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 REVIEW ARTICLE ARTIGO DE REVISÃO Introdução: A linguagem é uma função cortical superior e o seu desenvolvimento depende, por um lado, de uma estrutura anatómica e funcional geneticamente determinada e, por outro, de estímulos verbais que nos rodeiam. A linguagem constitui um instrumento social usado em interacções visando a comunicação, geralmente definida como um sistema convencional de símbolos que são combinados de modo sistemático para armazenar e trocar informações. 1 A aquisição da linguagem envolve o desenvolvimento de quatro sistemas interdependentes: o pragmático (refere-se ao uso comunicativo da linguagem num contexto social); o fonológico (envolve a percepção e a produção de sons para formar palavras); o semântico (o respeito pelas palavras e seu significado), e o gramatical (regras sintácticas e morfológicas para combinar as palavras em frases compreensivas). O processo da linguagem envolve a conexão entre diferentes regiões cerebrais que compõem a denominada zona da linguagem. Esta, foi definida como a região do hemisfério cerebral esquerdo, dependente da irrigação sanguínea da artéria cerebral média (ACM), rodeando o sulco de Sylvius, compreendendo áreas dos lobos frontal, parietal e temporal. 2 Existem duas áreas principais, a de Broca (região pré- motora do lobo frontal) e a de Wernicke (região posterior da circunvolução temporal superior), conectadas pelo feixe arqueado e o feixe longitudinal superior (fig.1). A área de Broca está em estreita ligação com a área motora que controla a região glossofaríngea e a área de Wernicke em estreita ligação com a área associativa da audição. O conceito de dominância cerebral para a linguagem defende que um hemisfério, o dominante, contém as estruturas neuronais responsáveis pela linguagem. Alterações adquiridas da linguagem na infância Childhood language acquired disorders Nuno Duarte (1) I Maria Ana Vasconcelos (2) I Isabel Batalha (3) (1) Interno de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de Santa Maria, Lisboa, Portugal. (2) Assistente Hospitalar Graduada de Medicina Física e de Reabilitação do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, Alcoitão, Portugal. (3) Directora de Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, Alcoitão, Portugal. E-mail: [email protected] m Afasia na infância 45 Vol 20 I 1 I Ano 19 (2011) I Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação Figura 1 - Áreas cerebrais envolvidas na linguagem. Resumo A linguagem é uma função superior e constitui um meio muito importante de comunicação. Quando ocorre uma lesão cerebral, esta pode desencadear alterações do processamento da linguagem, uma afasia. Os autores pretendem, para além de apresentar uma classificação das afasias, explanar a neuropatologia, as características linguísticas das afasias, bem como os aspectos neuropsiquiátricos e o prognóstico das afasias nas crianças. Palavr as-ch ave: Crian ça; Lingu agem; Af asia. Abstract Language is a superior function and it is very important for communication. When a cerebral lesion occur some changes in language mechanisms happens, what is called aphasia. Authors pretend not only to present the aphasia classification, but also to explain neuropathology, linguistic characteristics of aphasias and make an approach to children aphasia prognosis. Keywords: Child; Language; Aphasia

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    Introduo:A linguagem uma funo cortical superior e o seudesenvolvimento depende, por um lado, de umaestrutura anatmica e funcional geneticamentedeterminada e, por outro, de estmulos verbais que nosrodeiam. A linguagem constitui um instrumento social usado eminteraces visando a comunicao, geralmentedefinida como um sistema convencional de smbolosque so combinados de modo sistemtico paraarmazenar e trocar informaes. 1

