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1 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin (organizadores)

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Narrativas do ver, do ouvir

e do pensar

Demétrio de Azeredo SosterFabiana Piccinin

(organizadores)

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

2016

Santa Cruz do Sul

1ª edição

Narrativas do ver, do ouvir

e do pensar

Demétrio de Azeredo Soster

Fabiana Piccinin

(organizadores)

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Antonio Fausto Neto – Unisinos

Ernesto Söhnle Jr. – UNISC

Eunice Piazza Gai – UNISC

Fernando Resende – UFF

Jesús Gallindo Cáceres – Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (México)

João Canavilhas – Universidade de Beira Interior (Portugal)

Walter Teixeira Lima – UMESP

CONSELHO EDITORIAL

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406

Projeto gráfico e diagramação: Daiana Stockey Carpes

Revisão: Rodrigo Bartz

Rua Oswaldo Aranha, 444

Bairro Santo Inácio

Santa Cruz do Sul/RS

CEP 96820-150

www.editoracatarse.com.br

facebook.com/editoracatarse

N234 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar [recurso eletrônico] / Demétrio de

Azeredo Soster, Fabiana Piccinin (organizadores) – Santa Cruz do

Sul: Catarse, 2016.

200 p.

Texto eletrônico.

Modo de acesso: World Wide Web.

1. Narrativa (Retórica). 2. Comunicação de massa. 3. Literatura - Teoria.

4. Jornalismo. 5. Audiodescrição. I. Soster, Demétrio de Azeredo. II.

Piccinin, Fabiana.

CDD: 808ISBN: 978-85-69563-07-5

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Sumário

APRESENTAÇÃO Eunice Piazza Gai

PREFÁCIO Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin

Estratégias narrativas no contemporâneo: o caso das séries televisivasFabiana Piccinin A narrativa institucional de Zero Hora como estratégia de aproximação dos leitores no processo de convergência jornalísticaCristiane Lindemann

O quarto narrador como um problema de circulação Demétrio de Azeredo Soster

O Ouvidor: além do escutar, narrar Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller O percurso do método: a criação de uma metodologia de pesquisa Gabriel Steindorff O processo de criação do jornalista narrador literário: um olhar para Eliane Brum Kassia Nobre

Perspectivas acerca da biografia jornalísticaRodrigo Bartz

A narrativa dos quadrinhos e as fronteiras com o jornalismo José Arlei Cardoso

Real ao dobro: a potencialização da legitimidade jornalística pelo uso de estratégias literáriasRicardo Duren

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65

74

90

108

123

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Uma perspectiva hermenêutica para os estudos de literatura: abordagem do texto Os sofrimentos do jovem Werther, de GoetheJoseylza Lima

A audiodescrição como estratégia narrativa para um jornalismo acessívelDaiana Stockey Carpes Estratégias narrativas em entrevistas pingue-pongue: uma análise de “As 30 melhores entrevistas de Playboy” Pedro Piccoli Garcia

159

174

186

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Apresentação

O livro, Narrativas do ver, do ouvir e do pensar, que ora se

publica, é resultado de uma trajetória de estudos, pesquisas, discussões

acerca das narrativas, que se iniciou a partir do ingresso da professora

Dra. Fabiana Piccinin e do professor Dr. Demétrio de Azeredo Soster,

da área da Comunicação Social, no Mestrado em Letras da UNISC, em

2010. Agregaram-se ambos a um projeto já existente no Programa, sobre

narrativas literárias, coordenado por mim. Esse foi o embrião a partir do

qual as relações de pesquisa entre as áreas de Letras e de Comunicação

Social foram se estabelecendo. Foi, portanto, pelo viés da narratividade

que ocorreu a integração de uma área nova, a Comunicação Social, a um

programa já existente, o PPGL/UNISC, com atividades de pesquisa ensino

e orientações focadas nesse tema.

Alunos de Comunicação e de Letras já passaram pelo grupo,

ingressaram no Mestrado e realizaram suas dissertações no decorrer

desses anos. Os textos que compõem o livro são uma espécie de registro

dessa história e, além das proposições de pesquisa dos professores

coordenadores, resultam também de dissertações já defendidas ou em

andamento. Participam da publicação os professores que iniciaram o

grupo de pesquisas, os alunos daquela primeira hora, além de outros,

doutora, mestres e uma mestranda da área da literatura.

O fato de que a temática das narrativas tenha se tornado o

elo entre as duas áreas é relevante, pois acabou por conferir uma

identidade a muitas pesquisas desenvolvidas no Programa. É assim

que as teorias narrativas, que tem sua matriz no âmbito da Teoria da

Literatura, podem ser de grande valia para o entendimento e a análise

das variadas formas de narrar, do contexto midiático. Está contemplado

no livro, Narrativas do ver, do ouvir e do pensar, um universo

significativo de narrativas, desde as biografias, os seriados, os contextos

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

institucionais de ouvidoria, obras clássicas como o Werther, de Goethe,

a audiodescrição como modo de narrar, etc. O foco do livro, o estudo de

diferentes narrativas, evidencia, valoriza e se fundamenta num modo

específico de conhecimento, o modo narrativo, que, hoje, parece não

estar mais relegado ao incerto e depreciado terreno do subjetivismo,

mas constitui uma forma legítima do saber.

