtor de
ideias. as referências feitas a africanos, des-
cendentes de africanos, ficam no patamar
das ações reativas, aos impulsos do imedia-
to. somos produtores de uma cultura Naife,
simplória e linda. Percebida como rica em
artefatos de simplicidade e improviso. não
de elaboração pensada e alicerce centrado
pelo uso da razão.
a redução branca das culturas negras no
brasil é produzida a partir da ignorância de
parte dos nossos intelectuais sobre as cultu-
ras africanas. somos tidos como ignorantes
pela ignorância deles, ignorância produzida
devido à ausência de cursos sobre África e
afrodescendência nas universidades. muito
menos somos sujeitos temáticos de pesqui-
sa, devido a estas tendências, alimentadas
pela inexistência de literatura sobre o assun-
to nas bibliotecas nacionais. o desaparelha-
mento do intelectual brasileiro é expresso
com o brilho do poema de castro alves, em
“navio negreiro”, no qual os africanos, imi-
grados forçadamente para o brasil, são tidos
como originários de uma suposta tribo de
homens nus. esta imagem da tribo dos ho-
mens nus perpassa toda a cultura brasileira,
produzindo os racismos que a perpassam.
raras são as exceções, entre elas os traba-
lhos de costa e silva, Kabengele munanga,
muniz sodré ou do secneb (sociedade de
estudos da cultura negra no brasil).
a imagem de tribos de homens nus é refe-
rência conceitual do pensamento brasileiro,
nos ditando uma suposta ausência de cul-
tura elaborada e desenvolvida dos africanos
aqui escravizados.
AFRODESCEnDênCiAS E
AFRiCAniDADES
em muitos dos cursos sobre africanidades
brasileiras, tenho sido questionado se a nova
História e os trabalhos de Darcy ribeiro não
têm exercido este papel de ruptura necessá-
ria para a compreensão ampliada da partici-
pação do afrodescendente na história social
e cultural nacional. Penso que a resposta é
negativa. nem um nem outro produziu os
elementos essenciais para a ruptura, ambos
continuam conceitualmente na base zero
para a história do(a) negro(a) brasileiro(a),
para a história dos afrodescendentes.
a (re)análise do escravismo não tem sido fei-
ta, considerando este sistema antes de tudo
como criminoso. a (re)análise continua nos
vendo como números e coisas. não procu-
ra captar a nossa dimensão humana. a su-
posta novidade em matéria de abordagem
não imagina o que o meu bisavô intelectual
africano pensava do criminoso escravizador.
não tem tomado a compreensão ampla do
sistema escravista e os quilombos como pro-
dução das alternativas políticas. a nova His-
75
tória não tem, na sua essência, o imigrante
africano como produtor intelectual e como
um dos formadores de pensamentos polí-
ticos na ordem escravista. sobre Darcy ri-
beiro, sua abordagem me parece uma insis-
tente reprise da obra Casa Grande e Senzala,
cujo eixo central é uma missão da miscige-
nação como elemento pontificador. eu não
acredito nisso. Penso que a miscigenação é
um dado à parte dos processos ideológicos
de dominação. a miscigenação pouco con-
tribuiu para o suposto pacifismo. o conflito
existe pela violência do sistema, que utiliza
o racismo, o machismo, o classicismo e as
ignorâncias produzidas, como elementos ar-
ticuladores das dominações e das alienações
na sociedade nacional.
AS AFRiCAniDADES BRASilEiRAS
os trabalhos de Diop (1959) permitem uma
percepção da diversidade cultural africana,
dentro de uma unidade da matriz africana.
a diversidade é produzida pelos contextos
históricos, geográficos e econômicos. Pa-
rece-me possível, devido aos importantes
contingentes de africanos imigrados à força
para o brasil, advogar as mesmas participa-
ções nesta dinâmica de diversidade e unida-
de das culturas afrodescendentes processa-
das no brasil. os elementos de base africana
passam no brasil pelas restrições econômi-
cas e políticas do escravismo e do capita-
lismo racista. É essencial, na compreensão
da problemática afrodescendente brasileira,
o entendimento das restrições do político-
-econômico, uma vez que admitimos que a
(re)elaboração destas culturas foi realizada
sob forças de pressões e dominação. É essen-
cial ao conceito de africanidades brasileiras
a ideia de (re)elaboração. as africanidades
brasileiras são (re)processamentos pensa-
dos, produzidos no coletivo e nas individu-
alidades, que deram novo teor às culturas
de origem.
a ideia de (re)elaboração tem o conteúdo da
produção intelectual dos afrodescendentes.
Introduz a ideia do pensado, do nacional,
do produzido através de bases civilizadas
importantes preexistentes às invasões euro-
péias.
a (re)elaboração é o elemento dinâmico,
parte da compreensão de novas realidades
e dos novos embates políticos, ela é produ-
ção do novo. a (re)elaboração explica cons-
truções inexistentes nas culturas africanas
presentes nas africanidades brasileiras. en-
tretanto, as bases constitutivas desta nova
construção são dadas na diversidade cul-
tural africana. a ideia da (re)elaboração e
da sua importância foi percebida por mim
quando, em 1986, estava em viagem a trini-
dad y tobago. Impressionou-me a apresen-
tação de um grupo de steel band, sendo que
steel band são instrumentos de percussão
produzidos com barris metálicos, cortados
e abaulados, que através de um martelo pro-
76
duzem um processo de afinação. são feitos
por grupos de afrodescendentes do caribe,
vivendo em regiões portuárias. Devido à re-
volução industrial, os portos recebiam gran-
de quantidade de barris metálicos. o steel
band é um instrumento que produz os sons
de todos os quatros grupos de instrumentos
de uma orquestra sinfônica. trata-se de um
quinto grupo de instrumentos com vários
tamanhos e formas. É um instrumento ine-
xistente na África e na europa, entretanto
aparece no caribe, graças à (re)elaboração
da base africana de música e percussão, sob
a referência de novo contexto de disponibili-
dades materiais. não é uma construção sim-
ples, ingênua, casual, seria impossível con-
ceber tal instrumento, sem uma elaboração
sistemática, instruída de bases dos conheci-
mentos complexos de processos racionais.
a partir da (re)elaboração pensada sobre o
steel band se descortinou um novo horizonte
para pensar o candomblé, a capoeira angola
e os quilombos, que são, assim, (re)elabora-
ção da base africana. a (re)elaboração abriu
o caminho para pensar a ideia de culturas
afrodescendentes e a existência de um con-
junto amplo, indo do pensamento brasileiro
à base material da cultura brasileira.
COnCluSõES
os racismos produzem justificativas de sua
existência, elaboram uma cultura que pre-
vê a sua preservação. as complicações deste
sistema de dominação não passam pela aná-
lise acadêmica amplificada. Produzem con-
siderações fortes sobre os pensamentos aca-
dêmicos, que produzem a sua reprodução.
os pensamentos, guiados por estruturas ra-
cistas, não foram ainda denunciados como
tais, com sistemática veemência. existe um
medo nacional das consequências desta de-
núncia. os racismos são ainda identificados
como de menor importância, como tolerá-
veis ou como passíveis de eliminação pelo
passar do tempo. a singularidade do traba-
lho brasileiro, durante quase 300 anos, sinô-
nimo de escravo, e escravo assemelhado a
negro, não sofreu ainda a devida elaboração
no pensamento nacional. continuamos com
os vetores dominantes no campo de um
marxismo dogmático e estranho às parti-
cularidades do processo histórico nacional.
temos, por outro lado, as dificuldades dos
grupos dominantes se reconhecerem como
dominadores, em face do discurso sorratei-
ro de um espírito democrático, igualitário.
as necessidades ideológicas dos grupos do-
minantes de um credo no universalismo e
na modernidade criam visões conflitantes
com as do particular, do localizado, do re-
gional e do étnico. são razões que precisam
ser percebidas e debatidas para a constru-
ção da pluralidade democrática. ademais,
outro fator não percebido na cultura brasi-
leira e, sobretudo, na política universitária é
77
a do peso relativo da representação. a etnia
afrodescendente aparece sempre em des-
vantagem numérica, de poder e de acesso
à elaboração dos discursos oficiais. somos
derrotados pela ausência produtora e jus-
tificadora da precariedade do embate. sem
que se enfrentem as razões fundamentais
da ausência. as razões dos racismos e as so-
luções estão nos programas específicos de
formação.
Para a utilização e expansão dos conceitos
de afrodescendência e africanidades bra-
sileiras, não se apresentam até o presente,
fortes objeções de fundo teórico da produ-
ção de conhecimento, somente objeções de
caráter político. as estruturas do poder, de
domínio do certo e do errado, ficam aba-
ladas com o reconhecimento das africa-
nidades brasileiras. a verdade entra numa
competição de dominação, em que seus
supostos conhecedores podem se confortar
com as ignorâncias, com as faces dos racis-
mos no espelho. são revelações que podem
emergir do aprofundamento no conceito de
afrodescendência e de africanidades. são re-
sultados que abalam o equilíbrio político, o
poder do conhecimento sai da exclusividade
do branco.
as africanidades brasileiras formam um pa-
radigma poderoso para revisão dos concei-
tos e preconceitos vigentes na cultura bra-
sileira. Forjam-se nas ações e nos discursos
processados pelas camadas “racizadas” da
população brasileira. Favorecem a destrui-
ção das idealizações da cultura do domi-
nador. Produzem espaço de liberdade inte-
lectual, livre dos racismos e dos conceitos
produzidos nos processos da dominação
historicamente vigentes na cultura brasilei-
ra.
as afrodescendências instruem sobre a di-
versidade étnica brasileira, livre dos racialis-
mos, reconhecedora da presença ampla, di-
versa, múltipla e estruturada, de uma etnia
predominante afrodescendente.
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80
II. HUmILHAÇÃO, ENCORAjAmENTO E CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE1
Azoilda Loretto da Trindade2
A todos as crianças, em especial às negras (afrodescendentes):
“Ao entrar na sala, após a merenda, a professora encontrou Rafael e Tiago,
também recém-chegados da merenda, brigando:
- E você? - perguntou Rafael.
- É, sou branco mesmo. Mas, pior é você, que é louro! - respondeu Tiago.
- Você também é louro, seu branquela! - falou Rafael.
– É, mas você é mais louro do que eu! - retrucou Tiago.”
(ambos, de 8 anos de idade, cursavam a 1ª série do ensino Fundamental,
numa escola pública do rio de Janeiro.)
esse acontecimento ficou gravado na mi-
nha memória como algo intrigante e eu o
destaco, agora, como ilustração de que, no
que diz respeito ao racismo e às exclusões e
discriminações, quer na sociedade, quer na
escola, todos nós estamos afetos e expostos:
mulheres, homens, negro/as, índios, ciganos,
judeus, nordestinos, crianças, idosos, etc. to-
dos nós somos e estamos envolvidos, trans-
versalmente enredados na teia do racismo
e dos preconceitos, ou por pertencer a um
determinado grupo, ou por não fazer parte
de outro e, estando à margem, não perceber-
mos o que aquele grupo vive, pensa ou sente.
Quero, no entanto, convidá-lo(a) a pensar a
negritude, a questão negra ou afrodescen-
dente na escola. uma questão complica-
da, por estar amalgamada com a questão
do racismo, e porque tendemos a negá-lo.
Quanto(a)s de nós falamos ou ouvimos “não
existe racismo, o que existe é questão de
classe”, “aqui não tem essa de racismo, todo
mundo é igual: preto, branco, amarelo, ín-
dio”, ou coisa parecida?
no entanto...
1 escola: exclusão e inclusão – 2000 / Pgm 3.
2 mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ, Doutora em comunicação pela eco/uFrJ. organizadora desta coletânea.
81
A nEgRítuDE nA ESCOlA
Fico fascinada ao ver, cotidianamente nas
ruas, nos horários de início das aulas, o
contingente de crianças, com seus/suas res-
ponsáveis, dirigindo-se às escolas. Quantos
sonhos e expectativas! muitos chegam a di-
zer que vão a escola para serem “alguém” na
vida, como se já não o fossem.
e as crianças e adolescentes negros, afro-
descendentes, que pertencem a um grupo
que têm a sua história escondida e/ou ne-
gada na sociedade; que têm suas necessi-
dades, seus modos de ser, seus problemas,
sua cultura, as lutas e ações positivas do
seu povo, sua voz, sua pele, seu cabelo
negados, escondidos, invisibilizados; que
sofrem diretamente com a omissão, segre-
gação e secundarização dos problemas es-
pecíficos do seu povo?
começo a lembrar de acontecimentos rela-
cionados a nós, negros e afrodescendentes
na escola.
mesmo com visíveis mudanças - hoje temos
os Parâmetros curriculares nacionais, com
a proposta de discutir a pluralidade cultu-
ral, em nível nacional; o Dia nacional da
consciência negra incorporado em muitos
calendários escolares; a voz do movimento
negro, ecoando em toda a sociedade - as si-
tuações que relatarei a seguir ainda nos são
contemporâneas.
FEStAS, DESFilES E
COMEMORAÇõES
Davidson, com 9 anos, na primeira série,
menino negro, pai e mãe negros, recusou-
-se a participar da festa junina se tivesse que
dançar com uma colega negra. alegou não
gostar de negros e que, por isso, não dan-
çaria com a menina. a professora disse-lhe
que, se ele não dançasse com a colega, ele
não dançaria com ninguém. ele ficou na fes-
ta apenas como espectador e não dançou
com ninguém. Imagine o nível de autonega-
ção daquela criança e como deve ter ficado
a menina.
amauri era um menino inteligente, só tira-
va excelentes notas. a regra da escola era
que o melhor aluno carregaria a bandeira
da escola no dia do desfile cívico. naque-
le ano, pelas notas e atitudes, amauri era
considerado o melhor aluno. no entanto,
no dia do evento, amauri foi preterido por
um outro aluno.
É importante que nos indaguemos quantas
crianças negras, sob nossa responsabilida-
de docente, têm a oportunidade de levar
a bandeira da escola, e/ou de representar,
nas festinhas da escola, coelhinhos da Pás-
coa, ou Jesus ou sua mãe maria, ou anjos,
ou situações que exprimam beleza e visibi-
lidade positiva?
82
BRinCADEiRAS
“barra manteiga/no fuça da nega” ou “chi-
cotinho Queimado”. esses e outros tipos de
brincadeiras nada teriam demais, não fosse
a desumanização de negros, quem tem fuça
não é gente, ou a banalização de um instru-
mento de punição e coerção como o “chi-
cotinho queimado”, o chicote que já “quei-
mou” na pele de muita gente, sobretudo dos
negros escravizados do nosso país.
MuSiQuinHAS
músicas infantis, como, por exemplo “es-
cravos de Jó” que, embora pertencendo ao
nosso imaginário social, à nossa memória
afetiva, trazem no seu bojo a naturalização
da condição de escravo que, no caso do bra-
sil, é tido como sinônimo de negro.
COntOS DE FADAS E POPulARES
no nosso repertório de contos de fadas ou
populares mais conhecidos, quantas belas he-
roínas negras podemos, de pronto, destacar?
lendas que retratam a origem das “raças”
colocam os negros como os esquecidos de
Deus, ou como descrentes ou preguiçosos,
ou a cor negra como uma espécie de castigo.
são tantas exclusões, preconceitos, discri-
minações!
temos situações mais duras, que trazem, em
seu bojo, uma limitação de possibilidades da
criança ou do aprendiz, ou uma descrença
no potencial do outro/a como:
O DEStinO DE DEniSE
a mãe de Denise, menina negra, de família
de baixa renda, foi à escola da sua filha, que
era pública e situada em bairro popular, re-
clamar do ensino “fraco” daquela institui-
ção.
a professora, que gostava muito da Denise,
menina inteligente e boazinha, excelente
aluna, acalmou a mãe: “não se preocupe,
para ser auxiliar de enfermagem ou traba-
lhar num supermercado, este ensino está
ótimo. ela vai se dar muito bem, fique tran-
quila”.
Denise, hoje, é doutora em sociologia e pro-
fessora de uma universidade norte-america-
na.
Imagine se a mãe da Denise aceitasse aquela
profecia para sua filha...
Imagine quando uma criança é negra e, jun-
to com esta falta de expectativa, vier a cren-
ça de que aos negros cabem profissões que
exigem pouco estudo.
Imagine quantas crianças têm seu potencial
embotado por causa do racismo e preconcei-
to de algumas e alguns docentes, e/ou pela
83
falta da confiança que tiverem em relação
a ela, pela falta daquele encorajamento, da-
quele estímulo para a aventura de aprender.
PROFESSORA nEgRA
o pai de uma criança de uma escola pública,
no primeiro dia de aula, ao ver que a pro-
fessora do seu filho era negra, foi solicitar à
diretora da escola que trocasse sua criança
de turma. “ora! logo meu filho com aquela
professora escurinha” - disse ele.
temos situações mais sutis, mais naturaliza-
das, submersas e corriqueiras, como:
• a exclusão da imagem negra com positivi-
dade dos murais, quadros de avisos, de ani-
versariantes do mês, dos quadros das cha-
madinhas, nos brinquedos adquiridos pela
escola, como, por exemplo, bonecos/as.
• a ainda incipiente quantidade de livros
didáticos ou paradidáticos e de literatu-
ra infantil e juvenil com imagens negras,
que não mostrem posições subalternas
ou de marginalidade.
• Quando compramos presentinhos iguais
para todas as meninas da escola, por
exemplo, pentes ou prendedores, sem le-
var em consideração a constituição dos
cabelos das meninas negras.
• Quando ficamos paralisados sem saber o
que fazer diante de xingamentos, apelidos
ou picadas relacionados ao povo negro,
ou quando as crianças negras se dese-
nham brancas de olhos claros.
• o desconhecimento e o desinteresse co-
letivos de que há um mundo submetido,
tornado subalterno, estereotipado, silen-
ciado pelo racismo e preconceito a tudo
que nos reporta à África e à sua diáspora:
o continente africano, sua gente e seus
descendentes, seus costumes, sua litera-
tura, seus saberes, religiões, ciência, sua
geografia, história, biologia - toda uma
riqueza a ser descortinada e reconheci-
da.
não destaco estes acontecimentos para
culpabilizar ninguém, mas porque sou pro-
fessora e sei a importância do nosso papel
na formação dos alunos/as e cidadãos(ãs),
na ampliação do seu desejo de aprender, no
formação da sua autoimagem, na sua auto-
confiança e sei o quanto a escola é crucial
para nós, afrodescendentes.
Destacamos estes acontecimentos para con-
vidar o/a leitor/a a entrar na escola com um
olhar antirracista e democrático porque, no
seu cotidiano, está presente a diversidade,
o movimento, as multiplicidades de sons,
cores, cheiros, vozes, formas, desejos, a di-
ferença, os negros/as - afrodescendentes,
a(s) cultura(s) negra(s), entre outras. essa
entrada na escola, numa perspectiva antir-
racista, requer atuarmos no seu cotidiano
criticamente:
84
• na hora da matrícula, para não excluir
ninguém com mecanismos sutis e perver-
sos, mascarados, ou não, de bonzinhos;
• nas ações que incidem no controle do cor-
po e da fala dos alunos, já que este “con-
trole”, subliminarmente, aponta para um
padrão de corpo e linguagem humana que
nega as diferenças ou privilegia um deter-
minado aspecto como o melhor, o certo,
o válido;
• - quando da escolha e da organização de
turmas, no planejamento, nas ações coti-
dianas de sala de aula (definição de con-
teúdos e suas abordagens, livros didáticos
e paradidáticos, textos escolares, meren-
das, recreio, brincadeiras, musiquinhas,
nas reuniões docentes, em nossos discur-
sos, nas reuniões com as responsáveis,
etc.), para que o respeito, a valorização, o
diálogo, a tolerância, a construção coleti-
va, a expectativa positiva, a criatividade e
a paixão por aprender e ‘conhecer o mun-
do’ sejam realidades visíveis.
Destacamos estes acontecimentos para si-
nalizar a urgente necessidade de descobrir-
mos nossa negritude presente na escola e na
sociedade. Descobrirmos com outros olhos
a presença negra no brasil, para além da
circunscrita no folclore, para além da mera
contribuição na dança, música, samba, co-
res vivas, futebol. Percebermos a cultura
negra em todas as partes, ainda que sub-
mersa, na arte, na ciência, nas nossas vidas,
nas nossas lutas, no nosso sangue e na nos-
sa alma.
enfim, convidamos todo(a)s a perceber essa
cultura com sentimentos como a curiosi-
dade, a admiração, o interesse, e sobretudo
com respeito, muito respeito para com um
povo que, chegado ao brasil como chegou,
tendo vivido e vivendo uma história de injus-
tiça, exclusão, discriminação, não perdeu a
capacidade coletiva de dançar, cantar, sorrir,
criar e, como canta caetano, construir “mi-
lagres de fé no extremo ocidente” e que só
sobreviveu e sobrevive porque possui “essa
estranha mania de ter fé na vida”
afinal, romper com a discriminação e com
o racismo, investindo numa escola que
contemple e valorize nossas matrizes cul-
turais sem hierarquizá-las, que valorize e
atue com competência, conhecimento e
desejo político, rumo à construção de uma
educação libertadora e multicultural críti-
ca - esses são os nossos desafios e legados
históricos.
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86
III. A LEI N. 10.639/2003 ALTERA A LDB E O OLHAR SOBRE A PRESENÇA DOS NEgROS NO BRASIL
E TRANSFORmA A EDUCAÇÃO ESCOLAR1
Bel Santos2
a alteração dos artigos 26 e 79 da lei n.
9.394/1996, de Diretrizes e bases da educa-
ção - lDb, através da lei n. 10.639/2003, deve
ser entendida como um passo importante a
caminho de uma pedagogia e de uma didáti-
ca que valorizem a diversidade étnico-racial
e cultural presentes no brasil.
uma das características do processo de de-
mocratização do país tem sido a alteração
do marco legal, incluindo, em forma de leis,
antigas reivindicações sociais de acesso aos
direitos. são exemplos: a constituição bra-
sileira (1988), o estatuto da criança e do
adolescente (lei n. 8.069/1990), a lDb (lei
n. 9.394/1996) e sua recente alteração (lei
n. 10.639/2003), tema deste texto. Indistinta-
mente, estas leis incorporaram, ao concei-
to de inclusão, o direito inerente a todas as
pessoas de serem tratadas em condições de
igualdade, independente de sua cor ou raça,
ao mesmo passo que deixaram patente que
a democracia racial, tão apregoada, não é,
ainda, uma realidade, necessitando, portan-
to, que seja garantida por lei.
Quando o assunto é lei, vêm logo a nossas
mentes algumas expressões do senso co-
mum: “lei no brasil não pega... é só mais
uma”, “é para inglês ver”, “se fosse bom o
governo não dava, vendia”, “é mais uma lei
que vem de cima para baixo, para complicar
a vida do/a professor/a3 e da escola”. os de-
mais programas desta série já trataram de
1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 5.
2 Professora formada em matemática, com especialização em Pedagogia social. Durante 11 anos alfabetizou em escolas da rede Pública municipal de são Paulo e, desde 1992, atua em organizações não governamentais. atualmente é coordenadora de projetos de educação do centro de estudo das relações do trabalho e Desigualdades - ceert, voltado para a promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar; sendo docente do Programa de Formação em Direitos Humanos do Instituto brasileiro de estudos e apoio comunitário – Ibeac
3 a partir deste momento, apenas para efeito de facilitação da leitura e da escrita, utilizaremos os artigos femininos apenas quando se tratar especificamente do gênero feminino. nos demais casos, utilizaremos o gênero masculino.
87
apontar como as organizações do movimen-
to negro, por meio de pesquisas e denúncias,
se empenharam em tornar incontestáveis os
dados da desigualdade racial que marcam as
relações em nosso país4. a inferiorização e a
invisibilidade da população negra foram ex-
plicitadas. uma rápida olhada nos outdoors
das grandes cidades do país e a quantidade
de mulheres louras associadas a produtos de
beleza e de ascensão social nos levariam a
supor estarmos na Dinamarca ou em qual-
quer outra cidade européia. em contraparti-
da, as campanhas e propagandas de cunho
social (como saneamento básico, alfabeti-
zação, doação para orfanatos etc.) se valem
da imagem de pessoas negras, provocando a
rápida associação entre negro e miséria.
assim, é! todos nós vemos! todos os dias:
no jornal, na novela, nas revistas... assim
é a nossa sociedade! assim acontece fora
da escola, porque dentro... como acontece
dentro? como negros e negras são represen-
tados nos livros didáticos? Qual enfoque é
dado à sua participação na história e cultura
do país? aparecem como escravos? como
passivos? ou não? Já falamos de Zumbi e do
Quilombo dos Palmares... e o 20 de novem-
bro? e as várias insurreições negras, as ve-
lhas e atuais reivindicações pautadas pelos
movimentos negros, mas que beneficiarão
toda a sociedade?
se para lá dos muros da escola, os conteúdos
fazem com que os negros e negras se sintam
inferiores, como a escola pode se contrapor
e ir na contramão, oferecendo possibilida-
des para que crianças, adolescentes e jovens
negros construam uma justa imagem de si
mesmos?
Perguntas como estas, há décadas orien-
tam os estudos e intervenções de organiza-
ções negras e intelectuais brancos e negros,
como F. rosemberg, ana célia silva, eliane
cavalleiro e outros.
Permito-me argumentar que, ainda que ou-
tras leis sejam resultantes de reivindicação
popular, a inclusão da história e cultura da
África nos currículos escolares se destaca
pela intensa mobilização social e pela com-
petente metodologia produzida à margem
do sistema oficial de ensino. entendendo
que mudar o imaginário de África incidia di-
retamente no imaginário social sobre a po-
pulação negra no brasil, instituições como o
Ilê-aiyê da bahia, passaram a desenhar uma
proposta educacional para suas crianças, in-
cluindo uma história positiva da África, os
4 De acordo com dados do Instituto de Pesquisas aplicadas - IPea, com base na Pesquisa nacional por amostra de Domicílio (PnaD) de 1999, apesar de os negros representaram pouco menos da metade da população, são 70% dos que vivem em situação de miséria; a pobreza atinge 38% das crianças brancas e 65% das negras; um negro, com mesmo nível de escolarização que um branco ganha até 54% menos que este; entre os meninos brancos 44,3% estão cursando o 2o ciclo do ensino Fundamental, já para os negros este percentual cai para 27,4%; sete em cada dez negros não completam o ensino Fundamental.
88
mitos, a ancestralidade e a topografia do
terreiro à sua concepção pedagógica. a prin-
cípio, estas práticas pretendiam ser com-
plementares ou alternativas à educação es-
colar que, baseada na ditadura do “mono”,
invalidava e abortava a diversidade cultural
e racial presente em seus alunos, produzin-
do, com esta invisibilização, uma escala de
valores, na qual a história e cultura da África
ocupavam os últimos lugares.
a experiência do apô afonjá, sistematiza-
da por vanda machado, é um feliz exemplo
de busca de uma pedagogia nagô, que liga
a educação escolar ao mundo do terreiro
com toda a sua riqueza material e simbólica,
envolvendo toda a comunidade com a ação
educativa e promovendo o conhecimento e o
respeito às religiões de matriz africana. crian-
ças, ainda muito pequenas, ouvem e reescre-
vem, com suas educadoras, histórias de reis
e rainhas africanos como a rainha nzinga,
de lutadores como “o caçador de uma flecha
só, que trouxe alegria”, e assim aprendem a
gostar mais de si mesmas. o passo seguinte
foi levar esta pedagogia para a escola, incluir
este novo olhar e novos sentidos à formação
dos educadores da rede pública aos espaços
acadêmicos. e assim vem acontecendo.
Desde 1940, o teatro experimental do negro,
preocupado com uma educação que valori-
zasse a participação do negro na construção
da história, criou cursos de alfabetização,
arte e cultura para adultos e crianças.
Foi o conjunto de práticas como estas que
impulsionou a inserção da história e cultura
da África e dos afro-brasileiros no currículo
oficial de algumas secretarias de educação
na década de 1990 e em 2003, em todo o sis-
tema educacional, como lei federal. Portan-
to, a lei n. 10.639/2003 não é um presente
“do governo”. no máximo um presente das
organizações do movimento negro para a
sociedade brasileira. um passo importante
neste processo foi a consolidação do Plano
de ação da III conferência mundial contra o
racismo, o direito de ter incluído nos currí-
culos escolares a história que até então não
tinha sido contada nas escolas.
atuando na formação de educadores e na
proposição de políticas de promoção da
igualdade racial, tenho observado que, no
geral, as unidades educacionais já reconhe-
cem que é delas a tarefa de educar para a
igualdade racial, ainda que alguns educado-
res estejam esperando uma situação explí-
cita de racismo, para então pensar no as-
sunto. Porém, para aqueles que acreditam
que é necessário fazer algo, a questão que
se apresenta é o como fazê-lo. a tendência
é delegar esta missão ao professor negro,
militante, ou ao professor de História, que
são considerados como “aqueles que sabem
destas coisas”, enquanto os demais ficam
à espera do dia em que estarão preparados
para tratar tema tão delicado!
as dificuldades, muitas vezes, estão pauta-
das, mais que na falta de conteúdos e fontes
89
de pesquisas, em receios, medos, mágoas e
inseguranças em tratar a temática racial, que
não devem ser ignorados. muitas vezes, os
educadores brancos, negros, indígenas, etc.,
não tiveram oportunidade de refletir sobre
sua própria identidade racial, sobre suas vi-
vências das relações raciais. cabe uma pro-
posta efetiva de capacitação de educadores,
oferecendo conteúdos, mas também, dando
conta das questões subjetivas, para encorajá-
-los a uma prática que promova a igualda-
de racial. trata-se de mudar, não apenas os
conteúdos, mas o olhar e os sentidos dados
à diversidade étnico-racial. nessa perspec-
tiva, muitas práticas “alternativas”, muitos
materiais e experiências têm sido produzidos
em território nacional: bibliografias afro-
-brasileiras têm chegado às salas de leitura e
bibliotecas dos municípios de são Paulo, belo
Horizonte e campinas; programas de forma-
ção continuada nas unidades escolares, nos
horários coletivos, nas universidades; sele-
ção, análise e disseminação de práticas edu-
cacionais como as que são organizadas pelo
Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promo-
vido pelo centro de estudos das relações de
trabalho e Desigualdades – ceert10. Práticas
que têm saído do combate ao racismo para a
promoção da igualdade racial na educação.
a experiência do Prêmio educar para a Igual-
dade racial apontou que a inclusão de uma
perspectiva africana ao currículo escolar
tem provocado grandes mudanças no modo
de ensinar, nas metodologias de ensino, nos
recursos didáticos utilizados. observa-se
que estas práticas são mais participativas,
contam com a presença da comunidade es-
colar em seu sentido mais amplo (familia-
res, organizações sociais etc.), estimulam a
pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-
los, os mitos, a ancestralidade.
a experiência do Prêmio educar para a Igual-
dade racial apontou que a inclusão de uma
perspectiva africana ao currículo escolar
tem provocado grandes mudanças no modo
de ensinar, nas metodologias de ensino, nos
recursos didáticos utilizados. observa-se
que estas práticas são mais participativas,
contam com a presença da comunidade es-
colar em seu sentido mais amplo (familia-
res, organizações sociais etc.), estimulam a
pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-
los, os mitos, a ancestralidade.
não tememos ser otimistas, ao dizer que a
lei n. 10.639/2003 já nasce ultrapassando o
limite da obrigatoriedade. a África está dei-
10 o Prêmio educar para a Igualdade racial, em duas edições, recolheu e analisou 524 experiências educacionais de promoção da igualdade racial/étnica, de todos os estados do país, da educação Infantil, do ensino Fundamental e médio. a primeira edição teve como um dos produtos a publicação “educar para a Igualdade racial” contendo as sínteses de 30 experiências e um cD com sugestões de atividades e uma bibliografia com mais de trezentos títulos. a publicação da segunda edição está em andamento, mas é possível verificar no site do ceert (www.ceert.org.br), um resumo de 32 práticas bem sucedidas.
90
xando de ser um “país carente” para se tor-
nar um continente cheio de contradições e
belezas históricas. na mesma medida, a es-
cola deixa de ser o terreno da exclusão de
crianças negras e indígenas, para se tornar
espaço de intervenção pedagógica de com-
bate ao racismo e de promoção da igualdade
racial. vão desaparecendo as ações solitárias
das salas de aula e emergindo projetos co-
letivos, “projetos-continente”, partilhados
com outros educadores, com organizações
do movimento negro, pesquisadores e se-
cretarias de educação. os livros com visões
estereotipadas cedem o espaço àqueles que
falam de tantas diferentes gentes, em tan-
tas diferentes línguas, de tantos diferentes
sentimentos, mostram tantos diferentes
jeitos e cabelos. rompe-se o silêncio diante
de situações de discriminação, sejam elas
explícitas ou não. as referências negras,
as personalidades históricas não podem
mais ser contadas nos dedos das mãos, ta-
manhos os levantamentos feitos por edu-
cadores e educandos. cada vez que um
educador sente dificuldades para abordar
a temática racial ou tem vontade de apro-
fundar sua formação sobre os estudos afro-
-brasileiros conta com vasta bibliografia e
com a parceria das universidades locais e
seus pesquisadores. os quilombos deixam
de ser referência do passado e estão cada
vez mais perto do universo das escolas.
uma boa escola passa a ser assim denomi-
nada na medida em que reflete, em todos
os seus aspectos, a diversidade étnico-ra-
cial presente na sociedade brasileira. este
“projeto continente” não está pronto. está
sendo e poderá ser construído por cada
um, cada uma de nós, cotidianamente. sua
implantação impulsionará decisões asserti-
vas, políticas públicas transformadoras. e,
brevemente, nossos alunos, negros, bran-
cos, indígenas e de outros grupos étnicos
terão que consultar o dicionário para com-
preender o termo exclusão.
PARA AMPliAR O DEBAtE
vídeos:“Vista minha pele” – ceert
“rompendo o silêncio” – sebraP
REFERênCiAS
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colas: entre a lei e as práticas sociais. brasí-
lia: unesco, 2002.
92
Iv. áFRICA vIvA E TRANSCENDENTE!1
Narcimária Correia do Patrocínio Luz2
[...] Eu digo para nunca esquecerem o lugar de suas origens. Se nós participamos
na religião de outros, se nós aprendemos a cultura dos outros, não devemos es-
quecer a nossa. Portanto, nós não devemos usar nossas mãos para relegar nossa
própria cultura a posições inferiores. Toda pessoa deve aprender a colocar-se
a si mesma num pedestal. Isto porque a galinha é que se abaixa quando está
entrando em casa.
Meus filhos, todos os tesouros do povo Yorubá estão em Ilé-Ifé. Ifé é o lar e a ori-
gem de todos nós... Ilé-Ifé é a terra sagrada do povo negro e de todos os devotos
da religião dos Orixás espalhados pelo mundo. Foi aqui em Ifé que Oduduwa
criou a Terra sobre a qual todos nós hoje estamos em pé e no seio da qual nós
desapareceremos quando mudarmos nossa presente posição mortal!!!Oduduwa
que desceu para a terra numa corrente, e que foi o primeiro Olofin, não deixará
secar nunca a fonte de vossa sabedoria. Eu saúdo a vossa coragem. Eu saúdo
vossa paciência. Eu estou muito feliz por ver que vocês não esqueceram o seu
lar ancestral...
(oba okunade sijuwade, olubuse II, rei de Ifé. Pronunciamento na I confe-
rência mundial da tradição do orixá, Ilê Ifé, nigéria, 1981.)
intRODuÇÃO
a efervescência do debate sobre a lei n.
10.639/03, que entrou em vigor em 09 de ja-
neiro de 2003 e que inclui, no currículo da
educação básica, o estudo da História da
África e cultura afro-brasileira, e sua im-
plementação no currículo oficial das esco-
las brasileiras são o foco da nossa análise,
principalmente depois de constatarmos
muita ansiedade entre os professores(as),
sob a pressão de ter que contribuir no pro-
1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 1.
2 Professora titular do Departamento de educação campus I da universidade do estado da bahia-uneb; Doutora em educação; pesquisadora no campo da educação, comunicação e comunalidade africano-brasileira; coordenadora do ProDese - Programa Descolonização e educação cnPq/uneb.
93
cesso de implantação do ensino de História
da África e História e cultura afro-brasileira
nas suas escolas.
levando em consideração as questões mui-
tas vezes dispersas e equivocadas que vêm
afligindo professores(as), e aquelas que ha-
bitam o imaginário de crianças, adolescen-
tes e jovens que deverão vivenciar a lei, aqui
é importante esclarecer que o processo de
sua implantação não está ocorrendo em
águas tranquilas. a lei n. 10.639/03 é o resul-
tado do esforço envolvendo as comunalida-
des africano-brasileiras que, durante muito
tempo instituíram iniciativas em educação
que afirmassem e legitimassem seu patri-
mônio civilizatório: a África e sua (re)criação
nas américas.
apesar de reconhecermos a conquista ob-
tida pelas comunidades africano-brasileiras
em estabelecer canais de legitimação ins-
titucionais para que o estado assumisse a
diversidade civilizatória dos povos nas polí-
ticas de educação, vimos que há equívocos
na abordagem sobre a África e sua influ-
ência em nossas vidas. Isso, muitas vezes,
vem ocorrendo pela adoção de perspectivas
teórico-metodológicas, ainda derivadas das
projeções da História e da geografia civili-
zatórias greco-romanas, anglo-saxônicas e
ibéricas. são perspectivas que insistem em
representar a África compacta, homogê-
nea, submetida ao discurso universal que a
congela no tempo e no espaço da lógica do
projeto histórico da “ordem e progresso” ca-
pitalista, destituindo-a completamente dos
povos que detêm milenarmente um comple-
xo sistema de pensamento, de onde trans-
bordam cosmogonias, universos simbólicos,
um complexo sistema de comunicação cujas
linguagens e valores organizam comunali-
dades, instituições e suas hierarquias, tec-
nologias e modos de produção, além de uma
magnífica erudição estética...
nossa contribuição se alinha justamente
nesse esforço, de compor a África a partir
do repertório das comunalidades que a (re)
criaram aqui, tornando-a visceral em nos-
sas vidas. a África que aparece no currículo
escolar soa como um lugar distante, tudo é
estranho, fora das nossas entranhas. essa
África, que ganha o status jurídico, no âm-
bito das políticas de educação, perde a di-
nâmica de civilização transatlântica que há
muito atravessa o nosso viver cotidiano no
brasil. ora, se estamos dentro da dinâmica
entre tradição e contemporaneidade, é pre-
ciso que se diga: a África também está aqui!
está aqui o tempo todo envolvendo nossas
crianças e jovens, animando-os a estruturar
suas identidades e erguer a cabeça para lidar
com os espaços institucionais impregnados
do recalque ao que somos, enquanto povos
descendentes de africanos.
94
PARA AléM DAS FROntEiRAS DO
CuRRíCulO ESCOlAR, EXiStE A
FlOREStA
se realmente pretendemos aproximarmo-
-nos da “áfrica viva”, será preciso pensar
em africanizar o currículo. a africanização
do currículo escolar é uma estratégia para
transcendermos as narrativas curriculares
que destituem os povos da África do direito
à existência e da afirmação de toda a exube-
rância que caracteriza o seu continuum ci-
vilizatório. nossas crianças e nossos jovens
precisam saber disso! É uma dinâmica de
currículo cujas linguagens e valores se inter-
cambiam entre as distintas civilizações que
compõem a nossa identidade nacional.
Isso nos leva à radicalidade das elaborações
sobre o tempo que atravessa o pensamento
africano. creio que muniz sodré nos ajudará
a elaborar essa transcendência:
[...] Os neo-alexandrinos tinham uma
categoria chamada ‘eon’, que é uma das
maneiras de dizer tempo em grego. O
‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há
alguma coisa na Bahia que é a ordem do
‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal.
Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de
ancestralidade, de paternidade, e não de
história pura. A história, principalmente
a história como Hegel e Marx viram, é
dinâmica, é uma mutação sem compro-
misso com o pai, porque o Ocidente é
uma sociedade deicida e parricida, ma-
tou Deus e mata o pai. Bem, eu estou
falando com outra linguagem, do Egun,
que é o culto ao ancestral. Portanto, o
princípio da ancestralidade é poderoso,
porque nele você pode crescer, envelhe-
cer, morrer, e o tempo inteiro você é
atravessado por um discurso de funda-
ção de seu pai e sua mãe. Você não se
livra desse discurso. Você pode tentar
rejeitá-lo, mas quando joga fora é para
cair num outro que você funda, porque
você se livra de seu pai físico, mas quan-
do tem um filho vira o pai e você está no
discurso de fundação3.
vamos nos dedicar agora a realçar alguns
elementos dramáticos que nos permitem
a aproximação da singular visão de mundo
que faz expandir a complexidade da civiliza-
ção milenar africana entre nós.
trata-se do conto “Ajaká, iniciação para a
liberdade”4, que integra a herança nagô nas
américas, de modo particular na bahia. esse
mito foi (re)criado para um auto coreográ-
fico por mestre Didi, Deoscóredes maximi-
liano dos santos, Juana elbein dos santos e
orlando senna.
3 soDrÉ, muniz. entrevista a mariluce moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10.
4 conto adaptado de santos, Deoscóredes m. et alii. Ajaká, a Iniciação para a Liberdade. salvador, secneb, 1991.
95
esse auto coreográfico vem alimentando
nossas iniciativas teórico-metodológicas,
envolvendo professores de várias regiões do
brasil, para falar sobre a presença africana
e a contribuição de suas linguagens na área
de educação.
Fizemos uma adaptação cuidadosa e exclu-
siva de Ajaká para compor esse mosaico de
ideias sobre a “áfrica viva e transcenden-
te”, e irmos conversando, tocando no que
há de mais profundo no conto, a saber: os
percalços pelos quais akajá passa, que são
explorados entrelaçando dança, música, tex-
to, efeitos plásticos: uma linguagem assen-
tada no universo simbólico nagô. a floresta
é o cenário-chave do conto e nela crescem,
com maestria, conteúdos ético-estéticos
que revelam as mães ancestrais, represen-
tadas como o pássaro akalá; aroni, o orixá
das folhas, que se torna irmão de ajaká e seu
guia; os espíritos da água e da palmeira; os
ancestrais masculinos egunguns.
escutem com o coração e procurem extrair,
das imagens que alimentam a narrativa,
linguagens que levantem a auto-estima das
nossas crianças, adolescentes e jovens, que
precisam urgentemente (re)aprender a en-
contrar seu lar ancestral e com ele, e através
dele, projetar-se para uma ética do futuro,
podendo assumir a plenitude de ser e ter or-
gulho da sua descendência africana.
No tempo em que os seres humanos mo-
ravam nas árvores e conversavam com
elas5, os mais antigos nos contam que
Oduduwa, orixá patrono da criação da
Terra, vivia em seu palácio na cidade
de Ifé, na Nigéria, de onde se originam
a cultura nagô e as linhagens reais dos
diversos reinos do império nagô.
Oduduwa ficou muito doente e, se não
fosse logo cuidado, poderia ficar cego.
Ah! Se isso acontecesse, a existência es-
taria toda em perigo! O ânimo de todo o
povo de Ifé era a esperança de encontrar
a Folha da Vida, único remédio, planta sa-
grada que representa descendência, reno-
vação, cuja seiva permitirá que o Rei Odu-
duwa recupere a visão e a força da vida.
Mas não é fácil encontrar a folha da
vida! A hierarquia do palácio convoca
os caçadores experientes, que conhecem
bem as matas e florestas, mas infeliz-
mente eles não conseguem encontrar a
folha da vida.
Se abate por toda Ifé muita angústia e
tristeza, pela situação da saúde de Odu-
5 É assim que os/as mais antigos/as costumam transmitir saberes aos/às mais novos/as nas comunidades de matriz africana. as histórias, contos, cantigas, parábolas, provérbios são anunciados com essa introdução, carregada de poesia mítica, demonstrando que o conhecimento a ser transmitido vem de tempos imemoriais, isto é, desde que o mundo é mundo.
96
duwa, que a cada dia se agrava. O Baba-
lawô, que é um sacerdote iniciado nos
mistérios oraculares e capaz de indagar
sobre o futuro, sabe que a folha da vida
é a única solução, e diante da situação
abre seu coração e indaga:
“Quem pode encontrar? Quem sabe re-
conhecer uma coisa em outra? Quem
sabe adivinhar o que não se vê e não se
toca? Quem pode sentir o impossível?
Quem?”
Diante dessas indagações apresenta-se
o jovem Ajaká, o primogênito, o primei-
ro neto do rei Oduduwa. Sabe aquele
adolescente, cheio de si e destemido?
Pois é! Ajaká é assim, e se oferece con-
fiante para ajudar Oduduwa, e com isso,
assegurar a continuidade e dinâmica da
transcendência que envolve o mistério
da existência na Terra.
Ajaká é capaz de dar continuidade, ex-
pandir e recriar os valores inaugurais
legados dos ancestrais. Ele é uma repre-
sentação mítica do orixá Ogum, que é
desbravador, caçador, e conhecedor pro-
fundo da floresta.
Será imerso a esse mundo sobrenatural
e de mistério que Ajaká faz a sua inicia-
ção da adolescência para se tornar um
adulto. Durante esse período de busca
pela folha da vida, absorve conhecimen-
tos ancestrais infinitos, contidos princi-
palmente na floresta.
no seu encontro no coração da floresta com
a Iya mi Agbá, a mãe ancestral, ela o orienta
dizendo-lhe que:
“(...) terá de aprender em seu próprio
corpo. Com a cabeça, com as mãos, com
os pés e o coração. Ori, Okan, ese, e òwo.
Com o estômago, com as vísceras, com
a saliva, o esperma e o sangue, com a
pele e o pensamento. A Folha da Vida
está em alguma parte, em qualquer lu-
gar no mais profundo recanto da flores-
ta, na zona mais difícil e oculta.”
Depois de beber o vinho da palmeira,
Ajaká torna-se irmão de Aroni, o orixá
das folhas, que também o orienta: “Você
pode aprender os mistérios das folhas,
das raízes, das flores e dos frutos, os
mistérios que eu sei, os mistérios que eu
sou. Você, meu irmão, pode aprender a
multiplicar, você pode aprender a eter-
nidade... As plantas podem curar, pro-
teger e revelar uma nova sabedoria, um
conhecimento infinito.”
Em Aroni, Ajaká identifica o saber so-
bre as plantas, a medicina, o segredo
da luz que abraça cada semente, grãos,
pétalas, fibra vegetal. Mas Ajaká desco-
bre que todo o conhecimento que Aroni
detém de reconhecer esse repertório so-
97
bre a flora não abrange a folha da vida e
nem mesmo sabe onde ela está.
Mais uma vez, Aroni ensina a Ajaká que
os mistérios da vida não estão apenas
nas plantas, ele terá que aprender muito
em seu próprio corpo.
“Os mistérios da vida estão em outros
pontos da natureza, como em certas
partes animais. Para sabê-los você terá
de aprender a transformar-se em bicho.
Mas este é um segredo profundo, e agu-
do como a ponta do espinho, um segredo
das mães ancestrais.”
Assim, Ajaká invoca outra vez a mãe an-
cestral Akalá, e diz a ela da necessidade
de conhecer o corpo dos bichos. Akalá o
previne de que ele poderá, ou não, saber,
e pede-lhe que imagine a estranha, mas
maravilhosa inteligência do macaco, que
é o guardião da ancestralidade, o que
fala com os mortos. E como a Folha da
Vida encontra-se muito longe de onde
eles estavam, Akalá recomendou-lhe:
“Você precisa da força do búfalo, da fe-
rocidade e da agilidade da pantera; e da
serpente, que lhe dirá como é possível re-
nascer, renascer, renascer... Você será se
souber a mágica multicor do camaleão...
O macaco fala com os mortos, os que sa-
bem; Egun, Egun, Egun. O corpo do ma-
caco é feito de dor, dor, dor...”
E lá se vai Ajaká. Transformou-se doloro-
samente em macaco, e agora é capaz de
encontrar Egunguns, os espíritos ances-
trais.
Ajaká sabe que a Folha da Vida se en-
contra no ponto mais secreto da parte
desconhecida da floresta, a região mais
escura e úmida, a mais sagrada, protegi-
da pelos espíritos que impedem a passa-
gem. E pergunta aos Eguns como pene-
trar nessa região.
Os Eguns acolhem a pergunta de Ajaká.
De repente, um forte ciclone o leva para
os recônditos da floresta. Assim Ajaká se
aproxima da folha da vida, que fica quie-
tinha, escondidinha observando a apro-
ximação de Ajaká. Diante do silêncio da
folha da vida, que não se revela imedia-
tamente , Ajaká canta para ela:
“Ewê ê asa kojé
ewê gbogbo ni segun
ewê ê asá kojé tantan
ewê gbogbo ni ti tôrisá!
Folha da Vida!”
A folha da vida, revelando-se, responde:
“Encontre-me, ofereço-me àquele que
pode levar a vida aos olhos do Rei. Só um
descendente indicado pelo ixé, demons-
trando bravura, persistência, sabedoria
98
e imensurável amor pelos ancestrais
sabe utilizar e honrar o que lhe é dado.
Sou a cura, a descendência e a renova-
ção, sou o que não pode ser encontrado
senão por aquele que venceu todos os
sofrimentos e dissolveu os obstáculos,
grande aprendiz, grande iniciado!”
E assim, Ajaká retorna ao palácio de
Oduduwa para devolver a visão e a exis-
tência ao orixá patrono da Terra.
Ajaká retorna um homem depois de todo
o processo de iniciação vivido na flores-
ta. É um Ser em permanente mutação.
“(...) Forte como um búfalo, veloz como
a pantera, leve como um pássaro, com
os sentidos de camaleão, o instinto do
peixe, mais sábio que o macaco e senhor
do segredo que se instala em cada plan-
ta, em cada semente.”
Por esse amor e fidelidade ao ancestral,
Ajaká recebe a espada Agadá, que lhe dá
o poder de desbravamento, e recebe o
título de Awasoju, o que vai à frente de
tudo e de todos.
o conto de ajaká, que adaptamos para os
propósitos desta série, nos leva a destacar
valores singulares da civilização africana.
Princípios como a fidelidade, o amor, o res-
peito aos mais velhos, aos ancestrais, à hie-
rarquia e os valores inaugurais da existência
estão presentes no conto.
todo o conhecimento – a aquisição de sa-
beres e/ou aprendizagem – é interdinâmico,
interpessoal; é necessária a presença do ou-
tro para que se estabeleça a linguagem, a
comunicação com sua riqueza de códigos e
formas de expressão. É um conhecimento
vivo e direto.
ajaká é a extensão da floresta, da natureza e
de seus mistérios. todas as outras formas de
existência presentes no aiyê, mundo visível.
mas ajaká também interage com o mundo
invisível, o orun, o que permite a completu-
de da sua iniciação. ajaká sabe e compreen-
de que a natureza não pode ser reduzida a
objeto, à manipulação e à exploração inces-
sante do homem. ele aprende na e com a na-
tureza. a natureza não é matéria-prima para
manufatura, submetida ao lema de “ordem
e progresso” do mercado capitalista.
a riqueza do conhecimento adquirido por
ajaká, na trajetória de sua iniciação, trans-
cende o comportamento ascético e inerte do
corpo, onde apenas a relação olho-cérebro é
permitida, como enfatizam os currículos es-
colares. apela-se para todos os sentidos do
corpo. o corpo é movimento, pulsão, vida!
a aprendizagem é permitida por essa intera-
ção profunda e singular entre a humanidade
e a natureza.
ajaká não se caracteriza como um desbrava-
dor ganancioso da “conquista” dos segredos
e mistérios da natureza, submetendo-a aos
seus caprichos.
99
seu objetivo não é ascensão individual.
ajaká busca, de forma exuberante, a con-
tinuidade da vida, da existência do seu con-
tinuum civilizatório e comunalidade, da
preservação e expansão dos princípios ori-
ginais da existência, para que esse mundo
não se acabe.
como awasoju, aquele que vai na frente de
tudo e de todos, ajaká abre caminhos, per-
mitindo aos seus descendentes o legado dos
seus ancestrais, da dinamização dos princí-
pios cósmicos da existência à pulsão de so-
ciabilidade e comunalidade.
a folha da vida, como motivação iniciáti-
ca de ajaká, representa metaforicamente a
África viva contemporânea em cada um de
nós. retomemos uma passagem do mito,
em que o babalawô, diante da situação, diz
e indaga:
A Folha da Vida é a única solução. Quem
pode encontrar? Quem pode reconhecer
uma coisa em outra? Quem sabe adi-
vinhar o que não se vê e não se toca?
Quem pode sentir o impossível?
ajaká se atualiza e vive intensamente no co-
ração daqueles que acreditam que a educa-
ção merecida pelas nossas crianças e pelos
jovens e adultos deve ter a pulsão de um
repertório iniciático de aprendizagem e ela-
boração de conhecimento, cuja dinâmica
é envolta pela busca da folha da vida, que
metaforicamente usamos aqui para repre-
sentar a África, sua transcendência e a infi-
nitude de (re)criações contemporâneas nas
américas, principalmente no brasil, a nossa
floresta simbólica.
nas comunalidades tradicionais da bahia,
nossas crianças aprendem e elaboram co-
nhecimentos e expressam esses universos,
característicos do pensamento africano e
suas atualizações nas américas, através da
vivência e convivência com orikis, contos,
instrumentos percussivos, cujos toques
falam/comunicam/relatam histórias que
anunciam os primórdios da humanidade,
indicando princípios ético-estéticos para
que o corpo comunitário se expanda e dê
continuidade aos elos de ancestralidade
que projetam e anunciam a áFRiCA vivA,
tRAnSCEnDEntE.
relativizar é o que propomos! não podemos
colocar um “manto de ferro” nas crianças
que vivem imersas em territorialidades que
têm outros valores radicalmente distintos
da territorialidade imposta pelo mundo im-
perialista representado pela História e pela
geografia civilizatórias européias.
o que propomos, como educadores(as), é a
legitimação das várias tradições africanas
que constituem a formação social brasilei-
ra, nos currículos da educação Infantil, en-
sino Fundamental e ensino médio, evitando
o recalque perverso que tende a impor às
nossas crianças e aos nossos jovens apenas
a versão neocolonial sobre África.
100
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américas e sua contribuição para elaborar-
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101
v. DIvERSIDADE éTNICO-RACIAL NO CURRÍCULO ESCOLAR DO ENSINO FUNDAmENTAL1
Véra Neusa Lopes2
na vida fora da escola, ninguém tem dúvida
de que, no brasil, convivem pessoas de di-
versas origens étnicas. basta que tenhamos
um olhar atento para os que estão à nossa
volta, para os que aparecem nos jornais, re-
vistas, programas e noticiários de televisão.
sabemos que as diferenças existem, vemos
que somos diversos, mas não estamos, na
maioria das vezes, educados para perceber
o quanto estas diferenças influenciam e de-
terminam os modos de vida das pessoas e
fazem com que as mesmas venham a ocupar
posições distintas na esfera socioeconômica
e a desempenhar papéis também distintos
que, secularmente, são indicativos de quem
é quem na sociedade brasileira. estudos do
Ibge e do censo escolar apontam para esta
diversidade, indicando que quase metade da
população em geral e da população escolar,
respectivamente, é composta por negros
(pretos e pardos).
o relatório de Desenvolvimento Humano de
2005, por sua vez, aponta que os negros estão
pouco representados entre juízes, desembar-
gadores, procuradores, defensores públicos,
na máquina administrativa do estado, nos ni-
chos de mercado mais valorizados, enfim em
todas as posições de poder. Isto nos mostra
que a sociedade trata diferentemente aqueles
que não pertencem ao grupo hegemônico e
não se enquadram nas normas estabelecidas
por esse mesmo grupo. os que se encontram
na base da pirâmide social (e aí estão indíge-
nas e negros em sua maioria) são geralmente
discriminados, enfrentando dificuldades na
afirmação de sua identidade (pessoal, cultu-
ral e nacional), não conseguindo exercer em
sua plenitude a condição de cidadão brasi-
leiro. a invisibilidade com que a diversidade
étnico-racial é considerada torna-se danosa à
democracia brasileira, pois impede a promo-
ção da igualdade racial.
1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 3.
2 especialista em Planejamento educacional, licenciada e bacharel em ciências sociais. Integrante do coletivo estadual de educadores negros aPns/rs do regional sul 3 da cnbb. Integrante do gt Programa de educação anti-racista no cotidiano escolar da ProreXt/ uFrgs. membro da caDara/ mec – comissão técnica nacional de Diversidade para assuntos relacionados à educação dos afro-brasileiros.
102
esta diversidade de que estamos falando
está presente, também, na escola, muito
embora nem sempre isto seja objeto de pre-
ocupação por parte das autoridades educa-
cionais, gestores escolares e professores. É
urgente pensar e promover mudanças em
direção a uma escola cidadã, comprometi-
da com os direitos humanos e a construção
de identidades que respeitem a contribuição
de cada grupo étnico para a formação da
sociedade brasileira. a lei n. 10.639 de 2003,
que alterou a lei de Diretrizes e bases da
educação nacional ao incluir os artigos 26-a
e 79-b, veio nesta direção ao contemplar, em
caráter obrigatório, a inclusão no currículo
escolar da história da África e dos africanos,
da luta dos grupos negros no brasil, da cul-
tura negra brasileira e do negro na forma-
ção da sociedade nacional, em especial, mas
não exclusivamente, nas áreas de educação
artística, literatura brasileira e História do
brasil. o art. 79-b introduz, no calendário
escolar, o dia 20 de novembro como Dia na-
cional da consciência negra.
a resolução cne/ cP 1/ 2004, que institui as
Diretrizes curriculares para a educação das
relações Étnico-raciais e para o ensino de
História e cultura afro-brasileira e africana,
enfoca dois campos de objetivos, em tudo
relacionados à questão da diversidade: a)
o da educação das relações Étnico-raciais
– divulgar e produzir conhecimentos, bem
como atitudes, posturas e valores que edu-
quem cidadãos quanto à pluralidade étnico-
-racial, tornando-os capazes de interagir e de
negociar objetivos comuns que garantam, a
todos, respeito aos direitos legais e valoriza-
ção de identidade, na busca da consolidação
da democracia brasileira; b) o do ensino de
História e cultura afro-brasileira e africana
– reconhecer e valorizar a identidade, a histó-
ria e a cultura dos afro-brasileiros, bem como
garantir o reconhecimento e a igualdade de
valorização das raízes africanas na nação bra-
sileira, ao lado das indígenas, européias e asi-
áticas. configura-se, assim, uma política de
estado, cuja duração transcende à política
de governo. estes dois artigos vieram para
ficar e serem cumpridos.
ao longo dos anos, os currículos foram sen-
do construídos, tendo por base um modelo
eurocêntrico, o que significa ter tomado o
homem branco como referência para a cons-
trução das propostas de ensino e aprendiza-
gem. Quem não atende aos requisitos desse
modelo constitui-se num problema para o
sistema escolar.
tomar consciência de que o brasil é um país
multirracial e pluriétnico e, portanto, re-
conhecer e aceitar que, nesta diversidade,
negros e indígenas também desempenham
papéis relevantes e substantivos, são apren-
dizagens que precisam ser realizadas e que
convergem para a educação das relações
étnico-raciais porque, conforme expressa o
Parecer cne/cP 3/2004, esta educação pode
oferecer conhecimentos e segurança para ne-
103
gros orgulharem-se de sua origem africana;
para os brancos, permitir que identifiquem as
influências, as contribuições, a participação e
a importância da história e da cultura dos ne-
gros no seu jeito de ser, viver, de se relaciona-
rem com as outras pessoas.
o processo educativo, que viabiliza essas
aprendizagens essenciais para a construção
da identidade e formação do cidadão, encon-
tra embasamento nos princípios da consci-
ência política e histórica da diversidade, do
fortalecimento de identidades e de direitos,
das ações educativas de combate ao racismo
e às discriminações, também apontados no
mesmo Parecer.
a escola de ensino Fundamental, ao tratar
da questão da diversidade étnico-racial e
propor e executar medidas de implementa-
ção dos artigos 26-a e 79-b, cumpre a parte
que lhe toca nos compromissos de estado
assumidos pelo brasil, enquanto signatário
de tratados internacionais de combate às di-
ferentes manifestações de racismo, discrimi-
nação e preconceito raciais, comprometen-
do-se a construir uma democracia em que as
pessoas possam usufruir, em sua plenitude,
a condição de cidadãos, independentemente
de raça/ etnia, cor, posição e papel social, re-
ligião, gênero. a instituição escolar tem, as-
sim, de criar mecanismos e instrumentos de
uso permanente, via projeto político-peda-
gógico e currículo, para intervir na realidade
que exclui o negro (pretos e pardos), bem
como os indígenas, entre outros, do acesso
aos direitos humanos fundamentais. assim,
tem de colocar, necessariamente, a diversi-
dade étnico-racial como conteúdo escolar e
dar a esse conteúdo o tratamento adequado.
Para tanto, deve constituir-se em ambiente
educativo, acessível à comunidade à qual
serve, em que se respeita o outro, em que
se dá visibilidade a todos, combatem-se as
discriminações, busca-se eliminar os pre-
conceitos e são desfeitos os estereótipos,
estimulando a auto-imagem e a auto-estima
positivas e promovendo a igualdade étnico-
-racial, pelo reconhecimento da diversidade
e pela desconstrução das diferentes formas
de exclusão.
AlguMAS POSSiBiliDADES
a implementação da lei está longe de ser
concluída. em alguns lugares sequer come-
çou. É preciso avançar na tarefa de sensibi-
lização das pessoas para que se interessem
pelo assunto para a fase de comprometi-
mento dos profissionais da educação com
o cumprimento dos artigos 26- a e 79-b da
lDb, o que envolve profundas mudanças nas
estruturas organizacionais, administrativas
e pedagógicas das escolas, que vão dos pro-
jetos político-pedagógicos, currículos e pla-
nos didático-pedagógicos à gestão de pes-
soas, com base em princípios e valores que
regulam a educação das relações humanas e
os estudos de história e cultura afro-brasilei-
104
ras e africanas, permeando todas as áreas do
conhecimento escolar.
todos da comunidade escolar estão convida-
dos a fazer parte do mutirão (pixurum) de
transformação dessa escola de que estamos
falando, ao abrir espaço para que, no estudo
da diversidade étnico-racial, seja oportuni-
zado o trato das questões afro-brasileiras e
africanas, de modo explícito e em igualdade
de condições com as demais etnias, de sorte
que todos venham a respeitar o afro-brasi-
leiro em suas especificidades e a valorizar
a contribuição do negro na formação da
sociedade brasileira. o que se tem de fazer
deverá ser fruto de uma construção coletiva
envolvendo toda a comunidade escolar.
estão todos chamados a colocar a sua inte-
ligência, saberes e habilidades a serviço da
construção de uma ampla proposta, fruto
de muitas cabeças e muitas mãos. cada es-
cola tem de definir esse processo. como su-
gestão, vale a pena lembrar o que se segue:
PARA A ESCOlA DE EnSinO
FunDAMEntAl
• constituir-se em espaço privilegiado de
inclusão, colocando em prática uma pe-
dagogia multirracial e interétnica, de res-
peito e valorização da diversidade étnico-
-racial da sociedade brasileira, voltada
para a formação do cidadão, direcionada
ao combate de todas as formas de discri-
minação, de eliminação dos preconceitos
e dos estereótipos, em que são estimula-
das a auto-imagem e a auto-estima posi-
tivas, em que são criadas condições de vi-
sibilidade do afro-brasileiro e do indígena;
• chamar a comunidade escolar e do en-
torno – por meio de suas legítimas re-
presentações, incluindo organizações
afro-brasileiras – para a reconstrução do
projeto político-pedagógico e da proposta
curricular, de modo que fique assegurado
o reconhecimento e o resgate da história
e cultura afro-brasileiras e africanas, em
todas as séries oferecidas, como condição
indispensável para a construção da iden-
tidade brasileira;
• criar condições para exercitar uma rela-
ção de ajuda e partilha, de modo que to-
dos possam se apropriar, em igualdade de
condições, da história, dos saberes e faze-
res dos diferentes grupos étnicos forma-
dores da sociedade brasileira;
• Possibilitar uma nova concepção de mun-
do, alicerçada em valores que favoreçam
uma relação fraterna e igualitária entre as
pessoas, observadas e respeitadas as espe-
cificidades dos grupos étnico-raciais e das
culturas a que pertencem;
• organizar, coletivamente, uma rede temá-
tica sobre história e cultura afro-brasilei-
ras e africanas, que permita o desenvol-
vimento de conteúdos (atitudes, valores,
conceitos e procedimentos), ao longo de
105
toda a escolaridade oferecida pelo ensi-
no Fundamental. Por exemplo: negros
na África, africanos no mundo, africanos
no brasil e seus descendentes brasileiros;
trocas entre comunidades negras ao redor
do mundo: afro-brasileiros na África e no
mundo; presença africana no brasil atual;
presença negra na comunidade local, e na
comunidade escolar.