    A aquisio da linguagem envolve o desenvolvimentode quatro sistemas interdependentes: o pragmtico(refere-se ao uso comunicativo da linguagem numcontexto social); o fonolgico (envolve a percepo e aproduo de sons para formar palavras); o semntico (orespeito pelas palavras e seu significado), e ogramatical (regras sintcticas e morfolgicas paracombinar as palavras em frases compreensivas). O processo da linguagem envolve a conexo entrediferentes regies cerebrais que compem adenominada zona da linguagem. Esta, foi definidacomo a regio do hemisfrio cerebral esquerdo,dependente da irrigao sangunea da artria cerebralmdia (ACM), rodeando o sulco de Sylvius,compreendendo reas dos lobos frontal, parietal etemporal. 2

    Existem duas reas principais, a de Broca (regio pr-motora do lobo frontal) e a de Wernicke (regioposterior da circunvoluo temporal superior),conectadas pelo feixe arqueado e o feixe longitudinalsuperior (fig.1). A rea de Broca est em estreitaligao com a rea motora que controla a regioglossofarngea e a rea de Wernicke em estreitaligao com a rea associativa da audio. O conceito de dominncia cerebral para a linguagemdefende que um hemisfrio, o dominante, contm asestruturas neuronais responsveis pela linguagem.

    Alteraes adquiridas da linguagem na infncia

    Childhood language acquired disorders

    Nuno Duarte (1) I Maria Ana Vasconcelos (2) I Isabel Batalha (3)

    (1) Interno de Medicina Fsica e de Reabilitao do Hospital de Santa Maria, Lisboa, Portugal.(2) Assistente Hospitalar Graduada de Medicina Fsica e de Reabilitao do Centro de Medicina de Reabilitao de Alcoito, Alcoito, Portugal.(3) Directora de Servio de Medicina Fsica e de Reabilitao do Centro de Medicina de Reabilitao de Alcoito, Alcoito, Portugal. E-mail: [email protected]

    Afasia na infncia

    45Vol 20 I N 1 I Ano 19 (2011) I Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Fsica e de Reabilitao

    Figura 1 - reas cerebrais envolvidas na linguagem.

    ResumoA linguagem uma funo superior e constitui um meio muito importante de comunicao. Quando ocorre umaleso cerebral, esta pode desencadear alteraes do processamento da linguagem, uma afasia. Os autorespretendem, para alm de apresentar uma classificao das afasias, explanar a neuropatologia, as caractersticaslingusticas das afasias, bem como os aspectos neuropsiquitricos e o prognstico das afasias nas crianas.

    Palavras-chave: Criana; Linguagem; Afasia.

    AbstractLanguage is a superior function and it is very important for communication. When a cerebral lesion occur somechanges in language mechanisms happens, what is called aphasia. Authors pretend not only to present theaphasia classification, but also to explain neuropathology, linguistic characteristics of aphasias and make anapproach to children aphasia prognosis.

    Keywords: Child; Language; Aphasia

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    Afasia na infncia

    Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Fsica e de Reabilitao I Vol 20 I N 1 I Ano 19 (2011)

    Uma viso menos radical defende que os doishemisfrios cerebrais contribuem para a linguagem,embora um mais do que o outro.2 Acredita-se que ohemisfrio esquerdo seja dominante para a linguagemem cerca de 90% da populao em geral, participandoo hemisfrio direito no processamento da mesma,sobretudo nos aspectos da pragmtica e prosdia(ritmo e entoao da fala).3

    A neuropatologia As alteraes da linguagem que ocorrem na infnciaso geralmente classificadas como: do desenvol-vimento ou adquiridas (afasias) 4

    Geralmente a expresso alterao do desenvolvimentoda linguagem usada para descrever problemas quesurgem nos estadios iniciais do desenvolvimento dalinguagem. Existem duas caractersticas principais: a primeira a deque a leso cerebral pode ter vrios tipos de origem(traumatismo cranioenceflico, acidente vascularcerebral, tumor ou infeco), a segunda a de que aafasia surge geralmente aps um perodo de linguagemnormal ou de aquisies normais da linguagem. Enquanto que nos adultos a causa mais frequente deafasia o acidente vascular cerebral (AVC), nas crianas o traumatismo cranioenceflico (TCE). Refira-se que,apesar de por afasia se entender uma perturbao dalinguagem que resulta de uma leso cerebral emestruturas que se supe estar envolvidas no seuprocessamento, cerca de 20% das afasias no seconsegue explicar do ponto de vista anatomo-clnico.1