• construir coletivamente recursos que,
abordando a diversidade, deem visibilida-
de à história e à cultura afro-brasileiras e
africanas, como: calendário étnico, con-
templando vultos africanos e afro-descen-
dentes, com a inclusão de 20 de novem-
bro, como Dia nacional da consciência
negra; mostra fotográfica que evidencie a
contribuição dos negros na comunidade;
sarau cultural, apresentando manifesta-
ções da cultura afro-brasileira; exposição
de documentos e outras formas de regis-
tro sobre a cultura afro-brasileira.
PARA PROFESSORES E AlunOS
• colocar em prática comportamentos e
posturas que possibilitem viver numa
sociedade democrática, aprendendo a se
ver, a ver o seu entorno, de modo objetivo
e crítico, a comparar o hoje com outros
tempos e lugares, a observar permanên-
cias e transformações e a identificar o
quanto isso afeta a vida do homem.
• aprender a valorizar pessoas, povos e na-
ções, num combate permanente às ideias
preconceituosas, às ações discriminató-
rias, às manifestações racistas.
• Desenvolver ações que possibilitem o
aprender uns com os outros e uns dos
outros, pondo em prática verdadeiras co-
munidades de aprendizagem, construindo
progressivamente a noção de identidade
nacional, pessoal e cultural, bem como o
sentimento de pertencimento ao país.
Por oportuno, destacamos a seguir alguns
procedimentos pedagógicos possíveis de
serem adotados em sala de aula de classes
de séries ou ciclos iniciais do ensino Funda-
mental. tais procedimentos levam em conta
que é a pessoa na sua integralidade (corpo,
mente e emoção) que aprende, destacam a
importância do trabalho coletivo e em gru-
po e propõem a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade como formas adequa-
das de tratamento das questões de diversi-
dade e da história e culturas afro-brasileiras
e africanas.
• criar situações que despertem o interes-
se das crianças para a questão das seme-
lhanças e diferenças entre os integrantes
da classe, incluindo o(a) professor(a). Por
exemplo: reunir as crianças em roda para
conversarem sobre cada um, explorando
perguntas tais como Quem sou? e Como
sou?. Pedir que uma criança comece ou,
106
se for muito difícil, iniciar pela professo-
ra, que se apresentará, dando seu nome,
idade, endereço, filiação, nacionalidade,
origem étnica, preferências. observar a
reação das crianças, especialmente quan-
do disser qual é a sua origem étnico-ra-
cial. exercitar com as crianças, nessa oca-
sião, que pode estender-se por vários dias,
a oralidade, a observação, a escuta. Dar
tempo para que todos se apresentem.
• Propor a realização do auto-retrato, a par-
tir da observação da própria imagem re-
fletida no espelho. analisar com as crian-
ças a fidedignidade do auto-retrato.
• solicitar que os alunos tragam para classe
uma fotografia recente. observar com as
crianças as fotos uma a uma. tirar, depois,
uma foto coletiva e observar a diversida-
de existente em classe, incluindo a diver-
sidade étnico-racial. examinar fotos mais
antigas de outros grupos conhecidos. Dis-
cutir com os alunos a contribuição das
pessoas para o bem-estar da comunidade,
incluindo a escolar. construir um registro
coletivo.
Pedir ajuda aos pais ou responsáveis, para
que as crianças possam fazer um retrato fa-
lado de si mesmas. usar, em sala de aula, o
espelho para as crianças se descobrirem e
fazerem o seu retrato usando a linguagem
gráfica.
• Propor aos alunos que, aos pares, se ob-
servem e expressem oralmente como
vêem o parceiro. em roda, pedir que des-
crevam os colegas e a professora. comen-
tar as falas.
• conversar com as crianças sobre o fato
de, embora sendo de mesma nacionalida-
de, as pessoas podem ser de origem étni-
co-racial distinta. trabalhar as noções de
diversidade étnico-racial, nacionalidade,
naturalidade, ascendência, descendência.
• ajudar os alunos a identificarem seme-
lhanças e diferenças, quanto às origens,
às nacionalidades, ao modo de vestir, ao
modo de falar, ao modo de ser, aos hábi-
tos alimentares, aos costumes e tradições.
valorizar a presença dos mais velhos.
• trabalhar com as crianças outras lingua-
gens além da verbal, por meio das quais
podem expressar seus conhecimentos,
sentimentos e expectativas, a aceitação
ou rejeição do outro. trabalhar com brin-
cadeiras e jogos, cantigas e contos que va-
lorizem a diversidade cultural.
• orientar a produção coletiva para socia-
lização dos saberes. organizar o espaço
para valorizar a diversidade étnico-racial
e cultural existente na sala de aula.
• o desafio está posto! você é convidado(a)
a participar. o brasil precisa de você! en-
107
tre na roda, e juntos(as) busquemos en-
contrar as saídas para mudar esse país, a
partir da educação escolar, especialmente
no ensino Fundamental.
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108
vI. O LEgADO AFRICANO E A FORmAÇÃO DOCENTE1
Marise de Santana2
intRODuÇÃO
em todo o brasil, a alteração da lDb n.
9.394/96, primeiro com os Parâmetros cur-
riculares nacionais – Pcn e, em seguida,
oficialmente pela lei n. 10.639/2003, mexeu
com valores enraizados na educação. valo-
res de uma ciência que negou e silenciou
nos currículos escolares narrativas de gru-
pos considerados minoritários como, por
exemplo, o africano e seus descendentes.
essa educação de exclusão levou os afro-bra-
sileiros a desconhecerem e negarem suas
pertenças africanas.
Hoje, muitos de nós, brasileiros, em diver-
sas áreas do conhecimento, sentimos como
necessário abraçar as políticas de ações
afirmativas para descendentes de africanos
implementadas pelo governo Federal, a fim
de que possamos desenvolver atividades que
fortaleçam a identidade negra, através de
uma educação da pertença afro-brasileira.
tendo este objetivo em mente, atualmen-
te coordeno um programa de trabalho que
abarca: cursos de extensão em “educação e
culturas afro-brasileiras” e outro em pós-
-graduação lato sensu em “antropologia com
Ênfase em culturas afro-brasileiras”. Faz
parte deste programa o grupo de pesquisa
certificado pelo cnPq que oferece, para a
comunidade da região do sudoeste da bahia,
estudos abertos sobre o tema, bem como
eventos periódicos. também temos um pro-
jeto já aprovado pelo mec/unIaFro para
implantar um acervo com material biblio-
gráfico, documental, cartográfico e com pe-
ças das culturas africanas e afro-brasileiras.
vale salientar que estudos vários sobre as
culturas brasileiras apontam a construção
de um imaginário do povo brasileiro, edu-
cado para valorizar elementos culturais e
raciais que se enquadrem nas categorias
branca e cristã. tal formação torna-se desa-
fio para a educação brasileira, isso porque
1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasleiro – 2006 / Pgm 4.
2 Professora adjunta do Departamento de ciências Humanas e letras da universidade estadual do sudoeste da bahia. coordenadora do oDeere - Órgão de educação e relações Étnicas com Ênfase em culturas afro-brasileiras da uesb / Jequié.
109
os/as docentes foram formados/as para en-
tender o legado africano como saberes do
mal, saberes de culturas atrasadas e pré-ló-
gicas, repercutindo nos currículos escolares
com uma carga preconceituosa que gera as
discriminações. assim, neste texto, temos
como objetivo apresentar algumas ativida-
des didáticas, com conteúdos antropológi-
cos das culturas africanas e afro-brasileiras,
fruto de estudos realizados em pesquisas
para mestrado, doutorado e também de ex-
periências como coordenadora e professora
no curso de extensão em “educação e cultu-
ras afro-brasileiras” da universidade estadu-
al do sudoeste da bahia, para professores/as
que atuam com a disciplina “História e cul-
tura africana e afro-brasileira”, já implanta-
da nos currículos de algumas poucas escolas
públicas nesta região.
o curso de extensão objetiva que professores
desenvolvam atividades metodológicas com
saberes das culturas afro-brasileiras. nesta
perspectiva, estuda-se sobre a antropologia
dos povos africanos e afro-brasileiros, levan-
do-se em consideração seus mitos e saberes
populares, bem como seus símbolos, a partir
de suas formulações simbólicas. assim sen-
do, nosso objetivo é relatar as etapas do cur-
so e as respectivas atividades desenvolvidas,
além de indicar caminhos que viabilizem um
acervo didático teórico / prático de relevân-
cia para o trabalho docente no espaço da
sala de aula.
A DESAFRiCAniZAÇÃO COMO
COntEúDO EDuCAtivO
É sabido que os portugueses incluíram, em
sua agenda de explorar comercialmente as
terras das américas, intensificar o movimen-
to de cristianização, sobretudo depois da re-
forma Protestante. Primeiro pela catequese
e, depois, pela alfabetização, tanto um pro-
cesso como o outro buscava “recuperar” cul-
turalmente os povos considerados pagãos.
mazzoleni (1992) nos lembra que, mesmo
considerando o trabalho forçado e a vio-
lência padecida pelos índios, não se pode
esquecer que o comércio de escravos teve
como objeto os negros, e que aos mesmos
era negada sua condição de humanos. Desde
o início, o europeu rejeitou a cultura do ín-
dio, mas não rejeitou sua natureza humana.
“Do africano, ao contrário, o europeu rejeita
a inteligência e não só a cultura como a na-
tureza humana (...)”3
no século XvIII e XIX, afirmava-se a impos-
sibilidade de recuperar culturalmente os de
pele preta. mazzoleni nos diz que carlos li-
neu, ao catalogar as espécies vivas, distin-
gue o Homo sapiens do Homo afer (ou seja:
africano). voltaire, defensor da poligênese
humana, considera possível uma hierarquia
estável entre as raças, o que expressava nes-
te raciocínio:
3 mazzoleni (1992). p. 61-62.
110
“A distinção entre selvagens recupe-
ráveis e seres impermeáveis à cultura
acabava criando um grave embaraço ao
espírito ecumênico do Ocidente cristão
(herdeiro entre outras coisas do antro-
pologismo helênico e do universalismo
‘civil’ romano): se os negros não eram
passíveis de cultura, tampouco o eram
de evangelização: mas isso teria dimi-
nuído irrecuperavelmente a missão da
Igreja” (p.65-66).
Pensando na relação entre Homo sapiens e
Homo afer, que se estabeleceu durante toda
a escravidão, mazzoleni diz que a possibi-
lidade de recuperar culturalmente o Homo
afer é cogitada porque a europa passa a vê-
-lo como Homo religiosus. Para o ocidente
cristão, o outro, que é o africano, seria co-
optado para ser o eu cristão. segundo ele:
“O africano, portanto, de ser (mais ou
menos humano) que vivia nas trevas (de
satanás) passou a viver na luz (do Se-
nhor) e tomou progressivamente toda
uma série de conotações, digamos inter-
mediárias, que não serviam a uma con-
traposição com o homem racional (bran-
co), que escolheu a luz da razão e as
explicações da ciência humana” (p.72).
assim, desde a colonização européia, o que
se buscava para o africano era que o mesmo
tivesse uma identidade cristã, embora lhe
fosse negada a humanidade. sendo assim,
vai dizer mazzoleni: “Pode-se falar, portan-
to, de uma monocultura cada vez mais ex-
tensa, na medida em que as classes dirigen-
tes dos países “ocidentais” agem de acordo
com uma orientação comum, utilizando
meios de persuasão cada vez mais eficazes
(...)” (p. 74).
essa persuasão passa pelo que Paulo Freire
chama de Pedagogia do oprimido, através da
qual se estabelece uma relação entre opres-
sor/oprimido. sobre essa relação binomial,
mazzoleni também vai dizer: “o componen-
te cristão da civilização ocidental, contudo,
está tentando uma recuperação de sua ‘mis-
são’, dirigindo-se aos oprimidos em nome
da mensagem cristã e atuando, portanto,
numa mediação das duas oposições”4.
na década de 90, a nova lei de Diretrizes e
bases da educação n. 9.394/96 traz para si a
reflexão oficializada acerca dos preconceitos
e das discriminações com a diversidade cul-
tural presente no espaço da escola, quando
propõe que o trabalho docente tome como
base os conteúdos dos Parâmetros curricu-
lares nacionais.
os Parâmetros curriculares sugerem que os
docentes atuem com uma proposta de res-
peito às diversidades existentes no espaço
4 mazzoleni (1992). p. 76.
111
da sala de aula, diversidades estas compos-
tas de docentes e alunos que diferem em
suas formas de ver, sentir, pensar, comer e
cultuar seus deuses.
em trabalho para dissertação de mestra-
do, pesquisando docentes de 1ª a 4ª séries,
constatei que a formação e o trabalho de-
senvolvido por esses profissionais esta-
va entre o querer e o não saber lidar com
uma educação multicultural, por conta de
sua formação monocultural. ao tomar seus
depoimentos sobre a diversidade, eles nos
mostraram que a tradição em que foram
formados argumentava sobre a diversidade
de modo muito inadequado.
conforme dados de depoimentos, verifica-
mos que a orientação para o trabalho pe-
dagógico baseava-se numa formação mani-
queísta. Detectamos que os/as professores/
as abordavam os elementos culturais de
outros grupos étnicos, especialmente a re-
ligião, enquanto dimensão cultural, com
argumentações preconcebidas pelas catego-
rias branca e cristã, tal qual transcrevemos
nos dois depoimentos abaixo, retirados da
dissertação mencionada:
“Acho que Orixás são Espíritos e Buda
é uma estatuazinha gorda que se bota
de costas num lugar que chama dinhei-
ro (...). Deus, ele é único, é o único Deus
que existe, agora Buda e os outros eu
não considero como Deus, de forma ne-
nhuma e não acho que devem ser cultu-
ados como Deus, como deuses, ou como
falsos deuses.”
no depoimento a seguir, outra professora
afirma:
“Candomblé é alguma coisa que nós,
negros, trazemos no sangue, na alma,
sei lá... mas acho que isso pende mui-
to para o lado ruim (...) já sonhei com
o preto velho e contei para minha mãe,
no dia seguinte ela me levou a uma casa
de candomblé, porém ela me pediu mil
segredos, ela é católica; se a igreja sou-
besse que ela foi nesse lugar (...)”.
assim, apontamos como conclusão da dis-
sertação de mestrado defendida na Puc/sP,
que a formação monocultural dos docentes
dificultava um trabalho multicultural, devi-
do ao fato de suas mentalidades estarem es-
truturadas pela lógica do “bom senso”5.
ter “bom senso” é saber coisas que pessoas
com “bom senso” sabem, é não falar coisas
que pessoas com “bom senso” não falam;
portanto, se a representação mental religio-
sa de uma comunidade se estrutura no cris-
5 este termo é utilizado por geertz (1997) para falar sobre o bom senso que autoriza os membros de uma comunidade a se declararem ou não de uma religião que não seja a tradicional. o bom senso também autoriza se os membros da comunidade devem ou não dissimular ou discriminar os pertencimentos do “outro”.
112
tianismo, pessoas de “bom senso” devem
falar em cultuar o deus cristão e não deuses
outros.
em função destes resultados na pesquisa
de mestrado, busquei investigar, no dou-
torado, o legado africano e a Formação e
trabalho Docente. o objetivo deste estudo
foi entender como a escola, enquanto es-
paço institucional nascido do primeiro pa-
radigma da educação jesuítica, lidava com
as culturas africanas, em especial com a
religião, enquanto dimensão da cultura
afro-brasileira. constatei que esta institui-
ção é partícipe na perpetuação do conflito
entre religião de matriz africana e outras
religiões. esse conflito fica estabelecido a
partir das concepções e sentidos construí-
dos pelos(as) professores(as) entre si e com
os(as) alunos(as), sobre os símbolos do le-
gado africano por eles/elas divulgados, equi-
vocadamente, em seu trabalho, como sabe-
res do mal, saberes de culturas atrasadas e
inferiores, “folclore”. assim, aponto a teia
de relações em que o legado cultural africa-
no se insere junto aos valores presentes nas
diversas denominações religiosas e como
isto se configura no discurso da escola.
CuRSO PARA A EDuCAÇÃO DA
PERtEnÇA AFRO-BRASilEiRA
as constatações acima descritas forneceram
subsídios para elaboração de uma proposta
de curso para professores(as) da região do
sudoeste da bahia, visando que os mesmos
se embasem de conhecimentos sobre as te-
máticas das culturas africanas e afro-brasi-
leiras, conforme descreverei a seguir.
o curso de extensão, de 180 horas, inicia-se
com um estudo das “teorias antropológi-
cas e Questões educacionais”. este estudo é
proposto em função de compreender que a
antropologia tem uma dívida histórica com
o africano, uma vez que ela nasce no sécu-
lo XIX reafirmando o modelo maniqueísta
e monocultural do ocidente, que distingue
europeus e africanos pelas categorias: supe-
rior e inferior; lógicos e pré-lógicos; civiliza-
dos e atrasados. Portanto, as grandes ideias
pedagógicas do século XX nasceram influen-
ciadas por essas categorias, o que evidente-
mente interferiu no espaço da escola.
o que se tem, no momento histórico em
que os jesuítas foram os primeiros profes-
sores e após sua expulsão, é uma orientação
que segue o paradigma da educação evan-
gelizadora. esse paradigma aponta para va-
lores elaborados pela racionalidade de parâ-
metros definidos pelo colonizador europeu,
buscando civilizar os povos através da “re-
cuperação cultural”. Portanto, foi entendido
que o processo de “recuperação cultural” do
africano deveria ser feito através da evange-
lização, fosse pela Igreja ou pelo sistema de
ensino.
113
o movimento de higiene mental organizado
na américa do norte pelo “comitê nacional
de Higiene mental”, em 1909, pretendeu dar
continuidade a esse processo. em 1923, gus-
tavo riedel funda a “liga brasileira de Higie-
ne mental”. assim, no brasil, na década de
30, ao tempo em que se reivindica “educa-
ção Para todos”, um avanço para a época,
uma das grandes preocupações do Prof.o
anísio teixeira era de instalar, nas escolas
do Distrito Federal, um serviço de Higiene
mental, para erradicar a identidade cultural
“daqueles que frequentavam as macumbas
e os centros de feitiçaria”, gente considera-
da pelos higienistas como “grupos sociais
atrasados em cultura”.
acreditando que a escola deveria fornecer
àqueles que participavam da macumba uma
“mentalidade civilizada”, uma “mentalidade
lógica”6, o higienista arthur ramos afirma:
“Assim, para a obra da educação e da
cultura, é preciso conhecer essas moda-
lidades do pensamento ‘primitivo’, para
corrigi-lo, elevando-o a etapas mais
adiantadas, o que só será conseguido
por uma revolução educacional que aja
em profundidade, uma revolução ‘verti-
cal’ e ‘intersticial’ que desça aos degraus
remotos do inconsciente coletivo e sol-
te as amarras pré-lógicas a que se acha
acorrentado.” (p. 23)
essas ações pedagógicas, que alicerçaram
as políticas educacionais no brasil, tiveram
como objetivo homogeneizar e aniquilar as
diferenças culturais. arthur ramos (1955) vai
dizer que o movimento de higiene mental
era necessário para trabalhar a mentalidade
“pré-lógica” de “povos primitivos e sobrevi-
ventes dos meios atrasados em cultura, que
vivem entre nós, os homens da civilização
ocidental”.
sobre as políticas higienistas, luz (2000) vai
dizer que, nesse mesmo pacote de desafri-
canizar, o Prof.o Isaias alves, fundador dos
centros de Pesquisa Psico-Pedagógicas do
tradicional colégio Ypiranga na bahia, apli-
ca o teste de inteligência e concebe como
estratégia política educacional a extinção
das línguas africanas no brasil.
arthur ramos, enquanto comportamenta-
lista, vai dizer que “o homem é produto de
sua civilização e da sua sociedade”, por isso,
interessa para a higiene mental estudar os
fatores sociais e culturais que condicionam
o mesmo. Para ele, o movimento de Higie-
6 no século XIX, l. lévy-bruhl deu o nome de lei de participação ao “princípio próprio da mentalidade primitiva que rege as ligações e as pré-ligações das representações coletivas” (ramos, 1988, p.207). ramos nos diz que, para lévy-bruhl, segundo a lei de participação na mentalidade primitiva, seres, objetos, fenômenos podem emitir forças, qualidades ações místicas, sem deixarem de ser quem e o que são. a essa mentalidade ele chamou de pré-lógica. ainda nos diz ramos que pré-lógica não pode ser entendida como anterior no tempo, “mas pelo fato de ela não se adstringir ao nosso pensamento, de se abster da contradição”.
114
ne mental deve pedir auxílio à sociologia e à
antropologia cultural, pois “o indivíduo vive
em círculos de sociedade: de família, de reli-
gião, de partido político (...). a higiene men-
tal investiga todos esses fatores, penetrando
‘intersticialmente’ na sua urdidura íntima”.
Daí ele salientar que não todas, mas algumas
religiões, são nefastas, e assegura:
“Já temos mostrado, em mais de um tra-
balho, os perigos dessa mentalidade pré-
-lógica, no Brasil, denunciando certos fe-
nômenos de feitiçaria, baixo-espiritismo,
demonopatias e outros, e sua nefasta
influência na formação da personalida-
de”7.
ao falar das religiões de povos com “menta-
lidade pré-lógica” e classificar essas religiões
como nefastas, com fenômenos de “demono-
patias”, tal preconceito ensinou para os(as)
professores(as), ao longo da história da edu-
cação, que o modelo oficial de escola não
deve tomar os saberes do legado africano.
na segunda etapa do curso, é feito um es-
tudo sobre a “antropologia das Populações
afro-brasileiras”. estuda-se sobre o legado
africano como um conjunto de saberes de
uma matriz não ocidental cristã, que trans-
cende o espaço dos terreiros. esses saberes
estão na base das culturas entendidas por
mircea eliade (1992) como culturas tradi-
cionais, arcaicas ou “primitivas”, as quais
na própria forma de apreender a realidade
diferenciam-se das culturas modernas.
a terceira etapa8 é um estudo sobre a “His-
tória cultural da África Pré-colonial”, bus-
cando entender os impérios, reinos e civili-
zações africanas antes da colonização. este
estudo é de fundamental importância para
o entendimento da dança, festas, músicas;
assim como o próprio cotidiano, permea-
do de elementos sacralizados, os quais, no
brasil, foram denominados de religiões afro-
-brasileiras.
na quarta etapa9 nos ocupamos de um estu-
do sobre a Diversidade linguística dos grupos
Étnicos africanos que vieram para o brasil.
sobre a diversidade dos grupos étnicos, ver-
ger (2002), falando sobre a tomada da bahia
na primeira invasão holandesa, em 1624, nos
informa que havia naquele momento predo-
minância da importação de africanos bantos,
pois havia, no porto da bahia nessa época,
seis navios vindos de angola com um total de
1.440 escravos, contra um único navio com
28 escravos vindos da guiné.
7 ramos (1955), p.29.
8 esta etapa é ministrada pela professora mestranda silene arcanjo, Historiadora, consultora do oPoXorÔ / bahia.
9 etapa ministrada pelo Prof Dr manoel soares sarmento, linguista do Departamento de ciências Humanas e letras da universidade estadual do sudoeste da bahia.
115
entre 1641 e 1648, angola permanece nas
mãos dos holandeses, que cortam o rea-
bastecimento de escravos de lá provenien-
tes. estes fatos nos permitem pensar que
os bantos foram os primeiros negros expor-
tados em grande quantidade para a bahia.
nos três primeiros quartos do século XvIII,
porém, o tráfico de escravos em direção à
bahia já vinha da costa da mina e, entre 1770
e 1850, incluindo o período do tráfico clan-
destino, vinha da baía de benin. “a chegada
dos daomeanos, chamados Jejes no brasil,
fez-se durante os dois últimos períodos. a
dos nagôs Iorubas corresponde ao último”.
assim sendo, verger vai nos dizer que, nos
arredores da bahia, como por exemplo, na
vila de são Francisco do conde, cidade do
recôncavo baiano, em 1830 é constatada
uma maciça presença de nagô Ioruba, em
função do que passam a predominar suas
crenças e costumes em detrimento das dos
africanos bantos.
estes dados nos oferecem subsídios para
pensar sobre a diversidade de línguas, cren-
ças, saberes, enfim, de elementos culturais
dos africanos.
na quinta etapa10, desenvolve-se um estudo
sobre as “linguagens visuais, simbolismos e
culturas afro-brasileiras”. eliade (1991) nos
diz que “(...) as pesquisas sistemáticas sobre
o mecanismo das mentalidades primitivas
revelam a importância do simbolismo para
o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo,
seu papel fundamental na vida de qualquer
sociedade moderna”. segundo ele, o resta-
belecimento do símbolo enquanto forma de
conhecimento é uma reação “(...) contra o
racionalismo, o positivismo e o cientificis-
mo do século XIX e já basta para caracterizar
o segundo quarto do século XX” (p. 5-6)
sobre os problemas ligados ao estudo do
simbolismo e de suas interpretações, elia-
de (1991) ainda chama a atenção para o fato
de que a forma de conhecimento e atuali-
zação de um símbolo não é mecânica: “ela
está relacionada às tensões e às mudanças
da vida social; em último lugar, aos ritmos
cósmicos”. o julgamento e o sentido inter-
pretativo de um símbolo dependem do vivi-
do. assim, não há como um símbolo possa
esgotar, para os diferentes julgamentos, o
seu sentido interpretativo.
byington (1996), buscando elaborar uma “Pe-
dagogia simbólica”, chama a atenção para
que se pense na problemática da educação
brasileira baseada no modelo da cultura oci-
dental. também nesta etapa nos ocupamos
de um estudo de antropologia interpretati-
va, com geertz (1978).
10 etapa ministrada pelos seguintes professores: Dr edson Dias Ferreira, cientista social – antropologia das linguagens visuais. Departamento de letras e artes da universidade estadual de Feira de santana. Professor mestrando lucio andré andrade. coordenador da divisão de Diversidade cultural da Prefeitura municipal da cidade de candeias / bahia.
116
Já a sexta etapa, ocupa-se da Didática para o
ensino de culturas afro-brasileiras. segundo
brandão (1995), por todo o período da colo-
nização européia na américa latina, o pa-
radigma eclesiástico se fez presente através
do monopólio da Igreja católica, portanto,
nesta etapa busca-se entender essa forma-
ção que tem orientado o processo ensino-
-aprendizagem ao longo da história da edu-
cação brasileira através de um saber - fazer
que discrimina outras culturas, especial-
mente as africanas.
na sétima etapa, o objetivo é coletar dados,
visitando espaços de culturas afro-brasilei-
ras, tais como: casas de matriz religiosa afri-
cana; museu afro-brasileiro, em salvador; e
casas de benin e angola, em salvador. visi-
tam-se as cidades de Jequié, cachoeira, são
Francisco do conde e outras, com o objetivo
de enxergar a presença do legado africano.
ainda nesta etapa, os/as participantes do
curso, em um texto, articulam os dados co-
letados durante as visitas e as histórias de
vida. com isso, é esperado que eles e elas
busquem lidar com seu próprio processo
histórico-cultural, dando visibilidade aos
preconceitos e discriminações enraizados
em sua formação, assim como, possivel-
mente, possam superar alguns.
nas etapas 1, 2 e 6 do curso, nas quais as
atividades didáticas ficam sob minha res-
ponsabilidade, busco operacionalizar técni-
cas que viabilizem os métodos expositivos,
reprodutivos e de soluções de problemas;
assim, desenvolvo as seguintes atividades:
• análises de filmes e documentários (Kiri-
ku, Amistad, Negro fugido, Orixás, coleção
do correio da bahia, entre outros), com o
objetivo de que as imagens sensibilizem
os indivíduos e permitam-lhes localizar
memórias negadas e silenciadas histori-
camente.
• análises de mitos para compreensão da
estrutura histórico-cultural dos africanos
na África Pré-colonial;
• oficinas com conteúdos dos mitos africa-
nos e afro-brasileiros, levando os partici-
pantes do curso à reflexão acerca de seus
conhecimentos, com narrativas monocul-
turais etnocêntricas;
• utilização de músicas com palavras de
línguas africanas, traduzindo as mesmas
com o auxílio de dicionários. vale salien-
tar que esta atividade é de muita impor-
tância, uma vez que ao tempo que educa
os ouvidos para ouvir palavras de línguas
africanas, também desmistifica a ideia
de que as diversas línguas da África são
dialetos (“dialeto” no sentido de “língua
corrompida”; e não no sentido linguístico
de “variação de uma língua”), conforme
narrativas discriminatórias sobre o conti-
nente africano.
• Interpretação antropológica de textos
musicais e literários com temáticas afri-
117
canas e afro-brasileiras. estes textos sem-
pre trazem elementos culturais, possibi-
litando uma educação de símbolos e de
processos simbólicos.
COnSiDERAÇõES FinAiS
salientamos que tanto nos estudos de mes-
trado e doutorado, como nas várias etapas
do curso, percebemos que desenvolver ativi-
dades com os/as professores/as é uma tarefa
difícil, pois eles/elas são conhecedores/as de
conteúdos de normas, valores da escola, mas
também são conhecedores/as dos conteúdos
doutrinários de suas religiões. Pude perceber
a dimensão da distância que esses docentes
colocam entre sua identidade religiosa e o
papel de respeito à diversidade no âmbito do
seu trabalho docente.
não podemos esquecer que o respeito à di-
versidade passa pelas leituras de outras reali-
dades, com informações desprovidas da car-
ga de preconceitos e de discriminação sobre
o outro. consorte (2003), em um artigo numa
revista de ensino religioso, afirma que desde
que a antropologia surgiu, na metade do sé-
culo XIX, seu grande desafio foi o de compre-
ender o fenômeno da diversidade humana.
ela nos lembra que os mitos dos mais diferen-
tes grupos humanos são registros que reco-
nhecem a diversidade. entretanto, assegura
que a diversidade não é percebida como ri-
queza da humanidade “(...) ela é geralmente
percebida como grave ameaça externa (...).
o ‘outro’ é aquilo que nós não somos. ele co-
loca em xeque a nossa verdade, questiona os
nossos valores, relativiza a nossa identidade.
É preciso desqualificá-lo” (p. 9). consorte
ainda nos lembra que essa desqualificação
passa historicamente pelo etnocentrismo e
que “a partir dos nossos modos de ser, fazer
e sentir” pode emergir o preconceito. assim:
“O preconceito é a atitude que, tributá-
ria do etnocentrismo, se forma a partir
das representações que construímos em
relação aos outros, informadas pelas
nossas referências (...); a discriminação
é o comportamento efetivo traduzido
em ações que põem em prática o pre-
conceito e que nos levam a negar ao ou-
tro aquilo que queremos só para nós, a
excluí-lo das oportunidades que estão ao
nosso alcance, mas às quais ele não deve
ter acesso” (p.10).
a reflexão elaborada feita até o presente
momento nos leva a perceber que existe
a falta de articulação entre teoria e práti-
ca na formação docente, isto porque nós,
professores(as) de um brasil colonizado por
europeus, colocamos entre parênteses nos-
sa pertença africana e repetimos a nossas
crianças o que nos foi ensinado, que essa
pertença é demoníaca, atrasada e inferior.
Perdemos o orgulho de ser como nossos an-
cestrais, auto-sustentáveis, dependentes da
natureza, do cosmo.
118
REFERênCiAS
consorte, Josildeth gomes. Diversidade
humana: Fonte de riqueza ou ameaça? DIÁ-
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agosto de 2003.
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de liliana laganà e Hylio laganà Fernandes;
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Paulo: Instituto Italiano di cultura di san Pa-
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Trabalho Docente: novos e velhos Desafios.
são Paulo: Puc- sP, 1999.
119
vII. AS RELAÇõES éTNICO-RACIAIS, A CULTURA
AFRO-BRASILEIRA E O PROjETO POLÍTICO-PEDAgógICO1
Lauro Cornélio da Rocha2
APRESEntAÇÃO
ao pensarmos a relação da população negra
com o estado brasileiro, percebemos que,
desde a época da escravidão, foi marcada por
pressão por parte da população negra e dese-
jos de regulação por parte do estado. Havia
– e há – sempre, uma lei, tendo como pers-
pectiva controlar, estabelecer diálogo com a
comunidade e/ou atender a reivindicações.
Isso aconteceu com a primeira lei antitrá-
fico (1831); com a lei euzébio de Queiroz
(1850); com a lei do ventre livre (1871); com
a lei do sexagenário (1886); com a lei Áurea
(1888); com a lei afonso arinos (1951); com
a lei caó (1985); com a constituição Fede-
ral (1988); com a lei de Diretrizes e bases da
educação nacional (1996) e tantas outras
leis ordinárias que incluem o tema.
aqui não se trata de negar a perspectiva le-
gal implementada pelo estado e por sucessi-
vos governos. Porém, necessariamente, para
ser aplicada, uma lei depende da efetivação
de políticas públicas e da transparência na
aplicação de recursos.
a educação tem se configurado, nos últimos
anos, como área importantíssima na dis-
cussão das relações étnico-raciais no brasil.
este texto se propõe a discutir – ainda que de
forma sintética – o papel da lei n. 10.639/03
e das Diretrizes curriculares nacionais para
a educação das relações Étnico-raciais, que
são fundamentais no processo de mudança
das relações no espaço educacional e, con-
sequentemente, pontuar o projeto político-
-pedagógico como expressão do ser e do fa-
zer coletivo das escolas, inerente, portanto,
ao processo do ensinar-aprendendo e apren-
der-ensinando.
PEnSAnDO A lEi n. 10.639/033
a lei n. 10.639/03 se constitui num impor-
tante mecanismo de promoção de igualda-
de étnico-racial no ambiente escolar. como
1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 5.
2 mestre em História econômica – usP. coordenador Pedagógico da rede municipal de são Paulo.
3 lei de 09/01/2003. Inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira” e dá outras providências.
120
considerações iniciais, é preciso pontuar que
ela altera a lei de Diretrizes e bases da edu-
cação nacional, ao mesmo tempo em que
busca superar alguns obstáculos: pretende
superar a visão negativa sobre os africanos e
seus descendentes, construída ao longo dos
tempos no brasil; coloca a questão referente
aos africanos e afro-brasileiros como ques-
tão nacional; pretende ressaltar positiva-
mente a participação da população negra na
construção da história do brasil, quebrando
a lógica eurocêntrica na produção e difusão
do conhecimento; articula-se ao rol de polí-
ticas de ação afirmativa e, por fim, pretende
possibilitar a permanência bem sucedida da
população negra na escola.
o fato de ser quase consensual uma lacu-
na na formação inicial que é ministrada nas
universidades, faculdades e cursos de for-
mação permanente e continuada, no que se
refere à história da África e à cultura afro-
-brasileira, nos permite afirmar que a traje-
tória da educação no brasil nega a existência
do referencial histórico, social, econômico e
cultural do africano e não incorporou conte-
údos afro-brasileiros nas grades curriculares
escolares e, embora tenhamos muita notícia
de discriminação racial nas escolas, quando
há um processo de acusação por racismo,
a tendência é culpar os vitimizados pela
opressão sofrida.
Desde o início, o movimento negro busca
traçar políticas de combate à discriminação
racial e reparação de desigualdades na edu-
cação. o salto qualitativo dado ao longo dos
anos deveu-se principalmente a: a) ação de
educadores(as) negros(as), que colocaram
a discussão nos programas de suas disci-
plinas ou em atividades culturais; b) mais
recentemente, negros(as) nas estruturas
governamentais iniciaram um processo de
discussão e proposições; c) organizações
não-governamentais negras e não-negras,
em vários estados da Federação, promo-
vem ações para promoção da igualdade ra-
cial e sistematizam as produções nacionais
existentes; d) centros e núcleos de estu-
dos africanos e afro-brasileiros, dentro das
universidades, que se propõem a fomentar
a discussão nos seus espaços, com resulta-
dos significativos; e) Professores, em várias
universidades, têm constituído grupos de
pesquisa ou fomentado em seus alunos o
desejo ou necessidade de ampliar os hori-
zontes de pesquisas, tendo as relações étni-
co-raciais como foco.
essas e outras ações fizeram, sem dúvida,
com que a segunda lei aprovada pelo gover-
no lula fosse voltada à promoção da igual-
dade no sistema educacional.
a preocupação que se explicita quanto à
implementação da referida lei se coloca em
torno da criação de alternativas para forma-
ção, nas redes de ensino. neste momento,
são fundamentais a sensibilização de mem-
bros das secretarias de educação e a lucidez
para buscar parcerias com pessoas e organi-
121
zações com trajetória histórica na discussão
do tema das relações étnico-raciais.
também ressalto algumas preocupações e
desafios que têm muito a ver com a forma
com que as pessoas compreendem a educa-
ção no brasil. as preocupações se referem
ao pensamento de pessoas que ocupam po-
sições estratégicas nas secretarias de educa-
ção de estados e municípios, com os quais
temos dialogado. algumas pessoas têm di-
ficuldade de entender a proposta da lei e de
uma educação para promoção da igualdade
étnico-racial. seus pensamentos, na verda-
de, se parecem muito com o pensamento de
educadores(as) das redes de ensino.
alguns dizem que a lei vem realçar o que já
era feito nas escolas, que esse tipo de ensino
já existia, mas não com força de lei. Dizem
que a questão discriminatória nasce na so-
ciedade, não na escola, e que a sociedade
teria outros mecanismos para reduzir o ra-
cismo, não só no setor educacional.
outros afirmam que a lei é desnecessária,
por já ser tratada a história e a cultura afri-
canas nos currículos... e, portanto, que isso
é redundância.
uma outra preocupação é a compreensão
de currículo presente na lei. Quando se fala
em colocar os estudos prioritariamente em
educação artística, literatura e História,
está explícito que currículo se confunde com
grade curricular, o que é um equívoco, do
meu ponto de vista. no meu entendimento,
currículo é a totalidade das relações que se
estabelecem nas escolas, independentemen-
te do espaço ser a sala de aula, quadra, aten-
dimento na secretaria, sala dos professores
ou horário do recreio. se, acreditamos que o
racismo está presente na escola, esse espa-
ço não é neutro, ele se manifesta também
nas relações estabelecidas pela comunidade
escolar.
ainda sobre currículo, podemos dizer que a
rede tenha avançado, do ponto de vista de
ser uma construção coletiva, mas o foco
ainda é a experiência dos educadores, base-
ada em livros didáticos. Dessa forma, pouca
importância é dada ao território, à troca de
experiência com colegas e não são privile-
giadas as vivências dos alunos e da comu-
nidade.
PEnSAnDO AS DiREtRiZES
CuRRiCulARES nACiOnAiS
PARA EDuCAÇÃO DAS RElAÇõES
étniCO-RACiAiS E PARA O
EnSinO DE HiStóRiA E CultuRA
AFRO-BRASilEiRAS E AFRiCAnAS4
as Diretrizes, construídas a partir de con-
sulta a grupos de movimento negro, con-
4 Parecer nº 003/2004 de 10/03/2004. aprovado pelo conselho Pleno do conselho nacional de educação.
122
selhos estaduais e municipais de educação,
organizações da sociedade civil, militantes
e intelectuais, colocam como alvo central a
formação dos professores e a mudança da
qualidade social da educação. Destinam-se
aos sistemas de ensino, universidades, fa-
culdades, educadores, educandos e familia-
res, enfim, a todos os comprometidos com a
educação no brasil.
a proposta fundamental das diretrizes é a
construção da igualdade étnico-racial no
brasil. aqui não se trata de atribuir ao pre-
sente a culpa pelo passado, mas de dizer que
todos somos responsáveis – independente
de sermos negros ou negras – por ajudar na
superação do preconceito, discriminação e
racismo.
o grande determinante das diretrizes é tra-
balhar a consciência histórica e política da
diversidade, buscando ampliar o foco do
currículo, promovendo ações de igualdade
étnico-racial e fortalecendo identidades.
É, portanto, compromisso de todos os edu-
cadores dar visibilidade às Diretrizes, exigin-
do dos governos a efetivação da resolução
n. 01/2004, da lei n. 10.639/03 e a disponibi-
lização de bibliografia étnico-racial, além de
realizar atividades e projetos estabelecendo
parcerias com entidades que possam contri-
buir para este trabalho.
É necessário que o educador, como media-
dor do processo de transformação escolar,
atue contra a exclusão e pela promoção da
igualdade racial. ao olhar a escola e a sala
de aula, ele assume o compromisso de ul-
trapassar o limite das ações pontuais e fa-
zer com que as políticas educacionais de
promoção da igualdade façam parte das
discussões sobre reorientação curricular,
formação permanente e projeto político-
-pedagógico.
PEnSAnDO O PROjEtO
POlítiCO-PEDAgógiCO
o projeto político-pedagógico se constitui
como elemento norteador do ser e do fa-
zer da escola. na verdade, é um conjunto
de relações a partir das quais o educador
e a comunidade “lêem” a si mesmos e ao
mundo num processo relacional. ao educar
o olhar e a escuta para o mundo, a nação, a
cidade, o bairro, a rua, a escola e a sala de
aula processam suas sínteses, questionam
o exercício do poder, as situações de afetivi-
dade, as vivências das diferenças, situações
de conflito, a solidariedade, a cooperação e
a justiça.
o projeto político-pedagógico, nas suas
duas dimensões – o político e o pedagógi-
co – se constitui numa ação intencional,
com compromisso explícito assumido cole-
tivamente, reafirmando a intencionalidade
da escola: incluir todos os integrantes da
mesma num processo de transformação da
realidade.
123
ele concretiza não só a prática pedagógica,
mas também a dinâmica do cotidiano esco-
lar, onde toda a comunidade educativa assu-
me, nos seus projetos de trabalho e planos
de ensino, um compromisso radical contra
os preconceitos, as discriminações e o racis-
mo.
neste sentido, questões étnico-raciais, de
gênero, de sexualidade, entre outras, não
podem ficar de fora do projeto político-
-pedagógico, sob pena de a escola não se
pensar e compreender-se como espaço de-
mocrático, plural e fundamental na atuação
contra a exclusão.
COnCluSÃO
a educação é base para construção de uma
sociedade democrática, com oportunidades
reais de inserção no mercado de trabalho
determinadas em parte pelo grau de instru-
ção.
É necessário que os educadores assumam
o compromisso de ultrapassar o limite de
ações pontuais para fazer com que, no coti-
diano das escolas, as políticas educacionais
de promoção da igualdade racial façam par-
te do projeto político-pedagógico.
É importante discutir e viabilizar propostas
concretas de mudança da mentalidade ra-
cista da sociedade brasileira, formular proje-
tos visando erradicar o racismo nas escolas
e na sociedade e trabalhar para a melhoria
de condições de vida de todos. a luta pelo
investimento na educação básica, quer em
políticas de formação permanente e conti-
nuada, quer no fortalecimento de práticas
democráticas na gestão escolar, deve ser
uma constante.
Por fim, gostaria de propor algumas estra-
tégias que poderão contribuir ou auxiliar na
implementação da lei, tendo como referên-
cia as Diretrizes e como fundamento o pro-
jeto político-pedagógico da escola:
• a construção de materiais pedagógicos e
curriculares contra-hegemônicos. a res-
peito disso, temos algumas experiências
bem sucedidas em várias secretarias de
educação e organizações não-governa-
mentais que trabalham com educação ou
ligadas ao movimento negro.
• Incorporar uma concepção de educação
humanizadora, com base na desconstru-
ção de conteúdos e práticas racistas e na
divulgação de experiências bem sucedi-
das de educadores e educandos que pro-
movam a igualdade racial no ambiente
escolar. essas experiências contribuem
para que se estabeleça um referencial me-
todológico no processo de Formação Per-
manente de educadores e reorientação
curricular;
• ultrapassar o limite de ações pontuais
para fazer com que, no cotidiano das es-
124
colas, as políticas de promoção da igual-
dade racial façam parte do currículo, dos
processos de formação e da construção
do projeto político-pedagógico escolar.
• Programas de formação inicial e perma-
nente nas instituições de ensino que atu-
am nos níveis e modalidades da educação
brasileira;
• Promoção, pelos sistemas de ensino, de
cursos, projetos e programas de formação
para equipes de gestão e educadores(as),
estabelecendo canais de comunicação
com o movimento negro, grupos cultu-
rais, instituições formadoras de professo-
res, núcleos de estudos e pesquisas, orga-
nizações não-governamentais, buscando
subsídios para os projetos político-peda-
gógicos das unidades escolares e movi-
mento curricular, no sentido da perma-
nência bem sucedida da população negra
nas escolas.
PEnSAnDO AS AtiviDADES/
PROjEtOS
a ideia é propor atividades/projetos que
possam ser realizados nas escolas de ensi-
no Fundamental, eJa e ensino médio. alerto
que não acredito em ações pontuais, restri-
tas a determinado dia, ou momento de sala
de aula, ou comemoração especial. conside-
ro essas ações tranquilizadoras de consciên-
cia, como por exemplo: “Já trabalhei: em 08
de março, discuto a questão da mulher, em
19 de abril, discuto a questão do índio, em
13 de maio ou em 20 de novembro, discuto
a questão do negro. não quero mais pensar
sobre isso!”
ao formular um projeto para trabalho na
escola, alguns cuidados devem ser tomados
no planejamento:
• envolver várias áreas de conhecimento;
• relacioná-lo na proposta pedagógica da
escola, no sentido de adquirir cumplicida-
de da escola como um todo na realização;
• contar com o apoio de organizações, pes-
soas e entidades que tenham acúmulo de
conhecimentos no tema a ser trabalhado;
• Definir os objetivos de forma explícita, sa-
ber onde se quer chegar com o projeto/
atividade;
• Pensar todos os passos no desenvolvi-
mento, bem como as formas de envolver
a comunidade educativa;
• estabelecer critérios de avaliação que da-
rão possibilidade de continuidade ou redi-
mensionamento da proposta;
• Definir prazos para realização da ativi-
dade/projeto, sempre tentando fugir de
ações pontuais que, de forma geral, não
trazem mudanças de comportamento;
125
• tratar de desmistificar preconceitos, dis-
criminação e/ou racismo, ter potencial de
replicabilidade (poderá ser realizada em
outras realidades, com possibilidade de
sucesso).
• Por fim, apresentaremos uma atividade/
projeto, como exemplo.
PROjEtO RAiZ5
Professora: Luzinete Araújo Benedito da
Silva
Contexto
a experiência Projeto Raiz foi desenvolvida de
maio de 2002 a abril de 2004, na emeF madre
maria Imilda do santíssimo sacramento, na
cidade de são Paulo (sP). atingiu aproxima-
damente 80 alunos com idade média de 14
anos. as principais áreas do conhecimento
envolvidas na experiência foram educação
artística, História, educação Física, língua
Portuguesa, geografia, sociologia e antro-
pologia.
Objetivos
conhecer, valorizar, difundir e resgatar a
cultura afro-brasileira. buscar ações trans-
formadoras, por meio da arte, da cultura e
da formação, para que se possa iniciar um
processo de mudança e participação efe-
tiva dos alunos e, consequentemente, da
comunidade. Dar oportunidade aos alunos
de participarem de atividades que envolvam
várias manifestações culturais: dança afro,
percussão, excursões a centros culturais
onde se conheça a cultura e história afro-
-brasileiras. trabalhar contra qualquer for-
ma de discriminação, pela liberdade, plu-
ralismo cultural, diversidades, igualdade e
respeito. Desenvolver o espírito participa-
tivo, responsável, crítico, cooperativo, soli-
dário, coletivo, e de respeito às diferenças.
apontar caminhos que levem à não-violên-
cia e à integração social. envolver a comu-
nidade para que se sinta corresponsável e
parte integrante do projeto. criar espaços e
momentos de reflexão e sensibilização dos
alunos, professores e comunidade acerca da
questão do negro no brasil e demais temas
relacionados à desigualdade. resgatar a au-
toestima dos alunos e a identidade étnica
afro-brasileira.conscientizar os alunos para
assumirem responsabilidades, tendo noção
de grupo e percebendo que são parte inte-
grante na tomada de decisões. Integrar os
alunos participantes do projeto à sociedade,
para que não estejam sujeitos às desagrega-
ções familiares e sociais. resgatar valores
culturais e empregar a arte como veículo de
transmissão desses valores. Promover o con-
5 experiência premiada no 2º Prêmio educar para Igualdade racial – experiências de Promoção da Igualdade racial/Étnica no ambiente escolar, promovido pelo ceert, são Paulo, 2004.
126
tato com produções artísticas nas várias lin-
guagens expressivas. Incentivar a produção
artística de todos os alunos, ajudando-os a
desenvolver seu potencial, suas capacidades
e conhecimentos, para que possam contri-
buir como cidadãos críticos e criativos.
justificativa e planejamento
vivemos em um país em que a maioria da
população é composta por negros e afrodes-
cendentes. são mais de 70 milhões de pesso-
as, o que faz do brasil o maior país africano
fora da África (dados do Ibge – Instituto bra-
sileiro de geografia e estatística). Por isso
veio a preocupação de resgatarmos e difun-
dirmos a cultura negra como efetiva mani-
festação histórica. É inaceitável que em um
país com essas características, manifeste o
racismo e a discriminação social. Inaceitável
que haja desigualdades em todos os níveis e
instâncias.
a escola, como entidade que visa à trans-
formação, à formação e à integração dos
indivíduos na sociedade, deve ter seu papel
de mediadora no processo de valorização e
difusão da cultura afro-brasileira, como for-
ma de recuperar a autoestima e a identidade
étnica. Percebendo nosso papel como edu-
cadores e agentes de transformação, tanto
na escola quanto na sociedade, nós nos sen-
timos corresponsáveis (com base no nosso
Projeto político-pedagógico) em trabalhar-
mos a proposta com a nossa comunidade.
Desenvolvimento de atividades
conteúdos das atividades: 1. Processo de
colonização brasileira; 2. negros da África
e do brasil: histórias, valores e culturas de
ontem e de hoje; 3. Identidade, africanidade
e resistência; 4. Processo de escravidão, eu-
rocentrismo e ideologia do branqueamento;
5. lutas e processos de liberdade / descons-
trução e autoestima; 6. lideres negros, mo-
vimento negro; 7. Questões sociais, políticas
e culturais que historicamente estão intrín-
secas nestes processos; 8. Diversidades, dife-
renças, discriminação, preconceito, racismo
(“os porquês”); 9. Produção cultural, lingua-
gens artísticas (música, poesia, literatura,
dança, teatro, artes visuais, artes plásticas,
entre outras); 10. religiosidade afro-brasilei-
ra e suas matrizes africanas; 11. Direitos, ci-
dadania, respeito; 12. leis do período de es-
cravidão e as atuais quanto ao racismo; 13.
Dinâmicas das atividades; 14. realização de
oficinas de dança afro e percussão; 15. gru-
po de formação envolvendo alunos, profes-
sores e comunidade participante; 16. Pales-
tras com a participação de especialistas em
vários temas; 17. reuniões com os pais dos
alunos envolvidos no projeto (no mínimo,
duas por ano).
“outras vivências”: 1. uma vez por mês, o
grupo recebeu um convidado que fez uma
oficina diferente, propiciando um novo
olhar e novas vivências; 2. atividades reali-
zadas nas salas de aula nas diversas áreas do
127
conhecimento (cada professor participante
foi responsável por ser o multiplicador dos
conteúdos e do projeto em cada sala que tra-
balhou); 3. apresentação de vídeos sobre te-
mas propostos; 4. visitações a lugares onde
se pôde aprofundar a cultura afro-brasileira;
5. Pesquisa contínua; 6. Painel permanente
com o conteúdo relacionado ao projeto, que
foi também um meio para formação e re-
flexão; 7. realização da semana da consci-
ência negra, além de várias intervenções no
espaço-escola, com o intuito de estimular a
participação e sensibilização; 8. leituras de
textos em grupo, debates e resumos.
Motivação e Participação do
Aluno
Despertamos o interesse e a curiosidade
dos alunos através da sensibilização. Por
exemplo, levamos para a escola um grupo
de dança afro da região. assim, iniciamos a
conversa e propomos as oficinas para que
eles participassem livremente aos sábados.
o diálogo também incluiu os colegas edu-
cadores, que manifestaram diferentes opini-
ões a respeito de discutir o preconceito no
ambiente escolar. algumas opiniões eram
preconceituosas.
também por parte dos alunos, os sentimen-
tos variaram. Houve quem se reconhecesse
na proposta, sentindo-se contemplado por
nós. Houve quem discriminasse, dizendo que
estávamos “fazendo macumba na escola”.
Houve quem se deixou levar pela força dos
tambores, que invadiam efetivamente aque-
le espaço. aos poucos, fomos arrancando as
amarras sociais e, por meio de leituras, dis-
cussões, dificuldades e resistências, fomos
incomodando e acomodando a situação.
Avaliação
nossos objetivos foram alcançados. eles se
refletiram nas atitudes dos nossos alunos,
em sua forma de argumentar e de se posi-
cionar diante das injustiças presenciadas
no dia-a-dia. observamos que a auto-estima
aumentou. Percebemos que os alunos se or-
gulharam ao dizer-se afro-brasileiros, que se
orgulharam do que são. alguns se tornaram
multiplicadores do que aprenderam nas ofi-
cinas. também recebemos o reconhecimen-
to da comunidade. Fomos chamados para
relatar nossa prática em um congresso mu-
nicipal e no Fórum mundial. utilizamos os
seguintes instrumentos de avaliação: relatos
verbais e escritos, questionários, conversas
com o grupo.
as dificuldades foram muitas: financeiras,
de falta de espaço, de carência de tempo,
de organização, de compreensão. todas elas
foram superadas, porque acreditávamos no
que fazíamos. a experiência implicou, des-
de o seu início, assumirmos determinadas
posturas na escola. não dá pra ficar “em
128
cima do muro”, temos que romper com os
esquemas enraizados em nossa vida. Pas-
samos por muitos momentos perversos de
preconceito, desde a piadinha até a ofensa
feita de forma direta por parte de alunos e
de professores.
algumas vezes entrávamos na sala de pro-
fessores negros para argumentar com os
alunos acerca da pertinência do nosso tra-
balho e esses professores não participavam
das discussões. Isto mostra como é eficien-
te a ideologia do branqueamento, pois até
mesmo alguns afrodescendentes evitam dis-
cutir esses temas.
o trabalho implicou a íntima mudança de
cada um de nós, pois também temos pre-
conceito, não somos os anjos da sabedoria,
imaculados. o Projeto raiz nos transfor-
mou, nos fez reavaliar nossas vidas, ações,
conceitos, “pré-conceitos”, posturas, atitu-
des, história, identidade, família. ele nos fez
enxergar o que fizeram conosco e o que efe-
tivamente não queremos ser.
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inDiCAÇÃO DE FilMES
Quanto vale ou é por quilo? Direção sergio
bianci, brasil, 2005. sinopse: Filme de ficção,
baseado num conto de Machado de Assis. O
filme traça um paralelo entre a vida no pe-
ríodo da escravidão e a sociedade brasileira
contemporânea, focalizando as semelhanças
existentes no contexto social e econômico das
duas épocas. A ação se desenrola nesses dois
períodos históricos, ao mesmo tempo. Ao tra-
çar esse paralelo entre o século XIX e o tempo
atual, o filme questiona até que ponto a estru-
tura da sociedade brasileira realmente mudou
da época colonial até hoje.
Quase Dois irmãos. Direção lucia murat,
brasil, 2005. sinopse: Retrata as diferenças
raciais vividas entre prisioneiros brancos (pre-
sos políticos) e negros (presos comuns) no pre-
sídio da Ilha Grande, nos anos 70. Miguel é um
Senador da República que visita seu amigo de
infância Jorge, que se tornou um poderoso tra-
ficante de drogas do Rio de Janeiro, para lhe
propor um projeto social nas favelas. Retrata
o abismo entre brancos e negros na sociedade
brasileira.
na Rota dos Orixás. Direção: renato barbie-
ri. sinopse: O documentário apresenta a gran-
de influência africana na religiosidade brasi-
leira, mostra a origem das raízes da cultura
jêje-nagô em terreiros de Salvador, que virou
candomblé, e do Maranhão, onde a mesma in-
fluência gerou o Tambor de Minas.
um grito de liberdade. Direção: richard at-
tenbourough, 1987. sinopse: Sobre a luta con-
tra o apartheid, na África do Sul, enfocada sob
o ponto de vista de um homem branco e de um
negro.
130
Além de trabalhador, negro. Direção: Daniel
brazil, brasil, 1989. sinopse: Filme didático,
que apresenta a trajetória do negro brasileiro
da abolição até os dias atuais.
vista a minha pele. Joel Zito araújo & Dan-
dara. brasil, 2004. sinopse: é uma paródia da
realidade brasileira, para servir de material
básico para discussão sobre racismo e precon-
ceito em sala de aula. Nesta história invertida,
os negros são a classe dominante e os brancos
foram escravizados.
Quilombo. Direção cacá Diegues. brasil,
1984. sinopse: num engenho de Pernambu-
co, por volta de 1650, um grupo de escravos
se rebela e ruma ao Quilombo dos Palmares,
onde existe uma nação de ex-escravos fugidos
que resiste ao cerco colonial, entre eles Gan-
ga Zumba, um príncipe africano. Tempos de-
pois, seu herdeiro e afilhado, Zumbi, contesta
as ideias conciliatórias de Ganga Zumba e en-
frenta o maior exército jamais visto na história
colonial brasileira.
131
B. EDuCAÇÃO inFAntil
I. vALORES CIvILIzATóRIOS AFRO-BRASILEIROS NA EDU-CAÇÃO INFANTIL1
Azoilda Loretto da Trindade2
a criança gozará de proteção contra atos
que possam suscitar discriminação racial,
religiosa ou de qualquer outra natureza.
criar-se-á num ambiente de compreensão,
de tolerância, de amizade entre os povos, de
paz e de fraternidade universal e em plena
consciência de que seu esforço e aptidão de-
vem ser postos a serviço de seus semelhan-
tes. (adotada pela assembléia das nações
unidas, de 20 de novembro de 19593)
este texto, que se propõe a falar sobre os
valores civilizatórios afro-brasileiros na edu-
cação Infantil, tem como ponto de partida e
está ancorado no princípio acima referido.
Propõe um diálogo em aberto, que precisa
ter continuidade no trabalho de cada pro-
fessor, propondo um compartilhar ideias,
no sentido amplo, com aqueles que fazem
o cotidiano escolar. cotidiano este entendi-
do como vibrante, como lugar de desafios,
inquietações, movimento, encontros e de-
sencontros, alegrias, emoções, prazeres,
desprazeres, produção de saberes, de co-
nhecimentos e de múltiplos fazeres. espaço
de pessoas buscantes, pesquisadoras da sua
própria prática.
apresentamos, de início, algumas explica-
ções, antes de darmos continuidade a este
diálogo:
1ª) ao destacarmos a expressão “valores
civilizatórios afro-brasileiros”, temos
a intenção de destacar a África, na sua
diversidade, e o fato de que os africa-
nos e africanas trazidos ou vindos para
o brasil e seus e suas descendentes
brasileiros implantaram, marcaram e
instituíram valores civilizatórios neste
país de dimensões continentais, que
é o brasil. valores inscritos na nossa
memória, no nosso modo de ser, na
nossa música, na nossa literatura, na
1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 2.
2 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ, organizadora desta coletânea.
3 http://www.fvt.com.br/declaracaouniversal.htm
132
nossa ciência, arquitetura, gastrono-
mia, religião, na nossa pele, no nos-
so coração. Queremos destacar que,
na perspectiva civilizatória, somos,
de certa forma ou de certas formas,
afrodescendentes. e, em especial, so-
mos o segundo país do mundo em
população negra.
a África e seus descendentes imprimiram
e imprimem no brasil valores civilizatórios
ou seja, princípios e normas que corporifi-
cam um conjunto de aspectos e caracterís-
ticas existenciais, espirituais, intelectuais
e materiais, objetivas e subjetivas, que se
constituíram e se constituem num pro-
cesso histórico, social e cultural. e apesar
do racismo, das injustiças e desigualdades
sociais, essa população afrodescendente
sempre afirmou a vida e, consequentemen-
te, constitui o/s modo/os de sermos brasi-
leiros e brasileiras4.
2ª) sobre a África, é bom destacar que é
um imenso continente, com 52 países,
com uma imensa e variada diversida-
de: política, econômica, social, cultu-
ral... e que, assim como podemos di-
zer que existem vários brasis no brasil,
existem várias áfricas na mãe África.
Fonte: www.paginas.terra.com.br/arte/
mundoantigo/africa
3ª) sempre cremos que é interessante fa-
lar do cotidiano para fazer formula-
ções. recentemente, ouvi uma senho-
ra reclamando que um dia na sua vida
foi discriminada por ser branca e isso
a indignou. afinal, como e por que
discriminá-la? alias, muitas pessoas
argumentam, baseadas em um único
exemplo da sua existência, o fato de
elas serem discriminadas, sobretudo
quando a discriminação vem da parte
daqueles que são, em geral, os mais
discriminados. outras pessoas desta-
cam outras formas de discriminação,
como que para amenizar a afirmação
do racismo e a discriminação, histó-
4 É bom dizer, para evitar as tradicionais inquietações quando se afirma a africanidade brasileira, que sabemos que somos um país plural, marcado por valores civilizatórios de outros grupos humanos, contudo, este não é o foco deste texto.
133
rica e atual, sofrida pelos negros e
negras. referem-se ao fato de que al-
guém pode ser discriminado por ser
gordo, por ser pobre, por ser feio, por
ser muito bonito, por ser, ou não, in-
teligente... e por aí vai.
uma pessoa adulta, em geral, fica arrasada
ao ser discriminada, sofre, se revolta, fica fu-
riosa, deprimida... enfim, tem várias reações.
agora, imaginemos um ser humano negro
de 0 a 6 anos de idade, uma criança negra
que é, numa sociedade racista, discrimina-
da 24 horas por dia e, muitas vezes, com o
silêncio omisso dos adultos, da professora.
essa criança tem que se sustentar sozinha
nestas situações. Infelizmente, ainda há
muita insensibilidade para com as crian-
ças negras. estas, ao serem discriminadas,
ficam acuadas, envergonhadas, inibidas em
denunciar. se essa é uma experiência muito
confusa para uma pessoa adulta, imagine-
mos para um ser humano de pouca idade,
uma criança de 0 a 6 anos. Professores e
professoras, acreditem, a criança pode não
saber expressar oralmente a discriminação,
mas ela sente, sofre, seu corpo fica marca-
do, com a discriminação e com a omissão,
com o silêncio conivente, com a falta de
acolhida do adulto que ela tem como refe-
rência no momento.
não é apenas motivo de negligência a dis-
criminação, o preconceito, o racismo com
relação às crianças negras. É também uma
insensibilidade, que está ancorada nos 312
anos oficiais de escravidão neste país e nos
117 anos de promulgação da lei Áurea. É
impressionante que, por muito tempo, nin-
guém se preocupou com a importância de
colocar, no acervo de brinquedos das crian-
ças da educação Infantil, bonecas e bonecos
negros, livros infantis com imagens e per-
sonagens negros em posição de destaque,
não ter mural com personagens negros, não
serem trabalhadas as lendas, as histórias e
a História africanas, entre outras formas de
afirmação de existência e de valorização dos
negros em nosso país. e essa insensibilida-
de está inscrita na nossa memória coletiva
de brasileiros e brasileiras, que vendiam
crianças negras, que abusavam das crian-
ças negras, que matavam crianças negras,
que impediam que as crianças negras fos-
sem amamentadas por suas mães. a história
parece que nos legou uma responsabilidade
social especial para com essas crianças. es-
pecial, pois temos que ter responsabilidade
social para com todas.
Para ilustrar que, para a cultura iorubá, to-
das as pessoas são divinas, traremos, um
conto5 que é emblemático do valor civiliza-
tório afro-brasileiro de aceitação das dife-
renças humanas:
5 recontado por Heloisa Pires lima em Histórias de Preta. são Paulo, cia. das letrinhas, 1998. p. 61.
134
(...) Olodumaré, que é um deus Iorubá,
quis criar a Terra e deu um punhado
dela, num saquinho, para Obatalá ir
criá-la. Antes de ir, Obatalá teria que
fazer a oferenda a Exu6, pois sem mo-
vimento não há ação. Obatalá, que é
muito velho, esqueceu e foi andando,
andando devagarinho, e no caminho
sentiu sede. Então viu uma árvore, des-
sas que têm água dentro, e parou, abriu
a planta e bebeu. Só que era uma bebida
que dava um pouco de tontura, e então
ele se deitou debaixo da árvore e acabou
dormindo.
Enquanto isso, Oduduá, que também
queria criar a Terra, fez as oferendas a
Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dor-
mir, achou que ele iria se atrasar muito,
pegou o saquinho e foi ele mesmo criar
a Terra. E criou.
Obatalá acordou e viu a Terra criada, e
foi reclamar para Olodumaré, que en-
viou e deu a ele barro, para que criasse
os homens na Terra. Obatalá foi e criou
os homens, mas de vez em quando to-
mava a bebida da árvore de que tinha
gostado, e ... não chegava a dormir, mas,
meio tonto, fazia uns seres humanos
meio tortinhos.
tECEnDO FAZERES E SABERES
AFRO-BRASilEiROS nA
EDuCAÇÃO inFAntil
“Cresci brincando no chão, entre formi-
gas. De uma infância livre e sem compa-
ramentos. Eu tinha mais comunhão com
as coisas do que comparação. Porque
se a gente fala a partir de ser criança,
a gente faz comunhão de um orvalho e
sua aranha, de uma tarde e suas graças,
de um pássaro e sua árvore.” manoel de
barros. In: Memórias Inventadas. a In-
fância.
vamos agora, pinçar alguns aspectos afro-
-brasileiros que consideramos caros à edu-
cação Infantil. alguns, pois há uma infini-
dade deles:
Principio do axé energIa vItal - tudo que é
vivo e que existe, tem axé, tem energia vital:
planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo,
tudo é sagrado e está em interação. Imagi-
nem se nosso olhar sobre nossas crianças
de educação Infantil forem carregados da
certeza de que elas são sagradas, divinas,
cheias de vida.
Podemos trabalhar a potencialização des-
te princípio nas nossas crianças, se nosso
6 Divindade que simboliza na cosmovisão Iorubá, a transformação, a comunicação, os encontros, a contradição, o movimento.
135
olhar, nosso coração e nosso corpo senti-
rem-nas verdadeiramente assim.
elogios, afagos, brincadeiras de faz-de-
-conta, nas quais elas se sintam a mais bela
estrela do mundo, a mais bela flor, alguém
que cuida, alguém que é cuidado. um es-
pelho para que elas se admirem, para que
brinquem com o espelho, e se habituem a
se olhar e a serem olhadas com carinho e
respeito.
oralIDaDe – muitas vezes preferimos ou-
vir uma história que lê-la, preferimos
falar que escrever... nossa expressão
oral, nossa fala é carregada de sen-
tido, de marcas de nossa existência.
Faça de cada um dos seus alunos e
alunas contadores de histórias, com-
partilhadores de saberes, memórias,
desejos, fazeres pela fala. Falar e ouvir
podem ser libertadores.
Promova momentos em que a história, a
música, a lenda, as parlendas, o conto, os
fatos do cotidiano possam ser ditos e redi-
tos. Potencialize a expressão “fale menino,
fale menina”.
cIrcularIDaDe – a roda tem um significa-
do muito grande, é um valor civiliza-
tório afro-brasileiro, pois aponta para
o movimento, a circularidade, a reno-
vação, o processo, a coletividade: roda
de samba, de capoeira, as histórias ao
redor da fogueira...
Já fazemos as tradicionais rodinhas na edu-
cação Infantil, e nas reuniões pedagógicas,
nas reuniões dos responsáveis. Que tal po-
tencializarmos mais a roda, com cirandas,
brincadeiras de roda e outras brincadeiras
circulares?
corPoreIDaDe – o corpo é muito impor-
tante, na medida em que com ele vi-
vemos, existimos, somos no mundo.
um povo que foi arrancado da África
e trazido para o brasil só com seu cor-
po, aprendeu a valorizá-lo como um
patrimônio muito importante. neste
sentido, como educadores e educado-
ras de educação Infantil, precisamos
valorizar nossos corpos e os corpos
dos nossos alunos, não como algo
narcísico, mas como possibilidade de
trocas, encontros. valorizar os nossos
corpos e os de nossas crianças como
possibilidades de construções, produ-
ções de saberes e conhecimentos cole-
tivizados, compartilhados.
cuidar do corpo, aprender a massageá-lo,
tocá-lo, senti-lo e respeitá-lo é um dos nos-
sos desafios no trabalho pedagógico com
a educação Infantil. Dançar, brincar, rolar,
pular, tocar, observar, cheirar, comer, beber
e escutar com consciência. aparentemente
nada de novo, se não fosse o desmonte de
corpos idealizados e a aceitação dos corpos
concretos
136
musIcalIDaDe – a música é um dos as-
pectos afro-brasileiros mais emble-
máticos. um povo que não vive sem
dançar, sem cantar, sem sorrir e que
constitui a brasilidade com a marca
do gosto pelo som, pelo batuque, pela
música, pela dança.
Portanto, mãos à obra, som na caixa e muita
música, muito som, mas não os “enlatados”,
as músicas estereotipadas, o mesmismo que
vemos na tv e em quase todas os momentos
da escola, nos quais a música se faz presen-
te. vamos ouvir músicas que falem da nossa
cultura, que desenvolvam nossos sentidos,
nosso gosto para a música e, com isso, não
produzirmos alienados musicais desde a ten-
ra idade. nosso país é riquíssimo em ritmos
musicais e em danças, que tal investirmos
neste caminho? conhecer para promover.
luDIcIDaDe – a ludicidade, a alegria, o
gosto pelo riso pela diversão, a cele-
bração da vida. se não fôssemos um
povo que afirma cotidianamente a
vida, um povo que quer e deseja viver,
estaríamos mortos, mortos em vida,
sem cultura, sem manifestações cul-
turais genuínas, sem axé.
Portanto, brinquemos na educação In-
fantil, muita brincadeira, muito brilho no
olho, muito riso, muita celebração da vida.
cooPeratIvIDaDe – a cultura negra, a cul-
tura afro-brasileira, é cultura do plural,
do coletivo, da cooperação. não sobre-
viveríamos se não tivéssemos a capaci-
dade da cooperação, do compartilhar,
de se ocupar com o outro.
como dissemos, este texto é um compar-
tilhar ideias e contamos com seu retorno7
com opiniões, sugestões, críticas, comple-
mentações e ponderações, em nome de um
verdadeiro e profundo amor pelas nossas
crianças brasileiras, que merecem ter aces-
so a um patrimônio cultural que as consti-
tua como tais, que é o patrimônio cultural
afro-brasileiro.
muito axé.
REFERênCiAS
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em preto e branco: discutindo as relações ra-
ciais. são Paulo: Ática, 1998.
cavalleIro, eliane (org.). Racismo e Anti-Ra-
cismo na Educação-Repensando nossa Escola.
são Paulo: summus, 2001.
__________________. Do silêncio do lar ao silên-
cio escolar. são Paulo: contexto, 2000.
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137
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1999.
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de cultura no brasil. rio de Janeiro: codecri,
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escola. rio de Janeiro: DP&a, 2000.
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de Janeiro: Fgv/Iesae, 1994. Dissertação de
mestrado em educação.
litERAtuRA inFAntil
Ana e Ana - célia godoy – Difusão cultural
do livro.
Agbalá, um lugar-continente – marilda casta-
nha – editora Formato.
A menina que tinha o céu na boca – Júlio emí-
lio braz – Difusão cultural do livro.
A semente que veio da África – Heloísa Pires
lima – salamandra.
A ovelha negra – bernardo aibê – ed. Ioni me-
loni naif.
As tranças de Bintou – sylviane a. Diouf – co-
sac e naify.
Berimbau – raquel coelho – editora Ática.
Bruna e a Galinha D’ Angola - gercilda de al-
meida – editora Pallas
Como as histórias se espalharam pelo mundo
– rogério andrade barbosa – editora Difusão
cultural do livro.
Duula, a mulher canibal – rogério andrade
barbosa – ed. Difusão cultural do livro.
Gosto de África – Histórias de lá e de cá – Joel
rufino dos santos – editora onda livre.
Histórias Africanas para contar e recontar -
rogério a. barbosa – ed. do brasil.
Histórias da Preta – Heloísa Pires lima – edi-
tora companhia das letrinhas.
Ifá, o adivinho – reginaldo Prandi- compa-
nhia das letrinhas.
Lendas Negras – Júlio emílio braz – editora
FtD.
Menina bonita do laço de fita – ana maria ma-
chado - editora Ática.
O amigo do rei – ruth rocha – editora Áti-
ca.
138
O espelho dourado – Heloísa Pires lima – Pei-
rópolis.
O filho do vento – rogério andrade barbosa –
ed. Difusão cultural do livro.
O menino marrom – Ziraldo – ed. melhora-
mentos.
O menino Nito – sonia rosa – editora Pallas.
Os reizinhos de Congo – edimilson de almei-
da Pereira – ed. Paulinas.
Que mundo maravilhoso! – Julius lester – edi-
tora brinque-book.
Tanto, tanto! – tristh cooke – editora Ática.
A cor da ternura – geni guimarães – editora
FtD
139
II. AS RELAÇõES éTNICO-RACIAIS, HISTóRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO INFANTIL1
Regina Conceição2
a promulgação da lei Federal nº. 10.639/03,
que torna obrigatório o ensino de História e
cultura afro-brasileira, bem como as Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
têm provocado mudanças nas práticas edu-
cativas de professores e professoras de toda
a educação básica, sem esquecer das refor-
mulações necessárias nos currículos de for-
mação de professores(as).
antes de traçar considerações a este respei-
to, é preciso dizer que tais mudanças não
são tarefas fáceis, pois implicam repensar e
reformular práticas pedagógicas cristaliza-
das e que são consideradas, por seus prati-
cantes, de boa qualidade e com resultados
garantidos.
sendo assim, há que se questionar: resul-
tados positivos para quem? ao desenvolver
tais práticas, as diversidades de gênero, raça/
etnia, religiosa, entre outras, estão contem-
pladas? são abordados aspectos de história
e cultura de origem africana? De que forma?
e de outras etnias?
no que se refere aos conteúdos de His-
tória e cultura afro-brasileira e africana,
muitos(as) educadores(as) relatam o desco-
nhecimento desses conteúdos como sendo
a principal causa para a não abordagem em
sala de aula. ou seja, como está sendo a for-
mação inicial de professores(as) no tocante
à diversidade humana e ao preparo para a
educação das relações étnico-raciais?
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (2004), que atendem “dispositivos
legais, bem como reivindicações e propos-
tas do movimento negro ao longo do sé-
culo XX” (p. 9), salientam a necessidade de
desenvolvimento de projetos que valorizem
1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 2.
2 assessora de educação Étnico-racial da secretaria municipal de educação e cultura/ Prefeitura municipal de são carlos (sP). mestre em educação (PPge/uFscar – área de metodologia de ensino). Professora das séries iniciais (rede municipal de ensino – são carlos – sP).
140
a história e a cultura dos povos africanos e
afro-brasileiros “no sentido de políticas de
ações afirmativas, isto é, de políticas de re-
parações, de reconhecimento e valorização
de sua história, cultura, identidade” (p. 10).
como educadores(as) preocupados(as) e
comprometidos(as) com o desenvolvimen-
to de uma educação de qualidade para
todos(as), em todos os níveis de ensino, e
com a formação dos(as) educandos(as) para
a cidadania, de maneira que respeitem e va-
lorizem as diferenças e as diversidades da
nação brasileira, devemos abordar, desde a
educação Infantil, as histórias e as culturas
da população de origem africana.
as Diretrizes Curriculares Nacionais (2004),
enquanto política curricular de ações afir-
mativas, de reparações, de reconhecimento
e de valorização, “têm como meta o direi-
to dos negros se reconhecerem na cultura
nacional, expressarem visões de mundo pró-
prias, manifestarem com autonomia, indivi-
dual e coletiva, seus pensamentos” (p. 10)..
É direito das populações negras e não ne-
gras conhecerem e se orgulharem de suas
origens, isto é, serem educadas como “ci-
dadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico-racial – descendentes de africanos,
povos indígenas, descendentes de europeus,
de asiáticos (...)” (op. cit., 2004, p. 10).
as Diretrizes curriculares nacionais (2004)
não propõem a mudança de “(...) um foco
etnocêntrico marcadamente de raiz euro-
péia por um africano, mas ampliar o foco
dos currículos escolares para a diversidade
cultural, racial, social e econômica brasilei-
ra” (p. 17).
como ampliar o foco dos currículos se, por
um lado, nos livros didáticos, a história e
a cultura afro-brasileiras ficam restritas ao
trabalho escravo no período colonial e à sua
abolição em 13 de maio de 1888? se não tra-
tam das origens deste povo, ou seja, de onde
vieram?
Por que e como vieram para as américas?
como viviam na África? Quais as diferenças
de hábitos e costumes dos povos africanos?
segundo cavalleiro (2000), há educadores(as)
“que não percebem a influência dos livros
didáticos e paradidáticos na formação do
autoconhecimento e da identidade da crian-
ça” (p. 46).
Por outro lado, como superar as lacunas
da formação inicial de professores(as) e até
mesmo o que foi assimilado anos atrás? as
soluções têm sido as mais variadas possí-
veis: a busca por estes conhecimentos em
cursos de formação continuada, grupos de
estudos, estudos individualizados (loPes,
2003), entre outras, para que o ambiente
escolar e o de sala de aula possam, de fato,
incluir a cultura de origem africana e pro-
mover a educação para as relações étnico-
-raciais.
141
abordar em sala de aula questões relativas
à educação das relações étnico-raciais, para
alguns educadores, é muito delicado, pois
implica rever valores éticos, pessoais e pro-
fissionais. É, por vezes, se descobrir racista,
preconceituoso, discriminador e que, mui-
tas vezes, as atitudes diante destas situações
são de silenciamento, por não ter a sensibi-
lidade necessária para identificá-las ou por
não saber como agir.
cavalleiro (op. cit.), em pesquisa realizada
numa escola de educação Infantil, diz que
este silenciamento “do professor facilita
novas ocorrências, reforçando inadvertida-
mente a legitimidade de procedimentos pre-
conceituosos e discriminatórios no espaço
escolar e, com base neste, para outros âmbi-
tos sociais” (p. 10).
alguns educadores de educação Infantil
não acreditam que, na faixa etária de 03
a 05 anos, sejam possíveis atitudes e/ou
ações de caráter racista, preconceituosa
e discriminadora. mais uma vez, caval-
leiro (op. cit.) ressalta que, nesta fase, as
“crianças brancas revelam um sentimento
de superioridade, assumindo em diversas
situações atitudes preconceituosas e dis-
criminatórias, xingando e ofendendo as
crianças negras, atribuindo caráter negati-
vo à cor da pele”, ao passo que as “crianças
negras já apresentam uma identidade ne-
gativa em relação ao grupo étnico ao qual
pertencem” (p. 10).
a preparação do ambiente escolar, bem como
o de sala de aula, é muito importante para
que todos(as) se sintam representados(as) e
valorizados(as). cartazes, fotos, textos diver-
sos – em livros didáticos e paradidáticos –,
além de brincadeiras e jogos, são estratégias
que visam à elevação da auto-estima e do
autoconhecimento “de indivíduos discrimi-
nados” e tornam “a escola um espaço ade-
quado à convivência igualitária” (cavalleI-
ro, 2000, p. 9-10).
a representação da diversidade no ambiente
escolar não é uma prática muito utilizada
pelos profissionais da educação, como sa-
lienta cavalleiro (op. cit.), quando diz que
“no decorrer do trabalho de campo, foi pos-
sível constatar a ausência de cartazes ou li-
vros infantis que expressassem a existência
de crianças não-brancas na sociedade brasi-
leira” (p. 44).
a escola e seus profissionais devem oferecer
aos educandos “uma educação de fato igua-
litária, desde os primeiros anos escolares
(...), pois as crianças dessa faixa etária ainda
são desprovidas de autonomia para aceitar
ou negar o aprendizado proporcionado pelo
professor”, ou seja, podem se tornar “víti-
mas indefesas dos preconceitos e estereóti-
pos transmitidos pelos mediadores sociais,
dentre os quais o professor” (cavalleIro,
op. cit., p. 37-38).
Diante destes fatos, como cumprir e garan-
tir “o sucesso das políticas públicas de esta-
142
do, institucionais e pedagógicas (...) (Diretri-
zes curriculares nacionais, 2004, p. 13)” tais
como a lei Federal nº. 10.639/03, bem como
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana com jovens, adultos e principalmen-
te com crianças que, segundo o estatuto da
criança e do adolescente (2002), são pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento?
a resposta, mais uma vez, vem das referidas
Diretrizes curriculares nacionais (2004) que
dizem depender “de condições físicas, mate-
riais, intelectuais e afetivas favoráveis para
o ensino e para aprendizagens; (...) da reedu-
cação das relações entre negros e brancos;
(...) de trabalho em conjunto, de articulação
entre processos educativos escolares, políti-
cas públicas, movimentos sociais, visto que
as mudanças éticas, culturais, pedagógicas
e políticas nas relações étnico-raciais não se
limitam à escola” (p. 13).
a utilização da literatura infanto-juvenil,
tendo como base personagens negras, tem
mostrado “que é possível realizar um tra-
balho com esse material, pelo fato de ele
romper com um imaginário estereotipado
do negro, tão comum na literatura infanto-
-juvenil” (souza, 2001, p. 195), trazendo, as-
sim, resultados positivos para a educação
das relações étnico-raciais.
Para tanto, cabe destacar as considerações
de souza (op. cit.) a respeito de alguns livros
de literatura infanto-juvenil, por ela anali-
sados, dizendo que, naqueles, as persona-
gens negras aparecem “de maneira positiva,
como protagonistas, pertencentes a uma fa-
mília, com ilustrações bem delineadas” (p.
196). estes são alguns cuidados que se deve
ter quando se pretende uma educação que
vise à promoção da igualdade étnico-racial
no ambiente escolar.
o livro Bruna e a Galinha D’Angola, de gercil-
ga de almeida, pode ser considerado como
um exemplo positivo para trabalhar, com os/
as educandos/as da educação Infantil, a his-
tória e a cultura de origem africana.
neste livro, bruna aprende, com sua avó
nanã, a história da criação do mundo, a par-
tir de uma visão africana. uma história bem
escrita, atraente, com belas ilustrações, em
que é possível, ao final da leitura, confeccio-
nar, com a colaboração dos educandos, pais
e/ou responsáveis, os panôs que ilustram
toda a história.
uma outra sugestão de literatura infanto-
-juvenil é o livro A semente que veio da África
de Heloísa Pires lima, e de georges gneka e
mario lemos, dois autores africanos. o livro
conta a história do baobá, uma árvore que
nasce em todo o continente africano e, em
cada parte da África onde existe essa árvore,
há uma história diferente para explicar sua
importância para aquela comunidade. são
relatadas histórias da costa do marfim e de
143
moçambique. Há belas fotografias do baobá
na África, com vários desenhos desta árvore
e, ao final do livro, a sugestão do jogo de
origem africana, a awalé ou mancala.
estas foram apenas algumas pequenas refle-
xões e sugestões de atividades que podem
ser desenvolvidas em sala de aula, desde a
educação Infantil até o ensino Fundamen-
tal. muitas outras experiências estão sendo
desenvolvidas em toda a educação básica,
resultando em atitudes de conhecimento e
valorização das diferenças, principalmente
aquelas que dizem respeito às culturas e às
histórias africanas e afro-brasileiras, como
determina a lei Federal nº. 10.639, de 09 de
janeiro de 2003, assim como na sua regula-
mentação, expressa nas Diretrizes Curricu-
lares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Desenvolver práticas educativas a partir des-
tas situações tem sido importante para que
educandos e educadores conheçam histórias
e culturas das populações negras, desmisti-
ficando o tema e tornando positiva e real a
participação dos africanos e afro-brasileiros
na história nacional.
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D’Angola. rio de Janeiro: editora Didática e
científica e Pallas editora, 2000.
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especial de Políticas de Promoção da Igual-
dade racial, secretaria de educação conti-
nuada, alfabetização e Diversidade. Diretri-
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das relações étnico-raciais e para o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana.
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2002.
cavalleIro, eliane dos santos. Do silêncio
do lar ao silêncio escolar: racismo, preconcei-
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gros na literatura infanto-juvenil: rompen-
do estereótipos. In: cavalleIro, eliane dos
santos (org.). racismo e anti-racismo na edu-
cação: repensando nossa escola. são Paulo:
summus, 2001. p. 195-213.
144
III. TIN Dô Lê Lê: BRINqUEDOS, BRINCADEIRAS E A CRIANÇA AFRO-BRASILEIRA (UmA REFLExÃO)1
Azoilda Loretto da Trindade2
Às crianças que foram invisibilizadas e silen-
ciadas ao longo da História
Abra a roda
tin dô lê lê
Abra a roda
tin dô lá lá
Abra a roda
tin dô lê lê
tin dô lê lê
tin dô lá lá3 ...
vamos convidá-lo(a) a lembrar dos sorri-
sos, da sua infância, das brincadeiras... Dei-
xe essas lembranças chegarem. Permita-se
lembrar dos sabores, odores/cheiros, cores,
texturas... Dos gritinhos, das corridas, dos
machucados... Das marquinhas que você
carrega no corpo como lembranças das pe-
raltices... não continue este texto sem lem-
brar. lembre, relembre, lembre...
lembrar para se religar à criança que está
dentro de nós, guardada no coração, a crian-
ça que ainda somos. avivar nossa memória,
puxar seu fio para que, quem sabe, possa-
mos perceber, no nosso corpo, o valor, a im-
portância dos brinquedos e das brincadeiras
para nós e, consequentemente, para nossas
crianças, as crianças sob nossa responsabi-
lidade de educadoras e educadores. afinal,
Há um menino, há um moleque moran-
do sempre no meu coração Toda a vez
que o adulto “balança” ele vem pra me
dar a mão.
Há um passado no meu presente. Um sol
bem quente lá no meu quintal,
Toda vez que o adulto fraqueja o menino
me dá a mão...
1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 4.
2 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletânea.
3 abra a roda tin dô lê lê é uma cantiga de roda do nosso repertório popular.
145
E me fala de coisas bonitas que eu acre-
dito que não deixarão de existir:
Amizade, palavra, respeito, coragem,
bondade, alegria e amor...
Pois não posso, não quero, não devo, vi-
ver como toda essa gente insiste em vi-
ver.
Não posso aceitar sossegado qualquer
sacanagem ser coisa normal4.
Devagarzinho /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/
tin dô lá lá.
no clima dos brinquedos e brincadeiras, per-
cebamos a riqueza da roda aberta. olham-se
as diferenças e semelhanças, as igualdades,
a diferença dos seus participantes, sem hie-
rarquias. todos ali se vendo, de mãos dadas,
num círculo em cujo centro existem as pos-
sibilidades.
vamos, no entanto, devagarzinho, nos lem-
brar das crianças que ficaram de fora desta
roda ao longo da nossa História, de crianças
cuja memória histórica de brinquedos e brin-
cadeiras está ligada ao engenho de cana5, à
senzala, aos guetos, aos lugares invisibiliza-
dos, escondidos, ao estado, qualidade, con-
dição de escravas. Para evitar equívocos,
estamos nos referindo às crianças afro-bra-
sileiras, razão desta série, deste programa.
No centro da roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin
dô lá lá. colocando estas crianças no centro
da roda, vamos, para começo de conversa,
tirá-las do lugar de carência e olhá-las como
força, como potência. como crianças cujo
axé, cuja energia vital foram e são tão fortes
que nos fazem pensar: como elas resistiram
e resistem à tanta perversidade social?
Desnaturalizar a concepção de criança es-
crava, como algo quase biológico, fecha-
do, etiquetado, e olhá-las como crianças
que foram, sim, escravizadas ontem e hoje,
parece-me fundamental. Fundamental para
desnaturalizar o lugar de subalternidade, de
marginalidade, de exclusão ao qual tentam
colar, aprisionar nossas crianças. Funda-
mental para reafirmar o compromisso e o
débito social de garantir-lhes sua infância,
seu direito de brincar, de sorrir, de ter orgu-
lho da sua memória e do seu povo.
Fechando a roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô
lá lá. Agora bem próximos, vamos pensar que
temos uma memória social cindida, partida.
grande parte da nossa população brasileira
não se reconhece afro-brasileira. neste sen-
tido, o lado afro da nossa história, o escondi-
do, o submerso da nossa memória, necessi-
ta ser descortinado, exposto. essa memória
afro-brasileira precisa vir à tona e creio ser
no exercício de lembrar que o emergir, o sair
4 bola de gude, bola de meia, de milton nascimento e Fernando brant.
5 KIscHImoto,t. m. Jogos tradicionais Infantis: O jogo, a criança e a educação. Petrópolis,rJ: vozes, 1993 (p 26 a 59).
146
da amnésia social, na qual nos encontramos,
podem acontecer coletivamente. e nada me-
lhor para isso do que lembrar das histórias
inscritas no nosso corpo, em especial no
nosso corpo de educadoras e educadores.
Histórias que entram em cena mediadas
por suas lembranças. Tais lembranças
necessitam ser faladas, escritas, lidas,
assumidas, afirmadas, escutadas, para
poderem assim ganhar status de memó-
ria, serem lapidadas. Elas nos habitam
individualmente, mas seu nascimento,
há muito, aconteceu no coletivo. Quan-
do socializadas, podem ser refletidas e
criticadas. (...)
Ver, porque ganhou distância, num
processo reflexivo, como construtor e
não reprodutor do próprio processo de
aprendizagem, possibilita a compreen-
são entre construir conhecimento e re-
produzir conhecimento, repetir história
e construir história6.
Destaco isto, pois creio que se nosso corpo
não estiver visceralmente envolvido com o
processo de construção de uma educação
efetivamente voltada para todos, sucumbi-
remos diante do árduo processo de imprimir
as africanidades brasileiras no nosso currí-
culo escolar, que se pretende multicultural.
o artigo Africanidades Brasileiras: esclare-
cendo significados e definindo procedimen-
tos pedagógicos, de Petronilha silva (2003)
refere-se às “raízes da cultura brasileira que
têm origem africana.(...)”. Dizendo de outra
forma, queremos nos reportar ao modo de
ser, de viver, de organizar suas lutas, pró-
prio dos negros brasileiros e, de outro lado,
às marcas da cultura africana que, indepen-
dente da origem étnica de cada brasileiro,
fazem parte do dia-a- dia”7.
ao tirar da prisão do esquecimento a me-
mória individual e coletiva afrodescendente
que habita nossa população, estaremos dan-
do um passo fundante para a concretização
dos nossos ideais democráticos em relação
à educação.
Dando um exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/
tin dô lá lá. conceição nasceu no dia 8 de
dezembro, no final dos anos 70 do sécu-
lo XX, dia consagrado a nossa senhora da
conceição e, em algumas religiões afrodes-
cendentes ou afro-brasileiras, a oxum, orixá
feminino, que, segundo verger (1981, p. 174)
controla a fecundidade e reina sobre todos
os rios, exercendo seu poder sobre a águas
doce, fundamental para a vida na terra.
sua família, adepta da umbanda, uma reli-
gião afro-brasileira, desejou homenagear
6 FreIre, madalena. “memória: eterna idade.” Diálogos. são Paulo. espaço Pedagógico, ano II, n° 5, julho 1999.
7 sIlva. Petronilha beatriz gonçalves e. Africanidades Brasileiras: esclarecendo significados e definindo procedimentos pedagógicos. Revista do Professor. Porto alegre, 19 (73):26-30, jan./mar. 2003.
147
oxum, colocando este nome na menina.
segundo ela, houve o impedimento no car-
tório e a família imediatamente deu-lhe o
nome de Conceição para poder homenagear
Oxum, sem repressão. esta história é emble-
mática em relação ao surgimento do nosso
sincretismo religioso.
Por muito tempo, mais de vinte anos, ela re-
lata que tinha vergonha de contar esta his-
tória e dizia que seu nome era em homena-
gem a nossa senhora da conceição.
ao compartilhar, coletivizar sua lembrança,
sua história identitária, conceição libertou
sua memória e sua própria identidade e cer-
tamente sua história lembrada e contada foi
disparadora de outras memórias e de outras
identidades.
relato este exemplo para fundamentar o de-
safio que se coloca à nossa frente ao nos pre-
dispormos a fazer valer a lei nº 10.639/2003
que regulamenta a inclusão da temática
“História e cultura afro-brasileira” no currí-
culo escolar. ora, nenhuma lei se torna exe-
quível sem envolvimento social, sem perten-
cimento coletivo. esta lei, especificamente,
só se concretizará, no cotidiano escolar, se
houver a real parceria com os professores e
professoras. se houver a vivência cotidiana
da crítica do cotidiano escolar, permeado
por conflitos, encontros e desencontros, ra-
cismos, preconceitos e discriminações, mui-
tas vezes alienadamente confundidos com
brincadeiras ingênuas, bobagens ou insigni-
ficâncias.
Dando outro exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/
tin dô lá lá. Participava de um curso de for-
mação de educadores de educação Infantil,
quando a professora colocou um vídeo, onde
tinha a brincadeira infantil Barra manteiga
na fuça da nêga. vale destacar que o curso
tinha uma perspectiva crítica e progressista.
Fiquei constrangida, mas fui obrigada, pela
minha consciência, a questionar o material.
o argumento-resposta foi perfeito: “essa
brincadeira faz parte do nosso repertório
cultural e afetivo, todos já brincamos dessa
brincadeira”, foi dito. no entanto, contra-ar-
gumentei: “É, mas não foi dito que a nêga da
brincadeira é uma mulher negra, logo gente,
logo tem nariz e não fuça”. não foi dito que
não se coloca barra de manteiga no nariz de
ninguém, não foi dito que se tratava de uma
brincadeira que retratava um período de
nossa história (o escravismo). não foi dito
que o silêncio, a não-crítica, a não-reflexão
num curso de formação de professores aca-
bam por naturalizar a situação e reforçar a
violência simbólica que se pratica contra to-
dos os afro-brasileiros e afrodescendentes.
e, assim, não se questiona que com tantos
exemplos possíveis de brincadeiras, aquele
foi escolhido sem nenhuma crítica, num ví-
deo de um curso que se pretendia crítico,
multiplicador, formador de práticas e opini-
ões pedagógicas.
148
esta situação significativa demonstra a to-
tal ou quase total insensibilidade para com
metade da população brasileira: os afro-bra-
sileiros. mas por quê?
Mão na testa/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá
lá. e no repertório popular e afetivo da nos-
sa gente, temos muitos exemplos de brinca-
deiras significativas que nos levam a pensar:
Chicotinho queimado, as sinhazinhas das fes-
tas juninas, as músicas como Samba -lelê tá
doente,/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba-
-lelê precisava /É de umas boas palmadas. ou
a tradicional Boi, boi, boi,/ boi da cara preta,/
pega essa menina /que tem medo de careta.
Das histórias como a do Negrinho do Pasto-
reio e da Moura Torta. creio que as brinca-
deiras e brinquedos estão em sintonia com
a sociedade na qual estão inseridos, então
não é surpreendente o que ocorre e ocorreu
numa sociedade com uma história de auto-
ritarismo como a nossa.
Vamos girando/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá
lá. gostaria de concluir este texto pensando
em dois aspectos fundamentais para nós: a
importância do brincar e a importância do
corpo que brinca.
o brincar, no dizer de verden-Züller (2004, p.
230), “é atentar para o presente”. o não estar
preocupado com o futuro, com as consequ-
ências da ação, mas em vivê-la enquanto ela
está sendo vivida por nós. É encantar-se com
o aqui e agora, é entregar-se ao presente.
atentemos para o fato de que nós, educado-
ras e educadores, imersos em planejamen-
tos, currículos, controles, muitas e muitas
vezes, além de não brincarmos - capacidade
que em muitos de nós está aprisionada no
nosso corpo -, impedimos que o outro brin-
que, em nome, num sem número de vezes,
de uma desnecessária disciplina, lei, organi-
zação, em nome da nossa “autoridade”, con-
tribuindo assim, para a degeneração da vida
humana, que tem no brincar a afirmação da
vida.
vamos brincar um pouquinho, vamos nos
encontrar com os sacis, com as cucas, com
o negrinho do Pastoreio, com os bois das
caras-pretas de vez em quando. É, vamos re-
descobrir o prazer de brincar que, certamen-
te, tomou nosso corpo em algum momento
da nossa vida.
o corpo traduz a nossa presença concreta
no mundo. a nossa existência e potenciali-
dade se circunscrevem no nosso corpo. com
ele amamos, sonhamos, produzimos, senti-
mos, percebemos, nos constituímos como
sujeitos. o que é importante para nós, edu-
cadores e educadoras, é o respeito por este
corpo, o nosso e o do outro, dos nossos alu-
nos, das nossas alunas, nossos colegas, nos-
sas colegas, nossos companheiros e compa-
nheiras de existência.
corpos que carregam histórias e memórias,
marcas que anunciam e denunciam, que fa-
149
lam, mesmo sem palavras. creio que esta di-
mensão de acolhida, respeitosa e amorosa,
do corpo do outro, sobretudo quando este
outro tem uma história-memória social de
violência, mutilação e insensibilidades com
relação ao seu corpo e aos corpos dos seus
iguais, é uma chave para a permanência e o
sucesso das nossas crianças, em especial as
crianças negras, na escola. Permanência e
sucesso, não de vítimas ou de carentes, mas
de cidadãos e cidadãs de direito, vitoriosos
sobreviventes de racismo, exclusões e injus-
tiças sociais.
Que tal, junto com elas e eles, construirmos
um belo repertório de brinquedos e brinca-
deiras? e assim, quem sabe, no coletivo, fa-
zermos emergir, no brincar, a nossa memó-
ria afro-brasileira. confie, o nosso corpo e o
corpo de nossas crianças, eles sabem brin-
car, afinal o brincar é um saber acontecente.
É só começar.
Inventando
tin dô lê lê
Inventando
tin dô lá lá
Inventando
tin dô lê lê
tin dô lê lê
tin dô lá lá...
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Um grito de Liberdade
Documentário sobre luther King
Quando o crioulo dança -reDeH/mec
Racismo - Ibase vídeo
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Alguém falou de racismo
Meninas do Rio e FUNK RIO - cecip
Kiriku e a feiticeira Vista minha pele
Kiara, corpo de rainha.
Ilha Negra
Beleza Negra
Retrato em Preto em Branco
mÚsIcas
Milagres do povo- caetano veloso e gilberto
gil
Haiti - caetano veloso e gilberto gil
cD do antônio nóbrega - O marco do meio-
-dia
cD do Jorge aragão - Jorge Aragão ao vivo
cDs de nei lopes
cD Abra A Roda tin Dô lê lê, de lydia Hor-
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Dia de Graça (candeia - sambista negro)
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153
C. EDUCAÇÃO qUILOmBOLA
I. OS qUILOmBOS E A EDUCAÇÃO1
Maria de Lourdes Siqueira2
intRODuÇÃO
a sociedade brasileira, em sua grande maio-
ria, é animada por uma força ancestral que
mantém vivas tradições, costumes, crenças,
valores que há cinco séculos são repassados,
em nosso país, de uma geração a outra, so-
bretudo pela ação da mulher negra e das or-
ganizações de resistência negra.
a origem dessa tradição se inicia com os
africanos escravizados que chegam ao brasil
sob a ação do sistema colonial escravista,
no período compreendido entre os séculos
XvI e XIX. eram africanos de origem Yorubá
(nagô ou ketu), gegê, ewé, mina, congo, an-
gola, moçambique.
as organizações clássicas criadas em resis-
tência à dominação escravocrata e colonial
sempre existiram no brasil entre Irmanda-
des religiosas, terreiros de candomblé,
congadas, capoeira, Quilombos. nos anos
30, foram criados a Frente negra brasileira,
a Imprensa negra, o teatro experimental do
negro. nos anos 70, o movimento negro
ressurge com o Ilê aiyê e o movimento ne-
gro unificado – mnu.
a nossa proposta maior nesta reflexão é in-
cluir o significado do papel dos Quilombos
nos processos sócio-político-culturais de
construção da sociedade brasileira e a di-
mensão educativa que se realiza nos Qui-
lombos em todo o território nacional. Para
o professor, militante e senador abdias nas-
cimento, há um permanente:
“movimento de in-surreições, levantes,
revoltas proclamando a queda do siste-
ma escravo, que podem ser localizados
em toda a extensão geográfica do país,
particularmente naquelas de significa-
tiva população escravizada. Frequente-
mente aqueles movimentos tomavam
a forma de Quilombos, à semelhança
1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 3.
2 Professora da universidade Federal da bahia/Diretora da associação cultural Ilê aiyê/ 2ª vice-presidente da associação de Professores Pesquisadores negros – seção bahia.
154
de PALMARES: eram comunidades or-
ganizadas para africanos livres que se
recusavam a submeter-se à exploração
e à violência e buscavam a instituciona-
lização do poder inspirado na estrutura
do comunalismo tradicional da África”
(Nascimento, 2002).
Desde o século XIX, os Quilombos existem
no brasil, realizando ações de identidade,
trabalho, organização social e resistência
aos sistemas de dominação impostos aos
africanos e seus descendentes.
Há uma oralidade, de tradição, que realiza
permanentemente o exercício de guardar de
memória as lições de sabedoria e experiên-
cia dos ancestrais e transmiti-las aos seus
descendentes, sempre na perspectiva de
formar novas gerações sobre valores, prin-
cípios, crenças, costumes e tradições que
mantenham viva a ancestralidade originária
das civilizações tradicionais africanas.
Hoje, os Quilombos, denominados comu-
nidades remanescentes de Quilombos, ou
terras de Pretos, se reorganizam no país
inteiro, nas diferentes regiões, revivendo o
legado de seus antepassados. são núcleos
vivos de iniciativa comunitária, identitá-
ria, sem perder de vista as dinâmicas das
transformações histórico-político-culturais
ocorridas no decurso de tantos séculos, que
essas tradições atravessam em tempos e es-
paços diferentes.
as comunidades de Quilombos estão sujei-
tas a transformações, guardando um jeito
próprio de viver, transmitindo essa heran-
ça ancestral de resistência às gerações que
se sucedem. conhecemos, por exemplo,
a família de seu bernardino e Dona clara,
moradores dos matões dos moreira, cujos
descendentes convivem hoje entre matões e
santo antonio dos Pretos, constituindo qua-
tro gerações, presentes nesses Quilombos:
bisavó, avó, filho e neto juntos, vivendo o
cotidiano da vida quilombola. a bisavó cuida
de uma casa de santo de matriz africana, a
avó hoje é quilombola nos matões dos mo-
reira; o neto é agente cultural da comunida-
de e o bisneto, com a idade de cinco anos,
acompanha todos. essa família é parte de
minha própria família, no lugar onde nasci,
cujos herdeiros dessas terras de Pretos eram
meus avós, meus tios, e minha mãe.
De que modo os conhecimentos, os saberes,
são passados nas comunidades Quilombo-
las?
continuam vivas, nestes lugares, tradições
de candomblé, umbanda, tambor de mina,
terecô, tambor de crioula, bumba meu boi,
reisado, Festas do Divino, Festa de caboclo,
ladainhas para santos e encantados. Há um
processo educativo que, no cotidiano, zela,
transmite e celebra, a cada ano, na medida
do possível, estas culturas e expressões reli-
giosas de origem africana, reelaboradas na
dinâmica concreta da vida das pessoas, que
155
às vezes vão se transformando, de um lugar
a outro, mas guardam sempre os fundamen-
tos.
as pessoas dos Quilombos, das terras de Pre-
tos, frequentam as escolas públicas ou até
pequenas “bancas” privadas para aprender
a ler, a escrever, a desenvolver as operações
de raciocínio matemático, porque elas preci-
sam entrar na engrenagem da vida em socie-
dade. mas elas não abandonam as tradições
de seus ancestrais que, para elas, constituem
os valores e princípios educacionais.
entre os múltiplos saberes, destaca-se: o sa-
ber respeitar as pessoas mais velhas; a histó-
ria da família dos seus antepassados; o culto
à natureza; os saberes em relação à chuva e
à posição do sol; os efeitos da lua; o tempo
de plantar e de colher; o perigo dos raios, a
leitura da força dos trovões; a importância
da água em todos os momentos da vida; os
segredos das plantas; o poder das folhas e
das raízes para curar, para fortalecer o corpo
e a alma das pessoas.
estes saberes são praticados dia a dia. É certo
que há rupturas, há separações, há quebras,
mas há uma Força maIor: a lembrança dos
antePassaDos, dos ancestraIs, dos mais
velhos da comunidade que têm força moral
ante suas famílias.
nesse processo de passagem de conheci-
mentos, a mulher negra é a educadora por
excelência. ela sempre guardou os saberes e
os cultivou e transmitiu em todos os lugares
por onde passou. ela é identificada com a
ancestralidade, porque incorpora essa an-
cestralidade, nos papéis de mãe, mulher (es-
posa, companheira) professora, enfermei-
ra, mãe de santo, filha de santo, ekede ou
makota, mestre, contra-mestre ou pratican-
te de capoeira, benzedeira, curadora, conhe-
cedora dos segredos da natureza. ela realiza
essas lutas e ações cotidianas com dignida-
de e pela DIgnIDaDe da família negra.
os Quilombos hoje mais reconhecidos nos
estados são principalmente:
no amazonas: bacia do trombetas; no
Pará: oriximiná Itamoari, são José; no ama-
pá – curiaú, no maranhão: santo antonio
dos Pretos, matões dos moreira, Ingarana;
em Pernambuco: castaninho, conceição
das crioulas; na bahia: rio das rãs e rio de
contas. mangal, barra, santana, são José,
da serra; em sergipe: mocambo; no rio de
Janeiro: campinho da Independência, san-
tana, são José serra da serra; no rio grande
do sul: serra geral, camizão; ceará: con-
ceição dos caetano; goiás: Kalungas; são
Paulo: Iporanduva, maria rosa, são Pedro
de eldorado, Iporanga; mato grosso: mata
cavalo; minas gerais: Porto coris, garim-
peiros, campo grande; ambrósio; tocan-
tins: lagoa da Pedra; Paraíba: caiana dos
crioulos.
156
uma proposta de Políticas Públicas com
ações afirmativas em educação, para co-
munidades remanescentes de Quilombos,
pressupõe, fundamentalmente, conteúdos
educacionais e práticas pedagógicas; currí-
culo, programas de formação de professores
e produção de recursos pedagógicos, que in-
cluam o respeito às diferenças e às especifi-
cidades culturais destas populações em seus
lugares, vivendo a tradição das comunida-
des remanescentes de Quilombos.
COnCluinDO
as comunidades remanescentes de Qui-
lombos só existem porque elas são repre-
sentações vivas de princípios fundadores de
saberes seculares que perpassam, direta ou
indiretamente, ao estilo de uma seiva, que
alimenta uma semente que renasce dia a
dia, em forma de um processo educativo,
que se realiza a partir de um outro olhar, de
uma outra perspectiva, do ponto de vista
daqueles que conhecem a realidade onde vi-
vem, e detêm saberes úteis a toda a socieda-
de: convivência, partilha, o valor do outro, o
reconhecimento da diferença, a valorização
da natureza, a esperança, a alegria de viver,
a confiança no ser, independente do ter.
estes princípios hoje são incorporados em
distintas áreas do conhecimento: arquitetu-
ra, administração, arte, biologia, botânica,
cinema, culinária, cultura, Dança, enge-
nharia, gestão, Indumentária, linguagem,
medicina, música, Psicanálise, religião, te-
atro.
a experiência de Palmares, no estado de ala-
goas, e a liderança de Zumbi dos Palmares
constituem a referência de um líder e de
uma república que viveu a mais séria e du-
radoura experiência democrática em solo
brasileiro, além de ter sido a maior manifes-
tação de luta contra o escravismo na amé-
rica latina.
a continuidade dos Quilombos está articu-
lada a Políticas Públicas que proporcionem
a inclusão das dimensões mitológicas, sim-
bólicas e rituais em processos educacionais
nos Quilombos e na sociedade brasileira.
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II. qUILOmBO: CONCEITO1
Gloria Moura2
Da terra, na terra, quilombolas desenvolvem atividades. Plantam e co-
lhem os frutos de seu trabalho. Marcam sua história.
a história da propriedade rural brasileira tem
início com as capitanias Hereditárias e com
as sesmarias, as quais se constituíam de ter-
ras doadas pela coroa Portuguesa a benefici-
ários da corte. os donatários que não conse-
guissem cultivar essas terras as devolveriam
à coroa, daí a expressão terras devolutas.
Desde aquela época, terra no Brasil é
conflito entre Estado, latifundiários, pe-
quenos proprietários, camponeses. A Lei
de Terras (18503) pretendeu que o Estado
regulamentasse as sesmarias, desapro-
priasse terras improdutivas, vendesse
terras para subsidiar a imigração es-
trangeira. Proibiu doações.
Fazendeiros recusaram-se a registrar as ter-
ras, o que questionava os limites de suas
posses. em 1870, raros fazendeiros haviam
regulamentado as terras registradas, levan-
do a lei ao fracasso. as terras no brasil eram
possuídas por poucos, um bem de capital não
acessível à população. as doações previam
estabilizar o pretendente, que teria escravos
e se comprometeria a fazer benfeitorias.
ressaltamos, neste texto, o processo de for-
mação de quilombos na colônia e no Impé-
rio. escravos fugiam de fazendas e consti-
tuíam resistência à escravatura. Palmares é
símbolo-mor, quilombo com quase 100 anos
de existência e líderes como ganga Zumba e
Zumbi. em Palmares, terra era considerada
como sinônimo de liberdade. terra é patrimô-
nio onde se fincam aspirações de despossuí-
dos de espaço para plantar e viver. os negros
libertários fortaleciam-se, causavam apreen-
são e temor. magalhães magalhães (In: Mar-
cas da Terra, Marcas na Terra) comenta:
1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 1.
2 Professora da Faculdade de educação da universidade de brasília. Pesquisadora do cnPq. consultora desta série.
3 lei n.º 601 (de terras), 1850. maria Jovita Wolney valente (org.) Legislação Agrária, Legislação de Registro Público, Jurisprudência (coletânea). ministério extraordinário para assuntos Fundiários, brasília, 1983.
159
A terra representa, para esses sujeitos,
patrimônio cultural e histórico, na me-
dida em que há valores morais a ela atri-
buídos a serem transmitidos de geração
a geração. Ela não é percebida apenas
como objeto em si mesma, de trabalho
e de propriedade. Através de diversos
saberes e concepções de mundo criados
e reelaborados no trabalho cotidiano
com a terra, homens e mulheres, cam-
poneses migrantes (...) buscam que sua
dignidade seja reconstruída, garantida
e respeitada, para que possam também
transmitir a outras gerações uma obra,
uma história.
magalhães refere-se, na obra citada, a cam-
poneses migrantes, cujo valor da terra não
difere para negros assentados há mais de
200 anos. a terra é o sustento, o alimento
que vai mantê-los vivos. Da terra e na ter-
ra se desenvolvem atividades vitais, plantio
e colheita, marcos históricos. realizam as
tradições no chão de muitos anos na luta, o
que garantirá o direito de ser diferente sem
ser desigual frente à lei, sem receber a pecha
da marginalidade.
Frente à questão da terra no brasil, nosso
foco é a recente evolução do conceito de qui-
lombo quanto às comunidades rurais negras.
COnCEitO
Quilombos contemporâneos são comunida-
des negras rurais habitadas por descenden-
tes de escravos que mantêm laços de paren-
tesco entre si. a maioria vive de culturas de
subsistência em terra doada/comprada/se-
cularmente ocupada. seus moradores valo-
rizam tradições culturais dos antepassados,
religiosas (ou não), recriando-as. Possuem
história comum, normas de pertencimento
explícitas, consciência de sua identidade ét-
nica.
reviu-se e ampliou-se este conceito, por-
que manifestações culturais recriam-se em
sucessivas gerações. e a Fundação Instituto
brasileiro de geografia e estatística - Ibge
(1980) conceituou terras de preto, no mara-
nhão, como os quilombolas as chamavam:
As de nominadas terras de preto com-
preendem domínios doados, entregues
ou adquiridos, com ou sem formalização
jurídica, às famílias de ex-escravos, a
partir da desagregação de grandes pro-
priedades monocultoras. Os descenden-
tes de tais famílias permanecem nessas
terras há várias gerações sem proceder
ao formal de partilha e sem delas se apo-
derar individualmente (Censo Agropecu-
ário, IBGE, 1980).
Historicamente, no brasil, em função da res-
posta do rei de Portugal à consulta do con-
selho ultramarino (2 de dezembro de 1740),
define-se quilombo (ou mocambo) como
“toda habitação de negros fugidos que pas-
sem de cinco, em parte despovoada, ainda
160
que não tenham ranchos levantados nem se
achem pilões neles”. ramos noticia quilom-
bos em data anterior:
A maioria dos historiadores brasileiros
assinala a data de 1630 para o início dos
quilombos que iriam constituir Palma-
res. Mas tudo leva a crer que as fugas de
negros escravos naquela região vinham
se dando em datas muito anteriores (RA-
MOS, 1971).
Quilombo, vocábulo que designou, por mui-
to tempo, apenas acampamentos de escra-
vos fugidos, tem origem africana. Para reis
(1996):
Quilombo derivaria de kilombo, socieda-
de iniciática de jovens guerreiros mbun-
du, adotada pelos invasores jaga (ou im-
bangala), formados por gente de vários
grupos étnicos desenraizada de suas co-
munidades.
esta matriz histórica dos quilombos foi reto-
mada para se referir às comunidades rurais
negras no brasil. o conceito de quilombo
tem sido objeto de reflexão histórica e po-
lítica desde os anos 70. o movimento negro
contribuiu significativamente para ressaltar
a importância do estudo dos quilombos na
história. reificou o conceito, considerando
agrupamentos quilombolas como nichos
culturais autônomos, pedaços da África no
brasil.
como resultado de pressão dos movimen-
tos, a luta para incluir na constituição ter-
ras ocupadas por descendentes de escravos
foi em parte consagrada no artigo 68, do ato
das Disposições constitucionais transitó-
rias: “aos remanescentes de quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva”. em 1996, o presi-
dente da república concedeu título de reco-
nhecimento de domínio às comunidades de
Pacoval e Água Fria, no Pará, cumprindo os
artigos 215 e 216 da constituição e o artigo
68 do ato das Disposições transitórias. Pelo
Decreto-lei n. 3.912 (2001), a FcP (Fundação
cultural Palmares), do minc (ministério da
cultura), pôde aplicar o artigo 68 e reconhe-
cer mais comunidades. em 2003, foi assina-
do o Decreto n. 4.887, que “regulamenta o
procedimento para a identificação, reconhe-
cimento, delimitação, demarcação e titula-
ção das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que tra-
ta o artigo 68 do ato das Disposições cons-
titucionais transitórias”, que determina ser
o Incra (Instituto nacional de colonização
e reforma agrária), do ministério do Desen-
volvimento agrário, o órgão competente
para emitir títulos de propriedade.
comunidades rurais negras são objetos de
constantes invasões de terras por fazendei-
ros, porque os ocupantes não possuem do-
cumentos comprobatórios de propriedade,
embora essas ações também ocorram mes-
mo quando os possuem.
161
remanescentes de quilombos vivem situa-
ção indefinida. Houve vitórias, mas não se
resolveu a questão. a visibilidade das comu-
nidades aumentou, há mais grupos interes-
sados em seu destino, mais estudos sobre o
assunto, mas muito a fazer. não foram fei-
tos, ainda, levantamentos sistemáticos das
comunidades existentes e dos problemas
jurídicos e sociais que enfrentam. no mara-
nhão, com o Projeto vida de negro, a socie-
dade maranhense de Direitos Humanos e o
centro de cultura negra, apoiados pela Fun-
dação Ford e a oxfam (organização oxford
para a cooperação do Desenvolvimento),
em 45 municípios do estado, levantaram 401
terras de preto, designação usual na região
para as comunidades rurais.
o centro de cartografia da universidade de
brasília publicou mapas de comunidades
remanescentes de quilombos, identifican-
do cerca de 2.000, mas ainda não se sabe o
número exato de ocorrências de quilombos
contemporâneos.
em resumo, pode-se dizer que há um pro-
cesso, em curso, de visibilidade e estudo, da
questão das comunidades remanescentes de
quilombos, destacando-se avanços e insegu-
ranças, ao mesmo tempo.
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rio para assuntos Fundiários. 1983.
162
III. SABERES TRADICIONAIS DE SAúDE1
Bárbara Oliveira2
as comunidades quilombolas encontraram
explicações e soluções para os distúrbios
de saúde do dia-a-dia e para os elaborados
processos do ato de dar continuidade à vida.
o nascer, para muitos quilombolas, é um
evento familiar e coletivo, desde que se des-
locaram e resistiram ao sistema escravista
e, posteriormente, à sociedade nacional que
não os incorporou de modo efetivo.
os saberes tradicionais e os costumes, pas-
sados e perpetuados através das gerações,
historicamente estruturaram o ciclo de vida
das comunidades quilombolas e norteiam,
atualmente, a estrutura social. Hoje em dia,
em grande parte das comunidades quilom-
bolas do país, há pessoas que tradicional-
mente dominam o conhecimento acerca de
rezas curadoras e de ervas e remédios con-
cebidos de forma tradicional, e pessoas que
detêm enorme saber sobre o processo re-
produtivo e o parto. mais conhecidas como
parteiras, remedieiras, curandeiras(os),
rezadeiras(os), benzedeiras(os), essas são
pessoas muito presentes na estrutura social
dessas comunidades.
os quilombolas depositam a esperança da
solução de diversas enfermidades, além de
auxílio no processo da procriação, nessas
pessoas. esse trabalho, em especial o das
“remedieiras” e das parteiras, remete-se às
mulheres. elas representam a continuida-
de dos ensinamentos de suas ancestrais.
as mulheres que atuam nos cuidados e nos
atendimentos às grávidas, parturientes,
mães e crianças (e realizam contatos mais
permanentes e intensos com as famílias)
são, a partir dessas relações sociais, legiti-
madas como lideranças e referências em
muitas comunidades quilombolas.
Detentoras de conhecimento tradicional de
saúde, as parteiras têm suas atuações e tra-
balhos tidos como ‘dádiva divina’. Partici-
pam de modo efetivo dos núcleos familiares
1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 2.
2 mestre em antropologia pela unb. consultora na subsecretaria de Políticas para comunidades tradicionais na sePPIr.
163
como referências muito próximas. as partei-
ras estão ligadas diretamente ao ciclo vital
da comunidade, são tratadas como mem-
bros das famílias das mulheres a quem pres-
tam auxílio. além de grande proximidade fa-
miliar, há toda a aura de autoridade de fala e
de ação que cerca essas representantes dos
saberes tradicionais.
a resistência, que marca tão profundamen-
te as comunidades quilombolas, se expressa
nas práticas autônomas de saúde, uma vez
que “o nascer” e “o morrer” se davam, e em
muitas comunidades ainda se dão, no âm-
bito do próprio grupo, a partir de sua cos-
movisão. clóvis moura (1981) ressalta que o
quilombo foi, incontestavelmente, a unida-
de básica de resistência dos negros escravi-
zados. o vínculo das comunidades quilom-
bolas com sua historicidade, baseada em
resistência e luta, é um aspecto fundante do
universo simbólico e da consciência coletiva
dessas comunidades. as práticas e saberes
relacionados à saúde têm íntima relação
com esse processo.
o trabalho dessas pessoas, que são referên-
cia em saúde nas comunidades quilombolas,
em especial o das parteiras, se dá de modo
coletivo, a partir de todo o universo cultural
que permeia as comunidades em que elas
atuam. na pesquisa realizada junto às par-
teiras Kalunga3, foi possível observar a im-
portância da ancestralidade nesse trabalho.
as parteiras sempre se remetem à brigda4,
referência ancestral que estrutura a organi-
zação do trabalho e dá força às mulheres.
em geral, nenhuma parteira presta auxílio,
sozinha, a uma parturiente. Isso ocorre ape-
nas em situações em que o parto progride
rápido demais. nesses casos, não há tempo
para chamar uma ‘cumpanheira’ e acaba
sendo uma atuação solo. caso o processo
do parto aconteça de forma costumeira,
conta-se com a presença de várias mulheres.
e cada uma tem uma função específica no
parto, assim como tem também o marido,
o(a) filho(a) mais velho(a), a mãe da partu-
riente, a vizinha, a benzedeira.
um dos aspectos importantes desse traba-
lho conjunto é a transmissão de conheci-
mento e o aspecto pedagógico dessa atua-
ção. a tradição oral envolve, há gerações, o
conhecimento sobre o parto, os remédios
tradicionais, as plantas, as garrafadas e o
benzimento. a passagem desse conheci-
mento segue vários critérios de escolha. os
saberes em relação ao parto, dominados, por
exemplo, pela “parteira veia”5, são passados
a algumas escolhidas. essa seleção não se-
gue rigorosamente o parentesco direto. a
3 souZa, bárbara o. Parteiras Kalunga: os saberes tradicionais e os processos de medicalização do parto. universidade de brasília, 2005, 117p.
4 Parteira, matriarca dos Kalunga, que é grande referência entre as parteiras. Pelos relatos orais, viveu na região há três gerações.
5 mais experiente e sabedora das práticas.
164
“escolhida” pode ser uma sobrinha ou uma
parenta distante da parteira. o importante é
que a pessoa escolhida tenha o ‘dom’, ‘dado
por Deus’, e a partir daí, muita dedicação
para acompanhar e auxiliar a “parteira veia”
e ir acumulando conhecimento e experiên-
cia para, aos poucos, lidar com o processo
de gravidez, parto e puerpério. todo esse ci-
clo de transmissão de conhecimento entre
as parteiras está no âmbito da oralidade:
“Quem me ensinou foi minha avó e mi-
nha bisavó. Sempre que elas saíam, saí-
am comigo, saía mais elas, elas me ‘en-
sinava’. Saía de lá e elas tornava a me
ensinar. Tudo de ‘có’, de cabeça, não ti-
nha nada de letra nenhuma” (Maria Pe-
reira, parteira Kalunga).
É importante traçar um perfil de quem são
essas mulheres que atuam com o nascer,
com as ervas, raízes e rezas. Primeiramente,
são mulheres, que já deram a luz – muitas
vezes realizando seu próprio parto –, são ori-
ginárias da própria comunidade e atendem
a mulheres quilombolas, principalmente
nas últimas semanas de gravidez, durante o
parto e parte do puerpério. sua atenção com
as mulheres nesse período é estruturada a
partir de práticas de saúde baseadas nos co-
nhecimentos tradicionais, que lhes foram
transmitidos através do “dom divino” (dado
por Deus) e do acompanhamento de partei-
ras mais experientes.
carlos Zolla, citado por gordilho e bonals
(1994), define parteiras como “terapeutas
tradicionais” que atuam em sua comuni-
dade e possuem reconhecimento social de
seus conhecimentos, habilidades ou facul-
dades curativas. Pinto (2002) configura as
parteiras como “mulheres fortes, destemi-
das, independentes e valentes (…). são mães,
esposas avós, comadres, que aprenderam
com suas antepassadas a desempenhar afa-
zeres tanto no mundo natural, executando
as mais diversificadas formas de trabalho,
como no plano sobrenatural, benzendo, re-
citando rezas e invocando encantarias, para
obter ajuda na hora do parto e curar os ma-
les de seu povo” (p. 441 e 442).
o trato tradicional de plantas, de ervas cura-
doras e do corpo vem sendo construído ao
longo de séculos nas comunidades quilom-
bolas de todo o país. muitos conhecimentos
e sabedoria estão envolvidos nas práticas
das remedieiras(os), das curandeiras(os),
das rezadeiras(os) e das parteiras quilombo-
las. a importância dos conhecimentos qui-
lombolas em relação ao bioma no qual estão
inseridos perpassa toda essa tradição. Há
muito que aprender com as comunidades
quilombolas que vivem há séculos em várias
regiões do país e mantêm uma relação har-
moniosa com as plantas e os animais.
a partir de suas vivências e saberes adquiri-
dos na relação com o meio ambiente, estru-
tura-se uma enorme riqueza de conhecimen-
165
tos relacionados ao bioma e ao corpo, com
ênfase nas plantas, raízes e outros elementos
curadores. É uma relação histórica e íntima
estabelecida com o ambiente, pois conheci-
mentos fitoterápicos e sobre plantas medici-
nais existem nas comunidades há gerações.
cabe ressaltar que os saberes das comuni-
dades quilombolas e de outros povos tradi-
cionais, sobretudo nos últimos anos, têm
atraído o interesse de empresas, muitas ve-
zes estrangeiras, e podem se tornar alvo de
biopirataria. Para proteger as comunidades
tradicionais desse tipo de ameaça, os prin-
cípios de proteção e compensação pelo uso
do patrimônio genético foram estabelecidos
na convenção sobre Diversidade biológica,
assinada durante a eco 92. na prática, entre-
tanto, muita coisa ainda ocorre sem que se
efetive o acordado na convenção.
outro aspecto é o processo de medicalização
crescente que se impõe sobre essas comu-
nidades, com vistas a normatizar o parto e
as práticas de saúde, a partir da perspectiva
biomédica. as diversas intervenções e rela-
ções estabelecidas entre o estado e as comu-
nidades quilombolas, potencializadas nas
últimas décadas, estabeleceram processos
de ressemantização de costumes, práticas e
tradições, e estes têm influência direta so-
bre o remanejamento social, político e cul-
tural da comunidade. são fatores que inci-
dem sobremaneira na atuação das parteiras
e “remedieiras” e se colocam como objetos
centrais no processo de regulamentação das
práticas de saúde nas comunidades.
são fatores que dialogam também com os
movimentos de expansão do projeto de es-
tado, no sentido de homogeneizar práticas,
controlar corpos e processos orgânicos,
como o nascer e o morrer. nesse processo de
“conquista”, a construção do “outro” pres-
supõe também a busca pela sua assimilação
e pela expansão do “nós” civilizador (souZa
lIma, 1995).
o processo de ressemantização de valores
e costumes de saúde faz parte de uma ló-
gica ampliada de relações de poder, de ne-
gociação identitária, de assimilações do
“novo”, a partir de contatos interétnicos e
de reafirmações do que é tido como ‘tradi-
cional’. nesse sentido, a importância das
parteiras, remedieiras(os), curandeiras(os) e
rezadeiras(os) para as comunidades quilom-
bolas e a continuidade de suas atuações têm
vínculo com o confronto entre estes distin-
tos significados para a identidade quilombo-
la, e em como esses fatores se configurarão
nas relações de poder externas e internas.
a organização das comunidades quilombo-
las é importante no processo de valorização
dos saberes tradicionais de saúde. a educa-
ção também é fundamental na preservação
da cultura quilombola e, nesse caso, dos
saberes tradicionais de saúde. Para que a
cultura quilombola se fortaleça, são neces-
166
sários espaços para frutificar e fortalecer
essas práticas. as comunidades têm o direi-
to de ficar onde sempre estiveram. além do
direito à terra, cabe refletir também sobre
a educação e o currículo escolar e sobre
a relação que a cultura quilombola e os
conhecimentos tradicionais de saúde têm
com eles.
os conhecimentos tradicionais de saúde (se-
jam eles quilombolas, indígenas, caiçaras,
de terreiro, dentre outros) são pouco estu-
dados e não compõem de forma expressiva
os materiais didáticos de nossas escolas.