    Caractersticas lingusticas das afasiasAs afasias caracterizam-se por determinados defeitoslingusticos: defeitos de compreenso auditiva edefeitos na produo verbal. Em relao aosprimeiros, estes parecem ser mais frequentes nascrianas que sofrem uma leso cerebral antes dos 10anos de idade.5 Em relao aos segundos, estes podemenvolver alteraes de sintaxe (relacionamento daspalavras), de semntica (significado das palavras), depragmtica (uso apropriado da linguagem), de fontica(regreas de funcionamento dos sons) ou da linguagemescrita. Alguns estudos tm demonstrado que as perturbaesda linguagem escrita so mais graves do que as delinguagem verbal. 4

    Como classificar as afasiasA equipa ideal para avaliar uma criana com afasiaseria composta pelo mdico, pelo terapeuta da fala epelo psiclogo. Os sistemas de classificao das afasias mais usadosdividem as afasias em: sndromes corticais esndromes sub corticais.As afasias corticais so: a de Broca, a de Wernike, a deconduo, as transcorticais sensorial e motora, aanmica e a afasia global. As sub corticais so as afasias

    capsulares (anterior, posterior e global) e a talmica,sobre as quais no nos ocuparemos neste trabalho.O diagnstico diferencial baseia-se em algumascaractersticas da linguagem que so: a nomeao, afluncia do discurso, a compreenso auditiva dematerial verbal e a repetio. 2

    Ponto comum a todas as afasias a perturbao nanomeao, alis, se no estiver alterada, no existeafasia.Existem vrios tipos de testes que podem ser aplicadospara o diagnstico preciso das afasias, entre elesencontram-se: a Western Aphasia Battery (1982) deKertez, a Boston Diagnostic Aphasia Examination(1983) de Kaplan e a de Damsio, a Bateria deAvaliao da Afasia de Lisboa (BAAL) (1973). Estaltima bateria uma verso revista e adaptada paraPortugal da Multilingual Aphasia Examination. Em relao nomeao, sabe-se que alguns doentestm dificuldade na nomeao de objectos poucofrequentemente usados (ex.: telescpio), outros tmdificuldade na nomeao de categorias semnticasespecficas (ex.: partes do corpo humano, cores). Anomeao por confrontao (ex. o que isto?) podeser mais fcil do que pela evocao (ex.: nomeie todosos animais que conhea). importante salientar que caracterstica comum a todos os tipos de afasia aexistncia de perturbao na nomeao. No que fluncia do discurso diz respeito, geralmentedividem-se as afasias corticais em: afasias fluentes eno-fluentes. Com base em caractersticas dalinguagem verbal (nmero de palavras por ciclorespiratrio, uso da sintaxe, existncia de parafasias,entoao da fala e agilidade articulatria) podemosafirmar se a afasia do tipo fluente (Wernicke,transcortical sensorial, anmica ou de conduo) ou dotipo no-fluente (Broca, transcortical motora ouglobal).A compreenso auditiva de material verbal poucasvezes est inteiramente preservada nas afasias, noentanto, em algumas afasias a compreenso relativamente melhor do que a produo de linguagemoral. Podem ser usados alguns testes para determinaralteraes da compreenso auditiva, tais como: pedirpara identificar palavras isoladas que identificamobjectos, letras, nmeros e/ou partes do corpo, pedirpara executar ordens simples e/ou complexas. Numdoente afsico com linguagem oral escassa ou nula ecom compreenso auditiva pobre estabelece-se odiagnstico provvel de afasia global.A capacidade de repetio usa-se para diferenciar osoutros tipos de afasia cortical. Tambm podem serusados testes para determinar eventuais alteraes darepetio, tais como: repetio de palavras querepresentem actividades frequentes ou ocasionais davida diria.Assim, entende-se que as diferentes conjugaes dealteraes atrs mencionadas constituem os diferentestipos de afasia que em seguida caracterizaremos, e quese encontram resumidas no quadro 1.