Portanto, apesar de serem fundamentais
para muitos povos, são concebidos como
inferiores, ou mesmo ultrapassados. acredi-
to que temos muitas coisas a aprender com
esses saberes e, por isso, é fundamental co-
nhecer mais sobre esse universo.
nós, professoras e professores, temos, por-
tanto, um desafio grandioso à frente, que é
o de “desenvolver, na escola, novos espaços
pedagógicos que propiciem a valorização
das múltiplas identidades que integram a
identidade do povo brasileiro, por meio de
um currículo que leve o aluno a conhecer
suas origens e a se reconhecer como brasi-
leiro” (moura, 2005, p. 69).
Portanto, nessa discussão sobre saberes tra-
dicionais de saúde, tendo como eixo os va-
lores e práticas culturais dos estudantes e
da comunidade na qual a escola está envol-
vida, cabe ressaltar que elaborar currículos
capazes de responder às especificidades e à
pluralidade da identidade brasileira é funda-
mental.
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Iv. ORgANIzAÇÃO SOCIAL E FESTAS COmO vEÍCULOS DE EDUCAÇÃO NÃO-FORmAL1
Verônica Gomes2
FORMAÇÃO DE ASSOCiAÇõES E
ORgAniZAÇÃO POlítiCA
as comunidades remanescentes de quilom-
bos no brasil buscam, cada vez mais, o reco-
nhecimento de seus direitos, a valorização de
sua cultura, a afirmação de sua identidade e
uma maior participação na sociedade envol-
vente. Para tanto, é necessário que sejam in-
tegradas à sociedade brasileira, do ponto de
vista sociopolítico e econômico, por meio de
políticas públicas, uma vez que elas são alvo
de diferentes formas de discriminação e pri-
vação dos direitos humanos fundamentais.
Do ponto de vista geopolítico-administrati-
vo, as comunidades quilombolas pertencem
a diversos municípios, entretanto, as iden-
tidades negras revelam-se firmemente en-
raizadas nos diversos territórios históricos e
geográficos bem delimitados.
com o domínio de informações acerca dos
direitos humanos, das políticas públicas e
dos direitos garantidos em lei, imprescindí-
veis à sua luta, os (as) quilombolas poderão
exigir a garantia de seus direitos de forma
efetiva, intervindo e participando de forma
mais qualificada.
assim, para que se consolide o estado Demo-
crático de Direito, a representação quilom-
bola deve estar organizada em associações,
como já ocorre, pois no âmbito organiza-
cional, os quilombolas, por meio de suas
associações comunitárias, clube de mães,
associações de trabalhadores rurais, dentre
outras, vêm se auto-reconhecendo como re-
manescentes de quilombos e fortalecendo
a sua luta pela titulação dos territórios. no
âmbito nacional, desde 1995, os movimentos
sociais quilombolas também vêm se organi-
zando na conaq – coordenação nacional de
Quilombos, a partir das associações locais,
nos municípios e nos estados-membros. Po-
rém, se essas associações, antes, tinham um
certo nível de informalidade, hoje a exigên-
cia é que se constituam de maneira formal
1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 3.
2 mestre em sociologia pela universidade de brasília. Integrante da equipe técnica do Projeto de apoio a comunidades de Quilombo no brasil – ProacQ.
169
e jurídica. a organização política implica a
compreensão dos instrumentos políticos,
dos marcos regulatórios, passa pela formali-
zação de saber empírico em um saber mais
formal de representação política. as organi-
zações sociais são importantes como parte
do controle social das políticas públicas e as
organizações sociais quilombolas são partes
integrantes desse universo.
enquanto o estado brasileiro não assegurar
aos quilombolas o recurso básico essencial
– a sua territorialidade – os movimentos
sociais deverão reforçar a importância dos
quilombolas na qualidade de sujeitos sociais
que, por meio de ações políticas, fazem va-
ler suas reivindicações e direitos.
FEStAS
Quando se constata a riqueza criativa das
vivências dos moradores das comunidades
remanescentes de quilombos, principalmen-
te dos mais velhos, no que diz respeito ao
uso das ervas medicinais, no modo de traba-
lhar a terra, de tirar dela seu sustento, nas
linguagens gestuais, na música, nas festas,
no modo de se divertir, de cantar, dançar
e rezar vê-se a importância de ter acesso a
esse conhecimento. É esse conhecimento
que constitui o contexto em que se tecem
as teias de significados que recriam inces-
santemente sua cultura e sua identidade
contrastiva, isto é, a afirmação da diferença.
nas práticas dos moradores das comunida-
des, há um forte apelo ao reconhecimento
dessa identidade.
o significado pedagógico deste tipo de pos-
tura pode ser avaliado à luz de análise feita
por Paulo Freire, que propugnava a esperan-
ça como valor fundamental para o indivíduo,
com a crença de que pode ser construída
uma comunidade de significados em torno
de experiências básicas da vida humana de
que todos compartilhem (FreIre, 1975).
trata-se de um saber que vai sendo trans-
mitido e assimilado de forma lenta e per-
manente, dando oportunidade de reflexão
sobre a necessidade de mudança, sempre
que as circunstâncias o exigirem, para que a
comunidade possa adequar-se às novas con-
dições do momento. É durante os rituais que
os valores que a comunidade reputa essen-
ciais se condensam e são reafirmados e rene-
gociados, constituindo, assim, um currículo
invisível através do qual são transmitidas as
normas do convívio comunitário. sem uma
intenção explícita, este currículo invisível
vai sendo desenvolvido, dando às crianças o
necessário conhecimento de suas origens e
do valor de seus antepassados, mostrando
quem é quem no presente e apontando para
as perspectivas futuras.
currículo invisível é a transmissão dos valo-
res, dos princípios de conduta e das normas
de convívio, ou, numa palavra, dos padrões
socioculturais inerentes à vida comunitária,
170
de maneira informal e não explícita, permi-
tindo uma afirmação positiva da identidade
dos membros de um grupo social.
a construção desse currículo invisível cons-
titui, assim, um processo histórico, no qual
a linguagem e, em especial, as linguagens
musicais e corporais, desempenham um pa-
pel essencial.
liDERAnÇAS
as lideranças exercem um papel transfor-
mador junto às suas comunidades, atuam
politicamente em favor delas e estão engaja-
das em projetos sociais e culturais. Há uma
percepção geral de que é preciso buscar um
novo espaço de diálogo com o estado e de
que é essencial fazer algo com mais consis-
tência e consequência política.
existem características básicas para que um
indivíduo possa se tornar um líder, tais como
visão, integridade, conhecimento da realida-
de, autoconfiança, maturidade, capacidade
para ouvir e dialogar e disposição/vontade de
assumir riscos, dentre outros. os líderes são,
em regra, pessoas muito persistentes, com
grande carisma, motivadas pelo seu instinto
e detentores da capacidade de decidir.
no âmbito das comunidades remanescentes
de quilombos, os mais velhos, as mulheres,
ou um conselho de mais velhos constituem-
-se nas lideranças que levam a comunidade
a não esmorecer na árdua luta pelo reco-
nhecimento de suas terras, que animam a
comunidade a fortalecer os laços comuni-
tários participando das associações, que se
informam e repassam para os comunitários
essas informações, novos saberes e formas
organizativas, fomentando redes de multi-
plicadores que revelarão novas lideranças.
gênERO
vale salientar o papel da mulher quilombola
na organização da comunidade. Historica-
mente, citamos a ocorrência do movimen-
to da balaiada (1838 - maranhão) no qual,
apesar das lideranças da balaiada serem ho-
mens, as mulheres tiveram um papel muito
importante na luta, que foi a de guarDIãs
Das comunIDaDes.
cuidando das criações, da agricultura, das
filhas, dos idosos, dos recursos naturais, pro-
videnciando os alimentos para os refugiados,
escondendo-os, orientando crianças sobre
a luta, rezando, curando com ervas medici-
nais, as mulheres foram e continuam sendo
peças fundamentais na luta quilombola.
além do trabalho diário que fazem na roça e
que sustenta sua família, também cumprem
jornada como professoras, agentes de saú-
de, parteiras, quebradeiras de coco, dentre
outras atividades.
atualmente, muitas mulheres quilombolas
estão organizadas em associações, exercen-
171
do cargos de tomada de decisão, cumprindo
mandato político ou engajadas em coorde-
nações de mulheres quilombolas.
REFERênCiAS
almeIDa, alfredo. Nas Bordas da Política Ét-
nica: os quilombos e as políticas sociais. texto
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tropologia – “nação e cidadania”. recife,
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_______________. Curso de Direitos Huma-
nos – Formação Política para Quilombolas –
orientações para reuniões de multiplicação.
brasília: IbraP/ProacQ , 2007, mimeo.
172
v. KALUNgA, ESCOLA E IDENTIDADE – ExPERIêNCIAS
INOvADORAS DE EDUCAÇÃO NOS qUILOmBOS1
Ana Lucia Lopes2
intRODuÇÃO
ao se falar em quilombos, no brasil, as pa-
lavras fuga, resistência e liberdade apare-
cem imediatamente no imaginário que te-
mos acerca do tema. estudos recentes3 têm
mostrado que novos conceitos devem ser
incorporados à nossa compreensão do que
venham a ser os quilombos e sua história
em nosso país.
Primeiro conhecido por mocambo (entre os
séculos XvI e XvII), o nome quilombo desig-
nava grupos acima de três escravos fugidos.
muitos foram os quilombos ao longo da nos-
sa história, e entre eles, Palmares é conside-
rado um símbolo. o isolamento geográfico
de grande parte dos quilombos não estava
acompanhado da distância social e econô-
mica entre os quilombolas, os escravos, os
libertos e os indígenas. Havia, segundo o
historiador Flávio gomes, uma intensa rede
de relações econômicas e sociais, que possi-
bilitava a manutenção dos quilombos e, ao
mesmo tempo, as fugas faziam parte de es-
tratégias montadas pelos escravizados, que
incluíam até esconder escravos em fazendas
vizinhas, o que significava haver um circuito
de comunicação entre escravos nas fazen-
das e quilombolas.
no caso dos Kalunga, território quilombola
formado no final do século XvIII, na região
da chapada dos veadeiros, norte de goiás, a
memória dos mais velhos relembra histórias
contadas pelos seus antepassados a respeito
de incursões, que chegavam a durar cerca
de um ano, quando iam até belém para con-
seguir, entre outras coisas, sal ou panelas de
ferro. a importância e os desafios dessas via-
gens eram tais que, quando as embarcações
saiam, os foliões do Divino vinham para can-
1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 4.
2 Doutora em antropologia social pela universidade de são Paulo. co-autora de Uma história do povo Kalunga. livro de leitura e caderno de atividades - primeiro projeto pedagógico para escolas em comunidades remanescentes de quilombos. brasília, mec/unesco, 2001.
3 reIs, João José; gomes, Flávio dos santos (orgs.) Liberdade por um fio. História dos Quilombos no brasil. são Paulo, cia. das letras, 1996.
173
tar, invocando o espírito santo na proteção
dos viajantes. eles levavam farinha, arroz,
feijão, carne de gado salgada, pena de ema
e ouro, para vender ou trocar pelo que ne-
cessitavam4. esse é um exemplo, que a me-
mória de quilombolas confirma, da comple-
xa rede de relações entre os moradores dos
quilombos e outros grupos sociais.
assim, há muito que pesquisar e aprender
sobre a história dos quilombos, para além da
fuga e da resistência. atualmente, a situação
das diversas comunidades remanescentes de
quilombos nos traz questões, entre as quais
a da identidade, do pertencimento, da posse
da terra, da educação, da saúde, do trans-
porte, do desenvolvimento sustentável, que
não podemos deixar de discutir, inclusive na
pauta das políticas públicas.
neste sentido, o texto se propõe a refletir so-
bre uma experiência de educação, na região
Kalunga, que considerou os temas acima ci-
tados.
ESCOlA E iDEntiDADE
nos últimos meses do ano 2000, recebi o
convite para integrar uma equipe respon-
sável por conceber e escrever, a pedido da
secretaria de ensino Fundamental do mec,
dois livros didáticos destinados aos alunos
de terceira e quarta séries de uma comuni-
dade remanescente de quilombo localizada
em goiás – os Kalunga. as questões envol-
vidas nesse pedido baseavam-se em obser-
vações etnográficas que davam conta de
um processo discriminatório abusivo que
as crianças Kalunga sofriam quando iam
estudar nas escolas fora da área quilombo-
la. essas escolas ficavam nas sedes dos mu-
nicípios vizinhos e ofereciam os cursos de
quinta a oitava séries, já que as escolas da
região Kalunga só tinham classes de primei-
ra a quarta séries, em sua grande maioria
multisseriadas e com professoras leigas.
Frente a esse quadro, a questão da autoesti-
ma e da identidade positiva Kalunga deveria
ser o eixo orientador do conteúdo dos livros
solicitados pelo mec. os registros de uma
pesquisa de recorte etnográfico que havia
sido realizada nas escolas por pesquisadores
da universidade de brasília - unb, além de
uma série de materiais acerca da história da
comunidade Kalunga e suas principais ques-
tões atuais, foram colocados à nossa dispo-
sição; entre eles, contamos com desenhos e
cadernos de lição dos alunos, que nos foram
entregues.
em primeiro lugar, tratava-se de saber que
concepção pedagógica conduziria à elabo-
ração dos livros e, a partir dessa reflexão,
4 gomes, Flávio dos santos. A Hidra e os Pântanos. mocambos, Quilombos e comunidades de Fugitivos no brasil. são Paulo, editora unesP & editora Polis, 2005
174
ao considerar a realidade da sala de aula
Kalunga, propus uma alteração do projeto,
na perspectiva pedagógica. ao invés de dois
livros didáticos, um para a terceira e outro
para a quarta séries, escreveríamos dois li-
vros, sendo um deles um livro de história, e o
outro, um caderno de atividades. a proposta
era contemplar todos os alunos de uma clas-
se multisseriada com conteúdos que disses-
sem respeito à autoestima, à identidade e à
valorização do patrimônio cultural por eles
construído. não fazia sentido, de um ponto
de vista pedagógico vinculado estreitamente
a uma abordagem antropológica de educa-
ção, tratar de autoestima com uns, enquan-
to outros, no mesmo momento, faziam as
lições tradicionais.
a equipe reescreveu o projeto, consubstan-
ciado desta vez em uma perspectiva antro-
pológica e pedagógica, e o encaminhou aos
responsáveis no ministério da educação, que
concordaram com a nova justificativa e seus
argumentos. Passamos a estudar profunda-
mente a comunidade Kalunga, para então
escrevermos um livro de leitura, um cader-
no de atividades e um encarte para o profes-
sor, que contemplassem questões curricula-
res de primeira a quarta séries, em diálogo
com conteúdos referentes à identidade e ao
pertencimento, e que trouxessem, segundo
pedido dos próprios moradores, conhecimen-
to de fora. eles sabiam que precisavam am-
pliar os seus recursos, e o nosso dilema era
o de trazer um repertório de conhecimen-
tos novos, mas fazendo com que, ao mesmo
tempo, os conhecimentos por eles produzi-
dos não perdessem lugar para a novidade de
fora. nosso trabalho se construiu na tensão
entre a valorização do conhecimento Kalun-
ga produzido historicamente e o direito de
acesso ao conhecimento do novo por eles
reivindicado.
Depois de alguns meses de trabalho inces-
sante, o material ficou pronto. vale lembrar
que, nesse processo, pudemos contar com a
colaboração de diversas pessoas e institui-
ções, que prontamente nos acudiram quan-
do faltavam referências sobre determinados
aspectos da vida e da história Kalunga, o que
evidenciava ainda mais a relevância do Pro-
jeto Vida e História Kalunga, que originou o
livro Uma história do povo Kalunga 5, acompa-
nhado do Caderno de atividades e do encarte
de orientação pedagógica para o professor.
nesse encarte, procuramos estabelecer com
os professores, que em grande parte eram
professores leigos, um diálogo a distância,
como uma carta informal que lhes enviás-
semos, para início de conversa... talvez valha
a pena transcrevê-la aqui, pois ela resume
o espírito com que todo o trabalho foi rea-
lizado.
5 montes, maria lucia e loPes, ana lucia. Uma história do povo Kalunga. brasília, mec/unesco, 2001.
175
Caro Professor
Gostaríamos de conversar com você so
bre uma história – aliás, uma longa his-
tória – da qual você é um contador.
Nós, professores, somos, na verdade,
contadores de história. Contamos a his-
tória da humanidade para nossos alunos.
Nisso nós nos parecemos com os “mais
velhos” de uma tribo indígena ou de ou-
tras civilizações antigas, que tinham o
conhecimento das coisas da natureza
e dos seres vivos, das coisas sagradas e
dos valores que dão sentido à vida e que
passavam esse conhecimento aos mais
jovens, sendo por isso muito respeita-
dos. Só que a história que nós contamos
não é a história de um só povo. Temos
a missão de contar a história de muitos
povos, em tempos diferentes, e que tam-
bém tiveram modos diferentes de viver.
Esta é a história da humanidade que nós
contamos hoje. É uma tarefa muito gran-
de, pois ninguém conhece essa história
inteira e por isso nós costumamos dividi-
-la em “capítulos”. Às vezes os “capítulos”
dessa história que ensinamos são chama-
dos de Português, História, Geografia.
Outras vezes recebem outros nomes,
como Ciências, por exemplo, quando
tratamos do ar, dos animais selvagens e
dos animais domésticos, das plantas que
usamos como alimento, das plantas ve-
nenosas e daquelas que curam. E existem
ainda outros “capítulos” que tratam dos
números e das contas e são chamados
de Matemática, outros que tratam dos
mapas, dos países e dos Estados. Outros
tratam da leitura, da escrita, do desco-
brimento do Brasil, da Independência.
Nós, professores, temos essa função ma-
ravilhosa, nos tempos de hoje, que é a de
contar essa história e ensinar, em poucos
anos, conhecimentos importantes que le-
varam milhares de anos para serem cons-
truídos.
Você já parou para pensar em quantos
anos a humanidade levou para descobrir,
inventar e aprender tudo aquilo que hoje
ensinamos nas escolas? Quantos homens
não sobreviveram a venenos de plantas
até descobrirem que muitas delas po-
diam curar e se transformar em remé-
dios feitos nos laboratórios? Como foi que
aprenderam a domesticar alguns ani-
mais, que passaram assim a auxiliá-los
na luta diária pela sobrevivência? Quanto
tempo o homem andou pelo mundo sem
mapas para orientá-lo nas rotas de suas
viagens e como surgiram os primeiros
mapas? Certamente, o homem observava
a natureza, o céu, de noite e de dia, os
mares, os ventos, as chuvas. Mas demo-
rou muito tempo para que, observando o
que acontecia na natureza, comparando
um dia com outro, uma noite com ou-
tra, a posição da lua, dos planetas e das
176
estrelas, o ciclo das estações, ele pudes-
se concluir que essas coisas se repetiam
com regularidade e podiam indicar quan-
do plantar e colher e servir para orientar
suas rotas de viagem. Foi então que ele se
tornou capaz de expressar tudo isso na
forma de desenhos e da escrita, inventan-
do todo esse conjunto de conhecimentos
que temos hoje.
Falando assim, até parece que o profes-
sor deve saber tudo sobre todas as coisas
do mundo. Impossível. Essa história da
humanidade tem muitos e muitos “capí-
tulos” e naturalmente nós não os conhe-
cemos todos. Mas nós, professores, pre-
cisamos querer saber sempre mais sobre
esses conhecimentos que são os capítu-
los dessa história e sobre como ensinar
tudo isso aos nossos alunos. Porque o
homem foi transformando a natureza e
seu modo de se relacionar com ela e com
os outros homens. E é por causa dessas
transformações que nós temos que pen-
sar também que às vezes é necessário
mudar o nosso jeito de ensinar. Porque
só assim poderemos ir sempre encon-
trando uma forma cada vez melhor de
contar para os alunos essa grande histó-
ria que não paramos nunca de aprender.
Sem dúvida, nós, que somos professo-
res, já aprendemos muito e precisamos
reconhecer o valor daquilo que sabe-
mos, daquilo que fomos aprendendo em
nossa vida e ao longo de vários anos de
experiência, ensinando nossos alunos.
Mas o que faz de nós professores é esse
compromisso de ensinar o que aprende-
mos, e é por isso que precisamos apren-
der sempre e sempre mais. Precisamos
fazer isso para que nossos alunos sejam
capazes de se lembrar no futuro dessa
história que lhes ensinamos, como nós
nos lembramos do que aprendemos com
outros que nos ensinaram. Como para
nós hoje, também para eles, no futuro,
esses conhecimentos serão necessários
em sua vida.
Este livro com o qual você vai trabalhar
de agora em diante, Uma história do
povo Kalunga, é um pequeno capítulo
dessa história grande da humanidade
que ensinamos. Mas é um capítulo mui-
to importante e que deve ser aprendido
com carinho, porque ele irá servir de
base para você ensinar aos seus alunos
outros capítulos daquela história maior.
E, sobretudo, porque os alunos que irão
aprender tudo isso são as crianças do
povo Kalunga e as que vivem nos municí-
pios de Cavalcante, Monte Alegre de Goi-
ás e Teresina de Goiás, onde está situado
o território Kalunga. É por isso que esse
livro é também uma história que nós
contamos e que vocês vão contar aos
seus alunos. Uma história do povo Ka-
lunga. Quem é Kalunga sabe. Quem não
é Kalunga precisa aprender.
177
o livro de leitura foi desenvolvido como uma
história que estivesse sendo narrada, sobre
a saga de um povo descendente de quilom-
bolas que, ao longo da sua história, foi capaz
de construir uma identidade própria e um
patrimônio cultural que deveria ser conhe-
cido e valorizado. o caderno de atividades
foi organizado de modo a garantir a parti-
cipação dos alunos de todas as séries, da 1a
à 4a série. ele tinha a função de recuperar
e retomar os conteúdos do livro de leitura.
cada atividade começava com um trabalho
comum, a ser feito por todos os alunos. De-
pois, para cada série se pedia que os alunos
fizessem uma tarefa particular. Foi escolhida
uma cor para cada série, determinando-se
que a 1ª série seria amarela, a 2ª azul, a 3ª la-
ranja e a 4ª verde. em cada folha que tivesse
essa cor, o aluno encontraria a parte da ati-
vidade que correspondia à sua série e deveria
realizá-la sob a orientação do professor.
como procedimento didático-pedagógico, o
caderno de atividades se orientou em séries
didáticas como possibilidade de abrir ao pro-
fessor unidades curriculares que contem-
plassem diferentes áreas do conhecimento.
os alunos retomariam o caderno de ativi-
dades nas séries seguintes, aprofundando o
conteúdo estudado, porém, na perspectiva
da série atual. revisitar os conteúdos dentro
das novas condições das séries e faixas de
idade foi o princípio pedagógico orientador
desse livro.
as unidades que organizaram o caderno de
atividades se referiam aos temas percebidos
nas entrevistas, que muitas vezes revelaram
tensões vividas por eles, a ampliação de co-
nhecimentos e as competências dos alunos.
Por exemplo, o trabalho proposto com ma-
pas, partiu de dois eixos; a facilidade que ti-
nham em desenhar na perspectiva vertical
e a necessidade de aprender sobre mapas
em função da questão da posse da terra. são
quatro as unidades: 1) Olhar o mundo; 2) Nós
no mundo; 3) Perto e longe; 4) O passado en-
contra o futuro e um encarte com um que-
bra-cabeça do mapa do brasil político.
não abrimos mão da qualidade e da bele-
za do material, tanto para o livro de leitura
como para o caderno de atividades. assumi-
mos compromissos pessoais para garantir
que as crianças Kalunga vissem a sua ima-
gem com dignidade e destaque, e para isso
contamos com fotógrafos que se tornaram
aliados e parceiros dessa nossa empreitada.
Depois do material pronto, evidenciaram-se
os resultados do nosso trabalho e muito nos
gratificou saber da reação positiva de orgu-
lho e alegria das crianças e dos adultos, ao
se verem retratados com beleza e sofistica-
ção. tudo isso fazia parte da concepção do
projeto, que não separou forma de conteú-
do, pois é isso que se espera de um trabalho
educacional que, fundado numa perspectiva
antropológica, busca refletir e fazer refletir
sobre as relações que balizam a construção
de identidades e a noção de pertencimento.
178
vI. LEI Nº 10. 639/2003 E EDUCAÇÃO qUILOmBOLA1
Denise Botelho2
inCluSÃO EDuCACiOnAl E
POPulAÇÃO nEgRA BRASilEiRA
aspectos da cultura afro-brasileira precisam
ser percebidos e explorados por todos e to-
das que participam do sistema educacional
brasileiro, como estratégia para minimizar
os preconceitos, as discriminações e o racis-
mo que imperam em nossa sociedade e atin-
gem, sobretudo, estudantes negros e negras
de nosso país. no campo das políticas públi-
cas educacionais, contamos com dois mar-
cos legais importantes para a inclusão da
população negra e, principalmente, para sua
permanência no sistema educacional brasi-
leiro: o artigo 26 da lei de Diretrizes bases
da educação nacional (lDb), que estabelece
a obrigatoriedade do ensino de História e
cultura afro-brasileira na educação básica;
e a resolução cne n. 01/2004, que instituiu
as Diretrizes curriculares nacionais para a
educação das relações Étnico-raciais e para
o ensino de História e cultura afro-brasilei-
ra e africana.
a partir desses instrumentos, os(as)
gestores(as) podem contribuir para que a
escola transcenda a transmissão do conhe-
cimento e seja, também, um espaço de refle-
xões críticas acerca dos processos de ensino/
aprendizagem de inclusão. com base em prá-
ticas de gestão democrática, podem ainda
estimular que a ação dos(as) educadores(as)
possibilite a reelaboração dos conteúdos
curriculares, a análise reflexiva do contexto
sociorracial e a reelaboração de um saber di-
recionado para a cidadania (botelHo, 2000,
p. 14). mesmo porque, cidadania supõe edu-
car na e para a diversidade:
(...) conhecer e valorizar a pluralidade do
patrimônio sociocultural brasileiro, bem
como aspectos socioculturais de outros
povos e nações, posicionando-se contra
qualquer discriminação baseada em di-
ferenças culturais, de classe social, de
crença, de sexo, de etnia ou outras ca-
racterísticas individuais e sociais (Brasil/
Secretaria de Educação Fundamental,
1998, p. 7).
1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 5.
2 Professora no Departamento de Planejamento e administração (PaD) da Faculdade de educação da unb.
179
com efeito, as discussões em torno da edu-
cação inclusiva têm avançado e promovido
a reversão de alguns paradigmas educacio-
nais vigentes, a exemplo das adequações dos
espaços escolares para deficientes físicos, a
ampliação de vagas na educação Indígena
e o fortalecimento da educação no campo.
entretanto, no que se refere à educação
em prol da valorização da população ne-
gra brasileira, ainda se verificam inúmeras
resistências. Precisamos, pois, identificar
políticas públicas que atendam às necessi-
dades desse contingente populacional, que
não se vê representado e valorizado nas ex-
periências educacionais. no caso específico
da população remanescente de quilombos,
precisamos avançar muito mais, posto que,
entre os afro-brasileiros, esse grupo soma os
maiores índices de exclusão educacional.
educar para a igualdade tem como pressu-
posto uma educação anti-racista3. e garantir
a equidade entre os diversos grupos étnico-
-raciais depende de inúmeras ações, entre
as quais conhecer e trazer, para o cotidiano
escolar, conteúdos que estimulem a partici-
pação de alunos e alunas negras como ato-
res sociais ativos, com a intencionalidade de
promover a igualdade de oportunidades e o
exercício da cidadania, como prevê a legisla-
ção brasileira, que garante “igual direito às
histórias e culturas que compõem a nação
brasileira, além do direito de acesso às di-
ferentes fontes da cultura nacional a todos
brasileiros” (resolução cne n. 01/2004).
É importante que educadoras e educadores
estimulem seus alunos e alunas a reconhe-
cerem a legitimidade dos diferentes sabe-
res presentes na sociedade e perceberem
como cada grupo sócio-racial contribuiu
para a formação da identidade cultural do
país. Diante de uma população escolar edu-
cacional multirracial, como a brasileira,
mostram-se imprescindíveis novas práticas
didático-pedagógicas que re-signifiquem os
conteúdos curriculares e as atividades de
sala de aula, por meio de recursos diferen-
ciados de ensino, como os presentes nas co-
munidades quilombolas e quase sempre não
apropriados por educadores e educadoras
como alternativas didático-pedagógicas.
mesmo com avanços significativos na área
educacional para as chamadas “minorias”,
a equidade étnico-racial em território brasi-
leiro ainda necessita de várias ações socio-
políticas, isso para atingir o que preconiza a
resolução n. 01/2004 do conselho nacional
de educação, que versa sobre:
(...) valorização e respeito às pessoas
negras, à sua descendência africana,
sua cultura e história. Significa bus-
car compreender seus valores e lutas,
ser sensível ao sofrimento causado por
tantas formas de desqualificação: apeli-
3 educação que promova um convívio harmonioso entre os diferentes, não permitindo que os preconceitos se concretizem em preconceitos manifestos, discriminações, xenofobias, sexismos e racismos.
180
dos depreciativos, brincadeiras, piadas
de mau gosto sugerindo incapacidade,
ridicularizando seus traços físicos, a
textura de seus cabelos, fazendo pouco
das religiões de raiz africana. Implica
criar condições para que os estudantes
negros não sejam rejeitados em virtude
da cor da sua pele, menosprezados em
virtude de seus antepassados terem sido
explorados como escravos, não sejam
desencorajados de prosseguir estudos,
de estudar questões que dizem respeito
à comunidade negra (2002, p. 12).
Permanece, então, na ordem do dia a se-
guinte pergunta: como valorizar e respeitar
o contingente populacional afro-brasileiro
enfrentando as imagens preconceituosas
acionadas a partir do fato de que a maio-
ria dos negros e negras brasileiros teve seus
ancestrais sequestrados de várias nações do
continente africano e as suas trajetórias te-
rem sido subjugadas e escamoteadas da his-
tória oficial do país?
responder a essa questão não é tarefa sim-
ples, é preciso pensar o contexto sócio-his-
tórico do brasil. com a extinção do regime
escravocrata no brasil, o contingente popu-
lacional negro não teve sua vida social ime-
diatamente alterada, uma vez que foram li-
bertos sem qualquer apoio socioeconômico,
sendo ainda obrigados:
(...) a disputar a sua sobrevivência social,
cultural e mesmo biológica em uma so-
ciedade secularmente racista, na qual
técnicas de seleção profissional, cultu-
ral, política e étnica são feitas para que
ele permaneça imobilizado nas camadas
mais oprimidas, exploradas e subalterni-
zadas (MOURA, 1994, p. 160).
após a abolição da escravidão, uma aparen-
te integração interétnica e inter-racial sus-
tentou por muito tempo a ideia de uma de-
mocracia racial brasileira, o que dificultou a
percepção das práticas racistas no cotidiano
e camuflou as condições perversas de desi-
gualdades a que os negros foram e, ainda
estão, submetidos.
temos consciência da importância das vá-
rias iniciativas que vêm sendo realizadas em
território nacional em prol de uma socieda-
de étnico-racial realmente igualitária, mas
esperar que atitudes isoladas, fragmentadas
e de responsabilidade exclusiva dos negros
possibilitem uma transformação social efi-
caz nos parece ingenuidade. sem o desen-
volvimento de políticas públicas que privi-
legiem a igualdade nas relações raciais, tais
como a adoção de reserva de vagas (cotas)
em instituições de ensino superior, não
acreditamos que, a médio ou longo prazos,
tenhamos resultados positivos no combate
ao racismo no brasil.
Por que políticas de ações afirmativas para
negros e negras brasileiros? Porque, ainda,
são os negros o grande contingente popu-
181
lacional vivendo em condições socioeconô-
micas precárias. trata-se de uma herança de
um processo de “libertação” da escravidão
desconexo e indiferente aos destinos dos
negros e negras libertos, sem assistência e
garantias que os protegessem na transição
para o sistema de trabalho livre. o “liberto”
ficou à mercê de sua própria sorte, tornan-
do-se responsável por sua pessoa e por seus
dependentes, diferentemente dos emigran-
tes, que foram convidados a trabalhar em
terras brasileiras com direitos trabalhistas
garantidos e direito à moradia. apesar de to-
das as dificuldades, a população negra tem
lutado arduamente para alcançar um status
de igualdade, de direitos de cidadania e para
que o racismo seja minimizado.
Devemos lembrar que, historicamente, o
contingente populacional afrodescendente se
encontra vulnerável a processos discrimina-
tórios, mantendo-se em situação social desfa-
vorável e de subordinação aos demais grupos
sócio-raciais brasileiros (botelHo, 2000; sIl-
va, 1995; Hasenbalg e sIlva, 1988; rosem-
berg, 1987; rego, 1976). Para o equaciona-
mento de tais disparidades, são necessárias
políticas públicas direcionadas aos afro-brasi-
leiros em todos os segmentos sociais.
no campo educacional, é preciso salientar
que, por falta de ações pedagógicas per-
manentes de valorização dos negros(as), o
racismo tem tornado a escola um palco de
violências raciais. a legislação atual garante
possibilidades de reversão do quadro. o esta-
tuto da criança e do adolescente, em seu ar-
tigo 58, garante à criança e ao adolescente o
direito de desfrutar de sua herança cultural
específica. a constituição Federal estabele-
ce que os conteúdos do ensino Fundamental
devem assegurar o respeito aos valores cul-
turais (artigo 210). a lDb determina que os
projetos, programas e currículos assegurem
o respeito às diferenças culturais, sociais e
individuais de todos aqueles que frequen-
tam a escola, bem como estabelece a obri-
gatoriedade do ensino da História e cultura
afro-brasileira na educação básica.
o baixo nível de escolaridade da população
negra retroalimenta sua exclusão do merca-
do de trabalho, agravada pelas atuais mu-
danças advindas do processo antidemocrá-
tico de mundialização econômica. antigas
reivindicações dos diversos segmentos e do
movimento negro organizado e a sensibili-
dade de alguns gestores para a situação das
desigualdades raciais4 indicam a necessidade
4 a preparação para a III conferência mundial contra o racismo, a Discriminação racial, Xenofobia e Intolerâncias correlatas realizada em Durban, África do sul, no período entre 31 de agosto a 7 de setembro de 2001 deflagrou, no brasil, diversos encontros, em todo território nacional, com o objetivo de desenhar propostas de ações afirmativas para superar os problemas pautados pelos grupos representantes dos movimentos dos negros, dos povos indígenas, das mulheres, dos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais . ao final do encontro em Durban foram redigidos uma Declaração e um Programa de ação, com o controle social, pela sociedade civil para que os resultados sejam respeitados e as medidas reparatórias sejam implementadas.
182
de implementação de políticas de ações afir-
mativas5 educacionais de forma prioritária.
a legislação educacional brasileira permite
que educadoras e educadores atuem para
minimizar as desigualdades étnico-raciais
nos espaços educacionais. Inicialmente com
os temas transversais e um exercício de boa
vontade e de consciência política, alguns
educadores já abordavam as desigualdades
étnico-raciais presentes na sociedade brasi-
leira a partir dos pressupostos do tema da
“Pluralidade cultural”. Desde 2003, a lei n.
10.639/2003, que altera a lDb estabelecen-
do a obrigatoriedade do ensino de História
e cultura afro-brasileira na educação bá-
sica, permite uma ação mais contundente
para valorização da cultura negra brasileira
e africana. Para subsidiar esse exercício de
promoção de cidadania plena de todos e to-
das, é preciso compreender
(...) a cidadania como participação so-
cial e política, assim como exercício de
direitos e deveres políticos, civis e so-
ciais, adotando, no dia-a-dia, atitudes
de solidariedade, cooperação e repúdio
às injustiças, respeitando o outro e exi-
gindo para si o mesmo respeito (Brasil,
Secretaria de Educação Fundamental,
1998, p.7).
É importante lembrar que ações afirmativas
são importantes para a garantia de uma so-
ciedade democrática. contudo, muitas são
as resistências às políticas públicas educa-
cionais dirigidas para a população afro-bra-
sileira. É preciso superar o baixo preparo de
gestores e gestoras no trato dos problemas
sociais brasileiros e, em especial, aqueles
relacionados com os chamados excluídos
sociais – negros, quilombolas, mulheres,
indígenas, deficientes físicos, pessoas com
orientações sexuais diferenciadas e outros
– para que a equidade racial e de gênero es-
tejam de fato corporificadas na nossa socie-
dade.
REFERênCiAS
botelHo, D. m. Aya nini (coragem). educa-
dores e educadoras no enfrentamento de
práticas racistas em espaços escolares. são
Paulo e Havana. Dissertação (mestrado) –
Programa de Pós-graduação em Integração
da américa latina da universidade de são
Paulo, 2000.
5 no brasil, principalmente nos três últimos anos, com o sistema de acesso diferenciado para negros e indígenas, adotado em algumas instituições de ensino superior, aumentou a discussão sobre ações afirmativas. as cotas têm sido o cerne da questão e a discussão mais ampliada sobre ações afirmativas fica delegada a um plano de muitas opiniões e de poucas reflexões críticas. grupos historicamente desfavorecidos precisam de políticas afirmativas pontuais para modificar o contexto social vigente. ações afirmativas são bem aceitas nos partidos políticos por meio da ampliação da participação das mulheres nas legendas partidárias e nos concursos públicos, com reservas de vagas para deficientes físicos. Infelizmente, quando se trata de discriminação positiva para negros(as) e indígenas, a população recusa tais ações e não percebe os mecanismos racistas, presentes no brasil, que têm alijado sistematicamente indígenas e negros da ascensão social.
183
brasIl. secretaria de educação Fundamen-
tal. Parâmetros curriculares nacionais:
terceiro e quarto ciclos. apresentação dos
temas transversais/ secretaria de educação
Fundamental. brasília: mec/seF, 1998.
______. mec. Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana (2007). www.mec.
gov.br/secad/diversidade/ci
______. resolução cne n. 01/2004 (2007).
www.mec.gov.br/secad/diversidade/ci
Hasenbalg, c. a.; sIlva, n. do v. Estrutura
social, mobilidade e raça. são Paulo: vértice.
rio de Janeiro: IuPerJ, 1988.
moura, clóvis. Dialética radical do Brasil ne-
gro. são Paulo, anita, 1994.
rosemberg, F. (1987). relações raciais e
rendimento escolar. In: Cadernos de Pesquisa
da Fundação Carlos Chagas. são Paulo, n. 63,
1987.
sIlva, ana célia da. A discriminação do negro
no livro didático. salvador: ceD, 1995.
184
D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS
DOCUmENTáRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS
E EDUCAÇÃO1
Azoilda Loretto da Trindade2
“(...) o que aconteceu, no Brasil, é que os africanos [e as africanas] foram tão
fundo na construção desse país, que hoje eles [elas] já não são eles [elas] eles
[elas] somos nós, os brasileiros [as brasileiras]”3
construir um documento que dialogue com
outro/outros, no caso, com um documentá-
rio e, ainda, com outras séries do programa
Salto para o Futuro, sobre a temática das
africanidades, é um grande desafio. um de-
safio que se desdobra em outros:
• Desafio diante da riqueza histórica e cul-
tural (no sentido mais pungente, visceral
e amplo do termo) do patrimônio legado
pelos africanos e pelas africanas a toda a
humanidade.
• Desafio de não reproduzir preconceitos e
estereótipos que nos foram transmitidos
por uma educação racista, elitista e ex-
cludente, que todas nós, pessoas que edu-
cam, certamente, recebemos, de maneira
tão subliminar, às vezes, que são quase
imperceptíveis.
• Desafio de conseguir tocar os corações e
as mentes dos professores e professoras
brasileiras que tecem, re-tecem, constro-
em cotidianamente a nossa escola, no
que se refere à importância e à urgência
de se consolidar uma escola que respeite,
sem hierarquizar, os diversos saberes e fa-
zeres das diferentes matrizes culturais e
étnicas que constituem nossa brasilidade,
e, no caso mais específico deste material,
as africanidades.
• o desafio de convidar todos os educado-
res que demonstram indignação diante
das injustiças a ampliar a rede dos que
1 ano XvIII – boletim 20 – outubro de 2008.
2 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletânea e consultora do Documentário Africanidades brasileiras e educação.
3 retirado do documentário “Povo brasileiro” (baseado na obra de Darcy ribeiro).
185
sabem do convite que a vida, neste mo-
mento histórico da nossa existência, nos
apresenta: uma escola De QualIDaDe,
InclusIva, DemocrÁtIca, Do e Para o
Povo brasIleIro.
• Desafio que é alimentado por nossa indig-
nação e inquietação diante do racismo e
de qualquer expressão de injustiça social
e, consequentemente, que se desdobra
na não submissão, na não sujeição a cir-
cunstâncias e situações racistas e injustas
presentes no nosso cotidiano, inclusive,
escolar. somos, também, alimentadas por
um imenso amor e fé na vida.
o documentário Africanidades brasileiras e
educação tem como objetivo principal ser
um instrumento que possa ser utilizado na
formação de docentes, gerando estudos, re-
flexões e debates acerca das africanidades
brasileiras em ambientes formais e não-
-formais de aprendizagem, na perspectiva
de potencializar positivamente a presença
negra na sociedade brasileira.
como historicamente percebemos uma mi-
nimização das temáticas das africanidades,
muitas vezes vistas como secundárias em
relação às temáticas “universais” ou outras,
achamos importante destacar a nossa com-
preensão acerca da amplitude da vida hu-
mana e suas diversas expressões: de etnia,
de gênero, de inserção social e cultural, de
condição econômica, de aparência física, das
chamadas deficiências... nossa compreensão
é de que as discriminações e os preconceitos
aos quais os seres humanos são submetidos
são vários e de tipos os mais diversos. contu-
do, abordaremos as africanidades brasileiras4
em função dessas premissas: um cronificado
quadro de desigualdades aos quais os negros
são submetidos; historicamente, estarmos
aos 120 anos da abolição da escravatura; ter-
mos uma lei que institui a obrigatoriedade
do ensino da história e culturas africanas
e afro-brasileiras nos currículos escolares,
ampliada para as questões indígenas. tudo
isto nos leva a pensar o que sabemos sobre a
nossa afro-ascendência e a nossa ascendên-
cia indígena, além de estereótipos.
compreendemos que os preconceitos, os ra-
cismos e as discriminações não se circuns-
crevem aos negros e às negras, contudo,
enfocaremos as africanidades brasileiras,
como uma contribuição ao longo processo
de construção de uma pedagogia voltada
para a compreensão, a valorização e o res-
peito à nossa brasilidade.
áFRiCA nÃO é uM PAíS
Parece brincadeira, mas muitas vezes ouvi-
mos pessoas se referirem à África como sen-
4 o salto para o Futuro, ao longo da sua história, já tem uma tradição de documentários temáticos, inclusive,sobre questão indígena, cultura popular, dentre outros.
186
do um país ou um continente homogêneo,
ou como “o local onde tarzan viveu”... enfim,
várias situações que denotam um desconhe-
cimento do patrimônio geopolítico, cultural
e histórico que é o continente africano.
lembro-me de que, com 17 anos, numa aula
de pré-vestibular, escutei uma revelação de
um jovem professor negro, de História, que
foi emblemática na minha vida. ele revelou,
para a turma, que atentamente o ouvia, que
cleópatra não era como elizabeth taylor,
mas era uma mulher negra, inteligente e es-
trategista, e que o egito, das pirâmides, dos
hieróglifos, da esfinge, das técnicas de irri-
gação... era negro, situava-se na África.
outro episódio emblemático aconteceu, uns
quatro anos depois do relatado acima, já nos
anos 80, quando eu lecionava numa escola
pública municipal, na Zona oeste carioca.
contava uma história sobre um dia no zo-
ológico e uma menina negra, de oito anos,
levanta-se e sai do fundo da sala de aula para
olhar de perto a imagem exibida durante a
leitura da história. era uma imagem com vá-
rias pessoas no zoológico fazendo coisas di-
ferentes. a imagem era panorâmica, logo as
pessoas apareciam bem pequeninas. a meni-
na vem à minha frente, olha, olha outra vez
a gravura, como se não acreditasse no que
via e diz: “Ih! uma pretinha!”
Depois, retornou, com um aspecto de satis-
fação, ao local onde estava sentada. até hoje
fico impressionada com o que pode ter sig-
nificado para ela aquela ilustração.
compartilho estes episódios, pois acredito
que você, leitor(a), ao parar para pensar, cer-
tamente terá pelo menos uma situação ilus-
trativa da invisibilização ou minimização da
presença negra na sociedade e na escola, ou
em diferentes contextos educativos. creio
que essas situações, episódicas ou não, pre-
cisam ser lembradas, refletidas, recordadas,
criticadas, compartilhadas, para serem li-
bertadoras, para romperem com o silêncio
que a escola e a sociedade têm produzido
em relação às desigualdades étnico-raciais
brasileiras. situações sugerem questões e
questões não nos faltam! você já se pergun-
tou por que conhecemos tão pouco sobre a
África? o que aprendemos na escola, o que
lemos a respeito, o que vimos no cinema ou
na tv sobre o continente que é o berço da
humanidade?
Desconhecemos o passado remoto e recente
da África e pouco sabemos sobre o seu pre-
sente.
no entanto, essa é uma história que influen-
cia definitivamente nosso modo brasileiro
de ser e de estar no mundo. o que estuda-
mos sobre africanos e africanas que foram
trazidos para o brasil na condição de escra-
vizados? será que temos nos perguntado por
que condições históricas os afrodescenden-
tes, assim como os povos indígenas e outros
187
grupos sociais, têm tido seus direitos mais
básicos desrespeitados ou mesmo negados?
a desigualdade que marca profundamente a
sociedade brasileira tem raízes no colonia-
lismo e no escravismo. alterar positivamen-
te esse cenário injusto tem sido bandeira
de luta dos movimentos organizados. algu-
mas conquistas já podem ser vislumbradas,
inclusive no campo das políticas públicas.
no caso da educação, destacam-se a lei n.
10.639/03 e a lei n. 11.645/08 que preconi-
zam, respectivamente, o ensino da história
e da cultura africana e afrobrasileira nas
escolas e, no caso da lei mais recente, que
substitui a anterior, a também inclusão das
temáticas indígenas na educação.
áFRiCA (RE)COnHECiDA
se a África é o berço da humanidade, no mí-
nimo, o continente africano produziu e pro-
duz um imenso patrimônio sócio-histórico
e cultural, entendendo cultura no seu mais
amplo sentido, no qual estão envolvidas ar-
quitetura, ciência, engenharia, medicina...
no entanto, lamentavelmente para todos os
seres humanos, a escravatura e o racismo
nas suas nuances e atualizações, vem colo-
cando a riqueza deste continente na subal-
ternidade, na invisibilidade:
“É importante que a gente lute contra
essa ideia de uma África fixa e homogê-
nea que durante três séculos forneceu
escravos para o Brasil e procurar pensar,
procurar estudar que sociedades eram
essas, que culturas eram essas, em que
dinâmica eram inseridos esses africanos
que vieram para o Brasil e que trouxe-
ram tantas coisas importantes! Que
trouxeram para o Brasil sua força de tra-
balho, suas técnicas, suas competências,
suas religiões, suas cosmologias, suas
formas de entender o mundo, formas es-
sas que ficaram gravadas no modo como
o Brasil, como os brasileiros são ainda
hoje. Outro ponto importante que a gen-
te deve ressaltar na história africana na
sala de aula é a própria historia africana
em si mesma. Essa África milenar, essas
culturas que são múltiplas e interessan-
tes, a gente se deter na história das re-
lações dos africanos com o mundo, nas
criações, na emergência de reinos na
África ocidental, entender o Egito como
uma civilização que está inserida no
contexto africano, que é tributário das
cidades africanas, ele próprio um marco
importante. Então, entender o Egito no
contexto africano é interessante, enten-
der a própria história da África em suas
próprias dinâmicas. Existe material para
isso, para pensar a própria história afri-
cana em si mesma. Eu acho importan-
te o estudo da África contemporânea,
dos seus dilemas, das suas questões que
não são tão diferentes assim das ques-
tões pelas quais a América Latina vem
188
vivendo. Acho que as lutas africanas
são importantes, as tomadas de cons-
ciência, o processo colonial, o processo
pré-colonial, o mundo contemporâneo,
então a geografia tem muito o que ex-
plorar. Eu acho que existe uma riqueza
enorme nas culturas africanas hoje, nos
países africanos, em termos de uma li-
teratura muito interessante, disponível
em Português, para o caso de literatu-
ras africanas em língua portuguesa, é
preciso investir nesses estudos. Investir
nesse diálogo que a África faz entre sua
própria história e o mundo, juntando
tradição e modernidade, acho que são
formas específicas de aliar a sua própria
tradição, seu próprio legado com o pre-
sente, a música africana é riquíssima,
a arte africana é lindíssima, tanto essa
arte tradicional como a arte contempo-
rânea, que você encontra nas bienais,
que você encontra enfim numa série de
exposições. É preciso pesquisar essa Áfri-
ca urbana, essa África vibrante, das mú-
sicas, das cores, da arte, da literatura,
ela está aí, ela está disponível para ser
trazida para a sala de aula como uma
maneira, como mais um diálogo conosco
mesmo. Acho que ela faz parte do mun-
do contemporâneo, então, esse interesse
pela África como parte do nosso mundo,
do nosso mundo globalizado, do nosso
mundo que se aproxima cada vez mais
pela Internet, pelos fluxos, a África está
nesse fluxo e está esperando ser desco-
berta pela Brasil” (Luena Nascimento –
antropóloga/UNICAMP/Bolsista).
África diversa, África plural, África de on-
tem e hoje com riquezas, contradições e
conflitos,que precisa ser apresentada, re-
apresentada às educadoras e aos educa-
dores do brasil por brasileiras(os) e por
africanos(as) de variados países africanos.
vOZES D’áFRiCA: tRECHOS DE
EntREviStAS
Chimamanda5 - escritora (nigéria):
“(...) é muito importante que as pessoas
contem suas próprias histórias. E a Áfri-
ca é uma região do mundo que por mui-
to tempo teve suas histórias contadas
por outras pessoas. Muitos dos textos
africanos foram na verdade escritos por
europeus, se voltarmos duzentos anos
atrás. Eu acho que é uma coisa boa ou-
virmos histórias de África contadas por
africanos”.
“África não é uma coisa única. Poucos
pensam sobre África de forma diferente.
Pensam na África das girafas, ou pen-
sam em AIDS, ou pensam em guerras, ou
pensam na pobreza. Uma das perguntas
5 tradução Kátia santos.
189
que me foi feita por um dos jornalistas
brasileiros, antes que eu chegasse aqui,
foi ‘como você pode ajudar ao seu país?’
E eu pensei, meu país não é apenas um
lugar para eu ajudar. Há muita coisa
acontecendo na Nigéria. Há nigerianos
que estão ajudando a nigerianos. Há ni-
gerianos que são pobres; nigerianos que
são ricos. Há muita coisa acontecendo.
Acho que a única coisa que posso dizer
é que há muitas Áfricas. Não há apenas
uma. Há várias histórias em África. As
histórias de ricos e pobres; as histórias
felizes e tristes; e todas elas são histórias
africanas, e é importante que nos lem-
bremos disso.”
“Não temos como apagar o colonialismo
da nossa experiência. É parte da nossa
experiência. Parte da experiência de ni-
gerianos, de quenianos, de senegaleses...
A África foi colonizada. E é tudo muito
recente. Tornamo-nos independentes em
1960. Há pouco tempo atrás. E a forma
como vivemos hoje é ainda uma reação
ao colonialismo. O colonialismo é ain-
da parte de nossa existência. O sistema
educacional da Nigéria, por exemplo,
não mudou muito desde os anos 1950. As
pessoas aprendem muito sobre a Ingla-
terra e muito pouco sobre África, porque
foi assim que eles organizaram o siste-
ma educacional. Então, é difícil respon-
der ‘o que você tem a dizer sobre o fim
do colonialismo na sua obra?’ Acho que
estou apenas escrevendo histórias sobre
pessoas que vivem em um tempo em que
o colonialismo é parte integral de nossas
vidas. Mas isto não significa que as pes-
soas não tenham [iniciativa]. Os africa-
nos são pessoas que têm iniciativa.”
Pepetela – escritor (Angola)
“A literatura acaba por mostrar que
também no continente africano já há
pessoas que pensam, começa por aí. E
um dos estigmas que haviam passado
pela Europa é que em África praticamen-
te só havia macacos em cima das árvo-
res. Portanto, a literatura é uma forma
boa para dar a conhecer a realidade, cer-
ta realidade e, sobretudo, para chamar a
atenção para problemas, quaisquer que
sejam. Não para resolver problemas,
não porque não é trabalho que se possa
exigir do escritor. É para isso há outras
instituições e pessoas, mas levantar os
problemas, chamar a atenção, é obrigar
as pessoas a pensar sobre esses proble-
mas.”
“(...) Mas o fato de ser a língua materna
[a portuguesa] a língua na qual eu me
expresso, não me impede nunca de dei-
xar de escutar essas outras línguas que
eu não falo. E há em mim uma busca
incessante da necessidade, da harmonia
de todas essas línguas e que foram tra-
zidas em primeira mão pelas ‘mulheres’,
190
primeiro na família, depois na sociedade,
depois no mundo inteiro que também
tem outras vozes que eu também escu-
to. É curioso porque eu vou dizer mais
uma vez: foi em português que eu falei
dessas mesmas línguas, mas há todo um
patrimônio da tradição oral e mesmo fi-
xado em português que foi importante
para eu chegar ao conhecimento dos lo-
cais, das regiões, do meu país, em suma.
Eu penso que toda a gente é de um lugar,
como é de uma infância, com é de uma
determinada região e aí, essas mesmas
línguas silenciadas durante todo o pro-
cesso colonial, elas foram só aparente-
mente silenciadas, porque elas estavam
lá, o meu trabalho nem sequer foi muito
grande, foi apenas ouvir, ficar atento.”
Ana Paula tavares - escritora (Angola)
“Se eu tivesse que escolher um tema para
as minhas coisas, desde logo a palavra
‘mulher’ seria muito importante. Desde
cedo eu me habituei a olhar a volta e no-
tar que o país, a região local dependia
dessa força enorme, dessa energia enor-
me das mulheres. São elas que inventam
a água, são elas que fazem as comidas,
são elas que sustentaram um país que,
como vocês sabem, durante tantos anos,
esteve na guerra. Os homens estavam a
fazer a guerra, eram as mulheres que
faziam com que o país funcionasse com
que o país se reproduzisse. Eram elas que
cuidavam dos vivos e dos mortos. Então,
se há alguma coisa que possa ser recor-
rente numa obra que tenta tocar todos
os temas, a palavra ‘mulher’ é talvez a
mais forte e eu sou muito tributária des-
sas vozes que eu ouvi, dessas mulheres
que falavam outras línguas que não a
língua portuguesa que é a minha língua
materna.”
“São Tomé e Príncipe é um país insular, é
um arquipélago com menos de mil km2,
160 mil habitantes, eu acho que cabemos
algumas vezes no estádio do Maracanã,
e a origem da sociedade creola santo-
mense é escravagista, o povoamento se
fez com povos levados de diversas par-
tes do continente africano e essa mescla
de culturas, esse cadinho de cultura, faz
com que a questão da identidade tam-
bém atravesse a poética santomense.
Em mim, a questão da identidade está
muito presente e é um dos aspectos cen-
trais da minha poesia. O desejo de tentar
iluminar trechos obscuros ou apagados
ou rasurados da história do meu povo.
A presença do escravo, o sofrimento do
escravo, dos nossos antepassados, o si-
lenciamento das suas vozes, contudo
não morreram porque eu degluti essas
vozes e elas estão hoje na minha poesia.
Por outro lado, a firme vontade de atra-
vés da palavra poética como que fazer
justiça histórica a esse segmento funda-
mental do meu país e do meu passado,
191
porque há uma grande preocupação
com o meu passado. A memória, portan-
to, escreve-se aí, a memória familiar, a
memória pessoal, a memória histórica.
Outra preocupação central tem a ver
com o social presente e mesmo quando
eu me inspiro no passado e vou ao pas-
sado e vou à história, esse tratamento
não é meramente revitalista. Há uma
relação entre o silenciamento e a injus-
tiça, um presente marcado por fortes es-
tratificações, por uma classe dominante
que tem muito e uma maioria que tem
muito pouco.”
Conceição lima – escritora (São tomé)
“Há um provérbio guinense que diz as-
sim: quando alguém insiste em dizer
que conhece fulano muito bem, que ele
não seria capaz de tal coisa ou que ele é
capaz de fato de fazer ou cometer esse
erro! Há a voz de um velho que pergun-
ta: Há quantos anos vocês moram jun-
tos? Quando você diz: há cinco, há três,
há sete... ele diz: não, você não conhece,
porque nós vivemos uma vida inteira e
não nos conhecemos a nós mesmos, por-
que às vezes nos surpreendemos com ati-
tudes, com palavras que saem da nossa
boca. Eu parto desse provérbio guinen-
se para dizer que não é fácil conhecer
o outro, mas é possível criar condições,
criar um patamar de partilha de experi-
ências, então eu acho que falta qualquer
coisa para essa partilha. Há como que
um preconceito de parte a parte, nós
mesmos muitas vezes nos olhamos com
preconceito e nós olhamos o outro com
preconceito e temos medo de admitir
esse preconceito que nós temos e todo o
mundo tem um pouco desse preconceito
lá no canto. Então, eu acho que cada vez
que nós damos um passo para nos desi-
nibirmos um pouco mais, para limpar-
mos este preconceito que às vezes nós
temos do outro, porque o outro é aquele
que nós mal conhecemos e que, muitas
vezes, porque não conhecemos, porque é
algo que se parece, em nossa vista, como
misterioso, nós não conhecemos e ali
há algo de que temos medo também e
é esse medo que está a constituir a bar-
reira desta partilha, desse mau conheci-
mento do outro, de nós a nós mesmos,
do Brasil a si próprio, para depois nós
partilharmos esse conhecimento que vai
passar pelo reconhecimento da cultura
do outro, das nossas culturas, nós afri-
canos, as vossas culturas, vós, brasilei-
ros, para conhecerem que o Brasil é um
continente. O Brasil é uma imensidão e a
África é outro continente, então é preci-
so que cada um de nós saiba se conhecer
a si próprio, saiba tolerar-se a si próprio,
saiba conhecer a sua história e, como di-
ria Paulo Freire: Cada vez que nós ensi-
namos a ler e a escrever a um homem e
a uma mulher, nós estamos a dar a este
homem e a esta mulher instrumentos
192
para que ela e ele próprios consigam es-
crever e reescrever a sua própria história
e rever-se nela, sem complexo e com a
responsabilidade própria.”
Odete Semedo – escritora (guiné-Bissau)
“Quando eu tive conhecimento dessa lei,
eu disse: bom, eu acho que o Brasil pôs
na mesa o assunto para ser discutido,
um assunto que me parece que é um as-
sunto tabu. As pessoas não querem falar
de racismo, em discriminação, no negro
e de várias coisas, parece que a histó-
ria nos envergonha. Então, essa lei vai
permitir um olhar para trás, um olhar
para a história do Brasil, um olhar sem
complexos, eu espero. E mesmo que seja
um olhar com complexos, mas desde
que permita a abordagem do problema
já está a pôr à mesa uma questão que
é uma questão não só brasileira, mas
africana e universal, porque o racismo,
a discriminação, não é só no Brasil, não
é só em África. Há um pouco em cada
canto dos países da Europa ou da Améri-
ca do Norte. O meu olhar sobre essa lei é
que ela vai permitir um olhar para trás,
um olhar o presente e, em perspectiva, o
futuro sem receio, sem complexos, isso é
o que eu vejo. Eu acho também que essa
lei vai permitir um olhar sobre a África
com outros olhos, não o olhar de uma
África folclórica, não a África de guerras,
de fome, mas uma África que é como um
continente com vários países, com vá-
rias culturas, várias línguas, várias ma-
neiras de estar, de viver, de olhar o mun-
do. Portanto, eu acho que essa lei é mais
uma porta que se abre, não vai mudar o
mundo, mas é um passo, é uma pedra no
meu entender.”
PEnSAR A DiáSPORA AFRiCAnA
Pensar a Diáspora africana é pensar na Áfri-
ca como um continente que se expandiu,
de onde seus filhos e filhas se espalharam
pelo mundo, antes, durante e depois do cha-
mado período da escravização negra. e isto
é importante, uma vez que aqui, no brasil,
constituiu-se uma parcela desta diáspora
africana.
esta presença africana no brasil, marcada
por histórias, memórias, culturas e valores
civilizatórios, estabelece aqui referenciais
que se constituem como valores civilizató-
rios afrobrasileiros, valores tecidos no diá-
logo, nos confrontos, nos encontros dias-
póricos dos africanos, afro-brasileiros entre
si e com os demais grupos aqui existentes.
Que valores seriam estes? Ilustrativamente,
podemos citar o da circularidade como um
valor que nos permitiu, enquanto afrodes-
cendentes e afro-brasileiros, ressignificar a
dor do processo cruel da escravização negra,
do racismo, e positivizá-la, produzindo vida
afrodescendente fora da África.
193
o principio do axé, da energia vital, outro
valor que acena para esta presença no coti-
diano brasileiro, o comunitarismo, a coope-
ração, a memória inscrita no corpo, a corpo-
reidade, a ludicidade imbricada no processo
de transformar a dor em potência...
“(...) os africanos chegaram pratica-
mente com o seu corpo, foram muito
poucos os objetos trazidos, eles eram na
verdade desnudados, vinham quase que
nus nos navios. O patrimônio maior cul-
tural era o corpo. O corpo passou ser a
caixinha de segredo. Então, o corpo tra-
zia não só as marcas do mundo perdido,
das culturas a que, na verdade, esses
africanos que para cá foram transla-
dados pertenciam. As marcas culturais
vinham com o corpo nos gestos, nos
hábitos, nos comportamentos das con-
dutas corporais e também nas escari-
ficações, das cicatrizes, das marcas do
corpo. O corpo era na verdade o grande
arquivo que continha a memória das
experiências que agora eram violenta-
mente abandonadas, agora, se podemos
falar de patrimônio histórico e cultural
das populações africanas transladadas,
o primeiro território, o primeiro objeto,
o primeiro elemento fundamental dessa
memória é o corpo. É com o corpo que o
africano vai reconstruir a sua experiên-
cia perdida, é através desse corpo, atra-
vés da gesticulação, através da dança,
através do modo de andar, através da
oração, através da culinária quer dizer
com o corpo, pelo corpo é que a expe-
riência patrimonial, civilizatória vai ser
reconstituída” (Julio césar de tavares –
Professor de antropologia da univer-
sidade Federal Fluminense).
“(...) em comunidades remanescentes
se festeja tudo, se festeja a vida, e jun-
tamente com a questão do festejo vem
a questão do canto, vem a questão da
música, vem a questão da dança, que
constitui momentos que, se formos ana-
lisar na comunidade o que se significa a
festa, são movimentos reivindicatórios,
são movimentos revolucionários, onde
se revitaliza a potência de se tentar co-
locar frente ao mundo branco, frente a
tantas expropriações a que os quilom-
bolas estão sujeitos” (georgina Helena
lima nunes – professora da universi-
dade de Pelotas – rs).
Pensar a Diáspora africana não apenas nas
bases culturalistas, mas também políticas,
pois os valores trazidos e vivenciados po-
dem ser fatores de transformação social.
Em toda cultura nacional
Na arte e até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
E o negro brasileiro
194
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas raízes
(nei lopes e Wilson moreira).
AFRiCAniDADES BRASilEiRAS E
EDuCAÇÃO
“(...) estudar Africanidades Brasileiras
significa estudar um jeito de ver a vida,
o mundo, o trabalho, de conviver e lutar
por sua dignidade, próprio dos descen-
dentes de africanos que, ao participar
da construção da nação brasileira, vão
deixando nos outros grupos étnicos com
quem convivem suas influências e, ao
mesmo tempo, recebem e incorporam as
daqueles” (Petronilha gonçalves e silva
– Professora da universidade Federal
de são carlos - uFscar).
Pensar as africanidades brasileiras na atuali-
dade nos remete ao fato de que é impossível
negar a presença negra em todos os setores
da sociedade brasileira. contudo, em alguns
espaços, essa presença está aquém do que
é desejado e necessário, e ainda é marcada
pelo racismo, pela exclusão, pela subalter-
nização. no entanto, é importante ressaltar
que:
“Uma sociedade pautada em qualquer
tipo de discriminação é uma sociedade
que vai deixar, sem dúvida, à margem
da participação, digo participação pro-
dutiva, produtiva intelectual e produtiva
econômica, uma grande parcela da sua
população. E nesse sentido, quando nós
pensamos em racismo, nós estamos pen-
sando em mais de 50% da população ne-
gra ou pelo menos quase 50%, se formos
seguir as cifras oficiais apresentadas
pelo IBGE. Então, nós estamos dizendo
que numa sociedade que exclui e exclui
pelo racismo, que é a nossa discussão
aqui, nós vamos ter metade da popula-
ção do Brasil fora dos regimes de direitos
de todas as áreas e isso traz no mínimo
subdesenvolvimento para o país” (Joseli-
na da silva - Professora da universida-
de Federal do ceará).
“É preciso que os educadores brasileiros
entendam o seguinte. Que eles se per-
guntem: o que eu sei de Ásia? Estou ven-
do um japonês aqui, este aqui é uma des-
sas populações. O que eu sei da história
do português, da história de Portugal,
será que eu sei alguma coisa? O que eu
sei da história da Itália? Então, eles têm
que perguntar a eles mesmos, ao invés
de partir do que já sabem” (Yedo Ferrei-
ra - militante movimento negro).
a despeito do racismo, das desigualdades
étnico-raciais, talvez alimentados pelos seus
valores civilizatórios, ainda que inconscien-
temente, o povo negro, ou afro-brasileiro,
195
afirma cotidianamente sua energia vital, seu
axé, sua presença, sua existência:
“(...) a escola deve ser impregnada pela
diversidade das culturas que compõem
a nação brasileira. Então, temos que ad-
mitir que existem várias culturas e não
só as culturas oriundas da Europa. O
tempo todo se fala nessa mítica das três
raças compondo a nação brasileira, mas,
entretanto, os valores ocidentais não são
somente os hegemônicos, são os que de-
têm a supremacia na produção desses
valores na escola. Então, uma escola
democrática é uma escola que aposta
na diversidade, mas não só diversidade
congelada, coloca ali uma estátua do be-
rimbau, ou uma estátua do orixá dentro
da escola e falar que isso é diversidade.
São esses valores que compõem a força
das diferentes culturas, em especial da
cultura afro-brasileira, eles devem não
só estar presentes, como também asse-
gurar que a sua dinâmica se entrelaça
no cotidiano da escola, eles devem estar
presentes na culinária, na merenda esco-
lar, eles devem estar presentes natural-
mente nas atitudes cotidianas desses jo-
vens na escola, devem estar presentes no
esporte, devem estar presentes na pró-
pria discussão religiosa, devem estar pre-
sentes na matemática, as formas de pen-
sar a matemática, o número dentro da
África deve aparecer no ensino da mate-
mática, valorizar as diferentes etno-ma-
temáticas, as diferentes matemáticas
culturais. A matemática não é somente
a matemática ocidental, a matemática
como forma de pensar geometricamen-
te, aritmeticamente a natureza, isso
existe em várias culturas, então existe
uma forma de pensar matematicamente
na África, que deve aparecer. Essa diver-
sidade deve se entrelaçar no cotidiano
da escola, esse entrelaçar e o impregnar,
a gente tem que produzir essa impreg-
nação, essa interculturalidade, mais que
a multiplicação das culturas, temos que
fazer com que haja o encontro e o inter-
curso dessas culturas. A impregnação
da cultura afro-brasileira seria talvez
o maior desafio, porque é muito fácil,
por conveniência, os diretores da escola
fazerem lá o dia do negro, como fazem
o do índio. Isso não é transformar essa
cultura como presente, congelando num
único dia, dos 365 dias do ano, é preciso
fazê-la presente diariamente conforme
a cultura ocidental do europeu está pre-
sente nos 365 dias, você não tem o dia
da cultura alemã, você tem ela presente
o tempo todo, a cultura italiana, a cul-
tura portuguesa ou a cultura espanhola,
como cultura ocidental, elas estão pre-
sentes os 365 dias do ano. Então, quere-
mos que também durante os 365 dias do
ano a cultura africana e a cultura indí-
gena estejam presentes e as demais cul-
turas, a cultura cigana, todas as outras
culturas. É importante que haja um local
196
de manifestação dessa multiplicidade,
desses universos múltiplos das diferentes
culturas. A cultura afro-brasileira tem
uma riqueza gigantesca para oferecer a
essa moldagem da nação brasileira num
universo intercultural, precisamos estar
convictos, nós, professores, diretores da
escola, que é importante para produção
de um novo brasileiro, essa impregnação
e a convicção significa na adesão genero-
sa, na adesão amorosa, na adesão afeti-
va a essa cultura.”
Digamos, abrir o coração a essas culturas,
abandonarmos a força colonial que nos co-
loca quase que de joelhos diante daquilo que
é europeu super, hiper valorizando o que é
europeu e desvalorizando, desqualificando o
que é africano, o que é indígena na cultura
brasileira.
Isso é que precisa ser superado e essa su-
peração só poderá se dar com amor se não
houver convicção da necessidade de afeto no
tratamento com afeição, com generosidade,
com gentileza dessas culturas, compreen-
dendo a presença delas já existente dentro
de nós mesmos, dentro da cultura que nós
temos. Imagine você que o brasil tem a feijo-
ada como seu prato nacional e ainda discute
se deve ou não garantir a impregnação da
cultura afrobrasileira no nosso cotidiano. É
tamanha a hipocrisia, a ignorância e o grau
de colonialismo em que vivemos que preci-
samos superar isso com uma certa dose de
amor, não é violência, é amor, vamos abrir o
coração e compreender que a cultura brasi-
leira está presente o tempo todo ao lado da
cultura afro-brasileira, ela é um dos princi-
pais modeladores da nação brasileira (...) (Ju-
lio césar de tavares – Professor de antropolo-
gia da universidade Federal Fluminense).
estamos na capilaridade da sociedade brasi-
leira, somos, nesse sentido ampliado, todos
afrobrasileiros.
“Essa presença está no cotidiano do bra-
sileiro, está no ar que o brasileiro respira
está no ritmo do corpo do brasileiro, está
na comida do brasileiro. Só que o brasi-
leiro também não percebe isso e gosta-
ria de ser considerado como europeu.
Isso está claro no sistema de educação.
Nosso modelo de educação é uma edu-
cação eurocêntrica. A escola é o lugar
onde se forma o cidadão, onde se ensina
uma profissão. Escolas que sabem lidar
com os dois lados da educação ensinam
a cidadania e a profissão. Uma história
que é ensinada, a história da Europa, dos
gregos e dos romanos, portanto, brasi-
leiros não só descendentes de gregos e
romanos, de anglo-saxões... São descen-
dentes de africanos também, de índios e
descendentes de árabes, de judeus e até
de ciganos. E se a gente olhar o nosso
sistema de educação, onde estão esses
outros povos que formaram o Brasil?
Então, há um problema no Brasil, além
197
dessas pessoas serem as maiores vítimas
da discriminação social, do sistema de
educação formal, elas são simplesmente
ocidentalizadas, elas são simplesmente
embranquecidas. Então, há um proble-
ma na educação do brasileiro. Se a gen-
te colocar as questões: quem somos, de
onde viemos e por onde vamos, vamos
ver que o Brasil nasceu do encontro da
culturas das civilizações, dos povos in-
dígenas, africanos que foram deporta-
dos os próprios imigrantes europeus de
várias origens. Até estamos agora co-
memorando os cem anos da imigração
japonesa, se fala mais dos cem anos da
imigração japonesa do que 600 anos da
abolição. Não tenho nada contra isso,
mas fala-se muito pouco da abolição.
Se a gente quer saber quem somos, de-
vemos conhecer todas as nossas raízes,
aqueles povos que formaram o Brasil, al-
guns dizem que somos um país mestiço,
mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já
que a gente não quer reconhecer a diver-
sidade das coisas, suponhamos que seja-
mos todos mestiços, vamos pelo menos
estudar as raízes da nossa mestiçagem,
faz parte da nossa cultura” (Kabengele
munanga – Professor de antropologia
/ usP – Diretor centro de estudos afri-
canos).
Diante da nossa diversidade étnico-racial,
cultural, creio que fomos colocadas(os) no
desafiante território da construção, enquan-
to educadoras e educadores brasileiros, de
uma pedagogia brasilis, uma pedagogia
com/da e para a real e diversa população
brasileira.
Um sorriso negro, um abraço negro
Traz.... felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRA-
SILEIRAS E EDUCAÇÃO 15 .
Negro é a raiz da liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio, é luto
negro é... a solução
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade.. (um sorriso
negro!)
(Dona Ivone lara)
REFERênCiAS
brasIl. Ações Afirmativas e Combate ao Ra-
cismo nas Américas. brasília: mec, secaD,
2005.
198
______. Educação anti-racista: caminhos
abertos pela lei Federal nº 10.639/03. brasí-
lia: mec, secaD, 2005.
______. Histórias da Educação do Negro e
outras histórias. brasília: mec, secaD,
2005.
______. Orientações e Ações para a Educação
das Relações Étnicos-Raciais. brasília: secaD,
2006.
garcIa, Januario. 25 anos 1980 – 2005: movi-
mento negro no brasil. brasília, DF: Funda-
ção cultural Palmares, 2006
199
CAPÍTULO 3
ENTRECRUzAmENTOS TEmáTICOS: mULTICULTURALIDADES,DISCIPLINARIDADES E AFRICANIDADES
a ideia que orienta este terceiro capítulo
insere-se no campo das redes de conheci-
mento, das tessituras de ideias, das inven-
tividades, dos diálogos, das aventuras hu-
manas na construção do novo, do novo que
aproxima, une e se mescla... ao ler os textos,
observamos uma infinidade de caminhos,
possibilidades, escolhas...
acreditamos que a implementação da lei ou
a construção de uma educação inclusiva e
emancipatória não deve ignorar conheci-
mentos produzidos, mas criticá-los e ajustá-
-los, se possível, a uma perspectiva a favor
da vida na sua plenitude.
selecionamos, no panorama das publicações
do Salto para o Futuro, textos que, mesmo
que não se refiram especificamente à lei n.
10.639/03 ou à lei n. 11.645/08, podem ser sub-
sídios para pedagogias que não excluam, que
não sejam racistas, machistas... as articula-
ções que podem e devem ser feitas incluem-
-se no campo da pedagogia diaspórica, onde
novas significações e apropriações podem ser
elaboradas.
os textos devem ser vistos criticamente, pois
todos estão inseridos no campo ideológico e
de visões de mundo, classe, formação, etnia...
i. Ciência multicultural, de ubiratan
D’ambrosio. optamos em iniciar este capí-
tulo da coletânea com este texto, pela fun-
damental relevância deste tema - a ciência
- no campo da multiculturalidade e das afri-
canidades. Pensar a ciência numa aborda-
gem multicultural é uma demanda para não
só implementar as leis, como mudar menta-
lidades colonizadas e excludentes.
ii. Afroetnomatemática, áfrica e afrodes-
cendência, de Henrique cunha Junior. este
texto desconstrói as naturalizações acerca
do continente africano e o conhecimento
matemático. são tantas as descobertas e re-
descobertas, as novas possibilidades de ver,
sentir, conhecer, que o estudo para os e as
docentes é um caminho imprescindível.
iii. A multiculturalidade na educação esté-
tica, de ana mae barbosa. como dissemos
anteriormente, embora alguns textos não
200
foquem diretamente as africanidades, eles
nos ajudam a fundamentar nossa visão in-
clusiva, nossa prática, que pode ser rotulada
de multiculturalista crítica, emancipatória
e, também, que tem como meta implemen-
tar a lei n. 10.639 e a lei n. 11.645. arte e
estética são palavras-chave e campos de ex-
tremada relevância para o trato das africa-
nidades e para a desmontagem de precon-
ceitos. e este texto cumpre esta função.
iv. Construção estético-cultural de um es-
paço, de laura maria coutinho. ao ler e re-
ler os textos desta coletânea, sempre tive a
preocupação de promover diálogos entre di-
versos temas e autorias. Dessa forma, desta-
camos este texto como um alerta no que se
refere às africanidades. atentem que, fron-
talmente, ele não aborda as relações étnico-
-raciais, mas suas pontuações com relação à
imagem nos referendam.
v. O espaço dos vídeos na sala de aula: a di-
fusão de mensagens sobre afro-brasileiros,
de Heloisa Pires lima. em diálogo com os
dois textos anteriores, este texto foca as
africanidades e os preconceitos e estereóti-
pos alimentados por alguns produtores de
imagens móveis ou fixas (fotografias, fil-
mes...) alertando-nos para o cuidado com o
racismo que embaça nossas visões e percep-
ções acerca do nosso povo preto e mestiço.
vi. O significado da oralidade em uma so-
ciedade multicultural, de maria elisa ladei-
ra. talvez, numa primeira leitura, o foco do
texto pareça ser unicamente os povos in-
dígenas e a escrita, mas ao observarmos a
formação e a ocupação da autora, o nome
do texto e da série na qual ele está inseri-
do, podemos perfeitamente observar a sua
abrangência. sim, temos, além dos povos
indígenas, populações como os ciganos e al-
gumas comunidades quilombolas em que a
oralidade é um valor.
vii. no tempo em que os seres humanos
conversavam com as árvores..., de narci-
mária correia do Patrocínio luz. Da mesma
série da qual faz parte o anterior, este tex-
to é uma ode à nossa ancestralidade e, ao
mesmo tempo, um ensinamento de outras
possibilidades não eurocentradas de ensino-
-aprendizagem.
viii. Os versos sagrados de ifá: base da tra-
dição civilizatória iorubá, de Juarez tadeu
de Paula Xavier. temos, aqui, um texto aces-
sível e consistente que afirma a importância
da oralidade e revela sua pujança como um
valor civilizatório dos povos iorubanos.
iX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e
afro-brasileiras, de andréia lisboa de sou-
sa e ana lúcia silva souza. aqui temos um
cardápio de possibilidades de trabalho nas
“águas” da oralidade e da literatura. É um
texto afirmativo, propositivo e informativo,
inclusive dos dispositivos legais.
201
X. Conto popular, literatura e formação de
leitores, de ricardo azevedo. como aqui se
trata de um livro para professores e profes-
soras, educadoras, este texto assume um
caráter de compreensão acerca do conto
popular em interação com a literatura e a
formação de leitores. cremos que o trinômio
anunciado no título pode ser visto como um
dos recursos propícios à implementação das
leis de que fala esta coletânea, bem como
favorecer o fortalecimento da autoestima
de crianças e jovens estudantes.
Xi. literatura e pluralidade cultural, de ma-
risa borba. embora seja um texto publicado
antes das referidas leis, sua atualidade nos
revela a necessidade de que a abordagem da
autora seja levada em consideração.
Xii. novas bases para o ensino da história
da áfrica no Brasil, de carlos moore. o texto
apresenta bases que nos desestabilizam em
relação ao nosso conhecimento e docência
em face do ensino da história da África no
brasil, colocando-nos diante da imperativa
necessidade de pesquisa, estudo, crítica e
autocrítica, de modo a não reproduzirmos
equívocos e estereótipos já naturalizados no
nosso imaginário social brasileiro.
Xiii. Enfrentando os desafios: a história da
áfrica e dos africanos no Brasil na nossa sala
de aula, de mônica lima. com cautela, res-
peito e compromisso político, o texto aponta
repertórios da História da África e dos africa-
nos no brasil, passíveis de serem trabalhados
pedagogicamente nas salas de aula.
Xiv. Sons de tambores na nossa memória
– o ensino de história africana e afro-bra-
sileira, de mônica lima. entre cuidados, si-
nalizações, fascínios e atenções, o texto bus-
ca recuperar, com os sons dos tambores da
nossa memória, a África viva em nós.
202
I. CIêNCIA mULTICULTURAL1
Ubiratan D’Ambrosio2
estamos passando por grandes transforma-
ções na sociedade e, em particular, na edu-
cação. Hoje falamos em educação bilíngue,
em medicinas alternativas, no diálogo inter-
-religioso. Inúmeras outras formas de multi-
culturalismo são notadas nos sistemas edu-
cacionais e na sociedade em geral.
as profundas transformações nos sistemas
de comunicação, de informatização, de
produção e de emprego surgem como um
resultado da mundialização e, consequen-
temente, dão origem à globalização e ao
multiculturalismo. os reflexos na geração e
aquisição de conhecimento são evidentes.
um resultado esperado dos sistemas educa-
cionais é a aquisição e produção de conhe-
cimento. Isso ocorre, fundamentalmente, a
partir da maneira como um indivíduo perce-
be a realidade nas suas várias manifestações:
• uma realidade individual, nas dimensões
sensorial, intuitiva, emocional, racional;
• uma realidade social, que é o reconheci-
mento da essencialidade do outro;
• uma realidade planetária, o que mostra
sua dependência do patrimônio natural
e cultural e sua responsabilidade na sua
preservação;
• uma realidade cósmica, levando-o a trans-
cender espaço e tempo e a própria existên-
cia, buscando explicações e historicidade.
as práticas ad hoc para lidar com situações
problemáticas surgidas da realidade são o
resultado da ação de conhecer. Isto é, o co-
nhecimento é deflagrado a partir da realida-
de. conhecer é saber e fazer.
a geração e o acúmulo de conhecimento
em uma cultura obedecem a uma forma de
coerência. Há, como dizia J. Kepler no Har-
monia Mundi, em 1618, uma comunalidade
de ações, na qual se manifesta o “zeitgeist”,
que viria a se tornar fundamental na propos
ta historiográfica de F. Hegel (l770-l83l).
1 Debate: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 4.
2 Professor emérito da unicamp.
203
essa comunalidade de ações caracteriza
uma cultura. ela é identificada pelos seus
sistemas de explicação, filosofias, teorias, e
ações e pelos comportamentos cotidianos.
tudo isso se apoia em processos de comu-
nicação, de quantificação, de classificação,
de comparação, de representações, de con-
tagem, de medição, de inferências. esses
processos se dão de maneiras diferentes nas
diversas culturas e se transformam ao longo
do tempo. eles sempre revelam as influên-
cias do meio, organizam-se com uma lógica
interna, codificam-se e se formalizam. as-
sim nasce o conhecimento.
Procuramos entender o conhecimento e o
comportamento humanos nas várias regi-
ões do planeta ao longo da evolução da hu-
manidade, naturalmente reconhecendo que
o conhecimento se dá de maneira diferente
em culturas diferentes e em épocas diferen-
tes.
EtnOCiênCiA E
EtnOMAtEMátiCA
em meados da década de 70, propus um
programa educacional que denominei Pro-
grama etnomatemática. embora o Progra-
ma etnomatemática possa sugerir uma ên-
fase na matemática, esse programa é um
estudo da evolução cultural da humanidade
no seu sentido amplo, a partir da dinâmica
cultural que se nota nas manifestações ma-
temáticas. mas que não se confunda com a
matemática no sentido acadêmico, estrutu-
rada como uma disciplina. sem dúvida essa
matemática é importante, mas de acordo
com o eminente matemático roger Penro-
se, ela representa uma área muito pequena
da atividade consciente que é praticada por
uma pequena minoria de seres conscientes,
para uma fração muito limitada de sua vida
consciente. o mesmo pode-se dizer sobre a
ciência acadêmica em geral.
em essência, o Programa etnomatemática
é uma proposta de teoria do conhecimen-
to, cujo nome foi escolhido por razões que
serão explicadas mais adiante. na verdade,
poderia igualmente ser denominado Progra-
ma etnociência. ao lembrar a etimologia,
ciência vem do latim scio, que significa sa-
ber, conhecer, e matemática vem do grego
máthema, que significa ensinamento – por-
tanto, está claro que os Programas etnoma-
temática e etnociência se complementam.
na verdade, na acepção que proponho, eles
se confundem3.
a ideia nasceu da análise de práticas mate-
máticas em diversos ambientes culturais,
porém foi ampliada para analisar diversas
formas de conhecimento, não apenas as
teorias e práticas matemáticas. embora o
3 ver ubiratan D’ambrosio: Etnomatemática. arte ou técnica de conhecer e aprender. editora Ática, são Paulo, 1990; e Etnomatemática. elo entre as tradições e a modernidade. editora autêntica, belo Horizonte, 2001.
204
nome sugira ênfase na matemática, esse é
um estudo da evolução cultural da humani-
dade no seu sentido amplo, a partir da dinâ-
mica cultural que se nota nas manifestações
matemáticas.
o ponto de partida é o exame da história das
ciências, das artes e das religiões em várias
culturas. adotamos um enfoque externalista,
o que significa procurar as relações entre o
desenvolvimento das disciplinas científicas,
das escolas artísticas ou das doutrinas religio-
sas e o contexto sociocultural em que tal de-
senvolvimento se deu. o programa vai além
desse externalismo, pois aborda também as
relações íntimas entre cognição e cultura.
ao reconhecer que o momento social está
na origem do conhecimento, o programa,
que é de natureza holística, procura compa-
tibilizar cognição, História e sociologia do
conhecimento e a epistemologia social num
enfoque multicultural.
A QuEStÃO DO COnHECiMEntO
o enfoque holístico à história do conheci-
mento consiste essencialmente de uma aná-
lise crítica da geração e produção de conhe-
cimento, da sua organização intelectual e
social e da sua difusão. no enfoque discipli-
nar, essas análises se fazem desvinculadas,
subordinadas a áreas de conhecimento mui-
tas vezes estanques: ciências da cognição,
epistemologia, ciências e artes, história, po-
lítica, educação, comunicações.
considerando que a percepção de fatos é
influenciada pelo conhecimento, ao se fa-
lar em história do conhecimento estamos
falando da própria história do homem e do
seu habitat no sentido amplo, isto é, da ter-
ra, e mesmo do cosmos. mas não há como
falar da terra e do cosmos, desligados da
visão que o próprio homem criou e tem da
terra e do cosmos. a ciência moderna, ao
propor “teorias finais”, isto é, explicações
que se pretendem definitivas sobre a origem
e a evolução das coisas naturais, esbarra
numa postura de arrogância.
a proposta é o enfoque transdisciplinar, que
substitui a arrogância do pretenso saber ab-
soluto, que tem como consequências inevi-
táveis os comportamentos incontestados e
as soluções finais, pela humildade da busca
incessante, cujas consequências são respei-
to, solidariedade e cooperação4.
a transdisciplinaridade é, então, um enfo-
que holístico ao conhecimento que procura
levar a essas consequências e se apoia na re-
cuperação das várias dimensões do ser hu-
mano para a compreensão do mundo na sua
integralidade.
4 ubiratan D’ambrosio: transdisciplinaridade. editora Palas athena, são Paulo, 1997.
205
lembremos que variantes da postura dis-
ciplinar têm sido propostas. as disciplinas
dão origem a métodos específicos para co-
nhecer objetos de estudo bem definidos. a
multidisciplinaridade procura reunir resul-
tados obtidos mediante o enfoque discipli-
nar. como se pratica nos programas de um
curso escolar.
a interdisciplinaridade, muito procurada e
praticada hoje em dia, sobretudo nas esco-
las, transfere métodos de algumas discipli-
nas para outras, identificando assim novos
objetos de estudo. Já havia sido antecipada
em 1699 por Fontenelle, secretária da acade-
mia de ciências de Paris, quando dizia que
“até agora a academia considera a natureza
só por parcelas... talvez chegará o momento
em que todos esses membros dispersos [as
disciplinas] se unirão em um corpo regular;
e se são como se deseja, se juntarão por si
mesmas de certa forma”5.
a transdisciplinaridade vai além das limita-
ções impostas pelos métodos e objetos de
estudos das disciplinas e das interdiscipli-
nas.
o processo psico-emocional de geração de
conhecimentos, que é a essência da criati-
vidade, pode ser considerado em si um pro-
grama de pesquisa, e pode ser categorizado
através de questionamentos como:
1. como passar de práticas ad hoc a mo-
dos de lidar com situações e proble-
mas novos e a métodos?
2. como passar de métodos a teorias?
3. como proceder da teoria à invenção?
explicitando o que já foi dito acima, essas
perguntas envolvem os processos de:
• geração e produção de conhecimento;
• sua organização intelectual;
• sua organização social;
• sua difusão.
tais processos são normalmente tratados de
forma isolada, como disciplinas específicas:
ciências da cognição (geração de conheci-
mento), epistemologia (organização intelec-
tual do conhecimento), história, política e
educação (organização social, instituciona-
lização e difusão do conhecimento).
o método chamado moderno para se conhe-
cer algo, explicar um fato e um fenômeno
baseia-se no estudo de disciplinas específi-
cas, o que inclui métodos específicos e ob-
jetos de estudo próprios. esse método pode
ser traçado a Descartes. Isso caracteriza o
reducionismo. logo esse método se mos-
trou insuficiente e já no século XvII surgi-
ram tentativas de se reunir conhecimentos
5 b. de Fontenelle: , 1699; p.xix.
206
e resultados de várias disciplinas para o
ataque a um problema. o indivíduo deve
procurar conhecer mais coisas para poder
conhecer melhor. as escolas praticam essa
multidisciplinaridade, que hoje está pre-
sente em praticamente todos os programas
escolares.
metaforicamente, as disciplinas funcionam
como canais de televisão ou programas de
processamento em computadores. É neces-
sário sair de um canal ou fechar um aplicati-
vo para poder abrir outro. Isso é a multidisci-
plinaridade. mas quando se utiliza Windows
95, a grande inovação é poder trabalhar com
vários aplicativos, criando novas possibilida-
des de criação e utilização de recursos. a in-
terdisciplinaridade corresponde a isso. não
só justapõe resultados, mas mescla métodos
e, consequentemente, identifica novos obje-
tos de estudo.
a interdisciplinaridade teve um bom desen-
volvimento no século passado e deu origem
a novos campos de estudo. surgiram a neu-
rofisiologia, a físico-química e a mecâni-
ca quântica. Inevitavelmente, essas áreas
interdisciplinares foram criando métodos
próprios e definindo objetos próprios de
estudo. Depois, se tornaram disciplinas em
si e passaram a mostrar as mesmas limita-
ções das disciplinas tradicionais. surgiram
então os especialistas em áreas interdisci-
plinares.
É oportuno falarmos de cultura. Há muitos
escritos e teorias fortemente ideológicos so-
bre o que é cultura. conceituo cultura como
o conjunto de mitos, valores, normas de
comportamento e estilos de conhecimen-
to compartilhados por indivíduos, vivendo
num determinado tempo e espaço.
ao longo da história, tempo e espaço foram
se transformando. a comunicação entre ge-
rações e o encontro de grupos com culturas
diferentes cria uma dinâmica cultural e não
podemos pensar numa cultura estática, con-
gelada em tempo e espaço. essa dinâmica é
lenta e o que percebemos na exposição mú-
tua de culturas é uma subordinação cultural
e algumas vezes até mesmo destruição de
uma das culturas em confronto, ou em al-
guns casos dá-se a convivência multicultural.
naturalmente, a convivência multicultural
representa um progresso no comportamen-
to das sociedades, conseguido após violentos
conflitos. agora, não sem problemas, ganha
espaço na educação o multiculturalismo.
enquanto os instrumentos de observação
(aparelhos – artefatos) e de análise (concei-
tos e teorias – mentefatos) eram mais limita-
dos, o enfoque interdisciplinar se mostrava
satisfatório. mas com a sofisticação dos no-
vos instrumentos de observação e de análi-
se, que se intensificou em meados do século
XX, vê-se que o enfoque interdisciplinar se
tornou insuficiente. a ânsia por um conheci-
207
mento total, por uma cultura planetária, não
poderá ser satisfeita com as práticas interdis-
ciplinares. Da mesma maneira, o ideal de res-
peito, solidariedade e cooperação entre todos
os indivíduos e todas as nações não será rea-
lizado somente com a interdisciplinaridade.
não nego que o conhecimento disciplinar,
consequentemente o multidisciplinar e o
interdisciplinar, são úteis e importantes, e
continuarão a ser ampliados e cultivados,
mas somente poderão conduzir a uma visão
plena da realidade se forem subordinados ao
conhecimento transdisciplinar.
a educação está caminhando, rapidamente,
em direção a uma educação transdiscipli-
nar6.
6 ubiratan D’ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição, Papirus editora, campinas, 1999.
208
II. AFROETNOmATEmáTICA, áFRICA E AFRODESCENDêNCIA1
Henrique Cunha Junior2
AFROEtnOMAtEMátiCA
afroetnomatemática é a área da pesquisa que
estuda os aportes de africanos e afrodescen-
dentes à matemática e à Informática, como
também desenvolve conhecimento sobre o
ensino e o aprendizado da matemática, da Fí-
sica e da Informática nos territórios da maio-
ria dos afrodescendentes. os usos culturais
que facilitam os aprendizados e os ensinos
da matemática nestas áreas de população,
de maioria afrodescendente, é a principal
preocupação desta área do conhecimento.
a afroetnomatemática se inicia no brasil pela
elaboração de práticas pedagógicas do movi-
mento negro, em tentativas de melhoria do
ensino e do aprendizado da matemática nas
comunidades de remanescentes de quilom-
bos e nas áreas urbanas, cuja população de
descendentes de africanos é majoritária, de-
nominadas de populações negras. esta afro-
etnomatemática tem uma ampliação pelo
estudo da História africana e pela elabora-
ção de repertórios de evidência matemática
encontrados nas diversas culturas africanas.
este estudo da História da matemática no
continente africano trabalha com evidên-
cias de conhecimento matemático contidas
nos conhecimentos religiosos africanos, nos
mitos populares, nas construções, nas artes,
nas danças, nos jogos, na astronomia e na
matemática propriamente dita realizada no
continente africano. o que é realizado para
o continente africano tem sua extensão para
as áreas de diáspora africana. a complexida-
de da racionalidade lógica africana é a maté-
ria por detrás destas pesquisas.
a preocupação com o ensino e o aprendiza-
do da matemática em territórios de maioria
afrodescendente nasce da constatação das
precariedades da educação formal matemá-
tica nestas áreas. constatamos que, em mui-
tas das áreas de maioria afrodescendente,
praticamente inexiste ensino competente
1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm4
2 Professor titular na universidade Federal do ceará.
209
e adequado da matemática, existindo, em
decorrência disso, um grande fracasso no
aprendizado nos cursos de matemática, nas
escolas, o que fica imputado à população e
não à ineficiência do sistema educacional.
encontramos, em muitas destas áreas de
maioria afrodescendente, o credo esdrúxulo
e racista de que “negro não dá para a mate-
mática”. este credo esdrúxulo cria sua pró-
pria cultura de naturalização social e passa
a exercer a sua força de reprodução, servin-
do como justificativa ideológica da ausência
de políticas públicas do estado para o ensi-
no e aprendizado da matemática nestes ter-
ritórios. o dito “negro não dá mesmo para a
matemática” inferioriza os afrodescenden-
tes e cria um medo interior, uma rejeição a
essa área do conhecimento. Fica no ar um
pensamento, como se os testes escolares de
matemática pudessem revelar a verdade do
credo esdrúxulo, mostrando uma confirma-
ção da suposta inferioridade cognitiva des-
tes afrodescendentes para a matemática. o
credo serve para justificar a falta de ação e
de adequação do sistema educativo às ne-
cessidades de aprendizado matemático dos
afrodescendentes. a persistência de uma
abordagem universalista produz discursos
antipedagógicos de que os educadores en-
sinam “igualzinho a todos”, e se deduz que
“uns” aprendem, ou seja, os eurodescenden-
tes, sobretudo, e “outros” não aprendem. os
outros têm designação social de pretos, po-
bres e pardos.
nós, pesquisadores interessados no desem-
penho matemático de afrodescendentes, te-
mos observado que nos territórios de maio-
ria afrodescendente, por vezes, não existe
o ensino de matemática. trata-se apenas
de um simulacro de ensino de matemática.
as aulas de matemática são descontínuas,
dadas por professores improvisados e de
treinamento precário para desempenho das
suas funções. onde este ensino existe, ele é
deficiente e desprovido dos meios e méto-
dos adequados. no entanto, o ônus da defi-
ciência de um sistema educacional, que leva
sempre à submissão e à inferiorização dos
afrodescendentes, recai justamente sobre
os afrodescendentes, dando a impressão de
que temos uma dificuldade genética para o
aprendizado da matemática. assim, uma das
tarefas importantes da afroetnomatemática
é o uso da História de africanos e afrodes-
cendentes para mostrar o sucesso passado
nas áreas da matemática e dos conhecimen-
tos relacionados com esta área do conheci-
mento, como a arquitetura e a engenharia.
tendo em mente esta finalidade da afro-
etnomatemática é que organizamos este
texto, em quatro direções. abrimos nosso
caminho de exposição pela apresentação
biográfica resumida de quatro expoentes
afrodescendentes da arquitetura e da enge-
nharia na cultura brasileira. seguimos pela
exemplificação da matemática nas práticas
culturais africanas. reforçamos nosso argu-
mento pelas realizações da afroetnomate-
210
mática pelas práticas culturais das religiões
do candomblé no brasil. terminamos pela
introdução de um jogo antigo africano, mui-
to útil para a educação matemática brasilei-
ra atual. a função deste texto é dar motiva-
ção ao leitor educador para ir consultar uma
literatura mais ampla, apresentada no final
do texto.
AFRODESCEnDEntES EXPOEntES nA EngEnHARiA E nA ARQuitE-tuRA
na década de 1970, eu estudei engenharia
na escola de engenharia de são carlos, da
universidade de são Paulo e, logo no início
do curso, encontrei nesta escola a presença
de dois destacados professores negros. um
já falecido, mestre da área de topografia e
aerofotometria, Professor sergio sampaio, o
outro, um dos engenheiros de renome na-
cional da área do Planejamento de transpor-
te, o Professor Doutor Felix bernardes.
comentando com meu pai sobre a presen-
ça destes professores ilustres, meu pai fez-
-me ver que a engenharia brasileira começa
com grandes expoentes negros. Dentre eles
mestre valentim, theodoro sampaio, an-
dré rebouças, antonio rebouças, manoel
Quirino. a história dos afrodescendentes na
engenharia brasileira é muito rica, mas um
pouco difícil de ser recuperada, pois muitos
dos participantes eram autodidatas, cons-
truíam sem terem diploma das escolas de
arquitetura. meu pai mesmo sempre traba-
lhou em engenharia na secretaria de obras
Públicas do estado de são Paulo, como dese-
nhista. no entanto, era autodidata e apren-
deu arquitetura e fez muitos projetos, cuja
assinatura foi de outro profissional diploma-
do. outra dificuldade é que o país sempre
desprezou o conhecimento de africanos e
afrodescendentes, devido aos racismos ou
à falta de conhecimento dos responsáveis
pela elaboração da cultura oficial.
mestre valentim é um gênio afrodescenden-
te, que inaugura o urbanismo no brasil. seu
mais importante projeto, o “Passeio Público
do rio de Janeiro”, construído em 1783, é o
primeiro conjunto arquitetônico urbano do
brasil e das américas com ajardinamento e
obras de arte ao estilo francês. trata-se de
um gênio do urbanismo, da arquitetura e
da escultura, cuja importância nacional é
quase que incomparável. a obra do mestre
valentin é única pela perfeição alcançada,
afirmam os especialistas (santos, 1978),
(batIsta, 1940). nasceu no serro, em minas
gerais, em 1745, filho de uma brasileira ne-
gra e de um português. viajando a Portugal,
aprendeu o ofício de escultor e entalhador
e aprendeu sobre edificações. retornou ao
brasil em 1770, passando a residir e traba-
lhar no rio de Janeiro. Durante a gestão do
vice-rei Dom luís de vasconcelos, de 1779
a 1790, foi o principal construtor de obras
públicas, atuando em saneamento, abaste-
cimento de Água e Praças Públicas. morreu
em 1813.
211
theodoro sampaio (1855-1937). Dentre os
mestres dos mestres, a minha maior admi-
ração é pelo engenheiro theodoro sampaio,
devido à riqueza da sua história de vida. era
filho de escrava, nascido em santo amaro
da Purificação, na bahia, e, depois de for-
mado, reuniu dinheiro para comprar a liber-
dade da sua própria mãe. Foi um expoente
em diversas áreas do conhecimento, sendo
pesquisador na geografia, no saneamento
e na Filosofia. mesmo com a sua genialida-
de e cultura, foi vítima das diversas facetas
do racismo brasileiro, o que prejudicou em
muito a sua carreira profissional e acadê-
mica, sem, no entanto, impedi-lo de deixar
exemplar legado para as gerações que o su-
cederam. viveu e estudou em pleno escra-
vismo criminoso. estudou na escola Politéc-
nica do rio de Janeiro e se formou em 1877.
Foi engenheiro responsável pelos planos de
água e de saneamento das cidades de santos
e de salvador. Foi professor da Faculdade de
Filosofia e fundador da escola Politécnica da
universidade de são Paulo. Dedicou-se tam-
bém à política, sendo deputado federal pela
bahia, em 1927. a rua theodoro sampaio, no
bairro de Pinheiros, em são Paulo, é uma
homenagem de reconhecimento da socieda-
de paulistana a este ilustríssimo engenheiro
negro baiano (costa, 2001).
no período do Império, que também faz
parte do período do escravismo crimino-
so que foi mantido pelo Império brasilei-
ro, um negro baiano teve grande destaque
como advogado e estadista na corte. Ficou
conhecido com o nome de conselheiro an-
tonio rebouças. era autodidata e, devido a
seus conhecimentos, obteve licença para
exercer a advocacia em todo o país. ganhou
notoriedade nas lutas pela independência
do brasil na bahia. este estadista teve dois
filhos engenheiros que, pelas suas obras, fi-
zeram nome na engenharia brasileira. eles
são andré rebouças (1833 – 1898) e antonio
rebouças (1838 – 1991) (carvalho, 1998). o
túnel rebouças, existente na cidade do rio
de Janeiro, tem este nome em homenagem
ao engenheiro antonio rebouças. os dois
engenheiros são nascidos na cidade de ca-
choeira, no interior da bahia. estudaram
na escola Politécnica do rio de Janeiro, que
antes tinha o nome de escola militar, for-
maram-se em 1860 em engenharia, tendo
antes bacharelado em ciências Físicas e ma-
temáticas, em 1859, depois fizeram estudos
complementares de engenharia em grandes
estruturas na França. antonio rebouças se
dedicou à construção de estradas de ferro
e foi responsável pela construção da antiga
estrada de ferro de Paranaguá, no estado do
Paraná, uma das maiores e mais belas obras
da engenharia brasileira. andré rebouças
projetou obras de abastecimento de água do
rio de Janeiro e as Docas da alfândega, des-
ta mesma cidade. Foi engenheiro do exérci-
to brasileiro durante a guerra do Paraguai.
os irmãos rebouças foram abolicionistas e
lutaram em defesa dos direitos sociais dos
africanos e afrodescendentes.
212
manoel Quirino foi artista plástico, arquite-
to, professor de desenho, artesão, jornalis-
ta, pesquisador da cultura de base africana,
político e sindicalista. torna-se difícil falar
de pessoa com tão amplo campo de conhe-
cimento e com uma vida tão intensa. se não
tivesse sofrido as injustiças da cor da pele,
seria sempre citado e aplaudido como um
grande intelectual brasileiro. o seu pensa-
mento abre um ciclo de uma nova forma de
pensar os africanos e as culturas africanas
no brasil. somente em tempos recentes foi
dada a importância que a sua obra merece
(leal, 2004), (soDrÉ, 2001). nasceu em ple-
no tempo de escravismo criminoso na bahia,
em 1851, e foi criado sobre as marcas deste
sistema injusto. Ficou órfão e foi criado por
uma família que logo percebe seus talentos
artísticos e o envia para os cursos de artes.
Foi convocado quando jovem para a guerra
do Paraguai, indo para o rio de Janeiro, mas
devido aos seus estudos consegue ficar livre
do recrutamento. voltando à bahia, inicia
ampla atividade sindical. Funda, em 1874, a
liga operária de artesões da bahia. Foi no-
meado vereador de salvador, sendo reeleito
pelo Partido operário. Paralelo às atividades
político-sindicais, completa os estudos em
artes e torna-se professor de Desenho. Dos
estudos em artes do Desenho, evolui para a
arquitetura. Foi intelectual ligado ao Institu-
to Histórico e geográfico da bahia. escreveu
no jornal A Província e O Trabalho. morreu
em 1923, deixando vários livros sobre a cul-
tura africana no brasil.
a nossa ancestralidade é a nossa história,
ela é base da nossa identidade étnica. e nos-
sa ancestralidade na arquitetura e na enge-
nharia brasileira é muito boa, por isto de-
veríamos cultuá-la e cuidá-la, para que nos
inspire no presente para formarmos grandes
engenheiros afrodescendentes. na ancestra-
lidade mais antiga africana, a religião tam-
bém registra feitos importantes nas áreas
de tecnologia, matemática, arquitetura e
engenharia, dados nos mitos sobre Inquises,
ou de orixás, como ogum e oya (gleason,
1999).
AFRiCAnOS nO uSO DA
MAtEMátiCA
Pequeno conto: O fazedor de fumaça branca
(Henrique cunha Jr.)
Parece ser costume de certas tribos euro-
peias realizar um estranho ritual. todas as
vezes, quando vão falar de África, o fazem
em ambientes fechados e acendem grandes
fogueiras. a fumaça branca logo toma o am-
biente e tolda os olhos e, mesmo olhando
para as coisas da África, eles não veem nada.
o hábito das fogueiras foi por muito tem-
po praticado pelas comunidades de cientis-
tas. um dia, alguns aboliram este método
e se surpreenderam com o que viram. Qual
a surpresa quando viram, na África, todas a
origens dos conhecimentos europeus. a vai-
dade era talvez a maior destas fogueiras.
213
a prepotência europeia fez com que as teo-
rias racistas tivessem espaço na ciência do
ocidental, atrasando significativamente os
conhecimentos sobre o continente africano.
os povos africanos foram denominados de
tribais, incultos, meio irracionais e despro-
vidos de civilização. a onda de racismo nas
ciências se proliferou nos séculos 19 e 20.
Infelizmente, até hoje faz parte do conhe-
cimento difundido por muitos educadores
sem informações consistentes sobre o con-
tinente africano. esta ausência de informa-
ção e a prática da desinformação faz desses
educadores uns racistas inconscientes das
suas formas de ação.
Deste fato resulta que muitos não se con-
sideram racistas, mas executam práticas
educacionais e sociais racistas. as práticas
sociais inadequadas impediram a ciência
e os educadores de verem o esplendor das
culturas de base africana e a contribuição
destas para o conhecimento da humanida-
de. muitos dos feitos no campo do conhe-
cimento matemático foram considerados
como restritos ao egito e não viam que estes
conhecimentos se expandiram por extensas
regiões do continente africano. não conse-
guiam nem mesmo estabelecer que muitos
dos conhecimentos foram transmitidos de
outros povos africanos para o egito. Quan-
do eu leciono história africana (cunHa Jr.,
1999), começo dividindo a África em ma-
crorregiões em torno das grandes bacias
fluviais, e daí desenvolvo um mapa das rela-
ções comerciais e culturais entre as diversas
regiões africanas. Deste modo, mostro que
os conhecimentos, sobretudo os científicos
e tecnológicos, se propagam por todo o con-
tinente. outros caminhos poderiam ser to-
mados para este ensino, um deles é tomar
as construções africanas, relacioná-las com
a matemática e com a História da tecnolo-
gia no continente africano (costa; cunHa,
2004).
no continente africano, as bases numéricas
e as geometrias são diversas, mas existem
em todos os povos, elaboradas em lógicas
e formas de exposição que são, às vezes, de
difícil interpretação para quem foi formado
na cultura brasileira ocidental. esta dificul-
dade de interpretação e de compreensão da
forma de exposição levou, por muito tempo,
à conclusão errônea sobre a inexistência de
conhecimentos matemáticos importantes
nestas culturas.
as bases numéricas utilizadas são variadas
nas sociedades africanas (ZaslovsKY, clau-
dia, 1973). todas as sociedades africanas apre-
sentam formas de contar. as bases utilizadas
são as bases 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 20 e 24.
os conhecimentos de geometria, no con-
tinente africano, não se restringem ao que
nós chamamos de geometria euclidiana.
outras lógicas de composição geométrica
são encontradas. uma delas, bastante di-
fundida em diversas aplicações praticas, é
214
a geometria Fractal. a geometria Fractal é
constituída de um elemento geométrico de
base, que sofre replicamentos por operações
de rotação e ampliação. na geometria Frac-
tal, cada elemento é constituído de um con-
junto de elementos com o mesmo formato,
mas em tamanho e disposição diferentes.
os exemplos da geometria Fractal apare-
cem na construção de vilas de casas numa
cidade, em formas de penteados de cabelos,
em padronagem de tecidos ou em paredes
acústicas em cabanas (cunHa JunIor/me-
neZes, 2002). aqui no brasil, as geometrias
fractais aparecem na arte das culturas afro-
descendentes, sendo um excelente exemplo
alguns trabalhos de emanoel araújo, como
também de aluisio carvão. no campo da
matemática ocidental, o conhecimento da
geometria Fractal é muito recente e tem
tido grande utilidade nas áreas de produção
de circuitos semicondutores, nos campos da
Informática para representação e reconstru-
ção de formas complexas. as aplicações de
geometria Fractal estão relacionadas com
as tecnologias da Informática.
Para exemplificar a realização de uma figura
de geometria Fractal, foi tomado o fractal
de quadrados do Zaire, que aparece no livro
de mubumbila sobre ciências e tradições
africanas no grande Zimbábue (mubumbI-
la, 1992). o grande Zimbábue é uma região
na África austral. neste fractal, as figuras
de base são os quadrados e suas rotações,
com ampliações dos lados dos quadrados
nas mesmas proporções. esta figura geomé-
trica de base da esquerda aparece, na cultu-
ra da região, de diversas formas estilizadas.
ela está gravada em tecidos, leques de fibra
vegetal e desenhos corporais. entretanto,
este fractal tem uma importância maior
para a matemática. ele permite termos uma
demonstração original do teorema de Pitá-
goras pelas áreas das figuras geométricas
inscritas. trata-se de uma demonstração
importante de geometria, bem difundida em
uma grande região africana.
Para quem quiser ver a demonstração, te-
mos que a área do quadrado mais externo é
igual à do quadrado interno mais os quatro
triângulos retângulos complementares. o
lado do quadrado interno é a hipotenusa do
triângulo retângulo. o lado do quadrado ex-
terno é igual à soma dos lados do triângulo
retângulo. a área do triangulo retângulo é a
área do retângulo, dividida por dois. escre-
vendo a igualdade das áreas, sai o quadrado
da hipotenusa, que é igual à soma do qua-
drado dos catetos.
215
MAtEMátiCA nOS tERREiROS
a minha formação em engenharia me levou
a uma especialização em sistemas Dinâmi-
cos. esta é uma área da matemática que
lida com sistemas que têm movimento e
que fazem, deste movimento armazenado,
energia. eu também tinha conhecimentos
em História africana e estava, em 1987, pre-
ocupado com as questões das tecnologias
africanas transportadas e modificadas por
africanos e afrodescendentes na História do
brasil e das américas. Por esta razão, eu vim
a conhecer duas historiadoras que trabalha-
vam com História das tecnologias na África,
as Dras. adelina apena, da nigéria; e gloria
emengale, de trinidad e tobago. ambas ti-
nham se doutorado na nigéria. elas foram
as pessoas que apresentaram os trabalhos
de Judith gleason (gleason, 1999), Paulus
gerdes (gerDes, 1993, 1990) e claudia Zaslo-
vsky (ZaslousvY, 1973), sobre matemática
nas sociedades africanas.
nos anos de 1980, as ciências da matemá-
tica de sistemas Dinâmicos complexos es-
tavam impactadas pelo que era considerado
um dos maiores avanços na ciência, que a
teoria do caos. esta teoria mudou muita a
nossa visão de cientistas sobre a organiza-
ção das ciências e sobre a nossa capacidade
em prever fatos da natureza através das ci-
ências. a teoria do caos explica a organiza-
ção interna de grandes distúrbios que pare-
ciam ser totalmente desorganizados e sem
uma explicação matemática. Foi uma teoria
revolucionária, que mostrou a importância
de pequenos efeitos físicos na produção de
gigantescos efeitos no futuro distante. a di-
vulgação da teoria do caos foi feita dizendo
que ela demonstrava que as batidas das asas
de uma borboleta na Ásia poderiam ser o iní-
cio de uma imensa turbulência atmosférica,
como um tufão no caribe, alguns meses ou
anos mais tarde. a exposição desta teoria
do caos se realizou por uma representação
matemática específica em diagramas circu-
Figura 1 - os quadrados fractais e suas variantes iconográficas.
216
lares, mostrando as trajetórias caóticas das
variáveis observadas (cunHa Jr.; costa;
HolanDa; meneses, 2004).
o que tinha de impressionante em tudo
isto? estas representações da teoria do caos
já existiam há séculos nas representações da
Deusa oya, nas religiões africanas. esta re-
presentação está relacionada, na cultura do
terreiro, com os fenômenos de turbulência
atmosférica de grandes ventos. o trabalho
de Judith gleason (gleason, 1999) era mais
surpreendente, pois mostrava a existência
de uma combinação turbulenta atmosférica
de dimensão continental e de formação caó-
tica justamente sobre o continente africano
e muito bem representada no conhecimen-
to religioso do candomblé. Deduzimos, daí,
que o conhecimento da teoria do caos, que
é recente para a ciência ocidental, já estava
registrado e exemplificado como conheci-
mento religioso africano de diversas formas.
esta impressionante constatação mexeu
demais com a minha emoção e com o meu
respeito em relação aos conhecimentos do
terreiro. o meu respeito pelo conhecimento
ancestral triplicou, não se tratava apenas da
minha história, mas de histórias significati-
vas para o conhecimento da humanidade.
Desde então, a procura se ampliou, e não
tinha como não me inquietar pela organi-
zação dos chamados jogos de adivinhação
africanos (bascom, 1980), cujo exemplo bas-
tante conhecido é o jogo de búzios, no brasil.
a Informática trabalha com zeros e uns,
constituindo uma base de estrutura do cál-
culo binária, desenvolvida pela Álgebra de
boole. neste sistema, os números 2, 4 e 16
são de grande significado. os computado-
res eletrônicos evoluíram nas combinações
resultantes de 16 elementos, bits, para 32,
64, 256, 1.024 e 4.096 e assim por diante. o
interesse científico com relação à cultura do
terreiro aparece quando observamos que os
jogos africanos seguem esta mesma lógica.
os elementos de partida, no jogo de búzios,
são 16, e se procura a informação pela com-
binação desta probabilidade de ocorrência
do búzio aberto (hum) e do búzio fechado,
(zero), numa estrutura de 16 combinados
dois a dois. o jogo de búzios é realizado por
um especialista, depois de um longo perí-
odo de formação. Pois, ao movimento das
peças do jogo, que são os búzios, está asso-
ciada uma interpretativa filosófica, que são
os odus, e cuja complexidade implica uma
ampla reflexão sobre o destino possível dos
seres individuais e da sociedade na sua to-
talidade.
nas sociedades africanas tradicionais, esta
formação de especialista no jogo dura perío-
dos de até 20 anos.
mas a existência de uma estrutura numérica
2, 4, e 16 nos terreiros poderia ser tida como
simples coincidência. assim seria, mas não
é. não é, dado o conhecimento, pelos afri-
canos, de jogos de tabuleiros com esta es-
217
trutura de 16 casas e jogados com dois ele-
mentos, nos quais se pode fazer cálculos em
diversas bases numéricas, em particular na
base binária. o conhecimento do equivalen-
te à Álgebra de boole, ocidental, nas socieda-
des africanas, é possível que date de mais de
3.000 anos. o professor Dr. africano muleka,
radicado no brasil e trabalhando em Jequié,
na bahia, apresentou tese na universidade
de são Paulo, mostrando estas evidências
dos jogos de búzios e da ligação destes com
o cálculo de estruturas computacionais.
estes são dois dos muitos exemplos signifi-
cativos de conhecimentos em matemática
e Informática que podemos encontrar nas
culturas de comunidades de terreiros.
AwARE, uM jOgO MilEnAR
AFRiCAnO
aware ou oware é um jogo que era joga-
do especialmente pelos povos ashanti, de
gana, e foi devido ao estudo deste povo que
tomei o primeiro conhecimento deste jogo
em 1982. mas, depois, vim a saber que este
jogo é encontrado em muitas regiões africa-
nas, com diferentes nomes. adi no Daomé,
andot no sudão, Wari ou ouri, no senegal e
mali. o jogo também chegou a diversas re-
giões das américas, inclusive ao brasil, com
os nomes de oulu, Walu, adji e ti. estas de-
nominações fazem parte de um conjunto
de jogos e formas de cálculo em tabuleiros
encontradas nas diversas partes da África e
da diáspora africana, que podem ser gene-
ralizados sob o nome de mancala. algumas
mancalas são ábacos usados para cálculo
aritmético, como se fosse um computador
de madeira.
as mancalas são jogos executados em tabu-
leiros de madeira, geralmente muito orna-
mentados. têm duas filas de casas côncavas
para cada lado de cada jogador. nas bases
das sequências de casas, temos duas cavida-
des maiores para servirem de depósito das
peças capturadas durante o jogo por cada
jogador. as mancalas mais conhecidas têm
duas fileiras paralelas de seis casas e são
atribuídas, a cada casa, quatro peças ou
quatro sementes para o funcionamento do
jogo. temos mancalas como o Yolé, com 30
casas, organizadas em 5 colunas, e jogado
com 12 peças de cores diferentes em cada
casa.
na versão mais simples da mancala, temos
o tabuleiro de 12 casas e o jogo começan-
do com 4 peças em cada casa. o objetivo do
jogo é recolher o maior número possível de
peças do jogador oponente. Para realizar o
jogo, um dos jogadores vai tomar as peças
de uma das suas casas e distribuí-las nas ca-
sas do outro jogador, sendo uma por cada
casa, no sentido anti-horário. neste sentido,
os depósitos das extremidades do tabuleiro
têm a função de casa. Quando se passa pelo
próprio depósito, deixa-se aí uma das peças,
quando na distribuição se passa pelo depósi-
to do oponente, se pula a distribuição.
218
Quando, na distribuição das peças de uma
casa para as outras, a última peça cai no seu
depósito, então você joga de novo. mantém-
-se o mando do jogo. ou seja, escolhe-se
uma casa e se distribuem as peças aí conti-
das, uma a uma, em sequência anti-horária.
agora, na distribuição das peças, se a última
cair numa casa do seu lado, você leva para
o seu depósito todas as peças aí contidas.
se o buraco estiver vazio, leva-se esta peça
e todas da casa do lado oposto. o jogo ter-
mina quando toda uma fileira de casas de
um jogador estiver vazia. aí, são contadas as
peças contidas em cada depósito, vencendo
quem tiver maior número de peças. o jogo
implica uma constante observação de qual
casa se começa a tirar as peças e qual o nú-
mero de peças contidas para se manter a
continuidade de mando de jogo.
em algumas regiões da África, o jogo é re-
alizado na área, cavando-se pequenos bu-
racos em linha e utilizando pedregulhos ou
conchas como peças para os movimentos. o
mesmo pode ser realizado sobre uma mesa
com pires de xícaras de café ou chá e um
prato de sobremesa como depósito.
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220
III. A mULTICULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO ESTéTICA1
Ana Mae Barbosa2
APRESEntAÇÃO
a necessidade de uma educação democrá-
tica está sendo reivindicada internacional-
mente, nos dias de hoje. contudo, somente
uma educação que fortalece a diversidade
cultural pode ser entendida como democrá-
tica.
a multiculturalidade é o denominador co-
mum dos movimentos atuais em direção
à democratização da educação em todo o
mundo. os códigos elaborados pelos euro-
peus e pelos norte-americanos brancos não
são os únicos válidos, apesar de serem os
mais valorizados na escola, por razões fun-
dadas na dependência econômica, que se
intensifica com a dependência cultural. a
preocupação com o pluralismo cultural, a
multiculturalidade e o interculturalismo nos
leva necessariamente a considerar e respei-
tar as diferenças, evitando uma pasteuriza-
ção homogeneizante na escola.
ser um professor multiculturalista é ser um
professor que procura questionar os valores
e os preconceitos.
sabemos que, no brasil, há preconceito con-
tra a própria ideia de multiculturalismo.
Para os mais preconceituosos, é coisa de
feminista histérica ou de “crioulo”; para ou-
tros, é invenção de americano, que não tem
nada que ver conosco porque, dizem, vive-
mos numa democracia racial e as mulheres
aqui têm acesso ao poder e os negros não
são discriminados.
o crítico de cinema norte-americano ro-
bert stam, em entrevista à Folha de S. Paulo
(04/07/95), lembra que o multiculturalismo
tem tudo a ver com o brasil. o modernis-
mo de mário de andrade, a antropofagia de
oswald de andrade e a “tropicália” de cae-
tano e gil são exemplos de um conceito de
multiculturalidade mais amplo até do que o
que os americanos estão manejando.
1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 3.
2 Professora da eca-usP (Pós-graduação, linha de pesquisa em arte educação).
221
DESEnvOlviMEntO
o ideal mesmo será começar indagando por-
que o professor de arte precisa trazer para
sua sala de aula a preocupação com as dife-
renças culturais.
a resposta, embora pareça óbvia, foi até ago-
ra pouco considerada pelos educadores: em
uma sala de aula, especialmente na escola
pública, se inter-relacionam indivíduos de
diferentes grupos culturais, que terão sem-
pre que lidar com outros indivíduos também
de diferentes culturas e subculturas.
os grupos culturais que se imbricam podem
ser identificados pela raça, gênero, orienta-
ção sexual, idade, locação geográfica, renda,
idade, classe social, ocupação, educação, re-
ligião.
as principais questões que norteiam a atitu-
de multiculturalista no ensino da arte são:
1. como diferentes grupos culturais po-
dem encontrar um lugar para a arte
em suas vidas?
2. entender que grupos culturais diferen-
tes têm também necessidade da arte,
mas que o próprio conceito de arte
pode diferir de um grupo cultural para
outro.
a consciência de que estas questões são bá-
sicas, embora pareçam simples, ajudaria a:
1. compreender que a arte pode conferir
identidade às pessoas através de sím-
bolos. um exemplo: a arte Haida e a
arte contemporânea, no canadá, e a
arte marajoara, no brasil. Por que a
arte marajoara perdeu sua força para
conferir identidade e a arte Haida,
também indígena da mesma américa,
tornou-se dignificadora para os seus
descendentes e respeitada pelos in-
divíduos de outras culturas, inclusive
dominantes? atitudes pós-colonialis-
tas podem ser alimentadas pela atitu-
de pluralista em relação à cultura.
uma criança negra que visite um museu
que exiba arte ou “artefato” africano pode-
rá de lá sair com seu ego cultural reforçado
pelo conhecimento, apreciação e identifi-
cação com os valores vivenciais e estéticos
da arte africana, ou completamente des-
possuído culturalmente e desidentificado
com a gênese de sua cultura, dependendo
da orientação que o profissional do museu
que o receba der a sua visita. Já vi orientado-
res de museu ao falarem de arte africana se
referirem apenas à escravidão e aos fazeres
manuais dos escravos para contextualizar
os objetos e em nenhum momento se re-
ferirem às suas qualidades estéticas. entre-
tanto, quando se confrontavam com a arte
de código europeu e norte-americano bran-
co, a contextualização era institucional e a
apreciação transcendental, apelando para a
sensibilidade estética, a valoração econômi-
ca e a identificação com status social. além
222
disso, a consciência relativa a estas questões
também contribui para:
2. sensibilizar para problemas de deficiên-
cia física e diferença de raças, nacio-
nalidade, naturalidade, classe social,
religião.
3. libertar-se de atitudes discriminatórias
em relação a pessoas de origem étnica
e ou cultural diferente.
4. ser capaz de responder à diversidade
racial, cultural e de gênero de maneira
positiva e socialmente responsável.
É através da contextualização de produtos e
valores estéticos que a atitude multicultura-
lista é desenvolvida.
Para uma experiência cognoscente que im-
pulsione a percepção da cultura do outro
e relativize as normas e valores da cultura
de cada um teríamos que considerar o fazer
(ação), a leitura das obras de arte (aprecia-
ção) e a contextualização, quer seja históri-
ca, cultural, social, ecológica, etc.
os Pcns preferiram designar a decodifica-
ção da obra de arte como apreciação. cos-
tumo usar a expressão “leitura” da obra de
arte em lugar de apreciação, por temer que
o termo apreciação seja interpretado como
um mero deslumbramento, que vai do arre-
pio ao suspiro romântico. a palavra leitura
sugere uma interpretação para a qual co-
laboram uma gramática, uma sintaxe, um
campo de sentido decodificável, a decodifi-
cação do mundo e a poética pessoal do de-
codificador.
a ênfase na contextualização é essencial em
todas as vertentes da educação contempo-
rânea, quer seja ela baseada em Paulo Freire,
vygotski, apple, ou genericamente constru-
tivista. sem o exercício da contextualização,
corremos o risco de que, do ponto de vis-
ta da arte, a pluralidade cultural se limite a
uma abordagem meramente aditiva.
a multiculturalidade aditiva vem sendo ve-
ementemente criticada por sociólogos, an-
tropólogos, educadores e arte educadores.
Por abordagem aditiva entendemos a atitu-
de de apenas adicionar à cultura dominante
alguns tópicos relativos a outras culturas.
multiculturalidade não é apenas fazer cocar
no “Dia do Índio”, nem tampouco fazer ovos
de Páscoa ucranianos ou dobraduras japo-
nesas ou qualquer outra atividade clichê de
outra cultura.
o que precisamos é manter uma atmosfe-
ra investigadora na sala de aula acerca das
culturas compartilhadas pelos alunos, tendo
em vista que cada um de nós participa no
exercício da vida cotidiana de mais de um
grupo cultural.
223
Por exemplo, eu me defino, ao mesmo tem-
po, como mulher, do ponto de vista de gêne-
ro; nordestina, do ponto de vista da locação
cultural; arte educadora, do ponto de vista
da ocupação; branca, do ponto de vista da
etnia; heterossexual, do ponto de vista da
orientação sexual; classe média, do ponto de
vista da renda. Portanto, pertenço a alguns
grupos de cultura dominante, mas também
pertenço a grupos culturais discriminados,
como o de mulheres e de nordestinos em
são Paulo. além disso, como arte educado-
ra, sou discriminada por artistas, historiado-
res e críticos, os grupos dominantes na área
de arte.
Diria que, para termos uma educação mul-
ticulturalista, crítica em arte, é necessário:
1. Promover o entendimento de cruza-
mentos culturais através da identifica-
ção de similaridades, particularmente
nos papéis e funções da arte, dentro e
entre grupos culturais.
2. reconhecer e celebrar diversidade ra-
cial e cultural em arte em nossa socie-
dade, enquanto também se potenciali-
za o orgulho pela herança cultural em
cada indivíduo.
3. Incluir em todos os aspectos do ensino
da arte (produção, apreciação e con-
textualização) problematizações acer-
ca de etnocentrismo, estereótipos cul-
turais, preconceitos, discriminação,
racismo.
4. enfatizar o estudo de grupos particula-
res e/ou minoritários do ponto de vis-
ta do poder como mulheres, índios e
negros.