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    Afasia de BrocaA leso cerebral mais frequentemente associada a estaafasia localiza-se na regio supra-silvica e pr-rolndicafrontal externa (rea de Broca), dependente dairrigao sangunea da ACM. Caracteriza-se por estar preservada a compreensoauditiva de material verbal, mas com perturbaes dafluncia e da repetio. Sendo uma afasia no-fluenteh uma reduo do dbito verbal, podendo em algunscasos haver a produo de uma nica palavra ou slabaque utilizada em diferentes contextos estereotipoverbal. 7

    Est geralmente associada a esta afasia a apraxia, ouseja, a perda da capacidade para realizar actos motorespreviamente aprendidos, que no pode ser explicadapela presena de dfice motor, alteraes cerebelares,extra-piramidais ou sensoriais.

    Afasia de WernickeA afasia de Wernicke ocorre devido a leses localizadasno 1/3 posterior da circunvoluo temporal superior(rea de Wernicke), dependente da irrigao do ramoinferior da ACM. Se a leso ocorrer na regio mais anterior desta rea hmaior dificuldade na compreenso da linguagemverbal. Se a leso for mais posterior, as conexes entrea rea de Wernicke e a rea cortical da viso seroafectadas e assim a compreenso da linguagem escritaestar mais perturbada.Este tipo de afasia, ao contrrio da afasia de Broca,caracteriza-se no s por perturbao da compreensomas tambm da repetio, no estando alterada afluncia.A produo verbal geralmente constituda porparafasias. Por vezes a alterao da palavra togrande que a torna ininteligvel, denominando-seneologismo. Quando o discurso totalmenteconstitudo por palavras incompreensveis denomina-sede jargo. Salientamos que na maioria dos casos osdoentes no so capazes de reconhecer os seus erros(anosognosia).Pode estar associada a acalculia, alexia com agrafia eapraxia dos membros.

    Afasia globalEsta afasia ocorre quando h leso extensa desde area de Broca at de Wernicke, geralmente porenfarte de ambos os ramos da ACM.Envolve dificuldade na compreenso, na fluncia dodiscurso bem como na repetio. O discurso geralmente feito recorrendo a gestos (aprovao/reprovao). Pode estar associada a apraxia dosmembros.

    Afasia de conduo um tipo de afasia rara. Ocorre por leses cerebrais nasvias de conduo. Estes doentes tm preservada acompreenso auditiva e a fluncia, mas tm alteraesna repetio. Ao contrrio dos doentes com afasia deWernicke, estes doentes no cometem tantos erros naescolha das palavras, mas sim erros de seleco etransposio de fonemas e slabas.7 um discursocaracterizado por pausas, hesitaes e procura depalavras.

    Afasia anmica uma afasia rara que pode ser secundria a outraafasia em fase de recuperao. Leses em vrios locaispodem provocar esta afasia, tais como: crtex frontaldorso-lateral ou temporo-occipital posterior.Neste tipo de afasia a perturbao est confinada aonvel lexical da linguagem (nomes e verbos principais).6

    A compreenso, a fluncia e a repetio estopreservadas. Os doentes apresentam um discursofluente mas vazio, com tendncia para substituir nomespor aquilo / coiso, ou descrevendo a sua funo(circunlquio), por exemplo: aquela coisa que servepara escrever. uma afasia menos grave j que os doentes apenasapresentam dificuldade na nomeao.

    Afasia transcortical motora tambm um tipo de afasia rara. Ocorre quando huma leso no lobo frontal que interrompe a conexoentre o crtex motor e a rea de Broca, geralmente pordfice de irrigao por parte da artria cerebralanterior ou das ramificaes anteriores da ACM.