5. Possibilitar a confrontação de proble-
mas tais como racismo, sexismo, defi-
ciência física ou mental, participação
democrática, paridade de poder.
6. examinar a dinâmica de diferentes cul-
turas.
7. Desenvolver a consciência acerca dos
mecanismos de manutenção da cultu-
ra dentro de grupos sociais.
8. Incluir o estudo acerca da transmissão
de valores.
9. Questionar a cultura dominante, laten-
te ou manifesta, e todo tipo de opres-
são.
10. Destacar a relevância da informação
para a flexibilização do gosto e do juí-
zo acerca de outras culturas.
embora isto esteja com cara de 10 manda-
mentos da multiculturalidade em arte, ar-
riscaria dizer que não são um regulamento,
mas lembretes críticos que, se postos em
224
prática, desmentiriam muitos preconceitos
culturais,como, por exemplo, a ideia de que
a melhor arte é a produzida pelos europeus
e a ideia de que a pintura a óleo e a escultura
em mármore são as mais importantes for-
mas de arte. estas ideias só reforçam o códi-
go hegemônico. outra ideia preconceituosa
de que a melhor arte tem sido produzida
por homens também seria desmentida se
a contextualizássemos em relação ao papel
secundário que as sociedades têm determi-
nado para as mulheres. a diferença hierár-
quica entre artesanato e arte, que é também
preconceituosa, seria contestada se anali-
sássemos o valor dos saberes dos pobres e
dos ricos auferido pela cultura dominante.
Para chegarmos à desmistificação de muitos
preconceitos é necessário discutir:
1. a função da arte em diferentes culturas;
2. o papel do artista em diferentes cultu-
ras;
3. o papel de quem decide o que é arte e
o que é arte de boa qualidade em dife-
rentes culturas;
estas discussões contribuiriam para:
1. o respeito às diferenças;
2. o reconhecimento de manifestações
culturais que não se encaixam no sis-
tema de valores que subscrevemos;
3. a relativização de valores em relação ao
tempo.
Propor atividades, como identificar as for-
mas de arte que importam em uma varie-
dade de culturas e subculturas, seria uma
estratégia que poderia levar a uma atitude
multiculturalista.
educação multiculturalista permite ao alu-
no lidar com a diferença de modo positivo
na arte e na vida.
não adianta nada fugir do uso de palavras
como branco, negro, raça, etc. a chamada
linguagem politicamente correta, como diz
gloria steinem, foi criada pelas feministas
para ironizar o comportamento masculino
que buscava escamotear a discriminação.
o engraçado é que todos levaram a sério,
quando a luta antidiscriminatória consiste
em falar a verdade abertamente, dar o ver-
dadeiro nome que designa o preconceito e
não se adaptar aos novos tempos através
de designações científicas ou supostamen-
te respeitosas, como etnia em vez de raça,
afro-brasileiro em vez de negro.
ao substituirmos raça por etnicidade, um
princípio de organização socioeconômico e
de coesão, inadvertidamente negamos a his-
toria do racismo (Jan JagoDZInsKI, 1997).
Isto significa que a responsabilidade dos
brancos pela exploração e opressão dos ne-
gros e índios é suavizada pela demissão da
225
história. continuaremos a mostrar a nossos
alunos o monumento às bandeiras, de bre-
cheret, como uma magnífica obra de arte,
sem analisar o fato de que ela comemora um
episódio colonialista de nossa história, no
qual a matança e a escravização dos nativos
– os índios – atingiu proporções dizimadoras?
o politicamente correto é um clichê.
o que acontece em geral é que mudou a lin-
guagem, mas o preconceito permanece ago-
ra disfarçado.
militância multiculturalista é compromisso
com o desmonte de preconceitos e não com
linguagem atenuante.
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226
Iv. A CONSTRUÇÃO ESTéTICO-CULTURAL DE Um ESPAÇO1
Laura Maria Coutinho2
“As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança,
torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira,
ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos
mais exatos, um signo linguístico, comunica ou expressa alguma coisa3”.
assim como a primeira imagem da vida, a
que se refere Pasolini na epígrafe acima, cada
um de nós traz consigo a imagem da sua pri-
meira escola ou ainda a primeira imagem de
uma escola, ainda que esta nem tenha sido
a sua.o primeiro professor, ou professora
- geralmente as mulheres atuam mais nes-
ses anos iniciais de escolarização -, também
compõem nosso banco pessoal de imagens,
escolares ou não. os primeiros colegas... a
turma, a fotografia da turma - quando isso
fosse possível. todas essas imagens ensinam
e conformam a ideia que vamos ter dos lu-
gares sociais por onde transitamos. É assim
com a escola, a família, o trabalho, a cidade,
os hospitais, os hospícios, as prisões...
o que faz o cinema, então? cria imagens que
são, ao mesmo tempo que as vemos como
reais, expressão de coisas e pessoas com as
quais convivemos em nossas lembranças. e
as lembranças têm origem em muitos luga-
res e situações: nas histórias que ouvimos
em casa, nas experiências pessoais de cada
um, na televisão, nos filmes. também por
isso gosto da ideia de que o cinema é uma
arte da memória4. as cenas que vemos es-
tampadas nas telas não dizem somente da-
quelas personagens cuja história se desen-
volve à nossa frente, no tempo que durar a
projeção, mas remetem a todas as outras
histórias e personagens que habitam as nos-
sas lembranças. o cinema, com alguns dos
2 Professora da Faculdade de educação da unb. consultora desta série. Participaram de uma discussão na disciplina “Imagem e educação”, de onde se originou este texto, os professores maria madalena torres, cristiane terraza, neusa Deconto, Paula miranda, mário maciel-marel.
3 Pasolini, Pier Paolo. “gennariello: a linguagem pedagógica das coisas” em: Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. são Paulo: brasiliense, 1990, p. 125.
4 ver almeida, milton José de. Cinema - arte da memória. campinas: autores associados, 1999.
227
seus filmes, nos faz até mesmo sentir sau-
dade de lugares aonde nunca pisamos e de
pessoas com as quais jamais estivemos. e o
faz em realidade e ficção.
no cinema, são os ambientes que (re)-conhe-
cemos claramente que sugerem ações, com-
portamentos, atitudes que podem, além de
nos fazer olhar para o filme, olhar também
para os lugares onde vivemos e, igualmente,
para a vida que levamos em casa, na cidade,
na escola. Disse (re)-conhecemos, porque
embora possamos estar vendo os lugares fic-
cionados que o cinema apresenta, pela pri-
meira vez, os mecanismos de construção da
linguagem cinematográfica ativam as lem-
branças e assim, vemos as imagens na tela
não somente com o que objetivamente nos
mostram, mas também em reminiscências.
Por meio da linguagem do cinema, é possí-
vel ver tudo o que as imagens nos sugerem.
no momento da projeção, acontece sempre
um jogo entre a objetividade das imagens e
a subjetividade das lembranças de cada um
dos espectadores.
Por isso, o cinema na escola pode ser tão
rico. mais do que os conteúdos que cada fil-
me possa trazer, a presença do cinema na
escola pode se constituir em momentos de
reflexão que transcendam os próprios filmes
e incluam o olhar de cada um à narrativa que
o diretor propôs e nos ofereceu, em imagens
e sons. Quando vamos ao cinema, às salas
escuras de projeção, ao final, as imagens, as
histórias, os personagens nos acompanham,
solitárias, para além do filme, às vezes para
sempre. na escola, quando o filme termina,
é possível conversar sobre ele e construir
uma ou quantas outras histórias cada pes-
soa que viu quiser acrescentar.
são muitas as razões que justificam o cine-
ma na escola. a sala de aula não é uma sala
de cinema. talvez por isso mesmo possa se
constituir em um outro ambiente, que não
é nem um nem outro, nem a simples soma
dos dois. Pode se transformar em algo novo,
tão ou mais rico em possibilidades expres-
sivas e reflexivas: os filmes, na escola, são
projetados em telas de tevê e o videocassete
proporciona outras formas de ver. Pode-se
parar o filme, voltar a fita, ver novamente.
acontece uma outra relação com os filmes
que, no cinema, uma vez iniciados, seguem
certo percurso espaço-temporal sem ser in-
terrompido. ainda que o espectador possa
levantar e sair da sala, o filme prossegue, a
menos que falte luz. É bom lembrar, portan-
to, que estamos falando de linguagens que
dependem de energia elétrica.
Professores e alunos podem utilizar filmes
por muitos motivos: para enriquecer o con-
teúdo das matérias, para introduzir novas
linguagens à experiência escolar, para mo-
tivar os alunos para certo tipo de aprendi-
zagem, para o desempenho de determinada
função, para entretenimento. não que o ci-
nema chegue na escola sem conflitos. talvez
228
o cinema na escola deva mesmo se consti-
tuir em oportunidades para a explicitação
dos conflitos com os quais a escola e a edu-
cação têm de lidar.
milton José de almeida diz que “o filme é
produzido dentro de um projeto artístico,
cultural e de mercado - um objeto da cul-
tura para ser consumido dentro da liber-
dade maior ou menor do mercado. Porém,
quando é apresentado na escola, a primeira
pergunta que se faz é: ‘adequado para que
série, que disciplina, que idade etc.?’ Às ve-
zes ouvimos dizer que um filme não pode
ser passado para a 6ª série, por exemplo,
e no entanto ele é assistido em casa pelo
alunos, juntamente com seus pais.(...) [a
escola] está presa àquela pergunta sobre a
adequação, à ideia de fases, ao currículo,
ao programa. Parece que a escola está em
constante desatualização, que é sublinhada
pela separação entre a cultura e a educação.
a cultura localizada num saber-fazer e a es-
cola num saber-usar, e nesse saber-usar res-
trito desqualifica-se o educador, que vai ser
sempre um instrumentista desatualizado”5.
entendo a provocação proposta por milton
almeida como um desafio a todos os edu-
cadores que estão nas escolas e encontram
nos filmes e na linguagem cinematográfica
uma forma de ver o mundo em seus múlti-
plos cenários.
um dos múltiplos cenários que o cinema
contempla é a própria escola. Inúmeros
filmes tratam dela. assim, direta ou indire-
tamente, os filmes nos ajudam a construir
nossa imagem de escola, de professores,
de alunos e, até mesmo, da forma como a
educação escolarizada se insere ou deve se
inserir na sociedade. convido, então, a uma
breve reflexão sobre como a escola é vista
pelo cinema, ou como alguns filmes tratam
as relações que ocorrem nesse espaço so-
cial. os personagens que por ali transitam,
os papéis que desempenham, as tramas, os
desafios, os conflitos. Penso que a filmogra-
fia que tem a escola como cenário principal
da narrativa não é tão extensa quanto a que
tem como cenário as prisões, por exemplo.
talvez porque para haver um filme é preci-
so algum tipo de conflito e os conflitos, nas
prisões, são mais evidentes do que nas esco-
las, têm mais impacto visual. É bom lembrar
que estamos falando de filmes de ficção e
não de documentários.
os campeões de audiência, ou os sucessos de
bilheteria, nas escolas, são os filmes que tra-
tam de situações escolares-educacionais, ou
de outras que acontecem dentro delas, ou,
ainda, que têm as escolas como referência,
pano de fundo. Penso que o que professores
e alunos buscam, ao levar esses filmes para
a escola, são as situações exemplares que o
5 almeida, milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. são Paulo: cortez, 1994, p.8.
229
cinema tão bem retrata. não quero aqui res-
tringir o que chamo de exemplar, a simples
exemplo a ser seguido. talvez fosse melhor
dizer modelar, como alguma coisa que pode
conformar a nossa imaginação e a nossa
memória e, até mesmo, a nossa maneira
de perceber o mundo e a sociedade que nos
cerca. encontrei em muitos escritos, filmes,
programas de tevê, uma ideia sobre isso e
que pode ser traduzida mais ou menos as-
sim: toda imaginação é uma espécie de me-
mória6.
assim retorno ao que já expus no início do
texto: a linguagem cinematográfica, os fil-
mes que vemos - na escola ou fora dela -,
as situações que imaginamos depois dos
filmes, irão compor, em estética e magia, a
memória de cada um. a ideia que cada um
de nós tem de escola transita, em realida-
de e ficção, pelas imagens reais das escolas
onde estivemos e imagens ficcionais que co-
nhecemos através do cinema, da televisão.
recorremos às nossas lembranças, sejam
elas boas ou ruins, sempre que queremos
imaginar, projetar, criar alguma coisa nova.
ensinar e aprender são atos de criação; re-
correr aos filmes pode ser apenas parte des-
se esforço criativo.
o mundo visto pelo cinema tem matizes
próprios, embora os filmes retratem a vida
como ela é, cheia de contradições, as histó-
rias apontam para a transformação, para a
mudança. talvez porque a escola seja mes-
mo um ambiente propício às mudanças ou
porque o filme não se concretizaria sem
que cumprisse a sua estrutura narrativa:
apresentação, desenvolvimento, conflito,
clímax, desenlace. “a narrativa parece ser o
modo mais simples e eficaz de nosso conhe-
cimento, o modo pelo qual apresentamos o
mundo e os homens de forma que, por um
momento, sejam inteligíveis para nós mes-
mos. conhecer pode ser apenas isto: contar
uma história onde o espaço e o tempo do
mundo se conjugam na sucessão linear dos
acontecimentos”7.
muitas das escolas que conhecemos nos
filmes trazem a marca da sociedade ameri-
cana. somos alfabetizados audiovisualmen-
te pelo cinema feito nos estados unidos.
gosto da ideia de que o cinema americano
é o maior do mundo porque retrata uma so-
ciedade que acredita no milagre. talvez por
isso mesmo tenha se apropriado, como ne-
nhuma outra, da linguagem cinematográfi-
ca, e feito dela uma de suas mais poderosas
6 esta frase encontrei no livro de shirley maclaine, (Dançando na luz, rio de Janeiro: record, 1987, p. 37.) que, talvez não por acaso, é atriz e roteirista, embora esse livro não trate de cinema.
7 lázaro, andré. cultura e emoção: sentimento, sonho e realidade. In: rocha, everardo. (org.) cultura & Imaginário. rio de Janeiro: maud, 1998, p.151.
230
indústrias. Pequenos milagres se realizam a
cada filme. como a redenção da escola po-
bre, de bairro mais pobre ainda, no filme
“meu mestre, minha vida” do diretor John
g. avildsen. lá os alunos estavam reféns de
traficantes, vândalos e toda sorte de bandi-
dos e, pela intervenção de um novo diretor
com métodos nada convencionais de ensi-
nar e administrar uma instituição escolar,
conseguem vencer o exame estadual em
tempo recorde.
lembro que este filme deixa claro o fato de
basear-se em uma história real. uma vez
mais realidade e ficção se fundem para rea-
lizar o milagre de uma sociedade estratifica-
da, hierarquizada, legalista, centrada no es-
forço individual e na vida comunitária, qual
seja, formar vencedores. e o que é ser um
vencedor? a resposta a essa pergunta pode-
mos encontrar em quase todas a imagens do
filme, mas sobretudo num dos discursos do
diretor a seus alunos: precisamos mudar esta
escola, pois vocês estão muito longe do sonho
americano que vemos na tevê. mas uma vez
vemos as narrativas audiovisuais - do cine-
ma e da televisão - constituindo a vida de
uma nação, ou pelo menos o seu imaginário.
são muitas as histórias que envolvem a es-
cola que o cinema retrata, posso citar algu-
mas: A corrente do bem; Mr. Holland, adorá-
vel professor; Conrak; Sociedade dos poetas
mortos, Perfume de mulher (EUA), Adeus, me-
ninos (França). assistimos a histórias com-
pletamente possíveis, não há nelas nenhum
efeito especial de linguagem. os professo-
res sobretudo, os diretores, os alunos, pais
cumprem a sua função e seu papel. ora es-
tão mais próximos do herói redentor, ora do
bandido mais prosaico. a magia do cinema
ali, é o próprio cinema, com a sua lingua-
gem que se expressa por meio da realidade,
mesmo sendo ficção. Procurando os filmes
brasileiros que passam em escola, encontrei
poucos. É bom lembrar que a nossa filmo-
grafia não é mesmo muito extensa por mui-
tos motivos que não cabem neste escrito. e
escrevendo este texto fiquei pensando que,
talvez, diferente dos americanos, sejamos
um povo que não acredita no milagre, mas
na vida como ela é. talvez por isso não este-
jamos cuidando o bastante do nosso ensino
público e tenhamos deixado o cinema para
os americanos e para alguns poucos obsti-
nados conterrâneos que, além de acreditar
no milagre do cinema, acreditam também
neste país.
Para encerrar esta nossa reflexão, recorro a
Jean-claude carrière8 quando diz que a na-
ção que não produzir suas próprias imagens
está fadada a desaparecer. Por isso penso
no cinema que vem de países que se dão a
8 roteirista e escritor. Presidente da FemIs, escola francesa de cinema, autor do livro A linguagem secreta do cinema. rio de Janeiro: nova Fronteira, 1995.
231
conhecer por seus filmes de forma comple-
tamente diversa da que vemos nos noticiá-
rios da tevê. a tevê nos revela imagens cons-
truídas por um olhar estrangeiro. os filmes
por um olhar próprio. são assim os filmes
os filhos do paraíso e gabet; ambos tratam
com delicadeza e poesia situações escolares.
muito diferentes do que vemos no cinema
americano, embora a educação para todos
os povos se constitua em um processo de
transformação. talvez não seja exagero di-
zer, e se o for, deixo como forma de provo-
car o debate, que a nação que não recorrer
às suas próprias imagens para educar suas
crianças e seus jovens estará fadada a de-
saparecer duplamente. mas como lembra
manoel de barros, “o mundo não foi feito
em alfabeto” e também não em linguagens
audiovisuais. talvez possamos reunir todas
as linguagens e construir, como ainda diz o
poeta “uma didática da invenção”9.
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9 barros, manoel de. O livro das ignorãças. rio de Janeiro: record, 1998.
232
v. O ESPAÇO DOS vÍDEOS NA SALA DE AULA: A DIFUSÃO DE mENSAgENS SOBRE AFRO-BRASILEIROS1
Heloisa Pires Lima2
se “é de pequenino que se torce o pepino”,
o velho dito popular não deixa de nos aler-
tar sobre o fato de que é mais fácil deixar
de introduzir um preconceito do que retirá-
-lo depois. a percepção dos afro-brasileiros
também atravessa o ambiente escolar, onde
estudantes são informados e formados no
que devem acreditar e valorizar a respeito
destes. outro alerta está em não nos esque-
cermos de que o processo de construção de
identidades sempre necessita de referen-
ciais. no entanto, se centralizarmos, para
análise, o repertório sobre afro-brasileiros
que entra através dos vídeos em sala de
aula, há de se concluir que ele, como motivo
de reflexão, é restrito e raro. esta é uma das
formas cúmplices na reprodução das estere-
otipias que sobrevivem no cotidiano escolar,
base para percepções.
Por outro lado, a demanda social por uma
cidadania plena para essa população tem no
espaço educacional um grande potencial
para a superação de desigualdades históri-
cas. É preciso, sobretudo, superar o silêncio
oficial, que consiste na ausência de um ma-
terial de apoio bem cuidado, para referên-
cia, o que resulta numa deficiente prepara-
ção dos educadores.
como pressuposto primeiro, há para consi-
derar o circuito dos meios de comunicação
eficazes, com suas representações da rea-
lidade, sendo o videográfico uma poderosa
linguagem transmissora de mensagens. se
há críticas, que em sua maioria não são po-
sitivas, por que não potencializar esse ins-
trumental a favor de uma educação baseada
nos valores inspirados nas perspectivas da
lei n. 10. 639? antes, porém, o exercício de
leitura dos conteúdos sempre se torna re-
levante. tomemos, para exemplo, a repre-
sentação de um personagem escravizado
bastante recorrente como referência para
a identidade sobre afro-brasileiros. a chave
emocional do sofrimento como associação
1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 3
2 consultora para a série repertório afro-brasileiro. antropóloga, mestre e doutoranda pela usP, escritora de livros infanto-juvenis como Histórias da Preta (1998).
233
pode ser uma armadilha para a correspon-
dência. um telespectador, se afrodescen-
dente, tem que lidar com a dor exposta na
tela e reviver constrangimentos históricos.
não sendo, esta memória pode ainda levar a
concluir ser a população escravizada tão so-
mente um grupo de perdedores sociais. re-
tomar a escravização, geralmente com rela-
ções de poder unilaterais, reifica uma marca
social. o caso de reavivar um passado é mais
complicado ainda, visto serem os modelos
de referência sobre afro-brasileiros muito
restritos como leque de representações. o
problema não é ser escravizado, mas ser tão
somente e apenas escravizado. Isto sem fa-
larmos no histórico dessas abordagens que
idiotizaram, tornaram paisagem, perpetu-
ando a ideia de objetos posta na escraviza-
ção, sem problematizar essa ideia. ou, en-
tão, quando esses personagens se tornam
protagonistas, passam por um processo de
branqueamento infalível.
É importante acompanharmos o debate pro-
posto por uma inédita geração de cineastas
negros, como a fala de Jeferson De, um dos
idealizadores do Dogma Feijoada. ao comen-
tar sobre uma presença de protagonistas ne-
gros nos filmes nacionais, chama a atenção
para o fato de que em todos foi colocada
uma arma na mão. Diferentemente, os ne-
gros que ele procura retratar nos seus filmes
não estão nem com um pandeiro na mão,
nem como uma bola no pé e nem com uma
arma ar-15 na mão. a maioria negra, na opi-
nião de Jéferson De, não mexe com pandei-
ro, não mexe com uma ar-15 e não trabalha
com bola de futebol3.
Dá para perceber, então, que acompanhan-
do a questão dos livros que circulam na sala
de aula, o acervo ficcional de vídeos disponí-
veis deve ser selecionado de modo a ampliar
o repertório de associações sobre afro-brasi-
leiros. soma-se a isto o problema da aborda-
gem nesses clichês, mais agravada quando o
público dessa produção é o infanto-juvenil.
cabe atribuir aos meios de comunicação
uma alta cota de responsabilidade na oferta
de materiais que garantam o bem-estar so-
cial, moral, espiritual e mental da criança, o
que não pode ser deixado por conta da boa
vontade profissional e ética dos realizado-
res. É fundamental trabalhar a capacitação
dos telespectadores, incentivar o debate,
aprimorar formas seletivas que visem pre-
miar roteiros inovadores e cuidadosos. De-
ve-se ressaltar o fenômeno do filme Kiriku e
a Feiticeira, que tem inspirado inúmeras ini-
ciativas de educadores atentos à qualidade
da construção da figura humana africana. a
afetividade que acompanha o personagem
demonstra um caminho para a inversão cul-
tural necessária como representação. outro
3 entrevista realizada em 17/12/2002 - Por thiago P. ribeiro no site: htpp://www.cinemando.com.br
234
exemplo é O menino, a favela e a tampa de pa-
nela, do diretor cao Hamburguer, que retra-
ta uma favela, referência como repertório
associado aos afro-brasileiros. no entanto,
o que de fato é roteirizado é a história da
afetividade nas relações entre o herói real,
no ambiente real, mas que não é desvalori-
zado por ser espaço de pobreza. tem uma
mãe que tem um abração do tamanho do
mundo, um guri que cumpre uma tarefa,
enfim um enredo que emociona e que valo-
riza positivamente, dignamente, e é preciso
ainda apontar, que humaniza o imaginário
sobre a vida na favela.
outro aspecto, ao pensarmos no potencial
da videoteca, está em promover o diálogo
entre pesquisadores e cineastas, o que seria
tão salutar quanto incentivar o registro por
educadores de suas atividades nessa lingua-
gem. a desconstrução da teia de ideias pos-
ta numa película se aperfeiçoa no domínio
dessa tecnologia particular. o exercício pode
se estender aos alunos, que serão mais crí-
ticos e compreenderão melhor o processo,
se também se posicionarem como produto-
res, seguidos pela avaliação da comunidade.
assim, eles estarão mais bem preparados
quando expostos a violências simbólicas na
difusão de mensagens que possam cons-
tranger, oprimir, hierarquizar. a forma de
ver o filme em sala de aula, seguida de ativi-
dades participativas a ele relacionadas ou à
linguagem audiovisual do deleite, influencia
no entendimento das leis próprias desse có-
digo visual. essa alfabetização também ne-
cessita ser iniciada.
uma variedade de possibilidades pode ser
observada na construção da África como
material cinematográfico, depois circulan-
do como vídeo. se sempre existe um ponto
de vista, uma abordagem na arquitetura da
representação, vale alertar que os africanos
foram retratados por décadas a partir de
representações caricaturais, de onde ema-
naram canibais, ingênuos, boçais, infantis,
macaqueadores do branco, travestis dos
europeus e incapazes de se governarem por
si mesmos. eles não tinham inteligência e
não realizavam feitos pessoais. carregados
de faltas, circularam nas telas com o reforço
de não terem a boa pele, o bom cabelo, a
boa língua, a boa religião. essa foi uma Áfri-
ca produzida por europeus e americanos,
num elaborado sistema de ideias-imagens,
que montou um esquema de referências que
dá legitimidade à ordem vigente. Historica-
mente, a África e os africanos são apresen-
tados sob a viscosidade do paternalismo, em
filmes onde geralmente apareceram estúpi-
dos, subevoluídos, ridículos, selvagens, no
patamar da animalidade, articulados num
universo de desigualdade e troça.
e é exatamente por isso que as autoridades
não podem permanecer indiferentes em re-
lação à garantia da qualidade do que é vei-
235
culado para as jovens idades. Quanto mais
tenras, menor a defesa para internalizar
crenças e valores que circulam vinculadas
a estratégias de poder, à mediocridade pro-
gramada, ao consumo, etc.
a lei Federal n. 10.639, vinda de encontro a
antigas reivindicações dos movimentos so-
ciais negros, atinge o sistema de produção
de material de apoio quando focaliza a vi-
deoteca pendente, ora para sua avaliação,
ora para o seu potencial para as mudanças
necessárias. nesse contexto, vale salientar
ainda o espaço estratégico para programas
que discutam, atualizem, sejam vitrine das
produções, como é o caso dos programas
educativos, programas documentais com
matérias que problematizem percepções de
mundo.
o encanto produzido por uma obra pode vir a
ser um instrumento de valorização positiva e
construtiva dos referenciais afro-brasileiros.
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236
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História. são Paulo, Ática.
vIDeograFIa - cInematograFIa
A Revolta do Video Tape - rogério moura (bra-
sil)
Abolição - Zózimo bulbul (brasil)
Aruanda - linduarte noronha (brasil)
Assalto ao Trem Pagador - roberto Farias
(brasil)
Cafundó - Joel Yamaji (brasil)
Candombe - rafael Deugênio (uruguai)
Carolina- Jéferson De
Cecília - Humberto solás (cuba)
Chico Rei - andré reis martins (brasil)
Faça a Coisa Certa - spike lee (eua)
Família Alcântara - Daniel santiago (brasil)
Filhas do Vento - Joel Zito araújo (brasil)
Ganga Zumba - carlos Diegues (brasil)
Gênesis - Jefferson De (brasil)
Geraldo Filme - carlos cortiz (brasil)
Kirikou e a Feiticeira - michel ocelot (França)
La ultima Cena - tomás gutiérrez (cuba)
Little Senegal - rachid bouchareb (alg./Fr./
al.)
Minoria Absoluta - arthur autran (brasil)
O menino, a favela e as tampas de panela- cao
Hamburger (brasil)
O Rito de Ismael Ivo - ari candido (brasil)
Redenção de Ogun - moira toledo (brasil)
Um reino Xingu - Helena tassara (brasil)
Rio 40 Graus - nelson Pereira s. (brasil)
Rio Zona Norte - nelson Pereira s. (brasil)
Ritmo N´Angola - antônio ole (angola)
Vista Minha Pele - Joel Zito araújo (brasil)
Wild Style - Fab 5 Freddy (eua)
237
vI. O SIgNIFICADO DA ORALIDADE Em UmA SOCIEDADE mUL-TICULTURAL1
Maria Elisa Ladeira2
o problema teórico implícito nas propostas
educacionais relativas à aquisição da escri-
ta pelos povos indígenas esteve reduzido a
uma perspectiva metodológica (o processo
de alfabetização deve ser iniciado na língua
portuguesa ou na língua materna/indígena?)
e consumiu, durante décadas, educadores,
linguistas e antropólogos. os argumentos e
ações envolvendo esta questão estavam vol-
tados para o atendimento de uma demanda
muito concreta dos povos indígenas: o falar,
ler e escrever em língua portuguesa.
como um subtexto sempre latente, este
impasse teórico – que na realidade trata os
povos indígenas apenas e tão somente ou
como povos ágrafos ou como cidadãos anal-
fabetos – teve a sua discussão reduzida a
esta escolha: em qual língua a alfabetização
deveria ser efetivada3?
a opção pela “alfabetização em português”
tem tido como subtexto o fornecer ferra-
mentas para esta decodificação (leitura)4 e
codificação (escrita), atendendo às exigên-
cias dos índios em se apropriarem desta
língua estrangeira, justificada em seus dis-
cursos como um instrumento de controle
da chamada “sociedade dominante”. assim,
“(la) escritura aunque es ajena en una lengua
ajena sirve para ayudar en la lucha, evitar el
engano, es vista como una herramienta de pro-
téccion e de defensa.” (túlio r. curieux. In:
Reflexiones sobre el paso de la oralidad a la es-
critura ). o momento em que esta ferramen-
ta será significada (politicamente), quando a
1 oralidade, memória e formação – 2006 / Pgm 1.
2 coordenadora do centro de trabalho Indígena – ctI. Professora Dra. em sociolinguística/ semiótica pela usP.
3 “uma das justificativas técnicas de que a alfabetização na língua deve preceder a alfabetização em português é a de que o indivíduo é alfabetizado uma única vez, e que o ler e escrever numa segunda língua envolve somente uma transposição do código aprendido. Portanto, seria mais fácil e mais rápido ser alfabetizado em sua língua materna” (ladeira, 1981).
4 tendo em conta que ler é decodificar signos, quaisquer que sejam estes, aí poderíamos ampliar para as várias leituras possíveis de um mesmo texto/contexto, o que esvazia a concepção de leitores passivos. não existe passividade na leitura, tanto quanto na escritura: quem lê/escreve o faz de uma determinada posição/lugar com seus olhos, olhar dado pelo lugar que ocupa no mundo, pela interação que estabelece com esse mundo, por sua história de vida e pela relação social construída por um dado povo com este estrangeiro em cuja língua se fala e se escreve.
238
leitura/escrita passa a ser algo culturalmen-
te significativo para a comunidade indígena
ou para a própria vida pessoal, independe, no
entanto, da ação e prática alfabetizadoras.
ou seja, este tipo de domínio instrumental
da escrita não acarreta em si mudança al-
guma nos códigos internos de comunicação
e expressão da comunidade indígena. a es-
crita/leitura em português apresenta aí um
caráter puramente utilitário e de alcance
limitado e, por isso, podemos considerá-las
(porque se reproduzem culturalmente deste
modo) como “culturas ágrafas”.
É neste contexto que ganha corpo a concep-
ção segundo a qual “a língua indígena con-
tinua sendo um sistema de conhecimento e
categorização cultural do mundo, em que a
transmissão de conhecimentos, isto é, a rela-
ção única do indivíduo com seu mundo cultu-
ral, só é possível através da língua do grupo”
e da sua forma oral de transmissão (laDeIra,
2001, p. 170). neste caso, o português (falado
e escrito) é empregado tão somente como
língua-de-contato e em um contexto no qual
os dois mundos, o indígena e o não-indígena,
se concebem como excludentes – e no qual
também a estabilidade das relações no inte-
rior do sistema linguístico é decorrente da
clara delimitação dos âmbitos de uso da lín-
gua. Podemos considerar tal atitude como
uma estratégia cultural da sociedade indígena
na manutenção da língua original, na medida
em que possibilita a criação de neologismos
e alterações linguísticas em função da situa-
ção de contato, indicando um vigor linguís-
tico surpreendente (idem, ib., p. 170). o que
pressupõe considerar estas sociedades tanto
como resultado de uma história (seu “obje-
to”) como sujeitos dela, na medida em que
são capazes de construir estratégias de convi-
vência (ou sobrevivência, no sentido de resis-
tência e adaptação). e estas estratégias estão
inscritas na continuidade das práticas sociais
e representações das sociedades indígenas –
que são, por sua vez, recriadas cotidianamen-
te, seja como marcadores identitários “para
fora”, ou como marcadores diferenciais inter-
nos ao mundo pan-indígena mais genérico.
o outro lado da questão, aquele da alfa-
betização se dar primeiramente na língua
materna, tem como subtexto o argumento
segundo o qual os povos indígenas apre-
sentam uma falta, uma ausência do “letra-
mento”, que precisa ser sanada. considera
ainda que esta ausência fragilizaria não só a
manutenção e uso da língua indígena, mas
o próprio povo em sua reprodução cultural.
logo, para suprir tal ausência, busca-se, en-
tão, criar no seio de sociedades ágrafas o
lugar da escrita, independentemente da in-
tenção originária e que concretamente leva
ou tem levado os povos indígenas a buscar
na escola o saber “estrangeiro”5. o que está
por detrás desta concepção, portanto, é que
5 escola, o principal dos lugares em que impomos como imprescindível para poderem se apropriar desses estrangeiros, nós.
239
os povos ágrafos não passariam de cidadãos
analfabetos. e para que esta necessidade da
escrita se faça mais rápida, independente-
mente da situação e do contexto histórico
de um determinado povo, se impõe a neces-
sidade de uma escrita “na língua” indígena.
tal posição teórica determina, equivocada-
mente penso, a escrita como o lugar/espaço
indispensável para a manutenção da cultura
de um povo, pelas seguintes razões:
1) exalta a língua independentemente do
povo que a fala e de sua situação de uso; 2)
esquece que não existe língua sem a atuali-
zação concreta da fala; 3) que esta atualiza-
ção é dada pelo contexto histórico e social
daquela comunidade de falantes e 4) que
como todo processo sociocultural, a língua
se altera/é alterada ao longo do tempo.
a partir desses pressupostos iniciais, é possí-
vel delinear duas teorias que embasariam es-
tas duas concepções sobre o lugar/papel da
escrita para os povos indígenas. uma, que
concebe um continuum entre a oralidade e
a escrita, considerando-as como meios lin-
guísticos essencialmente equivalentes para
o desempenho de funções semelhantes.
outra, que estabelece um “divisor” entre a
oralidade e a cultura escrita, embora reco-
nhecendo a importância interativa de am-
bas, permitindo que antigas funções sejam
desempenhadas de maneira nova e que, as-
sim, novas funções possam ser propostas ou
emergirem6. entre estas duas concepções é
que as propostas “educativas” para os povos
indígenas se alicerçam, sendo que grande
parte delas não problematiza o alcance de
suas propostas. Para aquelas que concebem
um continuum entre oralidade e escrita, há
como uma “naturalização” (uma evolução
latente) na passagem das sociedades ágrafas
para o mundo letrado. e, assim, a questão se
reduz a uma falsa eficiência, na qual basta a
elaboração de materiais didáticos adaptados
ao universo de interesses do povo em ques-
tão, de formação/letramento de professores
indígenas, e principalmente da criação de
uma grafia para a língua indígena para que
estes povos possam ter o mesmo estatuto
que a sociedade nacional.
apesar do etnocentrismo subjacente, que vê
a escrita como a passagem para o esclareci-
mento e a modernidade, já ter sido denun-
ciado pelas mais diversas correntes teóricas,
as preocupações de muitos pesquisadores
com o possível desaparecimento da diversi-
dade linguística existente no brasil têm re-
sultado em ações que encontram respaldo
na postura “continuísta” e parecem ter se
esquecido da asserção etnocêntrica mencio-
nada.
6 “escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: é uma operação que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos conteúdos referenciais” (gnerre, m. p.8).
240
De fato, dados históricos do desaparecimen-
to das línguas indígenas no brasil induzem
o temor do linguista em relação à perda do
seu objeto de estudo em curto prazo. e este
medo subsidia a proposta em voga dos “cur-
sos de formação de professores indígenas”,
centrados no estudo da sua própria língua
(catalogação, organização de verbetes/dicio-
nário) objetivando-a deste modo, sob o ar-
gumento de que a sua documentação con-
tribuiria para diminuir o risco de sua perda.
não discuto a procedência de se formarem
linguistas (ou antropólogos, ou médicos, ou
advogados) indígenas; o que estou tentan-
do apontar é que este tipo de pesquisa não
basta para afugentar o temor dos linguistas
pelo “desaparecimento das línguas indíge-
nas”. o fato de um povo abandonar o uso de
sua própria língua tem a ver com as condi-
ções históricas impostas pelo contato com
a sociedade nacional e as estratégias encon-
tradas por este povo para sua reprodução
física nestas condições.
a história das línguas, como muitos já de-
monstraram, é nada mais, nada menos
que a série dos contatos/intercâmbios en-
tre povos. Portanto, querer transformar as
mudanças que ocorrem nas línguas, suas
inovações, em ameaças ou em “comprome-
timento linguístico”, o que afetaria o desti-
no e a identidade dos povos indígenas, pare-
ce-me deslocar equivocadamente o eixo da
questão. bakthin ilustra e complementa o
que estamos procurando apontar com uma
frase lapidar: “a reflexão linguística de caráter
formal sistemático foi inevitavelmente coagida
a adotar em relação às línguas vivas uma posi-
ção conservadora e acadêmica, isto é, a tratar
a língua viva como se fosse algo acabado, o que
implica uma atitude hostil em relação a todas
as inovações linguísticas” (baKtHIn, 1979, p.
89 apud gnerre, op. cit., p. 16).
É no contexto do contato com a sociedade
nacional que a escrita na língua portugue-
sa é exigida pelos índios, e aos quais tem-se
respondido com a imposição de que, para
dominar a língua portuguesa escrita, pre-
cisam primeiro aprender a escrever na sua
própria língua – argumento embasado no
pressuposto teórico, do qual não comparti-
lho, do continuum entre as formas da orali-
dade e da escrita.
Pretendo agora realçar alguns argumentos
em relação à justificativa para a necessidade
da escrita da língua indígena, que me pare-
cem extremamente perigosos do ponto de
vista político:
1. o de que a criação de uma língua indí-
gena escrita passa a ser uma propos-
ta elaborada pelo linguista (ainda que
com a participação dos falantes dessa
língua como informantes) para dar
conta de um dilema posto etnocentri-
camente por nós, o “comprometimen-
to linguístico”.
241
2. o de que, para diminuir o impacto des-
se “comprometimento linguístico”, a
escrita a ser criada o será tendo por
parâmetro sua fonetização, isto é, a es-
crita deverá ser transparente, em grau
máximo, à palavra falada; com isso se
crê estar “guardando” ou “reforçan-
do” a língua indígena falada por meio
da sua escrita, já que responderia à
sua voz – o que é, penso, um equívoco
perigoso, já que desvaloriza o funda-
mental na manutenção de qualquer
língua: a oralidade.
3. e, por último, que essa “transparência
pura” da escrita e da fala (que quali-
fica como primordial para a primeira
a correspondência unívoca entre fo-
nemas e grafemas) impõe um limite
físico para essa “língua” (fonetizada),
dado que atinge os falantes que vivem
geograficamente em um mesmo espa-
ço, em uma determinada terra indíge-
na; com tal postura, alguns linguistas
reforçam a imposição de fronteiras
fictícias entre povos indígenas, erigin-
do uma fronteira social e cultural en-
tre eles, já que cada diferença dialetal
passa a se constituir em uma “língua”
diferente, fragmentando os povos in-
dígenas em “comunidades linguísti-
cas” estanques.
e de qual “língua” estão, pois, falando os lin-
guistas? Qual “língua” eles pretendem guar-
dar ou resgatar, pensando estar garantindo
a sua permanência através da escrita?
Primeiramente, tenho a dizer que os segre-
dos da oralidade não estão no comporta-
mento da língua usada na conversação, mas
na língua empregada para o armazenamen-
to de informações. a língua oral (a oralidade)
tem dois requisitos básicos: o ritmo e a nar-
rativa. sua sintaxe, por outro lado, sempre
descreve uma ação ou paixão e raramente
princípios ou conceitos. as epopeias gregas
(e depois homerizadas) são hoje entendidas
por muitos pesquisadores como imensos re-
positórios de informação oral para fixação
e para transmissão da cultura helenística. a
chamada “tradição” só pode ser armazena-
da pela língua, a qual é memorizada e trans-
mitida de geração em geração.
as artes das tradições orais têm como um
dos seus objetivos na transmissão de conhe-
cimentos a memorização (armazenamento)
destes. um dos objetivos tanto do épico na
grécia clássica quanto do repertório de can-
tos timbira é o armazenamento de material
(informações) na memória oral. e são imen-
sos repositórios de informação cultural. mas
para isso há todo um conjunto de regras que
governam a composição oral, como marca-
dores que conduzem a narrativa, à medida
que esta se desenvolve. estas regras são
fundamentais porque ficam armazenadas
na memória do narrador, do cantador, do
chamador, dos mestres que dominam estas
242
artes para entrarem em ação sempre que
necessário. e, porque este corpus de conhe-
cimento faz parte de um patrimônio social
compartilhado com os demais membros da
sociedade, estes marcadores estão armaze-
nados na memória apenas como instrumen-
tos de ajuda para facilitar a retórica. Por
isso, a importância da memorização nestas
sociedades. e, por isso deve-se refletir quan-
do a “liturgia da escolaridade” (para empre-
gar um termo de Ivan Illich), levada pelos
programas de educação indígena, valoriza a
aprendizagem por meio da “improvisação”,
da “criatividade” (em seu sentido mais lite-
ral), em descompasso total em relação aos
métodos tradicionais de aprendizagem dos
povos indígenas que repousam na recitação,
na cópia, na observação, na imitação, técni-
cas fundamentais para a noção de memori-
zação.
a questão da distância entre fala e escrita,
que aponta que as normas da escrita não
se aplicam à fala, que há uma distância en-
tre a língua codificada na gramática/escri-
ta e a realidade das variações da fala, tudo
isto já foi tratado por especialistas. Porém,
suas consequências têm passado ao largo
das propostas de letramento para os po-
vos indígenas que vemos entre linguistas e
educadores. Quais seriam, por exemplo, as
alterações que a aquisição da escrita pode
trazer ao processo cognitivo? luria (1976)
estudou os principais desvios que ocorrem
na atividade mental na medida em que as
pessoas adquirem a cultura escrita “cleri-
cal”. seus processos cognitivos deixam de
ser principalmente concretos e situacio-
nais. começam a estabelecer inferências
não apenas na base de sua experiência pes-
soal, mas também nos conceitos formula-
dos pela língua.
Parece que os povos ágrafos contemporâne-
os, na situação de desigualdade que carac-
teriza as relações entre povos indígenas e
sociedade nacional, percebem com clareza
que, na nossa sociedade, a oralidade e a cul-
tura escrita podem ser vistas como interli-
gadas. a relação entre elas tem o caráter de
uma tensão mútua e criativa, na qual estes
povos encontram referências para definir
as suas políticas linguísticas. Para nós, para
que uma língua continue viva, isto é, fala-
da, é necessário que sejam incrementados
os contextos de uso da língua indígena em
questão, ou seja, que sejam valorizados e
multiplicados os momentos/espaços em
que um determinado povo usa privilegiada-
mente a sua língua7. Para isso, o linguista
e o antropólogo deveriam estar juntos, na-
quilo que o sociolinguista delimita como
seu campo de ação. esta estratégia política
está de acordo, assim, com a teoria do “divi-
7 uma política pública que estivesse preocupada com essa questão estaria muito além do apoio à elaboração de materiais didáticos escritos, estaria apoiando a realização dos rituais, lócus privilegiado da expressão cultural plena.
243
sor” apontada inicialmente, que afirma que
a oralidade e a cultura escrita possuem for-
mas distintas de expressão e de reprodução,
embora reconhecendo a importância interati-
va de ambas, permitindo que antigas funções
sejam desempenhadas de maneira nova (como
o exemplo timbira nos mostra) e que assim
novas funções possam ser propostas ou emer-
girem.
Há atualmente uma avaliação, por justifi-
cativas um pouco diversas das apontadas
acima, que considera que a escrita de uma
língua indígena é fundamental para o seu
não desaparecimento. Propõe que a questão
central seria a da necessidade de se dotar
uma determinada língua indígena de leito-
res, e por consequência, a necessidade de
formar escritores indígenas como forma de
fortalecê-la. assim,
“A única forma de se opor, concretamen-
te, ao desaparecimento de uma língua
indígena é fazer frente, deliberadamen-
te, à perda de espaços para a língua por-
tuguesa, garantindo (ou criando), para
a língua indígena, funções e usos sociais
relevantes e prestigiados. Desenvolver
a escrita em língua indígena é uma das
formas importantes e, possivelmente,
das mais eficazes, para uma política de
resistência da língua indígena às pres-
sões da língua majoritária. E é também
um dos instrumentos mais eficazes de
uma política linguística de fortalecimen-
to e modernização da língua indígena,
indispensável para sua sobrevivência
futura.” (In: Letramento e educação in-
dígena: línguas indígenas e a fabricação
de seus leitores e escritores. Wilmar da
rocha d’angelis).
este talvez possa ser um dos futuros das lín-
guas indígenas. em todo o caso, essa forma
somente será eficaz se validada politicamen-
te pelos usuários de cada língua e muito
além dos processos educativos que lhes são
impostos pela sociedade dominante. Mas
estaremos então nos referindo não somente a
uma possível solução para o comprometimen-
to linguístico como uma tendência subordina-
da de resistência linguística, mas a uma redefi-
nição do lugar e da relação destes povos com a
sua língua originária.
mas pensar por meio da escrita – pois só
assim se cria internamente, creio eu, a ne-
cessidade da escrita – não seria também jus-
tificar a necessidade da invenção de um pas-
sado histórico para as sociedades indígenas?
como pensar sociedades cujo passado como
referência não faz sentido? o estado presente
é contínuo, criado pelo movimento eterno e
constante da repetição. Repetição da repeti-
ção da repetição, num movimento infinito,
cuja fissura da mudança é anulada porque
não tem referência no passado. sem dúvida
que a mudança existe, no sentido de que a
repetição da repetição da repetição não recria
o mesmo, mas uma outra coisa que será re-
244
petida; nesse gesto de se buscar criar, sem-
pre o mesmo, as “mudanças simplesmente
ocorrem”, mas não são consideradas como
objeto de uma reflexão, como algo que deva
ser analisado criticamente. na prática da
existência cotidiana, estão incorporadas no
eterno presente. tais mudanças são anula-
das enquanto história. este distanciamento
e a sua marcação entre tempos – isto que
entendemos como história – são instaura-
dos pela escrita, como já amplamente de-
monstrado há décadas.
os programas de educação Indígena correm
o risco de estarem se transformando em
programas acelerados de mudança, ao com-
partimentarem o tempo nestas três estações
(passado, presente, futuro). os nossos livros
de “história” ou “etno-história” procuram re-
fazer, pela escrita, esta trajetória, muitos sem
estarem atentos a este dilema. e deste modo
reificam, eternizam ou desmitificam, em seu
sentido mais concreto, uma duração de tem-
po, desprendendo-o do movimento cíclico,
instaurando uma duração sequencial e linear
do tempo, abrindo fissuras na forma canôni-
ca dos povos ágrafos resistirem à mudança.
ou, em outras palavras, de trabalharem com
as mudanças que lhes são impostas.
o campo da nossa reflexão tem se movimen-
tado assim em uma dicotomia estanque: de
um lado, a reificação da permanência de
uma tradição imemorial, concebida como
o horizonte de resistência destas socieda-
des ao nosso mundo e, de outro, a assimi-
lação passiva de novos saberes e técnicas,
tendo como horizonte a sua aculturação a
este mundo novo. a história assim prevista
condena as sociedades indígenas a desapa-
recerem paulatinamente ou as encerra em
um “primitivismo” eterno (bocarra, 2001).
somente podemos escapar desse etnocen-
trismo, que caracteriza nosso modo de en-
focar as possibilidades de futuro desses po-
vos, se pensarmos a história e as relações
de contato destes povos com a sociedade
nacional a partir das estratégias políticas (e
linguísticas) desenvolvidas por eles, na qual
o dilema da escrita, imposto por nós, se re-
faz pelo uso e sentido que dão a ela em fun-
ção de uma redefinição da noção de frontei-
ra. e não mais concebida como um espaço
marcando um limite real entre mundo “pri-
mitivo” e mundo “civilizado”, mas como um
campo social em que as práticas e represen-
tações relativas à construção destes limites
são estratégias constitutivas destes povos.
245
vII. NO TEmPO Em qUE OS SERES HUmANOS CONvERSA-vAm COm AS áRvORES...1
Narcimária Correia do Patrocínio Luz2
intRODuÇÃO
abrimos este texto com um alerta:
[...] A vida não é só isso que se vê, é um
pouco mais... Que os olhos não conse-
guem perceber, e as mãos não ousam to-
car, que os pés recusam pisar. Sei lá não
sei, sei lá não sei não. Não sei se toda be-
leza de que lhes falo sai, tão-somente do
meu coração. Em Mangueira a poesia,
num sobe e desce constante, anda des-
calço ensinando um modo novo da gente
viver, de cantar, de sonhar, de vencer. Sei
lá não sei, sei lá não sei não, a Manguei-
ra é tão grande que nem tem explicação.
(Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho
da Viola).
esse alerta é um exercício e/ou um desafio
que se impõe todos os dias aos professores e
professoras que atuam nas escolas brasilei-
ras. não é fácil, sabemos! ou seja, aprender
a lidar com a riqueza de vida que nos cerca,
para além dos muros, ou melhor, a arquite-
tura dos currículos submetidos ao monopó-
lio da fala3 sobre educação, que se restringe
a reproduzir teorias e metodologias fixadas
ao modo de existir característico dos valores
e linguagens europocêntricos, que passam a
ser referência absoluta para as políticas de
educação. o que vemos circular, no cotidia-
no dos currículos das nossas escolas, são
repertórios sobre crianças, jovens e adultos
completamente afastados das dinâmicas
existenciais que caracterizam suas comuni-
dades, principalmente aquelas que se des-
dobram a partir das civilizações indígena e
africana.
essa vida plena de poesia que transborda na
mangueira no rio de Janeiro é uma pequena
1 oralidade, memória e formação – 2006 / Pgm 2.
2 Professora titular do Departamento de educação I da universidade do estado da bahia-uneb; Doutora em educação; pesquisadora no campo da Diversidade cultural e educação; coordenadora do ProDese - Programa Descolonização e educação; autora dos livros: abebe - a criação de novos valores na educação, salvador: edições secneb/2000; (org.) Pluralidade cultural e educação .salvador: edições secneb: secretaria da educação do estado da bahia, 1996.
3 categoria elaborada por muniz sodré tendo, como referência o sistema midiático de comunicação.
246
e bela ilustração da pulsão de vida e modos
de existir que caracterizam diversas comu-
nidades no brasil que (re)criam, de modo
extraordinário, os valores e linguagens mile-
nares, um legado dos seus ancestrais.
nas américas, o brasil representa um dos
principais pólos irradiadores das civilizações
africana e indígena, e, apesar das caracterís-
ticas dessa realidade que constitui o patri-
mônio histórico-cultural da nação, o estado
brasileiro, até hoje, não conseguiu absorver
e integrar a sua diversidade cultural, numa
proposta de política educacional.
o desafio, portanto, é implementar políticas
de educação que aproximem os/as professo-
res/as de referências teóricas e metodológi-
cas que os façam identificar e assumir, com
sabedoria, a riqueza da diversidade cultural
que caracteriza o brasil contemporâneo.
a série Oralidade, memória e formação apre-
senta a indagação: quais transformações se-
riam necessárias para afirmar que a “escola
tem futuro”4?
a contribuição que trazemos para enrique-
cer esse debate enfatiza a importância da
ancestralidade como princípio fundamental
para prover o cotidiano escolar de lingua-
gens e valores que estabeleçam uma ética
do futuro para as atuais e futuras gerações.
vamos nos dedicar a abordar aspectos do
universo simbólico da ancestralidade africa-
na, e deles extrair perspectivas teórico-me-
todológicas que contribuam para fortalecer
a autoestima das nossas crianças, jovens e
adultos.
AnCEStRAliDADE, MEMóRiA E
COntinuiDADE
Para entendermos o princípio de ancestra-
lidade, uma pergunta se torna fundamen-
tal: como preservar e expandir os valores da
diversidade da vida para que esse mundo não
se acabe?
as sociedades contemporâneas vivem essa
angústia, o que tem estimulado iniciativas
coletivas de educadores, em todo o mundo,
que buscam uma nova e urgente abordagem
sobre educação, que valorize e respeite a di-
versidade civilizatória dos povos e toda a di-
nâmica da vida que os envolve. É importan-
te estabelecer canais, no cotidiano escolar,
atentos à angustiante procura da compre-
ensão sobre o estar no mundo, no univer-
so, as histórias que inauguram o patrimônio
ético-estético que caracteriza as culturas,
os princípios milenares que atravessam os
tempos influenciando as gerações sucesso-
ras, enfim, o processo dinâmico da existên-
cia.
4 cf. Indagação apresentada na proposta pedagógica elaborada por Pedro garcia para o programa salto para o Futuro, série oralidade, memória e formação. rio de Janeiro: tv escola, março de 2006.
247
a ancestralidade, portanto, constitui a cor-
rente sucessiva de gerações que mantêm,
com dignidade, o legado dos seus antepas-
sados, repõem e expandem o universo mí-
tico-simbólico que sustenta as tradições de
um povo, suas instituições, organizações
territoriais e políticas, valores, linguagens,
formas de comunicação através de narrati-
vas míticas, modos de afirmação existencial
e sociabilidades.
estamos diante de uma concepção sobre
educação capaz de acolher linguagens cuja
matriz seja “[...] a criação emocional e poética
dos povos que mobiliza e abre caminhos, pon-
tes de aproximação entre comunidades diver-
sas” (santos, 2002, p. 26).
É ao sabor desse universo mítico-simbólico,
que caracteriza o discurso e as linguagens
da elaboração de mundo africano, que nasce
o título deste texto “no tempo em que os seres
humanos conversavam com as árvores...”.
É assim que os/as mais antigos/as costu-
mam transmitir saberes aos/às mais novos/
as nas comunidades de matriz africana.
cada história, conto, cantiga, parábola, pro-
vérbio anunciado/a com essa introdução era
carregado/a de poesia mítica, demonstrando
que o conhecimento a ser transmitido vem
de tempos imemoriais, isto é, desde que o
mundo é mundo.
os/as mais antigos/as nos contam que quan-
do oxalá, orixá que representa o ar, veio a
esse mundo, criou os seres humanos, e para
cada ser humano criou uma árvore. as árvo-
res carregam o princípio da ancestralidade,
representam, portanto, os ancestrais e são
elas que estabelecem a dinâmica da relação
entre os seres humanos e a natureza.
oxalá está relacionado à cor branca, “[...] o
axé, sangue branco... caracterizado por subs-
tâncias minerais como o giz, metais brancos,
como prata e chumbo, pela seiva da palmeira
igi-ope, pelo algodão, pelo sêmen, pelos ossos e
pela chuva. Pela chuva-sêmen que fertiliza e fe-
cunda a terra regenerando-a e proporcionando
o brotar das sementes. [...] Apresenta represen-
tações simbólicas de progenitura, capacidade
de gerar filhos, de expandir a descendência,
multiplicação dos seres tanto no aiyê como
no orun” (luZ, 1995, p. 89)5 (grifos nossos).
oxalá possui poderes que garantem a exis-
tência e, pela sua importância no panteão
nagô, merece respeito e atenção. se for con-
5 cf. santos,1985, p.39. o axé expressa a força que assegura a existência, permite o acontecer e o devir, e as possibilidade do ciclo vital. como toda força o àsé é transmitido e conduzido por meios materiais simbólicos e acumulável, portanto, só pode ser adquirido por introjeção ou contato aos seres humanos ou aos objetos. axé em nagô significa força invisível, mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa. nas comunidades-terreiro nagô, a existência é elaborada em dois planos: o àiyé o mundo, e o òrun , que representa o além. o àiyé é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais precisamente, os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. Já o orun corresponde ao espaço sobrenatural, o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. nele habitam os ara-òrun , que são os seres ou entidades sobrenaturais.
248
trariado ou desrespeitado, ele pode causar
grandes danos, tal o seu poder.
Das árvores criadas, algumas se destacam
nessa relação simbólica, a exemplo do den-
dezeiro com seus frutos, folhas e taliscas. os
frutos do dendezeiro compõem os instru-
mentos de Ifá, ou seja, a forma tradicional
que o povo nagô/iorubá utiliza para consul-
tar sobre os destinos dos seres humanos.
as folhas estão relacionadas ao culto dos
ancestrais masculinos, os mariô, represen-
tando filhos, descendência ininterrupta. as
taliscas de onde as folhas se desprendem re-
presentam os ancestrais. nesta estética do
sagrado, as árvores são as responsáveis pela
purificação do ar para que os seres huma-
nos tenham plenitude de vida.
Para aprendermos mais sobre o princípio de
ancestralidade, nada mais oportuno do que
apelar para um conto mítico que se desdo-
bra do universo existencial característico da
ancestralidade e visão de mundo africanas.
nele, tradição e contemporaneidade se in-
tercambiam, estruturando linguagens e va-
lores do patrimônio simbólico.
os contos míticos reúnem sabedorias mile-
nares, cujos princípios éticos conduzem, in-
fluenciam e atualizam o viver cotidiano das
comunidades de base africana.
“Os contos, em sua originalidade, se
constituem também em formas especí-
ficas de transmissão de valores religio-
sos, éticos e sociais da tradição dos mais
velhos aos mais jovens. Eles se caracte-
rizam como um aspecto da pedagogia
negra iniciática, transmitidos numa si-
tuação, aqui e agora, a qual faz alusão,
constituindo a experiência vivida em
sabedoria acumulada. A comunicação
se processa de maneira direta, pessoal
ou intergrupal, dinâmica, muitas vezes
acompanhada por cânticos, danças e
dramatizações” (luZ, 1977, p. 60).
Deoscóredes maximiliano dos santos, o
mestre Didi asipá, como é conhecido um
dos mais expressivos sacerdotes da tradi-
ção nagô, possui um riquíssimo acervo de
contos, cujas narrativas expressam modos
de sociabilidades singulares. as narrativas
dos contos de mestre Didi caracterizam-se
pelas analogias, plasticidade das imagens,
dramatizações, recriações, que ilustram a
dinâmica dos textos e o complexo contexto
simbólico nagô.
adaptamos especialmente para a série Orali-
dade, memória e formação, o conto “o Filho
de oxalá que se chamava Dinheiro”, extraí-
do do acervo literário de mestre Didi, ilus-
trando de modo extraordinário o modo afri-
cano de educar. nossos filhos costumam ser
educados com os valores éticos transmiti-
dos pelos contos, e a partir deles, aprendem
a lidar com a dinâmica da vida exigida pelo
mundo contemporâneo.
249
O FilHO DE OXAlá QuE SE
CHAMAvA DinHEiRO
No tempo em que os seres humanos
conversavam com as árvores, Oxalá ti-
nha um filho conhecido por Dinheiro,
que era um homem muito metido, ego-
ísta, arrogante e muito prepotente. Um
dia, Dinheiro, querendo aparecer como
muito poderoso na frente de várias pes-
soas, desafiou seu pai, o rei Oxalá, di-
zendo que conseguia andar com Iku, a
Morte, e levá-la para qualquer lugar que
se possa imaginar.
Para mostrar que era capaz de dominar
Iku, Dinheiro resolveu ir buscar a Morte
e trazê-la à presença de Oxalá. Para isso,
ele resolveu deitar numa encruzilhada,
ficar quieto por um tempo, esperando a
oportunidade para pegar Iku.
As pessoas passavam pela estrada, fica-
vam chocadas com a situação e comen-
tavam:
– Oxente! Que absurdo é esse! Como
pode esse homem ficar deitado aqui
nessa encruzilhada com a cabeça vira-
da na direção da casa de Iku e os pés
virados um para o lado da moléstia e o
outro para o lado da desavença. É de-
mais! O que ele está querendo mostrar
com isso?
Depois que Dinheiro ouviu vários comen-
tários sobre a atitude dele, levantou-se e
comentou ironicamente:
– Ah! Agora eu já sei tudo o que precisa-
va saber e já sei como agir.
Saiu com uma rede em direção à casa de
Iku, foi entrando e tocando os tambores,
instrumento que a dona da casa utiliza-
va para realizar o seu trabalho de levar
as pessoas para o outro mundo, o orun.
Dinheiro ficou na espreita aguardando a
Morte aparecer reclamando dos toques
dos tambores.
Não demorou muito, Iku aparece cha-
teada, querendo saber quem era o atre-
vido que tocava seus tambores. Despre-
venida, foi capturada por Dinheiro, que
jogou a rede, prendendo-a.
Dinheiro, com toda a sua arrogância, ar-
rastou a Morte até o palácio de Oxalá e
foi entrando e dizendo:
– Não disse que traria Iku a vossa pre-
sença?
Oxalá, na mesma hora, repreendeu-o e
disse-lhe:
– Saia daqui agora mesmo com Iku! Você
é o causador de todas as coisas de bem e
mal que existem no mundo. Leve a Morte!
250
Por este motivo é que, por causa do di-
nheiro, todas as qualidades de crimes
têm sido e continuam a ser praticadas.
o dinheiro no mundo africano tem uma ou-
tra conotação e representação, diferente do
mundo europeu. o “dinheiro”, como modo de
troca, está ligado à fertilidade e à restituição.
nos antigos reinos iorubá, a moeda eram os
búzios, os quais tinham um valor inestimá-
vel, pois representam ancestralidade.
os ornamentos de determinados orixás
apresentam constelações de búzios, carac-
terizando expansão de famílias, comunida-
des e sucessão de ancestralidade.
na concepção de fertilidade, está presente
a ideia implícita de restituição e de morte.
assim, o poder da fertilidade e o de restitui-
ção andam juntos. no conto, o desafio do
mais novo ao mais velho, inclusive conside-
rando o poder ancestral contido em oxalá,
é uma quebra de valores significativos da
tradição e compromete a harmonia e a coe-
são da comunidade. neste relato, o desafio
do filho ao pai é motivado pelo grande po-
der de representação do Dinheiro ao qual
nos referimos.
o poder, no contexto do mundo contempo-
râneo, é caracterizado pelo dinheiro e toda
a onipotência que ele pode exprimir. a arro-
gância, o egoísmo, o poder de destruição, a
desarmonia, a banalização da morte, as ten-
tativas de obtenção de um poder absoluto, o
desrespeito à ancestralidade, tudo isso está
contido na mensagem do conto.
“A ética para o futuro, no contexto des-
te mito africano, apresenta-se como
valores, linguagens, modos e formas de
sociabilidade que contemplam a trans-
cendência do Ancestral - esse pai que,
mesmo morto, determina. O culto aos
ancestrais responde pelo poder do pai
morto. A ética, enquanto discurso da
autoridade ancestral, é holística, comu-
nitária, consubstanciando a força do
grupo.” (soDrÉ, 1992, p.11).
a ética do futuro, dentro dessa dinâmica
ancestral, elabora e faz expandir o direito
à existência, às condutas individuais e co-
letivas. este princípio ético tem vigor nas
formas tradicionais das comunidades de
origem africana, onde o ato de educar é con-
cebido como uma dinâmica capaz de fazer
irradiar os mistérios transcendentes da vida
e da morte.
na tradição nagô/ioruba, a educação realiza
o “[...] poder de tornar presente a linguagem
abstrato-conceitual e emocional elaborada
desde as origens[...]. Poder de tornar presen-
tes os fatos passados, de restaurar e renovar a
vida. Reconduzir e recriar todo o sistema cog-
nitivo emocional, tanto em relação ao cosmos
como em relação ‘a realidade humana’.” (san-
tos, 1997, p. 4).