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    Quadro 1 - Resumo das caractersticas das afasias.

    TIPO DE AFASIA FLUNCIA COMPREENSO NOMEAO REPETIO

    WERNICKE Fluente Perturbada Perturbada Perturbada

    TRANSCORTICAL SENSORIAL Fluente Perturbada Perturbada Normal

    CONDUO Fluente Normal Perturbada Perturbada

    ANMICA Fluente Normal Perturbada Normal

    GLOBAL No fluente Perturbada Perturbada Perturbada

    BROCA No fluente Normal Perturbada Perturbada

    TRANSCORTICAL MOTORA No fluente Normal Perturbada Normal

  • A repetio est preservada bem como a compreenso,mas est afectada a fluncia. O discurso caracteriza-sepor ser pouco fluente. Ou seja, aparentemente alinguagem do doente normal, mas no a podeutilizar de forma rpida, espontnea. O que diferenciaeste tipo de afasia da afasia de Broca o facto de estarpreservada a capacidade de repetio na transcorticalmotora.

    Afasia transcortical sensorialTambm pouco comum e ocorre se houver qualquerleso no crtex temporo-occipital que desconecte area de Wernicke da rea de associao temporal,geralmente por diminuio do aporte sanguneo naszonas limtrofes da irrigao da ACM e artria cerebralposterior.Est preservada a fluncia do discurso bem como acapacidade de repetio, mas seriamente afectada acompreenso. O discurso caracteriza-se por ser raro, emcircunlquios e incoerente. O que o difere da afasia deWernicke estar preservada a capacidade de repetir.

    Alteraes da linguagem por leses dohemisfrio direitoHoje em dia sabe-se que no apenas o hemisfrioesquerdo (ou o dominante) o responsvel pelalinguagem. Tambm o hemisfrio direito tem um papelimportante, sobretudo na interpretao semntica eno significado global do discurso.As leses no hemisfrio direito provocam alteraesprofundas na orientao e percepo que podemresultar da inateno hemi-espacial ou neglect. Ohemisfrio direito est tambm envolvido na anlise dainformao da imagem corporal, e consequentementepoder originar anosognosia impossibilidade deperceber os seus prprio dfices.Em 1978 Myers observou que os doentes com leses nohemisfrio direito ignoravam o contexto, noconseguiam percepcionar para alm das palavras, noentendendo significados subtis, sendo literrios nainterpretao das frases. Descreveu o seu discurso comocopioso, inapropriado e ocasionalmente bizarro. Outra caracterstica a entoao/prosdiamonocrdica destes doentes.Podem ser estabelecidas comparaes entre crianascom leses no hemisfrio direito e as crinaas comalteraes semntico-pragmticas. Ambos parecemterdificuldade em integrar informao, o que se reflectena sua produo verbal. Tm a linguagem normal noque diz respeito forma, fluncia e gramtica, masdemonstram alteraes no contedo e no prprio usoda linguagem. Tem, concomitantemente, acompreenso de material verbal, prosdia ecomunicao no verbal pobres.Salientamos ainda que, mesmo nos nossos dias, noest claramente estabelecido que as correlaesantomo-clnicas nas afasias sejam sobreponveis nainfncia e na vida adulta. Algumas funes, como a

    compreenso de material verbal ou a atenohemiespacial, tendem a depender das mesmas reasnos diferentes perodos da vida. Pelo contrrio, outrasreas, como a fluncia do discurso, parecem nodepender das mesmas estruturas anatmicas emdiferentes grupos etrios. Existem tambm outrasfunes, como a leitura, a escrita, o clculo ou ascapacidades visuomotoras e visuoespaciais, que no sodirectamente localizveis a uma rea especfica doshemisfrios cerebrais, provavelmente porquedependem da integridade de mltiplas estruturasanatmicas que esto interligadas.

    Aspectos neuropsiquitricos das afasiasPerante um doente afsico muito importanteconsiderar os aspectos psicolgicos, pois estes podeminfluenciar negativamente o processo de reabilitao.Podem ocorrer alteraes do comportamento e dapersonalidade em crianas com afasia e que vo iniciarescolaridade. Os sintomas variam no tipo e gravidade,dependendo da personalidade bem como do seuambiente social e educacional.Algumas crianas reagem agressivamente, comviolncia fsica sobre os colegas, outras regaem suadeficincia tornando-se no palhao da turma,passando o seu tempo a divertir os colegas e aimportonar os professores, em vez de se concentrar notrabalho. H crianas que podem ter estados de negativismointenso e violento, negando participar nas actividdaeslectivas. Podem ocorrer reaces psico-somticas, comonuseas e vmitos, que resultam directamente emdispensa das aulas, que exactamente o objectivo dacriana, evitando assim a exposio da sua deficinciaperante os colegas.Crianas com personalidade menos robusta tendem areagir ao stress educacional de uma forma menosdirecta. H casos de crianas com enurese nocturna,que conseguiram entretanto resolver a situao e queaps a aquisio de uma afasia e quando ingressam naescola, reiniciam o quadro de enurese nocturna.De realar que, para o prprio desenvolvimento dalinguagem, necessrio e fundamental o contacto dacriana, no s com os seus familiares, como tambmcom os seus pares, nomeadamente na idade pr-escolar. As crianas afsicas que evitam o contactointer-pessoal esto desse modo a influenciarnegativamente o desenvolvimento da mesma.Percebe-se assim que, perante uma criana afsica necessrio estar atento e avaliar a eventual necessidadede suporte psicolgico e/ou psiquitrico, prevenindosituaes potencialmente negativas para o seudesenvolvimento psicossocial.

    Prognstico das afasias na crianaAlgumas teorias tm sido sugeridas para justificar adiferena existente no grau de recuperao da afasiaentre uma criana e um adulto.4 A teoria da

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    plasticidade cerebral defende que quando ocorre umaleso num crebro ainda em desenvolvimento a funoda linguagem poder ser assumida por uma zona nolesada. Segundo a teoria da equipotencialidade, nascena ambos os hemisfrios cerebrais tm o mesmopotencial para desenvolver a linguagem, e alateralidade vai-se definindo, pelo que, em relao aosadultos, as crianas tero maior potencialidade derecuperao da funo da linguagem. Por fim, a teoriado fenmeno de substituio defende que os doishemisfrios cerebrais possuem mecanismos capazes deprocessar a linguagem, e, quando o hemisfriodominante lesado a inibio que este exercia sobre ooutro desaparece, assumindo o hemisfrio inibido opapel de dominante. Segundo esta ltima teoria, entreos dois e os quatro anos de idade perde-se estapossibilidade.

    Vrios estudos tm constatado um bom prognstico daafasia na criana, podendo-se esperar uma evoluofavorvel em mais de metade dos casos. Estesresultados so idnticos aos obtidos nos adultos jovense muito superiores aos encontrados nos adultos,sobretudo no que diz respeito patologia vascular.Enquanto que nos adultos a percentagem de doentesque recuperam de cerca de 25% ao fim de uma ano,a recuperao em crianas pode ser de 100%.9 Napatologia traumtica, por outro lado, a diferena jno to grande, havendo publicaes que mostramque a recuperao da afasia idntica nostraumatizados craneo-enceflicos em diferentesidades.Outra diferena para os adultos relaciona-se com otempo de recuperao. A criana afsica recuperarapidamente e mesmo na fase crnica da doenatambm pode melhorar. Nos adultos, para alm de emgeral demorarem mais tempo a recuperar, os quadrostendem a no se modificar depois dos seis meses deevoluo.O tipo e gravidade da afasia, no perodo agudo, notendem a influenciar o prognstico, embora os defeitosde compreenso se possam associar por vezes a piorrecuperao. O tipo de afasia interage com a idade eagravidade do quadro, por exemplo: afasias nofluentes surgem nas crinaas mais novas e influenciamnegativamente a apreciao subjectiva da gravidade daafasia. Na criana h uma modificao rpida doquadro afsico tornando o ndice de gravidade poucofidedigno para prever o prognstico. Nos adultos, pelocontrrio, a gravidade inicial um importante factor deprognstico.Se considerarmos individualmente, a etiologia umfactor importante do prognstico, sendo a recuperaomuito pior nos caos infecciosos do que nos traumticosou nos vasculares, talvez porque tanto as infecescomo os traumatismos tendem a provocar leses maismultifocais e/ou bilaterais.Existe uma importncia particular da rea de Wernicke