251
a perspectiva que destacamos nos inspira
a perseguir iniciativas em prol das Diver-
sidades culturais, produzindo possibilida-
des didático-pedagógicas que afirmem que
eDucar é repor os valores e princípios her-
dados e reelaborados – legado ancestral. É
expansão socioexistencial da diversidade
humana, fruto de civilizações milenares
que inauguraram diversos territórios em
todos os cantos do planeta, e que lutam há
séculos, tenazmente, para mantê-lo viável
à vida.
Por fim, gostaríamos de reverenciar os nos-
sos ancestrais que, nas suas trajetórias de
vida, lutaram com afinco para assegurar o
direito às condições existenciais necessárias
para que as gerações sucessoras expandis-
sem seu legado civilizatório.
“Mo juba.
Gbogbo asse tinu ara
Saúdo e venero
A todos os asese, nossas origens,
Contidos em nosso corpo comunitário.
As origens e sua permanente recriação
permitem o existir da comunidade.
Bibi bibi lo bi wa
Nascimento do nascimento que nos traz
o existir.” (santos, Deoscóredes; san-
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ro: grD, 1961.
253
vIII. OS vERSOS SAgRADOS DE IFá: BASE DA TRADIÇÃO CIvILIzATóRIA IORUBá1
Juarez Tadeu de Paula Xavier2
Oxum, graciosa mãe, plena de sabedoria!/
Que enfeita seus filhos com bronze,/
Que fica muito tempo no funda das águas gerando riquezas,/
Que se recolhe ao rio para cuidar das crianças/
Que cava e cava e nela enterra dinheiro/
Mulher poderosa que não pode ser atacada
os versos sagrados de Ifá guardam o mul-
tiverso de conhecimento da tradição ioru-
bá. essas grandes narrativas contêm infor-
mações com categorias universais – dados
científicos sobre a natureza e os seus fenô-
menos e manifestações – singulares – do
dia a dia da vivência tradicional dos povos
iorubanos – e particulares – os valores cultu-
rais dessa milenar tradição africana. É esse
reservatório de preservação, transformação
e produção de conhecimento social do real
deu base para a reinvenção da arquitetura
civilizatória desse importante povo da África
ocidental.
os mitos sagrados trazem os conhecimen-
tos das cartografias cosmológica e geográ-
fica iorubanas. as crianças desse universo
cultural têm acesso aos conhecimentos das
forças místicas e cósmicas que comandam
o universo, seus destinos, as relações terre-
nas, históricas e culturais. a exemplo de ou-
tros povos africanos, os iorubás têm na ora-
lidade os arquivos de sua civilização. Para
esse povo africano, conhecido como nagô
no brasil, a palavra enunciada carrega a for-
ça da realização. eles consideram a mentira
como um câncer, pois ele corrói a constru-
ção de cenários favorecedores da suas reali-
zações primordiais na vida: viver muito, vi-
ver com condições de sacralizar o universo,
amar, ter filhos e vencer as adversidades do
mundo. Dessa forma, a oralidade assume a
função de meio condutor dos conhecimen-
tos ancestrais e civilizatórios que ordenam a
trajetória dos seus descendentes.
1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 5.
2 Jornalista. Doutor em comunicação e cultura-Programa de Pós-graduação em Integração da américa latina da universidade de são Paulo (Prolam – usP).
254
Ile asÉ: esses conhecimentos permitiram
aos iorubás reorganizarem, pelo mundo afo-
ra, suas estruturas culturais. as grandes nar-
rativas, as pequenas histórias do cotidiano
e as canções rituais preservaram a moral, a
ética e a deontologia de suas relações huma-
nas. a moral iorubana permitiu a reconsti-
tuição da cartografia original no ile ase (ter-
ra sacralizada pela força ancestral). na linha
histórica das principais casas e terreiros or-
ganizados no país, tem-se o registro da ação
de homens e mulheres africanos que per-
sistiram na reconstrução de seu universo,
destruído pelas forças da escravidão. a força
moral e o tirocínio desses primeiros africa-
nos escravizados nas américas foi o motor
propulsor dessa reorganização. no início,
esses espaços de reconstrução tradicional
criaram uma linha de força que preservou a
originalidade dessa civilização, ante a força
destrutiva da sociedade global. nesses espa-
ços de rearticulação tradicional, os africanos
reconstituíam, paulatinamente, seus valores
morais civilizatórios. tais valores formaram
o chassi da reconstrução negra fora da Áfri-
ca. as linhas-mestras dessa reconstrução fo-
ram os versos sagrados de Ifá, vivos na me-
mória coletiva dessa população. a palavra é
uma força fundamental que emana do ser
supremo iorubá: olodumaré. Por isso, ela
possui um caráter sagrado e divino.
a cada novo desafio, a cada nova situação,
os velhos e velhas africanos reinventavam
novas soluções e respostas. uma nova folha,
uma nova forma de transmissão, um novo
modelo de organização. o xirê orixá, cantado
no início dos atos litúrgicos públicos, é uma
prova dessa sagacidade e inteligência ances-
tral. nele, as novas gerações conheciam as
formas místicas que comandam o universo
sagrado iorubá, em especial a relação dinâ-
mica entre o orun (dimensão imaterial da
existência) e o aiyê (dimensão material e
histórica da existência), e entravam em con-
tato com as energias cósmicas desse povo
– representações das forças do universo, dos
pontos energéticos da terra, das polaridades
de gênero, das cores e suas funções –, com
o universo social e sua ordenação tradicio-
nal – cargos, funções e responsabilidades so-
ciais de sacerdotisas e sacerdotes –, e ainda,
aprendiam as canções tradicionais, as dan-
ças e toques rituais e a relação pedagógica
entre as gerações: o aprendizado da boca
dos mais velhos para os ouvidos e olhos dos
mais novos. cada uma dessas opções feitas
pelas velhas gerações implicava opções éti-
cas, filosóficas, culturais e civilizatórias.
ante a divinação e a iniciação nos segredos
sagrados desse universo, as novas gerações
entravam em contato com as suas poten-
cialidades e limitações sacerdotais: o que
comer, vestir, como se comportar ante o
sagrado, ante a comunidade, ante o corpo
sacerdotal da comunidade e ante a força da
sociedade global.
255
ÉtIca, moral e DeontologIa: assim, no
universo da educação civilizatória, articula-
vam-se dimensões morais, condutoras dos
comportamentos coletivos e sociais dessa
civilização; éticas, condutoras das opções e
reflexões cotidianas, que implicavam ações
filosóficas e culturais; e deontológicas, con-
dutoras do comportamento ante a comuni-
dade de iniciados e a social global.
todo esse universo conceitual era trans-
mitido pelas equivalências universais que
caracterizam a civilização iorubá em qual-
quer parte do mundo: a divinação sagrada
aos pés de Ifá, para a revelação dos desíg-
nios humanos; a iniciação, marco de or-
denação da transição entre o profano e o
sagrado; e pelo conhecimento mitológico
do panteão: deidades e forças que organi-
zam o cosmo iorubá. Durante muito tem-
po, o conhecimento da magnitude desse
universo cultural ficou restrito às pessoas
que se iniciavam nesse universo religioso,
excetuando-se os trabalhos acadêmicos e
as publicações.
Porém, algumas experiências foram reali-
zadas na transmissão desses valores via es-
colarização. alguns terreiros de candomblé
organizaram escolas nos seus espaços co-
munitários. essas escolas, além das discipli-
nas formais do currículo escolar, acrescen-
tam elementos do conhecimento ancestral
iorubá.
ensinam-se canções rituais, mitos cosmoló-
gicos vinculados às deidades iorubanas, à na-
tureza terapêutica e ritualística das plantas
e à presença dos elementos dessa cultura no
universo simbólico do brasileiro, na música,
dança, literatura, artes plásticas e ciência.
os núcleos que enfeixam os conhecimentos
iorubás são ricos em fornecer informações
em todas as áreas do conhecimento: univer-
sos da divinação; dos processos iniciáticos e
da relação com os orixás; do contato com as
energias ancestrais, e com o conhecimento
litúrgico das folhas.
Dessa forma, universalizam-se as possibili-
dades de transmissão dos conhecimentos
civilizatórios do universo iorubá, dos conhe-
cimentos dos seus valores, e do aprendizado
em duas dimensões: o da escolarização e o
da educação dos valores universais, presen-
tes nos versos sagrados de Ifá, infraestrutura
conceitual sobre a qual repousam os conhe-
cimentos ancestrais iorubá. o percurso des-
sa experiência evidencia a presença de fortes
e profundos elementos africanos e afrodes-
cendentes no universo imaginário brasileiro,
no seu dia a dia, na sua visão de mundo e no
modo de se relacionar com o universo.
REFERênCiAS
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XavIer, J.t.P Exu, ikin e egan: as equivalên-
cias universais no bosque das identidades
afrodescendentes nagô lucumi – estudo
comparativo da religião tradicional ioruba
no brasil e em cuba. Dissertação de mestra-
do defendida do programa de pós-graduação
em Integração da américa latina da univer-
sidade de s. Paulo (Prolam/usP), 2000.
257
Ix. CANTOS E RE-ENCANTOS: vOzES AFRICANAS
E AFRO-BRASILEIRAS1
Andréia Lisboa de Sousa2
Ana Lúcia Silva Souza3
Os mitos são, realmente, as histórias sociais que curam. Isso porque nos são
mais do que o desfecho moral que aprendemos associar, há muito tempo, às
quadrinhas infantis e aos contos de fada. Lidos apropriadamente, os mitos nos
deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam a lidar com
as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o nosso
relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento
dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida
(ForD, clyde W. o herói com rosto africano. mitos da África).
o objetivo deste texto é ressaltar a impor-
tância dos contos, orais e escritos, africanos
e afro-brasileiros, destacando-os como mar-
cas das experiências humanas de um povo
ao longo dos tempos. são narrativas com
rosto africano.
a história e a memória de vários povos afri-
canos adentram e permanecem como parte
de nossa cultura. cultura essa materializa-
da, em especial, na literatura oral expressa
pelos mitos, lendas, provérbios, contos etc.,
ou, ainda, servindo como base da literatura
escrita desta natureza.
no brasil, uma das matrizes que informam a
tradição oral diz respeito às influências dos
africanos aqui escravizados que para cá vie-
ram, guardiões e guardiãs responsáveis por
recriar a memória dos fatos e feitos de seus
1 conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / Pgm 3.
2 Doutoranda em educação pela Faculdade de educação da universidade de são Paulo (FeusP). mestre em educação pela FeusP. I ntegra a associação brasileira dos Pesquisadores negros - abPn. Fellow do Fundo riochi sasakaua/usP. consultora na área de educação e relações Étnico-raciais. atualmente, é pesquisadora sobre cultura afro-brasileira em materiais didático-pedagógicos e subcoordenadora de Políticas educacionais da cgDIe/secaD/mec.
3 Doutoranda em linguística aplicada - unicamp/Iel. estuda as interfaces entre práticas de letramento, relações raciais e juventude. I ntegra a associação brasileira dos Pesquisadores negros - abPn - sP. organiza e assessora projetos relacionados à leitura e à dinamização de acervos de literatura. coordenadora do vI concurso negro e educação pela ação educativa/anPeD.
258
antepassados, ressignificando a vida nos no-
vos lugares de morada. Foram também po-
etas, músicos, dançarinos, estudiosos, mes-
tres, conselheiros, denominados, de modo
geral, como contadores de histórias.
trouxeram para cá o significado da pala-
vra na cultura africana – o uso da palavra
se constitui no diálogo, no argumento e no
conselho, que se mostraram como práticas
essenciais do dia a dia nas comunidades
Para a cultura africana, as palavras têm um
poder de ação, e ignorar aquilo que é pro-
nunciado e verdadeiro é cometer uma falha
grave, que pode ser comparada ao ato de ti-
rar uma parte dos elementos essenciais do
nosso corpo, o que nos faria perder a vida ou
uma parte de nós.
recorremos a amadou Hampâté bâ, filó-
sofo, escritor e intelectual africano, para
exemplificar a relação entre a palavra, o co-
nhecimento e o saber vivenciados na escola
dos mestres da palavra:
Um mestre contador de histórias afri-
cano não se limitava a narrá-las, mas
podia também ensinar sobre numero-
sos outros assuntos (...) porque um ‘co-
nhecedor’ nunca era um especialista no
sentido moderno da palavra mas, mais
precisamente, uma espécie de generalis-
ta. O conhecimento não era comparti-
mentado. O mesmo ancião (...) podia ter
conhecimentos profundos sobre religião
ou história, como também ciências na-
turais ou humanas de todo tipo. Era um
conhecimento (...) segundo a competên-
cia de cada um, uma espécie de ‘ciência
da vida’; vida, considerada aqui como
uma unidade em que tudo é interligado,
interdependente e interativo; em que o
material e o espiritual nunca estão dis-
sociados. E o ensinamento nunca era
sistemático, mas deixado ao sabor das
circunstâncias, segundo os momentos
favoráveis ou a atenção do auditório
(bâ, 2003, p. 174-175).
como aponta bâ, o poder da palavra garante
e preserva ensinamentos, uma vez que pos-
sui uma energia vital, com capacidade cria-
dora e transformadora do mundo. energia
que possui diferentes denominações para as
diversas civilizações, por exemplo, para os
bantus essa energia é hamba, já para o povo
iorubá a energia é o axé.
tal é a importância da palavra na África que
existe um papel específico desempenha-
do pelos profissionais da tradição oral – os
griots – pessoas que têm o ofício de guardar
e ensinar a memória cultural na comunida-
de. eles armazenam séculos e mais séculos
de segredos, crenças, costumes, lendas e
lições de vida, recorrendo à memorização.
existem também mulheres que exercem es-
sas funções, conhecidas como griotes. Ham-
pâté bâ comenta sobre uma célebre canto-
ra, Flateni, antiga griote do rei aguibou tall,
259
cujos “cantos arrancavam lágrimas até dos
mais empedernidos” (2003, p. 255). Há ainda
outras categorias de contadores de histórias
na África, como os Doma4, tidos como os
mais nobres contadores, porque desempe-
nham o papel de criar harmonia, de organi-
zar o ambiente e as reuniões da comunida-
de. eles jamais podem usar a mentira, pois
isso faria com que perdessem sua energia
vital, provocando um desequilíbrio no gru-
po ao qual pertencem (Caderno de Educação
– ÁFrIca IlÊ aIYÊ, 2001).
a tradição oral pode ser vista como uma ca-
cimba de ensinamentos, saberes que veicu-
lam e auxiliam homens e mulheres, crian-
ças, adultos/as velhos/as a se integrarem no
tempo e no espaço e nas tradições. sem po-
der ser esquecida ou desconsiderada, a ora-
lidade é uma forma encarnada de registro,
tão complexa quanto a escrita, que se utiliza
de gestos, da retórica, de improvisações, de
canções épicas e líricas e de danças como
modos de expressão.
mais uma vez recorrendo a bâ: “A escrita é
uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fo-
tografia do saber, mas não o saber em si. O
saber é uma luz que existe no homem. É a he-
rança de tudo que nossos ancestrais puderam
conhecer e que se encontra latente em tudo o
que nos transmitiram, assim como o baobá já
existe em potencial em sua semente (tIerno
boKar, apud bâ, 2003, p. 175).
É interessante salientar que hoje nós temos
a escrita como forma de apontamento de
nossas memórias, mas que ela não é a única
forma de registrarmos os conhecimentos, a
oralidade serviu e serve para preservar a cul-
tura africana no brasil.
nAS tRilHAS DAS HiStóRiAS
AFRO-BRASilEiRAS
De acordo com nelly novaes coelho, não te-
mos mais os contadores “descendentes dos
narradores primordiais, isto é, aqueles que
não inventavam: contavam o que tinham ou-
vido e ou conhecido” e que “representavam
a memória dos tempos a ser preservada pela
palavra e transmitida de povo para povo ou
de geração para geração” (coelHo, 2000, p.
109). contudo, podemos afirmar que a tra-
dição de narrar mantém a sua força. como
escreve celso sisto, “O homem já nasce pra-
ticamente contando histórias. Está inserido
numa história que o antecede e com certeza
irá sucedê-lo” (sIsto, 2001, p. 91).
4 conforme mencionado no caderno de educação – África Ilê aiyê (2001, p. 25) “os profissionais da tradição mais reconhecidos na África tradicional e contemporânea são os griots e os Domas. os griot é um nome de origem bambará, para personagens africanos denominados contadores de histórias, que eles sabem de memória e acumulam, reunindo séculos e mais séculos de crenças, costumes, lendas, contos, lições de sabedoria. o Doma é a categoria mais nobre de contadores de história, aquele que tem o papel de criar harmonia, de colocar ordem em volta do ambiente, da audiência nas reuniões da comunidade”.
260
todos nós temos histórias para contar, imer-
sos que estamos, ainda que por vezes sem
perceber, no patrimônio cultural informado
por mitos, lendas, provérbios, contos, can-
ções, sátiras de todas as matrizes.
as narrativas orais expressam hábitos e va-
lores cujo compartilhamento se dá no am-
biente familiar, religioso, comunitário, es-
colar. todo este patrimônio está no corpo e
na mente das pessoas, onde quer que elas
estejam.
essas histórias, que também estão nos livros,
nos jornais, na rede informatizada, sugerem
troca, intimidade e proximidade e, conforme
Ford “nos ajudam a lidar com as inevitáveis
transições da vida e fornecem modelos para o
nosso relacionamento com as sociedades em
que vivemos e para o relacionamento dessas
sociedades com o mundo que partilhamos com
todas as formas de vida” (ForD, 1999, p. 9).
as culturas africanas e afro-brasileiras pre-
servam, também na escrita, narrativas que
podem ser associadas ao que a crítica literá-
ria ocidental classifica como contos, lendas,
fábulas, provérbios, canções, etc. É funda-
mental compreender que a base de todas as
histórias guarda reminiscências na tradição
oral.
as narrativas literárias são textos estéticos,
lúdicos, que suscitam a criatividade, o imagi-
nário da/o leitora/or. nesse tipo de texto pre-
dominou uma referência a se seguir, em que
as personagens brancas reinavam como pa-
drão de representação literária e, por muito
tempo, esse modelo ocidental eurocêntrico
foi quase que exclusivo. esse contexto vem
sendo alterado pelas ações dos movimentos
sociais negros, pelas influências de novas
visões e concepções de educação, além dos
dispositivos legais que atualmente orientam
os currículos das escolas.
Há, atualmente, vários livros publicados que
se propõem a desvendar o universo de algu-
mas culturas africanas e da afro-brasileira.
só para citar alguns temos: Bichos da África,
volumes I, II, III e Iv, Contos ao redor da fo-
gueira e Histórias africanas para contar e re-
contar, de rogério barbosa; Que mundo Ma-
ravilhoso, de Julius lester; Bruna e a galinha
d’Angola, de gercilga de almeida; A cor da
vida, de semíramis Paterno; Tanto, Tanto, de
trish cooke; Chica da Silva, de lia vieira e As
tranças de Bintou, de sylviane Diouf. existem
outros dentro do mercado editorial, o qual
tem se interessado pelo tema, apresentando
novas opções.
encontramos também livros que retomam
traços e símbolos da cultura negra, tais
como: a capoeira, a dança, os mecanismos
de resistência diante das discriminações
e outros que fazem alusão direta às religi-
ões de matriz africana ou que remetem às
divindades afro-brasileiras: Pai Adão era
Nagô, de Inaldete andrade; Rainha Quixim-
261
bi; o presente de ossanha; Gosto de África e
Dudu Calunga, de Joel rufino; Na terra dos
Orixás, de ganymedes José; Lenda dos orixás
para crianças, de maurício Pestana; Ifá, o adi-
vinho, Xangô, o rei do trovão, Os príncipes do
destino: histórias da mitologia afro-brasileira,
de reginaldo Prandi.
Júlio emilio braz, por exemplo, nos estimu-
la a imergir no universo de algumas lendas
africanas, a fim de aguçar nossa curiosida-
de, durante a leitura. afinal, indaga ele:
Quantas histórias sobre os tuaregues, o
lendário povo nômade do norte da Áfri-
ca, já ouviram?
Qualquer um deles conhece a história de
reinos tão poderosos quanto desconhe-
cidos como de Ghana e Achanti? E sobre
um império Mali? O que ouviram? Son-
gai? Kanem-bornu? Bambara?
Pouco ou nada se falou sobre a África
para os jovens de hoje, afrodescenden-
tes ou não. E quando se falou, buscou-se
mais a discussão sobre as religiões ou o
folclore, quando não o estereótipo. Para
muitos a África ainda é um mistério ou,
pior ainda, quando aparece nos notici-
ários, é como palco de terríveis guerras
civis, epidemias pavorosas ou de países
muito próximos de barbárie, onde a civi-
lização parece não existir (2002, p. 4-5).
ao ampliar nossos conhecimentos, bem
como desenvolver com os alunos e alunas
projetos e aulas significativos, percebere-
mos que o universo afro-brasileiro é múlti-
plo e que existem várias Áfricas que infor-
mam nossa cultura. nas palavras de braz:
Na verdade, não existe apenas uma Áfri-
ca, mas incontáveis, ricas em histórias
e tradições. Do norte islamizado até o
sul dividido em incontáveis crenças e
religiões, muitas delas fruto dos anos
de colonização europeia, passando por
uma surpreendente diversidade ecológi-
ca e geográfica que vai dos desertos es-
caldantes como o Saara e o Kalahari às
maravilhas florestais como Okavango e
às extensas savanas em países como o
Quênia (2001, p. 4).
ainda como nos alerta o autor, é importan-
te estarmos atentos e re-vermos o quanto
a cultura africana impregnou-se na cultura
brasileira:
A riqueza étnica é impressionante, res-
ponsável por uma herança cultural e ar-
tística e precisamos conhecê-la, uma vez
que ainda a conhecemos pouco, apesar
de a África ter uma influência decisiva
nos hábitos e nos costumes mesmo da-
queles brasileiros que não são afrodes-
cendentes (braZ, 2001, p. 4 e 5).
262
tECEnDO OS POntOS PARA
COntAR OS COntOS
o aqui e agora dos espaços das narrativas,
com seus personagens intrigantes, enredos
carregados de metáforas e desfechos sur-
preendentes, falam de valores importantes
para descortinar as múltiplas dimensões da
vida na sociedade atual. conhecer este uni-
verso significa poder contribuir, em sentido
amplo, para a promoção da igualdade das
relações étnico-raciais na escola e fora dela.
talvez uma das maiores riquezas do traba-
lho com os contos seja o exercício da bus-
ca coletiva, da pesquisa, das trocas e das
descobertas. os contos, sejam eles orais ou
escritos, estão por toda a parte para serem
recolhidos e oferecidos para nosso deleite,
num tecido poético bordado de símbolos e
ensinamentos.
Para clarissa estes, nas histórias estão in-
crustadas orientações que nos guiam a res-
peito da complexidade da vida. elas se apre-
sentam, muitas vezes, como ingredientes
medicinais, que aliviam, que curam:
As histórias são bálsamos medicinais.
(...). Elas têm uma força! Não exigem que
se faça nada, que se seja nada, que se aja
de nenhum modo – basta que prestemos
atenção. A cura para qualquer dano ou
para resgatar algum impulso psíquico
perdido nas histórias. Elas suscitam in-
teresse, tristeza, perguntas, anseios e
compreensões que fazem aflorar [ima-
gens do nosso inconsciente](...). No en-
tanto, (...) em cada fragmento de histó-
ria está a estrutura do todo (clarIssa
estes, 1999, p. 30).
começar a busca em nosso acervo de memó-
ria pode ser significativo, considerando que
estes conhecimentos, de alguma maneira,
fazem parte de nossa formação identitária.
Quais contos já ouvimos ou lemos? Quan-
do foi? Quem nos apresentou as narrativas?
Quais foram os sentimentos e emoções mo-
bilizados?
este pode ser um primeiro passo. olhar para
nós e para nossa história de vida, para saber
que lugar ocupam os contos, os mitos, os
provérbios, e nos prepararmos para, no am-
biente escolar, lançar mão de ações simples
e organizadas e contribuir para as artes de
falar e de escutar, destacando as fundamen-
tais para a convivência e o exercício da cida-
dania na atual sociedade.
como destaca rogério barbosa sobre a arte
de contar histórias:
Seja bem-vindo ao mundo da literatura
oral. (...) Não se limite apenas a ler ou
a ouvir. Vibre intensamente com as his-
tórias como se fizesse parte da atenta
plateia.
263
Aprecie os contos que explicam a origem
do comportamento de determinados
habitantes da floresta. Depois, leia as
histórias em voz alta e tente reproduzir
o andar e os diálogos travados pelos in-
críveis personagens. Afinal, as histórias,
principalmente na África, foram feitas
para serem contadas e recontadas. (...)
Uma das tradições africanas são os con-
tos etiológicos, que procuram explicar
as origens das coisas e o comportamen-
to de determinados animais. Histórias
africanas para contar e recontar sur-
giu de uma seleção e adaptação desses
contos... (barbosa, 2004 – introdução e
biografia).
AMPliAnDO HORiZOntES: O
OFíCiO DE FAZER
a seguir, apontamos algumas possibilidades.
É com a mão na massa que podemos pensar
as nossas posturas investigativas, repensar
atividades escolares como espaços de um di-
álogo emocionado:
• convidar nossos/as colegas professores
para o exercício de rememorar as narrati-
vas que fazem parte das histórias pessoais,
o que pode ser bastante instigante. traba-
lhar em grupo, nas reuniões pedagógicas,
é também excelente oportunidade para
analisar o projeto político-pedagógico da
escola, verificando quais são os compro-
missos firmados no sentido de conhecer a
história, valorizar a memória e a herança
cultural dos diferentes povos. Quais são
as atividades e projetos que a escola, ou
parte dela, já realiza ou realizou? como
têm sido desenvolvidas e divulgadas?
• Incentivar a prática da pesquisa junto aos
alunos e alunas. Discuta e elabore com
eles a coleta de depoimento oral de pes-
soas da família ou da comunidade. o que
importa neste momento é valorizar as
histórias e investir na construção de um
mapa cultural e social, que pode ajudar na
construção de uma rede de sociabilidade,
fortalecendo a autoestima dos envolvidos
neste processo. É importante também
pensar na sistematização e comunicação
do material coletado;
• Dinamizar as reuniões de responsáveis,
pais e mães, fazendo também desta opor-
tunidade um espaço de valorização de sa-
beres, de trocas e descobertas, por meio
da coleta e ressignificação das memórias
dos contos. as reuniões também são boas
oportunidade para que as pessoas presen-
tes conheçam os projetos que estão sendo
desenvolvidos na escola e tenham conta-
to com os livros e outros materiais traba-
lhados no espaço escolar;
• realizar buscas na internet, para conhe-
cer sites de países africanos e conhecer
contos que estão disponíveis na rede, tais
como:
264
www.casadasfricas.com.br;
www.mestredidi.org;
www.mundonegro.com.br;
www.portalafro.com.br;
www.navedapalavra.com.br
www.docedeletra.com.br .
• buscar outras fontes, tais como filmes, um
deles Kiriku e a feiticeira, narrativa africana
encantadora traduzida para a linguagem
fílmica. acessar séries educativas, como
os programas de vídeo do projeto A Cor
da Cultura5 (www.acordacultura.org.br), a
série Repertórios Afro-Brasileiros, veiculada
pela tv escola/Programa salto para o Futu-
ro, em 2004, dentre outras (www.tvebrasil.
com.br/salto). conhecer as experiências de
professores, voltadas para a promoção da
igualdade racial/étnica no ambiente esco-
lar, as quais foram selecionadas e divul-
gadas pelo Prêmio Educar para a Igualdade
Racial do CEERT (www.ceert.org.br).
• visitar, em feiras e congressos, os estandes
de editoras e ongs, buscando materiais
especificamente relacionados à temática.
o mercado editorial tem investido na pro-
dução de materiais sobre diversidade. são
dezenas de livros que, analisados com cri-
térios, enriquecem o trabalho;
• estabelecer contato com grupos do movi-
mento social negro e outras entidades para
conjuntamente organizar eventos – ativida-
des, cursos, palestras – que valorizem a cul-
tura e a história africana e afro-brasileira
e sejam incorporados ao projeto político-
-pedagógico e ao currículo da escola.
mantendo a tradição africana, de trabalhar
coletivamente, mostra-se fundamental pen-
sar com a comunidade escolar outras possi-
bilidades de tessitura de relações com com-
promisso. Desta forma, salientamos que o
trabalho com os contos é interdisciplinar
e pode tomar um dos lugares centrais no
projeto político-pedagógico e nos currículos
das escolas, de forma a disseminar e valo-
rizar o uso da palavra oral, como uma das
mais importantes modalidades da lingua-
gem. afinal, somos contadores e contadoras
de histórias.
o ato de contar, de ouvir histórias parece
ainda manter um sentido universal que re-
side na sustentação do espaço de sociabili-
dade. contar história é trocar, compartilhar
vivências e saberes. trata-se de escutar a voz
do outro que, ao contar, exerce O direito de
ler em voz alta, como aponta Pennac em Di-
reitos Imprescritíveis do leitor6.
5 a cor da cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, realizado por uma parceria entre o canal Futura, a Petrobras, o cidan – centro de Informação e Documentação do artista negro, a tv globo, mec/ e a seppir – secretaria especial de Políticas de Promoção da Igualdade racial.
6 Daniel Pennac, no livro Como um romance (p. 139), aponta os 10 direitos imprescritíveis do leitor: o direito de não ler; de pular páginas, de não terminar de ler um livro; de reler; de ler qualquer coisa; ao bovarismo (doença textualmente transmissível); o direito de ler em qualquer lugar, de ler uma frase aqui e outra ali, de ler em voz alta, de calar.
265
a possibilidade de escolher determinada his-
tória nos permite ocupar o lugar de um griot
e o próprio poder de usar a fala pode ser to-
mado como um espaço de autoafirmação.
trata-se de escutar a voz do outro. e quem
escuta aprende a respeitar e deleitar-se na
voz da outra pessoa.
COntinuAnDO A COnvERSA:
liBERtAnDO vOZES
Quando nos referimos à cultura afro-brasi-
leira, sempre fazemos uso dos incontáveis
conhecimentos e saberes trazidos por ou-
tros povos e pelos africanos escravizados em
suas estratégias de resistência e construção
de suas identidades – o canto, as rezas, os
gestos corporais, o som dos instrumentos,
os usos da palavra cantada ou versada. to-
dos esses elementos se entrelaçam e comu-
nicam e nos comunicam algo sobre nosso
território, nossa cultura, nossa língua, en-
fim, nossa história.
Podemos ser os novos guardiões e guardiãs,
responsáveis por construir novas histórias,
re- criar enredos éticos e dignos, valorizar
culturas e sermos portadores das vozes es-
quecidas de um passado mais longínquo
(dos mitos, dos ancestrais), assim como de
um passado mais próximo, de séculos de
ocultamento da história da África como ma-
triz da trajetória da humanidade. basta abrir
as portas e deixar as histórias aflorarem:
Espero que vocês saiam e deixem que as
histórias lhes aconteçam, que vocês as
elaborem, que as reguem com seu san-
gue, suas lágrimas e seu riso até que
elas floresçam, até que você mesma es-
teja em flor. Então, você será capaz de
ver os bálsamos que elas criam, bem
como onde e quando aplicá-los. É essa a
missão. A única missão (estes, 1999, p.
570).
a missão do poder da palavra está conos-
co. basta sabermos usá-la, como os sábios
contadores de outrora, e mergulharmos nos
mistérios desconhecidos, que nos revelam
como lidar com os conflitos, com as mudan-
ças, com as diferenças, com a convivência
em sociedade nas singularidades das formas
de ser e viver.
novos conceitos são construídos por meio
da disseminação de outras ideias e con-
cepções, capazes de promover e sustentar
comportamentos favoráveis à convivência e
ao respeito, à igualdade nas relações entre
crianças e jovens, homens e mulheres para
além do aspecto jurídico, constituído pelo
princípio de que todos os homens são iguais
perante a lei.
Fica o convite ao compromisso para desfiar a
trama cultural, nos seus múltiplos sentidos
e tessituras, recuperar, produzir histórias e
– na própria voz dos sujeitos – buscar for-
mas de alterar as condições atuais, contar
266
ou retomar outras novas histórias, coletiva-
mente, como rezam as tradições das Áfricas.
AS lEiS COntAM E AuMEntAM
POntOS
atualmente, a cultura africana e afro-brasi-
leira está na agenda educacional de nosso
País. É importante ressaltar que o movi-
mento social negro brasileiro – incluímos
também o movimento de mulheres negras
– nas últimas décadas do século XX e início
do XXI – tem desempenhado papel prepon-
derante nessa tendência de valorização da
cultura negra, por meio de suas denúncias e
reivindicações. todo esse contexto permite,
gradativamente, vislumbrar livros de lite-
ratura Infanto-Juvenil com novas propostas
(lIsboa De sousa, 2005).
vale chamar a atenção em relação à altera-
ção da lei de Diretrizes e bases da educação
nacional de n°. 9.394/96 (lDben), trazida
pela lei Federal de n°. 10.639/03, que torna
obrigatório o ensino de História e cultura
afro-brasileira no currículo oficial de en-
sino e da regulamentação da lei 10.639/03
pelo Parecer cne/cP 003/2004 e pela reso-
lução cne/cP 1/2004, que dispõem sobre as
Diretrizes curriculares para a educação das
relações Étnico-raciais e para o ensino de
História e cultura afro-brasileira e africa-
na.
De acordo com o Parecer, é fundamental a:
Edição de livros e de materiais didáticos,
para diferentes níveis e modalidades de
ensino, que atendam ao disposto neste
parecer, em cumprimento ao disposto
no Art. 26A da LDB, e, para tanto, abor-
dem a pluralidade cultural e a diversida-
de étnico-racial da nação brasileira, cor-
rijam distorções e equívocos em obras já
publicadas sobre a história, a cultura, a
identidade dos afrodescendentes, sob o
incentivo e supervisão dos programas de
difusão de livros educacionais do MEC –
Programa Nacional do Livro Didático e
Programa Nacional de Bibliotecas Esco-
lares (Pnbe).
a resolução retoma esse assunto quando in-
forma no art. 7º que “Os sistemas de ensino
orientarão e supervisionarão a elaboração e
edição de livros e outros materiais didáticos,
em atendimento ao disposto no Parecer CNE/
CP 003/2004”. esses dispositivos legais são
fundamentais para as mudanças atuais na
história da educação no país, pois contri-
buem para que educadores, gestores, edito-
res, leitores etc., possam redimensionar as
práticas de leitura e a concepção de livros
de literatura.
em 2005, a secretaria de educação continu-
ada, alfabetização e Diversidade (secaD),
por intermédio da coordenação geral de
267
Diversidade e Inclusão educacional, enviou
ofícios para várias editoras, informando so-
bre os dispositivos legais acima citados, com
o intuito de que as editoras inscrevessem li-
vros sobre o tema no Programa nacional de
biblioteca da escola (Pnbe). as Diretrizes do
referido Programa apontavam o tema da di-
versidade como enfoque. o resultado foi po-
sitivo, na medida em que livros importantes
sobre o tema foram selecionados em 2005,
aos quais os/as educadores/as e estudantes
terão acesso via Pnbe.
Por um lado, algumas secretarias de edu-
cação organizaram materiais específicos
para contemplar a cultura afro-brasileira. À
guisa de exemplo, temos a Bibliografia Afro-
-Brasileira na Rede Municipal de São Paulo /
SP, distribuída em 2003; o Kit de Literatura
Afro-Brasileira, da secretaria municipal de
educação de belo Horizonte/mg, distribuído
em 2004; o material orientador sobre rela-
ções raciais e cultura afro-brasileira da se-
cretaria municipal de educação de salvador/
ba e o material de formação de professores
da secretaria estadual de educação do mato
grosso do sul.
as leis estão saindo fora do papel e ganhan-
do corpo, uma vez que educadores de norte
a sul do brasil, cada vez mais, realizam diver-
sas atividades em sala de aula. e ao apresen-
tarem, lerem, interpretarem, narrarem con-
tos, aumentam pontos. Da mesma forma,
ao partilharem conhecimentos, valorizam e
estimulam o respeito à diversidade. salien-
tamos que tais ações precisam integrar os
currículos das escolas e serem incorporadas
ao cotidiano escolar.
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272
x. CONTO POPULAR, LITERATURA E FORmAÇÃO
DE LEITORES1
Ricardo Azevedo2
Parte considerável dos contos populares pare-
ce ser originária de mitos arcaicos. os mitos
são, em princípio, narrativas sagradas, rela-
tando fatos que teriam ocorrido num tempo
ou mundo anterior ao nosso e que, em geral,
tentam explicar a origem e a existência das
coisas: como e porque surgiram o mundo, os
homens, os costumes, as leis, os animais, os
vegetais, os fenômenos da natureza etc.3 em
outras palavras, através de histórias, as cul-
turas criaram (e criam) mitos com o objetivo
de tornar compreensíveis e interpretáveis a
existência humana e tudo o que existe.
vejamos trechos de dois relatos míticos
recolhidos pelo antropólogo claude lévi-
-strauss em sua passagem pelo brasil, na dé-
cada de 40. ambos tentam explicar porque o
pássaro engole-vento é como é. o primeiro
corresponde a um mito guarani:
“Uma filha de chefe e um rapaz se apai-
xonaram, mas os pais da jovem não
aprovavam a união da filha (...). Um dia,
a moça desapareceu. Descobriu-se que
tinha fugido para as colinas refugiando-
-se entre animais e pássaros. Enviaram
embaixadas e mais embaixadas até ela,
para convencê-la a voltar, mas em vão: o
desgosto a tinha tornado surda e insen-
sível. Um feiticeiro declarou que só um
grande choque poderia tirá-la daquela
letargia. Anunciou-se então à heroína a
falsa morte de seu amado. Ela deu um
pulo e desapareceu, transformada em
Engole-vento”4.
sobre o mesmo pássaro, cujo canto é mui-
to triste, o ilustre pesquisador apresentou o
mito karajá. eis um trecho:
1 conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / Pgm 1.
2 escritor e desenhista, doutor em letras pela universidade de são Paulo, autor de Lúcio vira bicho, cia. das letras, contos de espanto e alumbramento, scipione e a hora do cachorro louco, Ática, entre outros.
3 o assunto ultrapassa os limites desse artigo. Há, naturalmente, mitos modernos e contemporâneos. o termo costuma ser utilizado de forma imprecisa, seja meramente como “relatos fantásticos” ou “seres fabulosos” seja como “crenças inverídicas” ou mesmo simples mentiras. a noção de mito é bem mais complexa que isso. Para mais informações c.f. por exemplo elIaDe, mircea. mito e realidade. trad. Pola civelli. são Paulo, Perspectiva, 1972.
4 lÉvI-strauss, claude. A oleira ciumenta. trad. beatriz Perrone-moisés. são Paulo, brasiliense, 1986, p. 55.
273
“(...) certa noite, a mais velha entre duas
irmãs, admirando a beleza da estrela
vespertina, desejou-a. No dia seguinte, a
estrela entrou em sua casa sob a forma
de um velho curvado, enrugado e de ca-
belos brancos, e declarou estar disposto
a se casar com ela. A mulher, horroriza-
da, rejeitou-o. Sua irmã mais nova ficou
com pena e aceitou o velho como ma-
rido. No dia seguinte, descobriram que
aquele corpo não passava de um invólu-
cro, sob o qual havia um belo rapaz, ri-
camente paramentado, que sabia fazer
crescer as plantas alimentares que os
índios ainda não conheciam. A mais ve-
lha sentiu ciúme da irmã por sua sorte,
e sentiu vergonha de sua própria estu-
pidez. Transformou-se então no Engole-
-vento, de grito desconsolado”5.
como se vê, a associação entre narrativas
míticas e contos populares pode ser bastan-
te nítida.
ressalto que o que chamo aqui de “conto
popular” é sinônimo de “conto de fadas”,
“conto maravilhoso” ou “conto de encanta-
mento”, narrativas que no nordeste brasi-
leiro também são conhecidas como “histó-
rias de trancoso”.
em grandes linhas, é possível colocar a
questão nos seguintes termos: acredita-se
que muitas narrativas míticas, oriundas das
mais diversas culturas, teriam sofrido um
processo de dessacralização, ou seja, com
o passar do tempo, deixaram de ser inter-
pretadas com fé religiosa. algumas delas,
por serem muito bonitas, continuaram a ser
contadas e, de boca em boca, sofrendo natu-
ralmente todo tipo de alteração e influência
– “quem conta um conto aumenta um pon-
to” – transformaram-se no que conhecemos
hoje como contos populares.
esses contos, é bom lembrar, são típicas ex-
pressões de culturas orais (sem escrita), ou
seja, culturas que não contam com recur-
sos para fixar informações. De narrador em
narrador, guardados, através dos séculos,
na plasticidade da memória e da voz, viaja-
ram para todos os lados sendo disseminados
pela transmissão boca a boca. nesse pro-
cesso, sofreram todo tipo de modificação:
fusões, acréscimos, cortes, substituições e
influências. em tese, numa simplificação, de
um mesmo mito (narrativa sagrada arcaica)
europeu, por exemplo, podem ter surgido
infindáveis e variadas histórias, marcadas
pelas diversas culturas por onde passaram
e recriadas por um sem número de contado-
res (cada um com seu estilo).
eis porque os contos populares são tão ri-
cos, multifacetados e complexos e também
porque costuma ser perda de tempo preten-
der identificar sua “verdadeira origem”.
5 Idem,ibidem, p. 58. 8 Idem, ibidem, p. 179.
274
o tema é amplo. Para abordá-lo no curto es-
paço desse texto, será preciso dividi-lo em
tópicos.
o primeiro deles diz respeito a algumas ca-
racterísticas, entre outras, dos contos po-
pulares: 1) são sempre assumidamente de
ficção, ou seja, não pretendem ter aconte-
cido de fato (ao contrário, por exemplo, do
“causo” ou da “lenda”); 2) trazem, muitas
vezes, a possibilidade do elemento maravi-
lhoso: a existência de forças desconhecidas,
feitiços, monstros, encantos, instrumentos
mágicos, vozes do além, viagens extraordi-
nárias e amigos ou inimigos sobrenaturais;
3) não costumam ocorrer num tempo deter-
minado (ou histórico), mas – como os mitos
– num passado ou numa dimensão anterio-
res e desconhecidos. note-se que seu desen-
volvimento acontece “certa vez”, “há muito
tempo...”, “no tempo em que os animais fa-
lavam”, “há milhares de anos quando nada
existia do que hoje existe” etc.; 4) com suas
personagens acontece algo semelhante. Por
vezes, nem nome têm: são “o pai e seus três
filhos, o mais velho, o do meio e o caçula”,
ou “a bela adormecida no bosque”, ou “cer-
to rei muito poderoso pai de uma princesa
mais linda do que as flores do campo” e, por
último, 5) neles, em geral, a passagem do
tempo inexiste. o herói despede-se do pai,
viaja pelo mundo, enfrenta perigos e um
sem número de aventuras, desobedece uma
recomendação, é castigado, foge, liberta a
princesa das garras do monstro, retorna,
é traído, luta, vence, casa-se com ela e em
termos temporais, aparentemente, nada
mudou. crianças, jovens e velhos começam
e terminam a história mantendo, em geral,
suas respectivas idades.
não são poucas as exceções, mas que surgem
para confirmar a recorrência dos pontos ali-
nhavados acima de forma esquemática.
um segundo tópico merece ser destacado.
na maioria das vezes, os contos populares,
ou de encantamento, não obedecem a uma
moral de princípios. em tese, a moral corres-
ponde a um conjunto de normas de compor-
tamento destinadas a regular as relações en-
tre os indivíduos6. estamos acostumados e
condicionados a pensar na moral como um
acervo de princípios abstratos, gerais e uni-
versais de comportamento que deve ser res-
peitado por todos, seja qual for a situação:
não mentir, não roubar, não matar, valorizar
a busca da justiça, da imparcialidade, da im-
pessoalidade, da isonomia, da isenção e da
neutralidade. Pois bem, a moral dos contos
de encantamento, chamada por alguns de
moral ingênua, costuma seguir outros para-
6 a ética, vale lembrar, é a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. ou seja, ela representa um “conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral” (vazquez). enquanto a moral é inseparável da atividade prática, a ética constitui-se na avaliação, reflexão e crítica sobre esta atividade. sobre o assunto, c.f. vaZQueZ, adolfo sanchez. Ética . civilização brasileira, 1999 e arIstÓteles. Ética a nicômacos. universidade de brasília, 1992.
275
digmas. segundo ela, tudo o que favorece
o herói é o bem e tudo o que prejudica o
herói é o mal. trata-se, em outras palavras,
de uma moral relativa, flexível e pragmática,
ligada não a princípios abstratos e univer-
sais mas a atuações e situações concretas
do aqui-agora. É ela que, por exemplo, pode
fazer com que certa mãe diga: “meu filho
cometeu um crime, mas errar é humano.
nossa senhora da Penha vai perdoá-lo e fa-
zer com que a polícia jamais o encontre.”
note-se que, de acordo com a moral ingê-
nua, errar costuma ser bem mais humano
quando a gente gosta de quem errou.
a questão também pode ser vista por outro
viés: o do livre-arbítrio. a lei, um princípio
geral e abstrato, nos obriga a não ultrapas-
sar a velocidade de 60 km por hora nos pe-
rímetros urbanos. estamos, por exemplo,
com uma pessoa gravemente ferida dentro
do carro. Devemos cumprir a lei ou não?
tento demonstrar que a questão da moral
ingênua implica dissenso e contradição e
que boa parte dos contos populares obede-
ce a uma moral que, embora eventualmen-
te condenável em termos da sociabilidade,
pode trazer à baila situações e conflitos hu-
manos de grande interesse.
ainda neste tópico, um último exemplo
(que, por sinal, vincula a moral ingênua à
cultura popular): como exigir que a moral de
uma sociedade civilizada e justa, onde todos
os cidadãos pagam impostos e recebem em
troca os benefícios do estado – segurança,
moradia, educação, transporte, saúde e tra-
balho –, seja igual à moral de uma socieda-
de desequilibrada, onde cada um luta por si
para poder sobreviver? são questionamen-
tos que mereceriam uma discussão urgente,
principalmente se levarmos em conta a so-
ciedade brasileira.
Passo para um terceiro aspecto dos contos
populares: seu caráter eminentemente nar-
rativo.
Para compreender esse ponto, é preciso
abordar, mesmo que de passagem, um tema
relevante e muito amplo, embora nem sem-
pre levado em conta: a oralidade, suas ca-
racterísticas e implicações.
sabemos que os contos populares, em prin-
cípio, nascem em culturas orais, ou seja, são
histórias criadas, recriadas e preservadas ao
longo do tempo – sempre com modificações
– através da narração e da memória, recur-
sos típicos das culturas que não dispõem de
instrumentos de fixação como a escrita.
mesmo em versões contemporâneas feitas
por escrito, o conto popular continua mar-
cado pela narrativa oral, pois tende a man-
ter certas características do discurso falado
e pressupõe sempre uma voz que narra e um
ouvinte.
refiro-me a um escritor que, de certo modo,
escreve como quem fala e a um leitor que lê
como quem ouve.
276
Podemos, claro, escrever solitariamente
sem nos preocuparmos com o eventual lei-
tor mas, convenhamos, quem narra em voz
alta, sozinho, para ninguém, corre o risco
de ser internado à força em alguma clínica
psiquiátrica.
a narrativa, portanto, é, em princípio, essen-
cialmente dialógica e tem como substrato,
paradigma e pressuposto básico, sempre e
sempre, a comunicação entre pessoas feita
face a face, em suma, de um eu que se dirige
a um outro situado.
explico-me melhor: há textos marcados prin-
cipalmente pela cultura escrita. Isso signifi-
ca, em resumo, que são fixados e conserva-
dos por texto, o que garante sua perenidade
e a possibilidade de serem lidos e interpre-
tados em qualquer lugar, época ou contex-
to histórico. um escritor sabe que, mesmo
depois de morto, sua obra poderá ser lida.
sabe que seu livro poderá ser distribuído
pelo mundo afora e que ele jamais verá o
rosto nem saberá a opinião da maioria de
seus leitores. sabe que pode se dar ao luxo
de escrever de forma fragmentada, recorrer
a vocabulário e sintaxes incomuns, de uti-
lizar metáforas obscuras, fazer citações ou
de ser experimental (pois o leitor pode ler,
reler e analisar o texto com calma). Pode ser
indiferente ao fato de ser ou não compreen-
dido. se quiser, pode até ser agressivo com
o leitor. em tese, e considerando o meio de
expressão que utiliza – a escrita – um escri-
tor, na verdade, independe completamente
do seu leitor.
Já um orador – seja ele um contador de his-
tórias, um professor, um político, ou um
padre durante o sermão – quando se dirige
a uma plateia face a face, “ao vivo”, vê-se
diante de uma situação bastante diferente
da vivida pelo escritor.
sabe que suas palavras, seu tom de voz, seus
gestos, seus olhos, o ambiente, a reação da
plateia e a energia estabelecida entre ele e a
plateia fazem parte de seu discurso e jamais
poderão ser completamente reproduzidos,
mesmo que seu discurso seja gravado, fil-
mado ou fixado por texto, pois a diferença
entre uma aula e o filme dessa aula é tão
grande quanto a diferença entre um discur-
so ao vivo e sua transcrição numa folha de
papel. sabe que seu discurso tem um alto
grau de efemeridade. sabe que precisa ser
necessariamente compreendido, ou seja,
evita falar para ser “interpretado” pois isso
demandaria tempo, distanciamento, análise
e reflexão por parte do ouvinte. sabe que se
alguém da plateia não compreender seu dis-
curso poderá perguntar, portanto, sabe que,
se for o caso, pode improvisar e utilizar pa-
lavras não previstas – ou seja, modificar seu
discurso – para transmitir uma ideia. sabe
que não poderia fazer seu discurso se esti-
vesse morto. sabe que sua plateia se resume
às pessoas que estão à sua frente e precisa
estar atento à reação dessas pessoas. não
277
pode, portanto, se dar ao luxo de falar de
forma fragmentada, recorrer a vocabulá-
rio e sintaxes incomuns, utilizar metáforas
obscuras, fazer citações ou ser experimen-
tal, pois correrá o risco de não ser compre-
endido. sabe que se for agressivo e ofender
as pessoas da plateia pode até tomar uma
surra. em tese, e considerando o meio de
expressão que utiliza – a voz – um orador
depende completamente do seu ouvinte.
Dei tantos exemplos para defender a seguin-
te ideia: há textos escritos marcados pela
cultura escrita e textos escritos marcados
pela cultura oral. esses últimos tentam sem-
pre recuperar a situação do orador diante
de uma plateia, o discurso falado no conta-
to face a face. textos assim, claros, diretos,
concisos e dependentes da plateia (do lei-
tor), são exatamente aqueles utilizados pelo
escritor de contos populares. além da busca
da comunicação imediata, da linguagem pú-
blica e direta, da concisão e dos temas pas-
síveis de identificação e compartilhamento,
um de seus vários recursos é a narratividade.
naturalmente, o termo “narrativa” é am-
plo e pressupõe a possibilidade de diversas
abordagens. refiro-me a uma narrativa que
se pretenda popular, que seja linear, cons-
truída acumulativamente, com começo,
meio e fim, que tenha continuidade, que te-
nha como objetivo contar uma história de
interesse geral, abordando temas que per-
mitam identificação imediata, um discurso
compartilhável construído através de uma
linguagem familiar e acessível.
abro parênteses para lembrar que a narrati-
va é um recurso humano vital e fundamen-
tal. sem ela, a sociabilidade, e mesmo a vi-
são que temos de nós mesmos, não poderia
ser construída. narramos nossas experiên-
cias cotidianas, nosso dia no trabalho, fatos
acontecidos, lembranças, sonhos, projetos
e desejos. narramos, mesmo de forma so-
litária, em pensamento, para nós mesmos,
episódios acontecidos que de alguma forma
não ficaram claros. Para além de um recur-
so literário, a narrativa pode ser considera-
da um dos procedimentos através dos quais
tornamos a vida e o mundo interpretáveis.
na verdade, a narrativa sempre foi:
(...) uma tendência definidora do ser
humano: da escrita rupestre entreme-
ada de sons guturais à elaboração da
linguagem narrativa, observamos que o
homem conta a história de si mesmo e
do mundo. A necessidade dos ancestrais
de reunirem-se à volta do fogo para se
guarnecerem do frio e das feras está
acompanhada do pressentimento de
que algo poderia ser revelado na fala do
sacerdote. E, na atualidade, não é com
outro pressentimento que o homem ro-
deia o aparelho de televisão, à espera de
um sacerdote dessacralizado da mídia:
todos aguardamos notícias, revelações,
278
reconstruções de eventos, através das
narrativas7.
ainda sobre o tema, vejamos as palavras de
clóvis barbosa, um homem do povo, pesca-
dor e contador de histórias em são romão,
minas gerais:
Gosto de contá história (...). Qualqué
história eu gosto de contá. Se é um caso
alegre, de brincá com os otro, eu vô con-
tano e vô rino. Se é história de sofrimen-
to, eu vô falano, o coração vai doeno e
tem vez que dá choro. Aí nós chora junto
e lembra tudo de difici que nós passô. É
um choro manso, uma chuva fininha8.
a construção narrativa, em suma, é um pro-
cedimento que, sem dúvida, ajuda a estrutu-
rar e tornar compreensível a experiência de
vida, não de forma solitária, mas sim, note-
-se, por meio da sociabilidade e do contato
dialógico com o outro. como disse o conta-
dor de histórias mineiro “aí nós chora junto
e lembra tudo de difíci que nós passô”.
não por acaso, a narratividade é uma carac-
terística central do conto popular.
Perceber que há textos narrativos e textos
não-narrativos, assim como perceber que há
textos marcados pela cultura escrita e tex-
tos marcados pela cultura oral, podem ser
experiências interessantes para o leitor jo-
vem, em fase de compreender a literatura e
situar-se diante dela.
Falei em “tornar compreensível a experiên-
cia de vida” e isso nos remete a meu último
tópico: os temas e imagens recorrentes nos
contos populares.
ao contrário do que se poderia pensar, o fato
de serem de ficção e poderem conter aspec-
tos mágicos e de encantamento, nem de lon-
ge tira dos contos populares sua extraordi-
nária capacidade de abordar a vida concreta
e, mais ainda, de especular sobre ela. tanto
assim que neles nos deparamos com prince-
sas que nascem mudas e recuperam sua voz
quando encontram o homem por quem se
apaixonam. Pessoas que se deitam na cama e
ficam “adormecidas” até serem despertadas
por um sentimento forte. mães ou madras-
tas que, ao notarem que suas filhas cresce-
ram e tornaram-se mulheres, mandam matá-
-las. Injustiças e transgressões. gigantes que
aprisionam moças em castelos. Irmãos que
mentem e traem. Pais que tentam desposar
suas próprias filhas. Heróis tolos que fazem
tudo errado mas mesmo assim se dão bem.
moças ou moços que não conseguem rir e
se dispõem a se casar com alguém que saiba
alegrá-los. traições, ciúmes, orgulhos, men-
7 gomes, núbia P.m. & PereIra, edimilson P. mundo encaixado – significação da cultura popular. belo Horizonte, mazza edições, 1992. p. 112.
8 Idem, ibidem, p. 179.
279
tiras, vaidades, vinganças, invejas e ódios.
Heróis malandros. enigmas e adivinhações.
Heróis que arriscam a vida e colocam os in-
teresses da coletividade acima dos seus inte-
resses pessoais. lutas de fracos contra fortes.
animais que falam e se comportam como
gente. seduções de todo o tipo. Heróis que
tentam enganar a morte. Pactos com o dia-
bo e seus preços. Homens sábios. Príncipes e
princesas que lutam para escapar de castelos
no fundo do mar. Pessoas e cidades transi-
toriamente transformadas em pedra. sinas e
manias. moços que precisam aprender a lin-
guagem dos pássaros para conquistar suas
amadas. truques e ardis. Heróis transforma-
dos em animais ou monstros em busca de
sua identidade perdida. não é pouco!
através dos contos populares, chamados
também de contos de encantamento, de
fadas etc., temos a oportunidade de entrar
em contato com temas que dizem respeito
à condição humana vital e concreta, suas
buscas, seus conflitos, seus paradoxos, suas
transgressões e suas ambiguidades.
na minha visão, os contos populares, in-
dependentemente de rótulos como “cultu-
ra popular”, “folclore” e outros, podem ser
considerados uma excelente introdução à
literatura, pois nada mais fazem do que tra-
zer ao leitor, de forma acessível e comparti-
lhável, enredos, imagens e temas recorren-
tes na ficção e na poesia.
É muito bom quando alguém – principalmen-
te se for um jovem – descobre que, além de
regras, informações e lições, um livro pode
abordar os temas da vida humana concreta.
terá, creio, uma boa chance de tornar-se um
leitor e, mais, cheio de entusiasmo diante
do que leu, indicará o texto a seus amigos,
contribuindo assim para a formação de ou-
tros leitores.
280
xI. LITERATURA E PLURALIDADE CULTURAL1
Marisa Borba2
“A literatura é a escola da complexidade humana, do entendimento da vida”.
(edgar morin)
no território brasileiro convivem diferentes
grupos sociais, com características étnicas e
culturais distintas, permeadas por grandes
desigualdades socioeconômicas. vivemos
num país que se apresenta cheio de contra-
dições, no qual ainda encontramos relações
sociais discriminatórias, aliadas a práticas
excludentes, gerando injustiça social e vio-
lência. País que também se apresenta com
grande riqueza cultural. País complexo,
país plural, necessitando de pluralidade de
alternativas. Para solidificar esta sociedade
brasileira plural, será preciso ampliar o plu-
ral que potencialmente está em cada indi-
víduo. a escola pública terá neste momen-
to uma função muito importante, primeiro
porque é o espaço em que podem conviver
crianças e jovens de origens e níveis socio-
econômicos diferentes, com costumes e vi-
sões de mundo diferentes; é também o es-
paço público para a vivência democrática
com a diferença e, finalmente, porque é a
escola a instituição criada para apresentar
às crianças e aos jovens os conhecimentos
acumulados e sistematizados da história do
país e da humanidade (democratizando as-
sim o acesso ao saber produzido pela classe
dominante). neste sentido o ethos (a identi-
dade de um povo, grupo ou comunidade, a
marca de suas manifestações e realizações
culturais) precisa ser discutido amplamente
pelos educadores, para que se aproximem e
se apropriem de um conhecimento que se
torna cada dia mais universal.
se queremos construir uma sociedade mais
justa e democrática, na qual todos tenham
acesso à educação, à cultura, ao esporte, ao
emprego, à moradia, ao saneamento básico,
à saúde; se queremos uma sociedade em que
haja efetivamente participação democrática
(inclusive nas discussões sobre elaboração
de políticas públicas e nas decisões sobre o
uso das verbas públicas), em que haja quali-
1 literatura e temas transversais – 2000 / Pgm 2.
2 marisa borba é pedagoga, com experiência em alfabetização, bibliotecas escolares da rede pública e particular do município do rio de Janeiro. membro do Proler e júri da FnlIJ.
281
dade social na prestação dos serviços; se que-
remos a plenitude da cidadania para todos,
teremos, como pressuposto básico que dis-
cutir a diversidade cultural, reconhecê-la e
valorizá-la. Precisamos também buscar a su-
peração das discriminações, atuando concre-
tamente sobre os mecanismos de exclusão.
ressaltamos a importância da lei de Diretri-
zes e bases da educação, desdobrada nos Pa-
râmetros curriculares nacionais, que vem
trazer o tema pluralidade cultural para ser
pensado e vivido por professores e alunos,
uma vez que, historicamente, temos tido
dificuldade em lidar com a temática do pre-
conceito e da discriminação étnica.
O PRECOnCEitO nO livRO
DiDátiCO
Pesquisas acadêmicas há muito denunciam
livros didáticos com conteúdos indevidos,
até mesmo errados, favorecendo assim a
disseminação de preconceitos de diversas
formas como, por exemplo, o privilégio da
cultura da classe dominante, única aceita
como correta, bem como a hierarquização
das culturas entre si.
livros didáticos nos mostram o homem e
a mulher de forma estereotipada, sem ne-
nhuma relativização; predominam deter-
minados modelos de homem e mulher, en-
quadrando-os em comportamentos rígidos,
não considerando nenhum tipo de variável
no desempenho de seus papéis sexuais. os
livros didáticos apresentam homens e mu-
lheres segregados em mundos diferentes.
mulher é modelo do lar e homem represen-
ta trabalho e sustento, levando à discrimi-
nação filhos de homens e mulheres que não
se enquadrem nestes modelos. muitos livros
não refletem nossa realidade, uma vez que
não atentam para nossa pluralidade cultu-
ral, nem levam em conta as novas situações
de desempenho de papéis sexuais, criados
pela transformação social. se não refletem
nossa realidade, muito menos a questio-
nam. apresentam a realidade como algo
pronto, acabado, inquestionável e sem pos-
sibilidade de interferência humana. assim a
escola contribui para a reificação do status
quo, o que não deve ser o seu papel.
estudiosos e críticos da ilustração de livros
didáticos ou de literatura infantil e juvenil
também há algum tempo têm apontado
para esta questão: preconceitos também são
passados sutilmente através de imagens que
são mostradas a crianças e jovens. exemplo
clássico é a ilustração da mulher de avental
e lenço na cabeça, enquanto o homem apa-
rece sentado numa cadeira lendo o jornal
(ilustração recorrente em livros didáticos
quando se quer representar uma família de
médio poder aquisitivo).
embora saibamos que a educação sozinha
não irá resolver o problema da discrimina-
ção em suas manifestações mais perver-
sas, se queremos uma sociedade mais justa
282
devemos atuar para promover processos,
conhecimentos e atitudes que colaborem
com a transformação social. Por exemplo,
podemos promover práticas de respeito e
solidariedade para com os portadores de
necessidades especiais, através de esclareci-
mentos, uma vez que muitas situações dis-
criminatórias ocorrem por desconhecimen-
to das causas ou das formas como é possível
encaminhar pedagogicamente tais casos.
nas questões de gênero, deparamo-nos com
histórias de injustiças para com as mulheres
em seus cotidianos na vida privada, em situ-
ações familiares ou situações profissionais.
estas injustiças de gênero podem e frequen-
temente são agravadas quando acrescidas
de injustiça por motivo de etnia, cultura ou
exclusão socioeconômica . vale lembrar que
a maior parte do magistério é constituída
por mulheres (de quem se espera que repro-
duzam o discurso masculino do poder). con-
flitos, contradições, preconceitos, discrimi-
nações que hoje percebemos no universo
escolar são resultados do lento e doloroso
processo de libertação da mulher, principal-
mente no nosso século.
e na medida em que os alunos, na maioria
das vezes, pertencem a grupos sociais eco-
nomicamente desfavorecidos, estes confli-
tos estarão sempre presentes e são de gê-
nero, etnia e classe (preconceitos oriundos
de nossa formação histórica). Para que a
escola promova um processo transforma-
dor em relação à pluralidade cultural, será
preciso que o agente deste processo - o(a)
professor(a) - também se liberte, através de
autoconhecimento e do desenvolvimento de
sua consciência profissional e crítica. o(a)
professor(a) deve saber porque está ali, por-
que ensinar e o que ensinar, uma vez que só
um sujeito crítico e consciente politicamen-
te tem condições de modificar o real.
no nosso modelo de sociedade, os precon-
ceitos e estereótipos foram desenvolvidos
em função de antagonismos do tipo ho-
mem/mulher, negro/branco, senhor/escra-
vo, e minoria dominante/maioria explorada
e, ainda, reforçados pelas agências socializa-
doras como a família e a escola, que refor-
çam e reproduzem nas gerações mais jovens
a visão de mundo que justificou e garantiu
a continuidade no poder do grupo dominan-
te, através da educação diferenciada. mas o
ideal de democracia que permeia nosso sis-
tema, independente da condição de classe,
gênero ou etnia fez com que se instalassem
contradições. a partir daí recorremos a refle-
xões teóricas, ao pensamento acadêmico, à
investigação sistemática para explicar estas
mesmas contradições, respondendo sempre
que possível ao desafio proposto, como for-
ma de resolução do conflito.