    na recuperao. nesta rea que se processa adescodificao da linguagem (anlise fonolgica). Asua leso poder dificultar de tal forma a entrada deinformao verbal que toda a recuperao/reaprendizagem da linguagem fique impossibilitada.A melhor capacidade de recuperao na criana podeter vrias explicaes. Por um lado, h mais tempo paraefectuar a recuperao, desde que a criana no tenhaa esperana mdia de vida afectada. Por outro lado, ascrianas tm um melhor estado geral e de circulao eum sistema nervoso mais ntegro, o que poder facilitara reestruturao tecidular. tambm possvel que nainfncia haja mais mecanismos para a reorganizaodas redes neuronais (reparao e ramificao axonal edendrtica), de facto o perodo de mximo crescimentosinptio verifica-se pelo segundo ano de vida.Mesmo havendo tendncia para a recuperao dosdfices neuropsicolgicos agudos, a leso do sistemanervoso deixa algumas sequelas e afectanegativamente o desenvolvimento cognitivo, aaprendizagem escolar e a progresso socio-econmica.Estes efeitos so mais marcados nas crianas quemantm dfices clinicamente evidentes, tal comoperturbao da linguagem oral.Embora a maioria das crianas recupere dos defeitos noperodo agudo, a doena tende a afectar a progressoescolar. O insucesso escolar afecta sobretudo crianasmais velhas, sendo possvel que no primeiro ciclodeterminados dfices sejam mais facilmente aceites doque em anos lectivos mais avanados (maiorrepercusso nos critrios de passagem de ano). Ascrianas com afasia e com surdez verbal estoimpossibilitadas da capacidade de aquisio da escrita,pois o substrato anatmico desta funo o mesmoque da linguagem oral. Este facto tem levado algunsautores a defender o ensino da linguagem gestual aestas crianas. Existe tambm dificuldade importantena aquisio da leitura. Alguns estudos tm apontadopara percentagens entre 15 a 25% de crianas comcapacidades de leitura, escrita e de clculo afectadas.(1)

    Existe elevada prevalncia de dificuldades deaprendizagem em crianas com leso cerebral. Aintegrao de uma criana com este tipo de leso numaescola normal pode desencadear uma atitudeprotectora e de maior tolerncia s dificuldades porparte dos professores, levando-os a deixar essascrianas progredir de ano.Parece haver uma maior tendncia para o abandonodos estudos em grupos de doentes afsicos, bem comodificuldades na obteno de emprego, maiordependncia econmica da famlia de origem. Osindivduos que recuperam da afasia mantm-se maistempo na escola. dificil concluir sobre a vida social e organizaofamiliar, dado estarmos perante crianas, no entanto,sabe-se que geralmente a afasia na criana no factorimpeditivo de uma relao conjugal nem da vidafamiliar.

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  • ConclusoOs autores pretenderam com este trabalho rever ainformao existente na literatura sobre alteraesadquiridas da linguagem na infncia, abordando desdeos sistemas de classificao das afasias, os aspectosneuropsiquitricos e psicossociais presentes nascrianas afsicas, at ao seu prognstico.

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