A ESCOlA E A PluRAliDADE
CultuRAl
a história da sociedade brasileira é marcada
pela diversidade cultural: encontramos dife-
283
rentes características regionais, diferentes
manifestações de cosmologias que ordenam
de maneiras diferenciadas a apreensão do
mundo, formas diferentes de organização
social nos diferentes grupos e regiões, mul-
tiplicidade de relações com a natureza, de
vivência do sagrado e de sua relação com o
profano. o espaço rural e o espaço urbano
propiciam às suas populações vivências e
respostas culturais muito diferenciadas que
implicam ritmos de vida, ensinamentos de
valores e formas de solidariedade distintas.
a migração interna faz com que grupos so-
ciais com diferenças de fala, de costumes,
de valores, de projetos de vida se inter-re-
lacionem, principalmente na escola em que
esta diversidade cultural está presente e tem
sido ignorada, silenciada ou minimizada.
assim, quando pomos em discussão a plura-
lidade cultural, podemos também acoplar o
tema da educação diferenciada, começando
por reconhecer a existência de padrões de
socialização baseados em estereótipos sexu-
ais que determinam, a priori, o lugar da me-
nina e do menino na escola, e por extensão,
mais tarde, na sociedade. estes estereótipos
são tão bem urdidos, que são absorvidos, na
maioria dos casos, como algo “natural” e
“normal” através da escola.
a escola pública, já citada como espaço
privilegiado da vivência democrática e de
desenvolvimento do potencial criador de
seus alunos, contribuirá para a discussão e
vivência da pluralidade cultural, na medida
em que, entre outras estratégias e metodo-
logias, consegue democratizar o acesso ao
livro de literatura de qualidade, formando
professores e alunos leitores críticos.
a literatura, enquanto arte da palavra, nos
põe diante da complexidade da vida, nos
apresenta possibilidades de repensarmos o
real, o cotidiano, de reinventarmos a própria
vida ou até mesmo entender sua multiplici-
dade.
QuE livROS OFERECER à
CRiAnÇA E AO jOvEM?
Precisamos ter alguns cuidados ao sele-
cionarmos os livros que vamos oferecer às
crianças e jovens, pois não existe obra cultu-
ral inocente; todas estão carregadas de uma
determinada visão de mundo, a do autor.
Para não ficarmos enredados na concepção
de mundo dos outros e por ela não sermos
manipulados, precisamos desenvolver uma
leitura crítica.
escolhendo bons livros e oferecendo ao mes-
mo tempo uma grande variedade e diversi-
dade deles faremos com que um texto dis-
corde do outro, o conteste e sugira outras
alternativas. É importante a leitura de livros
variados, de culturas e opiniões diversas,
com visões de mundo diferentes umas das
outras, de modo que a leitura de um texto
dialogue permanentemente com a dos ou-
284
tros. assim, cada leitor irá se enriquecendo
e a sociedade irá tecendo sua pluralidade. se
concordamos com estes pressupostos e que-
remos montar ou revigorar uma biblioteca,
teremos como subsídios para este acervo:
livros de imagens; clássicos da literatura in-
fanto-juvenil - grimm , andersen, Perrault,
entre outros; a obra de monteiro lobato,
além de poesias, livros informativos, dicio-
nários, enciclopédias e, principalmente, au-
tores que façam parte da moderna literatura
infantil e juvenil, assim como jornais e re-
vistas. a variedade de autores e materiais de
leitura fará da biblioteca um lugar destinado
à leitura de textos literários e um pólo de
discussão da pluralidade cultural, através de
atividades como debates de textos e livros
lidos, entrevistas, conversas com autores e
outros profissionais.
ressaltamos, assim, autores da moderna
literatura infantil e juvenil que trabalham
com a desconstrução de modelos clássi-
cos, tradicionais, ou que fazem denúncias
de algum tipo de opressão, que promovem
rupturas com o discurso dominante, de for-
ma radical ou não. Dentro desta perspecti-
va podemos citar A fada que tinha ideias, de
Fernanda lopes de almeida, em que aparece
uma proposta de reforma de estrutura fa-
miliar. A curiosidade premiada, também de
Fernanda lopes de almeida, apresenta uma
personagem feminina curiosa, questionado-
ra, que tenta obter respostas para todas as
suas perguntas. Maria-vai-com-as-outras, de
sylvia orthof, mostra a ovelha maria que só
ia aonde as outras iam e que sofria as con-
sequências de não pensar por si mesma, de
ter criticidade, de refletir e tirar conclusões.
Era uma vez duas avós, de naumim aizem e
Patrícia gwinner, apresenta diferenças en-
tre duas avós, com modos distintos de en-
carar a vida e como se pode tirar proveito
da convivência com pessoas que pensam e
agem diferente de nós (temos aí uma das fa-
cetas da riqueza da complexidade humana).
Mudanças no galinheiro mudam as coisas por
inteiro, de sylvia orthof, relata a história de
uma galinha que resolveu cantar de galo e,
dessa forma, promove grandes mudanças
em seu núcleo familiar. Faca sem ponta, ga-
linha sem pé, de ruth rocha: nessa obra a
autora conta a história de dois irmãos (um
menino e uma menina), que recebiam uma
educação diferenciada, o que leva a sérios
atritos entre eles. em O Soldado que não era,
Joel rufino dos santos nos traz a saga de ma-
ria Quitéria, de forma muito rica e interes-
sante, proporcionando uma boa discussão
sobre preconceitos. neste sentido, vários
textos de ana maria machado e lygia bojun-
ga são revolucionários. em Angélica e A Bolsa
Amarela, lygia coloca a menina no interior
do grupo familiar, questionando, refletindo,
buscando reverter situações incômodas. an-
gélica nega a mentira sobre a qual se apoia
a celebridade da família das cegonhas. ra-
quel, dona da bolsa amarela, sente o peso
de ser criança e menina e suas vontades de
ser menino, adulto e escritora crescem den-
285
tro da bolsa amarela. maria, personagem
de A Corda Bamba, apresenta uma autêntica
emancipação. em Tchau! encontramos a co-
ragem enorme da mãe que larga a família
para viver uma grande e maravilhosa paixão
e para realizar seus desejos. a filha ques-
tiona a desagregação da família, e se sente
dividida entre o pai e a mãe. lygia faz uma
ruptura com o modelo de mulher adulta de
comportamentos tradicionais e também faz
uma crítica à filha que não entende a reação
da mãe. lygia consegue assim, com esta plu-
ralidade de pontos de vista, dialogar com as
múltiplas linguagens sociais.
ana maria machado, em muitas de suas
obras, nos presenteia com protagonistas que
assumem atitudes de rebeldia ante a passivi-
dade reinante, que buscam mudanças e al-
cançam seus objetivos, juntando-se a outros,
agindo com solidariedade e cooperação, so-
bressaindo o espírito coletivo em detrimento
do individualismo. sua recente obra intitula-
da mas que festa! nos mostra um pouco de
nossa diversidade cultural, assim como o já
“clássico” Menina bonita do laço de fita.
no conto “a moça tecelã”, de marina cola-
santi, do livro Doze reis e a moça do labirinto
do vento, há o questionamento do mito de
que o casamento resolve o problema da so-
lidão da mulher e a submissão aos padrões
comportamentais estabelecidos pela socie-
dade. ao tecer o tapete, a moça constrói e
reconstrói a sua vida...
ruth rocha, em Procurando firme apresenta
situações que também podem ser discutidas
sobre a questão da educação diferenciada
homem/mulher.
alguns autores tratam com muita sensibili-
dade e visão crítica os excluídos pela socie-
dade. Paula saldanha, em O Praça Quinze,
mostra a realidade de meninos que vivem
nas ruas, mesclando realidade e fantasia.
roseana murray apresenta os direitos da
criança e do adolescente num texto bastan-
te poético.
Entrevidas, também de Paula saldanha, Coi-
sas de Menino, de eliane ganen, Rosarito ro-
sa-choque, Zé Beleza e Nus, como no Pontal,
de terezinha Éboli, nos mostram um brasil
geralmente ocultado pela escrita literária
mais tradicional.
trazendo nossa pesquisa para um período
mais recente (década de 90) encontramos
diversos títulos por meio dos quais os pro-
fessores podem abordar a questão da plura-
lidade cultural. são exemplos:
Uma história só para mim, de moacyr scliar;
Mulher que bicho é esse, de lia Zatz; Meus
vários quinze anos, de sylvia orthof; Felicida-
de não tem cor, de Júlio emílio brás; Preto e
branco, de milton camargo; Nó na gargan-
ta, de mirna Pisky; Uma vitória diferente, de
marcos bagno; O povo Pataxó e suas histórias,
de angthichay Pataxó e outros; Meu livro de
folclore, de ricardo azevedo.
286
estes e muitos outros títulos de literatura
para crianças e jovens abordam questões de
gênero, falam sobre as diferentes etnias, dis-
cutem questões sociais, falam de preconcei-
tos, enfim, apresentam a múltiplas expres-
sões culturais do povo brasileiro.
AlguMAS COnSiDERAÇõES
a pluralidade cultural presente em nossa
moderna literatura infantil e juvenil poderá
chegar ao nosso aluno através do texto lite-
rário de qualidade, do texto que leve a for-
mulações de perguntas e a indagações, que
não apresente estereótipos como ponto de
partida, que não fira a ética e a estética. esta
literatura não será ponto de chegada e sim
ponto de partida para outras leituras, outras
indagações, e também outras descobertas
de situações cada vez mais inesperadas. esta
literatura deverá fazer pensar, questionar,
decifrar e interrogar e, depois de nos exigir
algum esforço, nos fará sair dela diferentes,
transformados de alguma forma. e para nos
transformar, deverá nos atrair, viver dentro
de nós.
gianni rodari, no belíssimo a gramática da
Fantasia, assinala:
“Todos os usos da palavra a todos, pa-
rece um bom lema, sonoramente demo-
crático. Não exatamente porque todos
sejam artistas, mas porque ninguém é
escravo.” O que vem corroborar nossa
tese da necessidade da leitura de bons
livros, pois esta é a leitura que nos dá
argumentos para que não nos intimide-
mos, uma vez que a palavra é um instru-
mento de libertação.
assim, acreditamos que através da leitura
dos livros de literatura de autores brasilei-
ros, como este citados, atingiremos um
desenvolvimento mais pleno e plural dos
indivíduos, com mais consciência da im-
portância de sua participação nas decisões
coletivas, contemplando assim os diferentes
grupos sociais, étnicos e culturais
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são Paulo, martins Fontes, 1991.
288
xII. NOvAS BASES PARA O ENSINO DA HISTóRIA
DA áFRICA NO BRASIL1
Carlos Moore2
intRODuÇÃO3
a obrigatoriedade4 do ensino da história da
África nas redes de ensino no brasil con-
fronta o universo docente brasileiro com o
desafio de disseminar, para o conjunto da
sua população, num curto espaço de tempo,
uma gama de conhecimentos multidiscipli-
nares sobre o mundo africano.
a generalização do ensino da história da
África apresenta problemas específicos. nes-
te texto assinalamos, de maneira sumária e
a título indicativo, alguns dentre os quais
deverão ser levados em conta na formação
inicial e continuada das/os professoras/es
das redes de ensino, incumbidos/as dessa
missão.
(...)
1. SingulARiDADES AFRiCAnAS
no contexto da história geral da humanida-
de, a África apresenta, em planos diversos,
um conjunto impressionante de singularida-
des que remetem a interpretações conflitu-
osas e, muitas vezes, contraditórias. É pro-
vável que nenhuma das regiões habitadas
do planeta apresente uma problemática de
abordagem histórica tão complexa quanto a
África, e isto se deve a muitos fatores, den-
tre os quais podemos destacar:
• a sua extensão territorial (30.343.551 km2,
o que corresponde a 22% da superfície só-
lida da terra), que vai desde a região do
Pólo sul até o mediterrâneo e do oceano
atlântico ao oceano Índico, apresentando
uma grande variedade climática5;
1 sinopse retirada ao artigo publicado no livro educação anti-racista - caminhos abertos pela lei Federal nº 10.639/03. mec/secaD, valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 1.
2 etnólogo e historiador. Doutor em etnologia e doutor em ciências Humanas pela universidade de Paris-vII (França). especialista em relações raciais (África, américa latina, caribe, Pacífico).
3 nota da edição do boletim do salto para o Futuro: a partir da sinopse do artigo citado, fizemos uma edição do texto focalizando alguns pontos essenciais para o debate. o texto pode ser conhecido na íntegra em educação anti-racista: caminhos abertos pela lei Federal n. 10. 639/03. secretaria de educação continuada, alfabetização e Diversidade. brasília, ministério da educação, 2005. (coleção educação para todos)
4 a lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, das Diretrizes e bases da educação nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e africana. o Parecer
5 no interior do continente as distâncias são imensas – os 7.000 quilômetros que separam o cabo da boa esperança, ao sul, do cairo, ao norte, são aproximadamente a mesma distância entre Dacar, a oeste, e a extremidade do chifre da África, a leste.
289
• uma topografia extremamente variada:
grandes savanas, vastas regiões desérti-
cas ou semidesérticas (sahel), altiplanos,
planícies, regiões montanhosas e imensas
florestas;
• a existência e interação de mais de 2.000
povos com diferentes modos de organiza-
ção socioeconômica e de expressão tecno-
lógica;
• a mais longa ocupação humana de que
se tem conhecimento (2 a 3 milhões de
anos até o presente) e, consequentemen-
te, uma maior complexidade dos fluxos e
refluxos migratórios populacionais.
1.1. Berço da humanidade
a mais marcante das singularidades africa-
nas é o fato de seus povos autóctones terem
sido os progenitores de todas as populações
humanas do planeta, o que faz do continente
africano o berço único da espécie humana.
os dados científicos que corroboram tanto
as análises do Dna mitocondrial6 quanto
os achados paleoantropológicos apontam
constantemente nesse sentido.
o continente africano, palco exclusivo dos
processos interligados de hominização e
de sapienização, é o único lugar do mundo
onde se encontram, em perfeita sequência
geológica, e acompanhados pelas indústrias
líticas ou metalúrgicas correspondentes,
todos os indícios da evolução da nossa es-
pécie a partir dos primeiros ancestrais ho-
minídeos. a humanidade, antiga e moderna,
desenvolveu-se primeiro na África e logo,
progressivamente e por levas sucessivas, foi
povoando o planeta inteiro7.
Portanto, as atuais diferenças morfofenotí-
picas entre populações humanas – as cha-
madas “raças” – são um fenômeno recente
na história da humanidade (presumivelmen-
te do final do paleolítico superior, 25.000-
10.000). e a ciência já descartou como an-
ticientífica a ideia de que o morfofenótipo
possa incidir de algum modo nos processos
intelectuais de socialização ou de aquisição/
aprimoramento de conhecimentos8.
esta tradição, eurocêntrica e hegemônica,
costuma alinhar o fato histórico com a apa-
rição, recente, da expressão escrita, criando
6 Dna mitocondrial humano é um pequeno Dna circular presente nas mitocôndrias (as usinas energéticas da célula) no citoplasma. este Dna tem uma série de características genéticas peculiares, destacando-se o fato de ter herança puramente materna. em outras palavras, todo o Dna mitocondrial de um indivíduo vem de sua mãe apenas, sem nenhuma contribuição paterna.
7 grupos de humanos anatomicamente modernos deixaram o continente africano pela primeira vez há aproximadamente 100.000 anos. essa população humana ancestral, que tinha apenas dois mil indivíduos, migrou progressivamente para os outros continentes, atingindo a Ásia e a austrália há 40 mil anos, a europa há 30-35 mil anos, e, finalmente chegando ao continente americano há pelo menos 18 mil anos.
8 convém esclarecer um ponto: o fato de que a noção de “raça” não traduz uma realidade biológica não quer dizer que “raça” não exista como construção histórica. neste caso, ela corresponde não a uma realidade genotípica (biológica), mas sim a um fato sócio-histórico baseado numa realidade morfofenotípica concreta à qual se deu uma interpretação ideológica e política. a ficção é a de se pretender que “raça” seja unicamente um fato que deve ser enquadrado na biologia. Infelizmente, raça não é uma ficção. ela é uma realidade sociológica e política bem ancorada na história e que regula as interações entre os povos desde a antiguidade. Desde há séculos, os povos africanos e afrodescendentes têm de se defrontar no cotidiano com essa concretude da raça.
290
os infelizes conceitos de povos “com histó-
ria” e de povos “sem história” que, eventu-
almente, o etnólogo lucien levY-bruHl iria
transformar em “povos lógicos” e “povos
pré-lógicos”9. mas a história propriamente
dita é a interação consciente entre a huma-
nidade e a natureza, por uma parte, e dos
seres humanos entre si, por outra. Por con-
seguinte, a aparição da humanidade como
espécie diferenciada no reino animal, abre
o período histórico. o termo “pré-história”,
tão abusivamente utilizado pelos especialis-
tas das disciplinas humanas, é uma dessas
criações que doravante deverá ser utilizada
com maior circunspeção.
1.2. Berço das primeiras
civilizações mundiais
uma das singularidades da África decorre do
fato de esse continente ter sido o precursor
mundial das sociedades agrossedentárias e
dos primeiros estados burocráticos, particu-
larmente ao longo do rio nilo (egito, Kerma
e Kush). ao longo dos séculos, as riquezas
destes estados, assim como as riquezas do
império de axum, na parte oriental do con-
tinente, e do império de cartago, situado
na porção setentrional, aguçaram a cobiça
de inúmeros povos vizinhos, desde o me-
diterrâneo europeu (gregos e romanos) e o
oriente médio semita (hicsos, assírios, per-
sas, turcos, árabes), até o sudeste asiático
(indonésios).
1.3. Alvo da escravidão racial
e dos tráficos negreiros
transoceânicos
a singularidade do continente africano, que
teve a maior repercussão negativa sobre o
seu destino, determinando o que é a África
de hoje, foi a de ter sido o primeiro e único
lugar do planeta onde seres humanos foram
submetidos às experiências sistemáticas de
escravidão racial e de tráfico humano tran-
soceânico em grande escala. o chamado
“continente negro” – como é designado o
continente africano, ainda que nenhum his-
toriador tenha se referido à europa como
continente “branco” ou à Ásia como o conti-
nente “amarelo” – foi transformado, durante
um período de um milênio, num verdadeiro
terreno de caça humana e de carnificina. o
impacto negativo cumulativo dessa reali-
dade sobre o desenvolvimento econômico,
tecnológico, político, demográfico, cultural
e psicológico dos povos africanos está ain-
da por ser determinado. mas as complexas
interconexões existentes entre as singulari-
dades apresentadas e a visão depreciativa
que permeia tudo o que se refere à herança
histórica e cultural dos povos africanos já
começam a aparecer.
9 ver: levY-bruHl, lucien, la mentalité primitive. Paris: Presses universitaires de France, 1947.
291
1.4. Alvo dos mitos raciológicos
Às singularidades próprias do continente se
agrega outra, de construção totalmente ex-
terna: uma mitologia preconceituosa erigida
por seus sucessivos conquistadores (hicsos,
assírios, gregos, romanos, persas, turcos,
árabes, indonésios e europeus), que sobrevi-
ve atualmente na maioria das obras eruditas
produzidas pelos africanistas de todos os con-
tinentes, e pelos historiadores em particular.
o ensino da história da África apresenta,
pois, problemas específicos de interpretação
com os quais o pesquisador nunca se defron-
tará ao percorrer a história dos outros povos
do planeta; povos cuja inteligência, dinamis-
mo, capacidade de empreender, aprender e
de adaptar-se às condições e meios diversos
jamais foram questionadas.
no caso da África, chegou-se a afirmar que
a civilização do egito faraônico tivesse sido
“trazida de fora” por misteriosos povos
“de pele branca”, supostamente vindos do
oriente médio. numídia e cartago sofreram
desde então a mesma sorte, e a África foi
ideologicamente dividida entre uma “África
negra” e uma “África branca”, para marcar
a coincidência entre o conceito de raça e o
conceito de civilização.
os povos africanos ao sul do saara foram
apresentados, durante longo tempo, como
gente “sem história”, “sem escrita”, “sem es-
tados”, e “sem moeda”, ou seja, sociedades
desprovidas de coerência orgânica. sabe-se
que na ótica materialista, hegemônica e line-
ar do ocidente e do oriente médio, a expres-
são “escrita”, a organização em “estados” e
a utilização de “moeda” são sinônimos de
inteligência, superioridade e civilização.
a racialização de tudo tocante à África é
uma prática tão universalmente insidiosa,
que os próprios historiados nem a perce-
bem mais como um elemento de violenta
desumanização do ser humano africano.
ainda hoje, a visão raciológica continua a
afetar boa parte das obras consagradas ao
continente africano, tanto na europa e nos
estados unidos, como também no oriente
médio e na américa latina onde, de modo
geral, os incipientes estudos africanistas
são meras prolongações dos conceitos e
preconceitos urdidos pela academia euro-
peia e norte-americana.
(...)
2. PARA uMA nOvA
PERiODiZAÇÃO AFRiCAnA
(AntigA E MODERnA)
a periodização é um padrão conceitual que
facilita a apreensão de uma longínqua trama
histórica ou pré-histórica, tornando-a inteli-
gível para nós. se descartarmos definitiva-
mente o conceito de “pré-história” no que
diz respeito à África posterior há 2,5 milhões
de anos, o ciclo histórico de qualquer perio-
292
dização se iniciaria nesse continente com a
aparição da primeira humanidade arcaica
como espécie diferenciada dentro da famí-
lia dos hominídeos. no estado atual de nos-
sos conhecimentos, esse evento aconteceu
efetivamente pelo menos há 2,5 milhões de
anos. somente uma periodização de longa
duração poderia refletir esses fatos históri-
cos, que a ciência moderna legitima, e refle-
tir aquelas singularidades que são próprias à
historiografia africana.
Por conseguinte, há várias formas de abor-
dagem para potencializar a inteligibilidade
desses grandes períodos de uma história de
tal extensão. aquela que propomos consiste
num padrão de periodização que levaria em
conta tanto a produção das ideias filosófi-
cas, religiosas e morais, como a produção
do conhecimento científico e tecnológico
pelas distintas sociedades:
• o processo de hominização;
• o povoamento do continente africano
pela humanidade arcaica;
• os êxodos do continente e o subsequente
povoamento do planeta;
• os processos de migração intra-africana,
sedentarização e assentamento agrícola;
• o processo da construção dos primeiros
estados agroburocráticos da história;
• as lutas e rivalidades políticas entre povos
e nações africanas, os expansionismos in-
tra-africanos desde a antiguidade nubio-
-egípcia até a contemporaneidade;
• as invasões do exterior;
• a conquista e colonização árabe da África
setentrional;
• os tráficos negreiros intracontinentais e
transoceânicos;
• rocessos de desintegração de espaços só-
cio-históricos constituídos;
• a conquista e colonização europeia de
todo o continente africano;
• as lutas de libertação e a descolonização
da África;
• as lutas da pós-independência.
essa abordagem apresenta a vantagem de
um enfoque panorâmico que, sem desnatu-
rar ou desfigurar a experiência histórica dos
povos africanos, coloca-os numa posição de
maior inteligibilidade para o estudo por par-
te daqueles que inclusive não possuem, de
início, uma grande familiaridade com essas
questões.
2.1. O marco referencial antigo
antiguidade Pré-histórica (7.000.000 –
2.500.000 anos) - o processo de hominização e
a aparição de várias espécies de Hominídeos.
antiguidade remota I (2.500.000 – 1.000.000
de anos) - surgimento, sucessivamente, de
293
dois troncos prototípicos da família huma-
na arcaica (Homo Habilis, Homo erectus) e
primeiras migrações fora da África (oriente
médio, Ásia).
antiguidade remota II (1.000.000 – 200.000
anos) - surgimento da família humana proto-
moderna (Homo sapiens neandertalensis) e
migrações para o oriente médio e a europa.
antiguidade remota III (200.000 – 10.000
anos) - surgimento da família humana
anatomicamente moderna (Homo Sapiens
Sapiens); povoamento definitivo do plane-
ta por levas sucessivas a partir da África;
aparição de novos “troncos fenotípicos” na
eurásia (protoeuropoides e proto-sino-nipô-
nico-mongóis); migrações dos povos leuco-
dermes europoides; migrações dos povos
leucodermes sino-nipônico-mongóis.
2.2. O marco referencial
formador
o neolítico se apresenta como o momento
em que os ancestrais imediatos das famílias
linguísticas correspondentes aos povos e so-
ciedades que conhecemos atualmente che-
garam ao habitat que ocupam hoje. embora
ainda não tenhamos um desenho geral con-
creto sobre esse período, com a abrangência
e a meticulosidade que se requer, sabe-se
que “os ecossistemas atuais do continente
africano se constituíram entre 12.000 e 3.000
anos a.c., dando ao continente essa confi-
guração ambiental que explica o desenvol-
vimento das práticas agrícolas” (m’boKolo,
2003, p. 51). Por isso, privilegiamos o neolí-
tico como o ponto de referência para deter-
minar aquelas configurações histórico-de-
mográfico-culturais que designamos como
“espaços civilizatórios”.
atentos ao fenômeno de longa continuidade
na ocupação do solo e das complexas dinâ-
micas migratórias intracontinentais, pare-
ce-nos apropriado utilizar o período que vai
desde o início do neolítico (10.000 a.c.)10 até
meados do século XIX, como o grande marco
histórico referencial para uma periodização
suficientemente flexível. atendendo a essas
considerações, a historiografia africana dos
últimos dez milênios pode conceber-se no
interior de cinco grandes períodos, respec-
tivamente denominados como “clássico”,
“neoclássico”, “ressurgente”, “colonial” e
“contemporâneo”.
antiguidade Próxima (10.000 a.c. – 5.000
a.c.) - aparição das primeiras sociedades se-
dentárias agrícolas nos diferentes espaços
civilizatórios.
antiguidade clássica (5.000 a.c.- 200 d.c.) -
aparição, apogeu e declínio das primeiras
10 convencionalmente, o período entre 10.000 e 4.000 a.c. está dividido em mesolítico (de 10.000 a 8.000 a.c.) e neolítico (de 8.000 à 4.000 a.c.). Privilegiamos a unificação destes, para constituir um só período abrangente: neolítico (de 10.000 à 4.000 a.c.).
294
civilizações agroburocráticas clássicas: egi-
to, Kerma, Kush, cartago, axum (primeiras
potências africanas), atendendo:
• à organização social; à extensão imperial;
às rivalidades políticas interafricanas; às
invasões pelos povos europeus-mediterrâ-
neos (“povos do mar”); às invasões pelos
povos semitas (hicsos); à rivalidade com
o mundo semita emergente (hititas, as-
sírios, persas); e às confrontações com o
mundo greco-romano.
antiguidade neoclássica (200 d.c. - 1.500
d.c.) - aparição, apogeu e declínio dos es-
tados agroburocráticos neoclássicos nos
diferentes espaços civilizatórios (ghana, Ka-
nem-bornu, mali, mwenemotapa, songoi...).
o império árabe e os tráficos escravistas
pelo saara, pelo oceano Índico e pelo mar
vermelho (séculos vIII-XvI).
2.3. O marco referencial moderno
Período ressurgente (1500 – 1870) - aparição,
apogeu e declínio dos estados agroburocrá-
ticos ressurgentes nos diferentes espaços
civilizatórios (Kongo, oyo, Walo, tekrur, ma-
cina, segu, Kayor, Diolof, KwaZulu, buganda,
bunyoro...).
a dominação imperial europeia e o tráfico
escravista transoceânico pelo atlântico (sé-
culos Xv-XIX).
Período colonial (1870 – 1960) - a destruição
pela europa dos estados agroburocráticos
ressurgentes e a colonização do continente
africano.
o processo de subdesenvolvimento do con-
tinente africano pela europa e o surgimento
da supremacia planetária do mundo ociden-
tal.
as lutas dos povos africanos pela descoloni-
zação do continente e o surgimento da ideo-
logia panafricanista11 na África e nas diáspo-
ras africanas12.
Período contemporâneo (a partir de 1960) -
do sonho libertacionista ao pesadelo neoco-
lonialista.
as independências políticas africanas: a de-
capitação política da África e a implantação
do neocolonialismo ocidental.
a África em crise I: as elites vassalas.
a África em crise II: os conflitos entre na-
ções.
11 Pan-africanismo: ideologia política elaborada no século XIX, logo após a abolição da escravatura, por pensadores afrodescendentes nas américas, dos quais os mais proeminentes são, edward Wilmot blyden, sylvester Williams, W. e. b. Dubois, marcus garvey, caseley Hayford, george Padmore, c. l. r. James. centra-se na ação política e econômica sustentada, em prol da descolonização do continente africano e ao estabelecimento de nações soberanas.
12 Diáspora africana: conjunto de comunidades de afrodescendentes em diferentes continentes.
295
o futuro da África: globalização neoliberal,
ou invenção de uma via alternativa africana?
3. COMO CAtAlOgAR AS
EStRutuRAS SOCiAiS AFRiCAnAS
3.1. As formações sociais, ou
modos de produção
Diversas e complexas estruturas socioeco-
nômicas, chamadas de “modos de produ-
ção” ou “formações sociais”, marcaram a
vida social dos diferentes povos africanos
através dos tempos. Por diversas razões, as
quais nem todas nos são conhecidas, essas
sociedades se encontram hoje em diferentes
situações de adaptação socioeconômica e
tecnológica.
um momento único de desenvolvimento
humano, em que mais de 2.000 povos esti-
vessem no mesmo patamar socioeconômico
e tecnológico nunca existiu na África, como
não se deu também nas outras regiões do
mundo. Portanto, a maneira mais racional
e dinâmica de se abordar o problema pare-
ce-nos ser a de considerar cada povo e as
instituições por ele produzidas ao longo do
tempo no contexto da sua própria inscrição
histórica.
o primeiro pressuposto a descartar é, sem
dúvida, uma ótica unilinear e universal,
como a que surgiu do dogmatismo marxista,
a partir dos desacertos da própria metodolo-
gia de Karl marx13. nem dentro nem fora da
África houve um modo de desenvolvimento
histórico universalmente linear. a história
da humanidade, felizmente, é bem mais
complexa do que isso, como o demonstrou
o cientista senegalês cheikh anta Diop14.
3.2. As categoriais servis
apesar da enorme produção analítica so-
bre a escravidão no mundo inteiro15, não se
chegou até hoje a uma teoria geral sobre a
escravidão que seja suficientemente abran-
gente e flexível para permitir o desmembra-
mento tipológico desse sistema particular
de trabalho opressor atendendo às especifi-
cidades de épocas e de sociedades.
13 ver: baecHler, Jean, les origines du capitalisme. Paris: gallimard, 1971.
14 DIoP, cheikh anta, l’unité culturelle de l’afrique noire. Paris: Présence africaine, 1959.
15 com relação à escravidão em geral, ver: verlInDen, charles, l’esclavage dans l’europe médiévale. bruges: De tempel, 1955. ver também: DavIs, David brion, o Problema da escravidão na cultura ocidental. rio de Janeiro: civilização brasileira, 2001; FInleY, moses I., escravidão antiga e Ideologia moderna. rio de Janeiro: graal editora, 1991; baKIr, abd el-mohsen, slavery in Pharaonic egypt. cairo, 1952; cHanana, Dev raj, slavery in ancient Índia: as Depicted in Pali and sanskrit texts. new Delhi, 1960; menDelsoHn, Isaac, slavery in the ancient near east: a comparative study of slavery in babylonia, assyria, and Palestine, from the middle of the third millennium to the end of the First millennium. new York: oxford university Press, 1949; Westermann, William l., the slave. systems of greek and roman antiquity. Philadelphia: american Philosophical society, 1974. sobre a Ásia, ver: WIlbur, c. martin, slavery in china during the Former han Dynasty, 206b.c.-a.D. 25. chicago: Field museum of natural History, 1943; Watson, James (org.), asian and african systems of slavery, new York: oxford Press, 1980.
296
a África, no seu percurso de estruturação
de diferentes formas de relações sociais, co-
nheceu diversos modelos de relações de tra-
balho e de produção baseados no trabalho
servil escravo16. a questão que continua sen-
do o problema é: de que tipo de escravatura
se trata? como conceber uma tipologização
de formas especificamente africanas de tra-
balho servil à base de escravos?
a escravatura existente na África, princi-
palmente no período pré-islâmico e pré-
-colonial, continua a desafiar as tentativas
de tipologização, sendo motivo das mais
divergentes e contraditórias análises17. todo
o assunto gira em torno da questão: houve
escravatura sem sistema escravista que en-
globasse a totalidade da sociedade na Áfri-
ca? com base nas pesquisas cada vez mais
precisas que estão sendo realizadas pelos
especialistas africanos, começa a emergir
uma visão que remete a uma complexidade
maior do que se pensava.
as formas de regime de trabalho escravo na
África foram tão variadas quanto complexas
envolvendo, na sua maioria, o trabalho es-
cravo serviçal, sem se chegar nunca a uma
situação de escravidão econômica generali-
zada e, muito menos, de escravidão-racial
como aquela que predominou nas planta-
tion do oriente médio e, mais tarde, das
américas. não parece haver surgido em par-
te alguma do continente, em qualquer épo-
ca que se considere, um modo de produção
dominante – sobre o qual tivesse repousado
o conjunto da sociedade, como foi o caso na
europa greco-romana, no oriente médio, e
nas américas – baseado no trabalho escravo.
4. A QuEStÃO DiDátiCA
4.1. As fontes de ensino
É possível antecipar que a implantação do
ensino da história da África no brasil apre-
sentará problemas que também tiveram que
ser enfrentados e resolvidos no continente
africano. considerando a visão negativa so-
bre a África que predominou na sociedade
brasileira durante tanto tempo, o primeiro
desses problemas e, talvez, o de maior sig-
nificado, tem a ver com o pesado legado de
fontes bibliográficas eruditas “poluídas”.
trata-se aqui do problema de “retroalimen-
tação”, ou seja, da reintrodução no ensino
contemporâneo de teorias desacreditadas
pelos estudos científicos. ora legitimadas
por novos argumentos, ora envoltas nestas
latitudes numa nova roupagem acadêmica,
não é inconcebível que a maioria das obras
sobre a África estejam sutilmente imbuídas
16 sobre a escravatura africana, ver o excelente trabalho: meIllassouX, claude, antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995
17 ver: meIllassouX, claude, l´esclavage en afrique précoloniale. Paris: maspéro, 1975; barrY, boubakar, le royaume du Wallo, Paris: Karthala, 1985; le senegal avant la conquête. Paris: Karthala, 1985; e cIssoKo, sekene mody, tombouctou et l´Émpire songhay. Dakar: nouvelles editions africaines (nea), 1975.
297
de tenazes e profundos preconceitos contra
os povos e as civilizações africanas.
4.2. A avaliação das fontes de
ensino
Há em toda a américa latina uma carência
de material didático sobre a África, em lín-
guas portuguesa e espanhola. esta questão
não será resolvida tão cedo, considerando
que a tradução e publicação das obras estão
submetidas a considerações de mercado e
da política das grandes editoras. corre-se o
grande risco de que se privilegiem para a tra-
dução em língua portuguesa, precisamente,
obras preconceituosas ou desatualizadas,
situação com a qual haverá que coexistir du-
rante um longo tempo.
4.3. Obras dos cientistas africanos
até os anos sessenta do século XX, a pro-
dução sobre a história da África esteve in-
questionavelmente monopolizada por afri-
canistas europeus, americanos e árabes,
majoritariamente imbuídos de uma visão
fundamentalmente essencialista e raciológi-
ca. essa tendência tem diminuído em parte,
mas não desaparecido, com o crescimen-
to exponencial de especialistas e cientistas
africanos dedicados ao estudo do passado
de seu próprio continente. trata-se de espe-
cialistas que conhecem a África a partir de
dentro, através das mentalidades, cosmo-
gonias, línguas e estruturas que moldaram
aquelas sociedades ao longo da mais exten-
sa história do planeta.
COnCluSÃO
(...)
o avanço constante do conhecimento cien-
tífico sobre a África, em especial nos cam-
pos da paleontologia e da antropobiologia,
não cessam de confirmar que esse conti-
nente foi o lugar privilegiado onde surgiu a
consciência humana e onde se elaboraram
as experimentações que conduziram à vida
em sociedade. contudo, a lentidão da as-
similação/integração desses dados revolu-
cionários, pelo meio acadêmico, continua
sendo um problema, razão pela qual a reatu-
alização dos conhecimentos deverá consti-
tuir peça importante do processo didático. À
primeira vista, uma das formas eficientes de
alcançar esses objetivos seria a organização
de oficinas de formação para agentes multi-
plicadores selecionados, preferencialmente,
entre os docentes das disciplinas humanas,
e não somente na disciplina histórica.
a sensibilidade do docente determinará, em
muitos casos, a predisposição à aceitação, ou
à rejeição, das teses raciológicas e das mani-
pulações legitimadoras que, inevitavelmente,
vestirão a roupagem “acadêmica”. o docente
incumbido do ensino da matéria africana de-
verá cultivar sua sensibilidade em relação aos
298
povos e culturas oriundos deste continente.
num país como o brasil, onde as tradições
e culturas africanas nutrem de maneira tão
vigorosa a personalidade do povo brasileiro,
a empatia para com a África apareceria como
algo natural, mas ela não é, apesar de todos
os brasileiros serem herdeiros das tradições e
cosmovisões desse continente.
OS nOvOS DESAFiOS
a/o professor/a incumbido/a da missão do
ensino da matéria africana se verá obrigado/a
durante longo tempo a demolir os estereó-
tipos e preconceitos que povoam as aborda-
gens sobre essa matéria18. estamos diante de
novas tentativas de banalização dos efeitos
do racismo e das agressões imperialistas por
parte de verdadeiros soldados ideológicos
da visão e das estruturas hegemônicas que
tomaram conta do planeta.
os estudos sobre a historia da África, espe-
cificamente no brasil, deverão ser conduzi-
dos na conjunção de três fatores essenciais:
uma alta sensibilidade empática para com
a experiência histórica dos povos africanos;
uma constante preocupação pela atualiza-
ção e renovação do conhecimento baseado
nas novas descobertas científicas; e uma in-
terdisciplinaridade capaz de entrecruzar os
dados mais variados dos diferentes horizon-
tes do conhecimento atual para se chegar a
conclusões que sejam rigorosamente com-
patíveis com a verdade.
esses três pré-requisitos estão vinculados
ao problema mais geral que se radica na ne-
cessidade de chegar-se a um maior grau de
compreensão das diferenças e da alteridade,
como fatores estruturantes da convivência
humana. o conhecimento do outro, de sua
identidade étnica, cultural, sexual ou racial,
do seu percurso humano, de sua verdadeira
inscrição histórica, possibilita a convivência
confortável, se não feliz, com as diferenças
fundamentais.
a/o professor/a incumbida/o da missão do
ensino da historia dos povos e das civiliza-
ções da África – que, como já vimos não é
uma história qualquer – dificilmente poderá
permanecer insensível a todas essas consi-
derações. Pensamos que, pelo contrário, a
sua eficácia pedagógica terá uma maior re-
percussão e abrangência na medida em que
a sua sensibilidade empática para a matéria
e para o seu entorno social seja elevado.
18 ver, a esse respeito: obenga, theophile, le sens de la lutte contre l´africanisme eurocentriste. Paris: l´Harmattan e Khepera, 2001; temu, a., sWaI, b., Historians and africanist History: a critique. Post-colonial Historiography examined. londres: Zed Press, 1981.
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Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
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______. L´Afrique Noire pré-coloniale. Paris:
Présence africaine, 1960, 1987.
19 nota da edição do boletim: o autor relaciona uma extensa bibliografia, da qual selecionamos as obras editadas em Português. Para conhecer a bibliografia completa, consultar a obra citada (ver nota de rodapé n. 3).
20 o volume 1 foi publicado em português: m’boKolo, elikia, África negra. História e civilizações, tomo I até o século XvIII. lisboa: editora vulgata, 2003.
300
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KI-Zerbo, Joseph. História Geral da África ne-
gra, volumes I e II (3a. ed.). Portugal: Publi-
cações europa-américa, 2002.
m’boKolo, elikia. Afrique noire histoire et ci-
vilisations, jusqu’au XVIII ème siècle, tomos I
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obenga, theophile. L´Afrique dans
l´Antiquiré. Égypte ancienne-afrique noire.
Paris: Présence africaine, 1973.
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ris: l´Harmattan, 1990.
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1993.
______. Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx.
contribuition de cheikh anta Diop à
l’Historiographie mondiale. Paris: Présence
africaine e Khepera, 1996.
301
xIII. ENFRENTANDO OS DESAFIOS: A HISTóRIA DA áFRICA E DOS AFRICANOS NO BRASIL NA NOSSA SALA DE AULA1
Mônica Lima
no dia 9 de janeiro de 2003 foi aprovada a
lei n. 10.639, que tornou obrigatório o ensi-
no sobre História e cultura afro-brasileira,
bem como de História da África e dos afri-
canos em todos os estabelecimentos de en-
sino, públicos e privados, no brasil. nestes
conteúdos estariam incluídos, ainda segun-
do o texto da lei, a luta dos negros no nosso
país, a cultura negra brasileira e a contribui-
ção dos negros na formação da sociedade
nacional - como subtemas que passariam a
ser necessários nos estudos de História do
brasil. o conselho nacional de educação já
emitiu parecer detalhado, de autoria da Pro-
fessora Petronilha beatriz gonçalves e silva,
regulamentando a alteração da lei de Dire-
trizes e bases da educação nacional3.
esta lei tem uma história. grupos ligados
ao movimento negro e representantes da
comunidade acadêmica, desde há muito,
reivindicam esta inclusão. Para falar apenas
da história mais recente, houve um período,
na década de 90, em que os estudantes de
História organizavam, no ano intermediário
aos seus encontros nacionais4, um encon-
tro nacional de História da África. em par-
tes diferentes do brasil, distantes em geral
dos grandes centros5, nunca menos de qui-
nhentos estudantes passavam uma semana
às voltas com cursos, mesas-redondas e ati-
vidades ligadas ao tema. Paralelamente, a
anPuH (associação nacional de Professores
universitários de História) não poucas vezes
se pronunciou favorável à inserção de disci-
plinas de História da África nos cursos uni-
versitários de História. e outras entidades e
grupos, bem como intelectuais e ativistas do
movimento docente, apresentaram a mes-
ma reivindicação.
1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 1. as ideias deste texto encontram-se desenvolvidas mais extensamente nos artigos da autora citados na bibliografia.
2 Professora de História do colégio de aplicação da uFrJ (ensino Fundamental e médio) , de História da África nos cursos de Pós-graduação do Penesb/uFF e na universidade cândido mendes(ucam) , doutoranda em História na universidade Federal Fluminense(uFF).
3 Parecer cne/cP 003/2004.
4 os eneH - encontros nacionais de estudantes de História, que se faziam a cada dois anos.
5 o III encontro nacional de História da África, por exemplo, foi na cidade de aquidauana - mato grosso do sul.
302
ou seja: não se pode em nenhum momen-
to dizer que esta lei foi uma criação de um
governo sem um movimento prévio que a
apoiasse e a pusesse na pauta da educação
brasileira. ela resulta de um processo no
qual diferentesagentes sociais atuaram para
que se tornasse realidade, e por acreditarem
na importância da medida. claro que a lei
não basta. nenhuma medida legal é sufi-
ciente, se não nos debruçarmos sobre ela
para refletir e se não nos engajarmos na sua
execução. e neste caso, em especial, estes
dois movimentos se fazem necessários.
se quisermos olhar com um certo distan-
ciamento, podemos perguntar-nos: por que
a necessidade de uma lei para fazer valer a
presença de um conteúdo tão evidentemen-
te fundamental na História geral e em es-
pecial na História de grupos humanos que
participaram diretamente da formação do
nosso país?
a raiz deste ocultamento estava no precon-
ceito e na ignorância sobre a vida social e a
história destes grupos humanos e, sobretu-
do, na necessidade de domínio sobre eles,
com objetivos de escravizá-los ou colonizá-
-los. esta raiz, portanto, se situava na própria
história das relações com os povos africanos
por parte daqueles grupos dominantes das
sociedades nas quais nossos primeiros his-
toriadores se espelharam para construírem
os saberes oficiais sobre o brasil.
a negação desta história esteve sempre as-
sociada nitidamente a formas de controle
social e dominação ideológica, além do inte-
resse na construção de uma identidade bra-
sileira despida de seu conteúdo racial, den-
tro do chamado desejo de branqueamento
de nossa sociedade. característico da segun-
da metade do século XIX, este desejo ainda
vigora dentro de alguns setores sociais mais
retrógrados, embora a luta por mudanças
no campo do ensino da História tenha cria-
do embates ao longo do século XX.
Podemos observar que até hoje existem nos
currículos dos cursos de História das univer-
sidades brasileiras poucas disciplinas especí-
ficas sobre África, assim como praticamente
se ignora o tema nos estudos de História
geral do ensino Fundamental e médio. ao
tornar obrigatória sua inclusão na educação
básica, estaremos frente a uma imensa di-
ficuldade: que História será esta a ser apre-
sentada, se a maioria dos professores em
sala não teve contato com ela?
Isto não tira a importância da medida. É cer-
to, muitos fomos e somos aqueles que recla-
maram espaços para estes temas. mas fren-
te a este espaço oferecido, temos que definir
objetivos, discutir as abordagens - ou seja,
aonde chegar, e como chegar? responder
a estas perguntas nos coloca frente a ques-
tões muito profundas. ora, se resgatar esta
memória é elaborar nova matéria-prima da
nossa identidade como povo, estamos em
303
face de um desafio: quem somos? e ainda:
quem desejamos ser?
não há receitas prontas, não existe um
‘como fazer’, e por isso a necessidade de
muitos espaços de discussão e troca inte-
lectual - e não apenas entre os reconheci-
dos como “intelectuais” mas com os movi-
mentos sociais. não podemos, a despeito da
exigência da lei, sair repassando nas nossas
salas de aula informações equivocadas, ou
tratar o tema de uma maneira folclorizadae
idealizada. este é um grande temor: repetir
modelos para fazer com que estes conteúdos
curriculares fiquem parecidos com os que já
trabalhávamos ao tratarmos da História e
das contribuições culturais comumente es-
tudadas é um caminho fácil e perigosíssimo.
são temas diferentes e sua abordagem ne-
cessariamente deve ser diferenciada.
nossos alunos certamente terão muito a
dizer, mas devemos ter um imenso cuidado
com o senso comum, que pode surgir tan-
to para desvalorizar como para criar mitos
- os quais, ao se desfazerem, redobrarão o
peso da desilusão e do desgaste da autoesti-
ma. trata-se de um equilíbrio delicado entre
o resgate de uma História que deverá servir
para elevar o orgulho de pertencer a ela e a
valorização de posturas estreitas que tendem
a criar esquemas explicativos maniqueístas.
em primeiro lugar é fundamental formar-
-se, atualizar-se nos temas, e não partir do
pouco que se sabe para ocupar um lugar que
nunca esteve ocupado. temos a responsabi-
lidade de tratar com muito profissionalismo
estes conteúdos. Por isto, devemos estu-
dar, procurar leituras específicas e, sempre
que possível, capacitar-nos em cursos e em
discussões acadêmicas. nossas precárias
condições de trabalho e de vida não podem
justificar uma ausência de esforço neste
sentido. estamos falando da re-escritura de
uma História que nos foi negada, estamos
lidando com a base de uma identidade que
está para ser reconstruída. o que está em
jogo é mais do que nossa competência - é o
nosso compromisso.
É essencial cobrar das autoridades, em espe-
cial dos gestores de instituições de ensino, o
apoio para fazer da iniciativa da lei uma re-
alidade. Foi estabelecida a obrigatoriedade,
mas ela não basta, para que o obrigatório
se torne viável e produtivo tem que haver
investimento na formação. estudantes uni-
versitários: militem pela inclusão destes as-
suntos nas disciplinas dos currículos de suas
faculdades, institutos, departamentos. Isto
é possível, e já vem sendo feito. Professores:
solicitem da rede de ensino a realização de
cursos - isto é possível, e também já é reali-
dade em alguns lugares6. busquem e criem
6 a rede pública de ensino do estado do rio de Janeiro, na gestão benedita da silva em 2002, promoveu curso de especialização em História da África para professores de História em campos e no rio de Janeiro, organizado pelo centro de estudos afro-asiáticos da universidade candido mendes, instituição com tradição neste ramo.
304
espaços (seminários, mesas-redondas, deba-
tes, simpósios) e cursos onde se estimule o
aprofundamento no estudo destes temas e
as reflexões sobre práticas pedagógicas ade-
quadas7. Pode não ser fácil, mas é um bom
caminho.
temos também que aprender a ouvir e a in-
teragir com setores dos movimentos sociais
organizados, que vêm criando, com esforço
próprio, materiais pedagógicos e de divulga-
ção sobre temas da História dos africanos
no brasil e da História da África. com estes
grupos também devemos buscar discutir e
refletir sobre as concepções e conceitos des-
te campo do conhecimento. não devemos
nos acreditar os únicos donos deste saber.
Para os professores de educação básica,
apresentamos aqui algumas sugestões de
caráter geral. nas séries iniciais do ensino
Fundamental, pode-se introduzir temas da
cultura africana e afro-brasileira através de
lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Já
existe produção (livros, sobretudo) para se
tomar como referência. nas aulas de Inte-
gração social, falar da presença dos africa-
nos na História do brasil para além da rea-
ção à escravidão: levá-los a ver marcas desta
presença viva, nas músicas, nas festas, no
vocabulário, nos hábitos alimentares. os
africanos, além de mão-de-obra, eram pes-
soas que produziam cultura - mas não bas-
ta dizer, isto tem que ser algo vivido para
começar a abalar as velhas estruturas dos
preconceitos, as quais se alimentam da ig-
norância.
no segundo segmento do ensino Fundamen-
tal, já podemos trabalhar com conteúdos
mais precisos, falar da Pré-História - ques-
tionando o termo, pois não é a escrita que
cria a história - como o tempo do processo
de hominização, que se deu na África, an-
tes que em outros lugares do planeta. expli-
car os porquês, falar dos primeiros homo
sapiens africanos que saíram a povoar o
mundo... não deixar de comentar todo o es-
plendor e a pompa do antigo egito - tema
que fascina nesta idade - lembrando sempre
que este fica na África, algo que parece tão
óbvio, mas que acaba sendo esquecido. cer-
tamente, o egito era também lugar de desi-
gualdades - quem disse que os africanos não
as viveram em sua terra? Procurar lembrar
os grandes reinos do sudão ocidental, que
durante a Idade média ergueram cidades,
com universidades, mercados de livros, con-
tatos com o oriente e europa - e encanta-
ram tantos viajantes e despertaram a cobiça
de outros povos com suas minas de ouro8.
e, certamente, ao estudar o tráfico de escra-
7 como os cursos de extensão e especialização oferecidos pelo Programa de estudos sobre o negro na sociedade brasileira / Penesb da Faculdade de educação da universidade Federal Fluminense.
8 no dizer de um importante historiador francês, Pierre vilar, falar em ouro na europa medieval era falar da África ( em seu livro oro y moneda en la História, 1450-1920. barcelona, 1974. p.61)
305
vos, não se limitar a falar do intercâmbio
de pessoas por riquezas, mas também das
riquezas transportadas por estas pessoas
dentro de si, no maior processo de migração
forçada da História da humanidade, que le-
vou a uma verdadeira diáspora africana pelo
novo mundo.
no ensino médio, ao retomar alguns conte-
údos, debater as grandes visões, situar o sur-
gimento do racismo como projeto científico
e político - utilizando estratégias que per-
mitam aos alunos construir e desestruturar
ideias através de pesquisas, júris simulados,
dramatizações. e sempre assinalar a fratu-
ra exposta da desigualdade racial brasileira.
nunca é demais repetir: nossa pobreza tem
cor, nossa exclusão tem cor. estes dados,
porém, não devem ser naturalizados. assim
como foram fruto de uma História, fazer
uma outra História pode mudar o quadro.
outro ponto fundamental de caráter geral
no ensino de História da África e dos africa-
nos para estudantes brasileiros é pensar for-
mas de ampliar sua dimensão, dando des-
taque aos aspectos da afro-americanidade
e introduzindo elementos que aproximam
e diferenciam esta parte da nossa história
da história dos afrodescendentes em todo o
continente. sabemos que temos uma histó-
ria comum não apenas entre África e brasil,
como entre os africanos e seus descenden-
tes nascidos no novo mundo.
sabemos que nossa memória constrói nos-
sas percepções sobre nós mesmos e sobre
os outros - voltando a dizer: constrói nossa
identidade. cabe a nós multiplicar iniciati-
vas como esta e fazer com que haja desdo-
bramentos concretos, e que se estimule a
pesquisa, a formação, a produção sobre es-
tes temas. trata-se de resgatar a História da
África e, de uma certa maneira, africanizar a
História do brasil.
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307
xIv. SONS DE TAmBORES NA NOSSA mEmóRIA – O ENSI-NO DE HISTóRIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA1
Mônica Lima2
“À volta da fogueira,
os mais velhos disseram
vão então caçar nuvens
que já fogem de nossos olhos.
Nós pedimos um guia
armas, munições
e farnel para a longa jornada.
Mas eles sorriram
terão de levar apenas
estes sons de tambores
na memória.”
(caçadores de nuvens , do poeta angolano João melo)
1 espaços educativos e ensino de história – 2006 / Pgm 4.
2 Professora de História do caP- uFrJ, de História da África nos cursos de Pós-graduação do Programa de estudos sobre o negro na sociedade brasileira da universidade Federal Fluminense (Penesb/uFF) e do centro de estudos afro-asiáticos da universidade cândido mendes(ucam/rJ). Doutoranda em História na universidade Federal Fluminense(uFF).
a aprovação da lei n. 10.639 de 9 de janeiro
de 2003, que tornou obrigatório o ensino de
História da África e da História dos africanos
nas escolas de todo o país, além de atender
a uma antiga e justa reivindicação, trouxe
uma série de consequências para o ensino
desta área/disciplina em sua totalidade e
para a formação dos profissionais que atu-
am no magistério, em especial aqueles des-
ta área específica – a História. as mudanças
ocasionadas pela citada lei ainda estão em
processo. e não influenciarão apenas os edu-
cadores. elas podem trazer resultados para o
amplo grupo que pretendem atingir. crian-
ças e adolescentes, jovens e adultos entra-
rão em contato com o tema. o alcance das
transformações pode ser grande – e muito
positivo. e elas poderão ser aceleradas ou
adquirirem um ritmo mais lento, conforme
a capacidade de setores interessados intervi-
308
rem no processo. o impacto da medida me-
recerá certamente estudos aprofundados,
preferencialmente tendo como base dados
vindos de diferentes partes do país, com
suas diversas experiências.
o ensino-aprendizagem destes conteúdos
abre muitas perspectivas para o trabalho
com espaços educativos não-formais. mu-
seus, centros culturais, sítios históricos
(tombados ou não) são lugares de memória
e objetos de estudo e de sensibilização para
a aprendizagem por excelência. os exem-
plos são os mais diversos, se pensarmos em
termos de brasil: igrejas, casas de cultura,
terreiros, espaços públicos de reunião e fes-
tejos também são locais para se aprender e
ensinar a história afro-brasileira.
e, se pensarmos no nosso patrimônio ima-
terial, este universo se amplia ainda mais:
histórias, contos populares, contos infantis
de matriz africana e/ou afro-brasileira, can-
tigas, canções de festas religiosas populares
(assim como a congada, por exemplo) po-
dem tornar-se um mote e o próprio objeto
de estudo, trazendo viva a africanidade da
cultura brasileira. além destes de caráter
mais geral, estão presentes, em diversas de
nossas comunidades, os mais velhos que po-
dem relembrar e trazer para nossos alunos
muito deste patrimônio em momentos de
congraçamento e aprendizagem.
só para lembrar: não importa nossa origem
familiar: todos nós, brasileiros, carregamos
‘áfricas’ dentro de nós. essas ‘áfricas’ (no
plural, pois são múltiplas) são e foram per-
manentemente reinventadas aqui no brasil,
mas revelam sua profunda origem a cada
momento: no vocabulário (moleque, qui-
tanda, cafuné, cocada, entre tantas palavras
– vale uma pesquisa!), nos costumes, na ex-
pressão de fé, na comida.
todos estes aspectos convergem para a
abertura de muitas possibilidades de traba-
lhar com o ensino de História em espaços
não-formais e em situações não-formais.
estes lugares e momentos certamente enri-
quecerão nossos estudos e a aprendizagem
que com eles se viabiliza.
estaremos lidando com uma matéria-prima
fascinante e delicada: os diversos matizes
da nossa formação cultural, a memória dos
nossos ancestrais e, especialmente, suas he-
ranças, tão longamente invisibilizadas. todo
o cuidado será sempre pouco para não res-
valarmos pelas trilhas aparentemente fáceis
do maniqueísmo, da simplificação e da fol-
clorização. vamos pensar, então, na preven-
ção destes perigosos males que podem en-
fraquecer nossa percepção e nos distanciar
dos nossos objetivos. alguns destes cuidados
podem parecer óbvios, mas muitas vezes o
aparentemente óbvio merece ser re-visto e
re-visitado, para refletirmos sobre ele.
309
vamos lá...
• os africanos e seus descendentes nascidos
da diáspora no novo mundo (as américas,
incluindo o brasil) eram seres humanos,
dotados de personalidade, desejos, ímpe-
tos, valores. eram também seres contra-
ditórios, dentro da sua humanidade. ti-
nham seus interesses, seu olhar sobre si
mesmos e sobre os outros. tinham suas
experiências de vida – vinham muitas ve-
zes de sociedades não-igualitárias nem
equânimes na África ou nasciam aqui
em plena escravidão. não há como uni-
formizar atitudes, condutas e posturas e
idealizarmos um negro sempre ao lado da
justiça e da solidariedade. o que podemos
e devemos ressaltar são os exemplos des-
tes valores de humanidade, presentes em
muitos, e injustamente negados e torna-
dos invisíveis pela sociedade dominante,
durante tanto tempo. mas sugerimos, ve-
ementemente, evitar dividir o mundo em
‘brancos maus’ e ‘negros bons’, o que não
ajuda a percebermos o caráter complexo
dos grupos humanos. a ideia é valorizar o
positivo, mas sem idealizar.
• o nosso desconhecimento sobre a história
e a cultura dos africanos e dos seus des-
cendentes no brasil e nas américas pode
fazer muitas vezes com que optemos por
utilizar esquemas simplificados de expli-
cação para um fenômeno tão multiface-
tado quanto a construção do racismo en-
tre nós. o racismo é um fenômeno que
influiu e influi nas mentalidades, num
modo de agir e de ver o mundo. e as di-
ferentes sociedades interagiram com ele
de diversas maneiras – o brasil não tem
a mesma história de relações raciais que
os estados unidos, para usar um exem-
plo clássico. no entanto, durante muito
tempo se defendeu a ideia de que aqui
não havia discriminação e, ainda, que o
que separava as pessoas era ‘apenas’ sua
condição social. Hoje, não só vemos pelos
dados da demografia da pobreza brasilei-
ra que ela tem uma inequívoca marca de
cor, como sabemos que um olhar mais
atento à História e à vida dos afrodescen-
dentes no país revela a nossa convivência
permanente com o preconceito e seus
efeitos perversos. mas, para podermos
enxergar isso, tivemos que ouvir relatos,
ver dados e entender como foi esta Histó-
ria. só assim pudemos desnaturalizar as
desigualdades e ver a face hostil do nosso
‘racismo envergonhado’. o que isto quer
dizer? Que devemos nos dedicar ao tema:
estudar, ler, nos informar, sempre e mais.
afinal, o que está em jogo é bem mais
que a nossa competência profissional, é
o nosso compromisso com um país mais
justo e com um mundo melhor para todos
e todas.
• nós nos acostumamos a ver as manifesta-
ções culturais de origem africana confina-
das ao reduto do chamado ‘folclore’. este
310
conceito de folclore, que remete às tradi-
ções e práticas culturais populares, não
tem em si nenhum aspecto que o desqua-
lifique, mas o olhar que foi estabelecido
sobre o que chamamos de ‘manifestações
folclóricas’, sim. e, sobretudo no mundo
contemporâneo, em que a modernida-
de está repleta de significados positivos,
o folclore e o popular se identificam não
poucas vezes com o atraso – algo curioso,
exótico, porém de menos valor. logo, se
não problematizarmos a inserção da cul-
tura africana neste registro, correremos o
risco de não criar a identidade nem esti-
mular o orgulho de a ela pertencermos.
Podemos desmistificar a ideia de folclore
presente no senso comum e, também,
mostrar o quão complexa e sofisticada é
a nossa cultura negra brasileira. envolve
saberes, técnicas e toda uma elaboração
mental para ser construída e se expressar.
e, assim como nós, está em permanente
mudança e não é nada óbvia.
além destes três cuidados básicos de caráter
geral, há outros dados sobre os quais deve-
mos refletir e estar sempre atentos:
• a África é um amplo continente, em que
vivem e viveram desde os princípios da
humanidade (afinal, segundo pesquisas,
foi na região onde atualmente se localiza
o continente africano que a humanidade
surgiu), grupos humanos diferentes, com
línguas, costumes, tradições, crenças e
maneiras de ser próprias, construídas ao
longo de sua História. referir-se a “o afri-
cano” ou “a africana”, como uma ideia
no singular é um equívoco. Podemos até
utilizar estes termos quando tratarmos de
processos históricos vividos por diversos
nativos da África, mas sempre sabendo
que não se trata de um todo homogêneo
e sim de uma ideia genérica que inclui al-
guns indivíduos, em situações muito es-
pecíficas. Por exemplo: podemos dizer “o
tráfico de escravos africanos” – ou seja,
estamos nos referindo à atividade econô-
mica cujas mercadorias eram indivídu-
os nativos da África, conhecido nos seus
anos de declínio como “o infame comér-
cio”. nestes tipos de caso, vale dizer, de
um modo geral, ‘africanos’ ou ‘negros
africanos’. mas, devemos evitar atribuir a
estas pessoas qualidades comuns, como
se fossem tipos característicos.
• um dos preconceitos mais comuns, quan-
to aos africanos e afrodescendentes, é
com relação às suas práticas religiosas e
um suposto caráter maligno contido nes-
tas. este tipo de afirmação não resiste ao
confronto com nenhum dado mais consis-
tente de pesquisa sobre as religiões africa-
nas e sobre a maioria das religiões afro-
-brasileiras. Por exemplo: não há a figura
do diabo nas religiões da África tradicio-
nal nem de nenhum ser ou entidade que
personifique todo o mal. as divindades
africanas e suas derivadas no brasil, em
311
geral, se encolerizam se não forem cultu-
adas e consideradas, e podem vingar-se;
mas jamais agem para o mal de forma
independente dos agentes humanos que
a elas demandam. o grande adversário
das “forças do bem” não existe, não há
este poder em nenhum ente do sagrado
africano, a não ser naquelas religiões in-
fluenciadas pelo monoteísmo cristão, ou
pelo monoteísmo islâmico. não é certo
considerar elegbará, elegbá, exu, como
um demônio ou seu representante. exu
é o mensageiro, o embaixador dos pedi-
dos humanos aos orixás, e exige seu pa-
gamento pelo serviço e se aborrece se
não for atendido. mas não tem nenhuma
maldade congênita, como nenhuma ou-
tra divindade do panteão africano.
como vimos, toda a atenção é necessária e
o exercício permanente que fazemos de ou-
vir pessoas e valorizar saberes não nos deve
eximir de estarmos atentos às armadilhas
do senso comum. e no mais, deixemo-nos
encantar pela história africana e afro-brasi-
leira, porque, como bem sabemos, a apren-
dizagem se dá pela rota da sensibilidade, e
nada melhor que a via do afeto para (re)ver
preconceitos. esta é a perspectiva amorosa
de trabalho que valorizamos: que inclui res-
peito à diferença, que convoca e se propõe
à participação, e que atua cooperativa e so-
lidariamente.
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