Os assuntos abordados nos textos que compõem o livro referem-

se, pois, a diferentes narrativas.

Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller, em “O Ouvidor: além do

escutar, narrar”, reflete sobre a atividade do ouvidor e sua necessária

prática de escuta de narrativas. Não só a escuta, mas a interpretação das

histórias contadas e a atenção são elementos importantes na atuação

desse profissional.

Cristiane Lindemann apresenta um estudo sobre “A narrativa

institucional de Zero Hora como estratégia de aproximação dos

leitores no processo de convergência jornalística” em que busca

compreender a convergência midiática sob a perspectiva das

audiências, no referido jornal.

Daiana Stockey Carpes, com o texto intitulado “A audiodescrição

como estratégia narrativa para um jornalismo inclusivo”, discorre sobre

o processo de inclusão de pessoas com deficiência, a partir da prática

da audiodescrição, associando-a à forma narrativa, sendo aquela uma

narrativa acessível aos cegos.

Demétrio de Azeredo Soster propõe o texto “O quarto narrador

como um problema de circulação”; nele descreve o percurso da pesquisa

realizada ao longo dos anos em que o grupo se desenvolveu sob a sua

orientação. Nos estudos sobre o quarto narrador e suas complexificações,

procura entender as vozes narrativas do sistema midiático comunicacional.Fabiana Piccinin, também professora orientadora do grupo, integra

o livro com um estudo sobre “Narrativas audiovisuais no contemporâneo: pensando as estratégias narrativas das séries televisivas”. Nele, alinhando-se ao pensamento de Motta, aborda as novas mídias e audiências, considerando-as mais pelo viés da significação simbólica da diegese e menos pelos caminhos da estrutura. Para tanto, aponta a necessidade de atentar para os contextos sociais, técnicos e discursivos em que elas aparecem.

Gabriel Steindorff propõe o artigo intitulado: “O percurso do

método: a criação de uma metodologia de pesquisa” em que descreve o

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

seu percurso de elaboração da pesquisa que resultou na sua dissertação

de mestrado Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of

Cards , apresentada ao PPGL-UNISC.

José Arlei Rodrigues Cardoso, no texto intitulado “A narrativa dos

quadrinhos e as fronteiras com o jornalismo”, aborda as histórias em

quadrinhos, um tema bastante discutido e cultuado na atualidade. O

autor traz reflexões importantes sobre diferentes perspectivas a partir das

quais são estudadas e produzidas. Traça uma história do desenvolvimento

dessa atividade e caracteriza-a como uma arte híbrida em que ocorre uma

integração entre imagem e texto. Situa essas narrativas num contexto de

fronteiras entre literatura e jornalismo.

Joseylza Lima Silva, com o texto “Uma perspectiva hermenêutica

para os estudos de literatura: abordagem do texto Os sofrimentos do

jovem Werther, de Goethe” apresenta um estudo interpretativo da famosa

obra de Goethe, no intuito de mostrar que uma escuta atenta das narrativas

pode ser fundamental para desenvolver uma nova atitude de professores

e alunos diante dos textos literários.

Kassia Nobre, apresenta o texto “O processo de criação do

jornalista narrador literário: um olhar para Eliane Brum”, um estudo

sobre a obra A vida que ninguém vê, da jornalista e escritora Eliane

Brum, mostrando que a autora se comporta como um narrador literário,

em textos onde transgride o manual de redação jornalística e vale-se de

recursos tipicamente literários.

Pedro Piccoli Garcia, em “Estratégias Narrativas em Entrevistas

Pingue-Pongue: uma Análise de As 30 melhores entrevistas de Playboy”,

discute a utilização de recursos textuais presentes em entrevistas

jornalísticas do formato pingue-pongue. Sua atenção considera o

padrão de entrevistas praticado por revistas em que são empregados

artifícios textuais na composição do relato da conversa face a face. O

autor analisa esses artifícios enquanto estratégias discursivas adotadas

com propósitos específicos.

Ricardo Luís Düren apresenta um estudo intitulado “Real ao dobro:

a potencialização da legitimidade jornalística pelo uso de estratégias

literárias”. Nele desenvolve a hipótese de que determinadas narrativas

jornalísticas empregam artifícios literários, como forma de garantir ou

evidenciar o efeito de real e “para reforçar sua legitimidade pré-existente”.

Considera que esse fato constitui um diálogo onde os sistemas jornalístico

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

e literário se interinfluenciam. Por fim, realça a presença de descrições

geradoras de efeito de real na obra 1808.

Rodrigo Bartz, em “Perspectivas acerca da biografia jornalística”,

trata da interferência de recursos literários no jornalismo, mais

especificamente, nas biografias, assinalando a perspectiva ficcional

nelas existente.

Trata-se, enfim, de uma trajetória de pesquisa que se consolida com

a publicação de um livro, e pode representar um significativo incentivo

aos estudantes das áreas envolvidas, além de ser um exemplo que deu

certo em termos de atividades interdisciplinares.

Eunice Terezinha Piazza Gai

Professora do Departamento e do Mestrado em Letras da UNISC.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Prefácio

Um percurso de pesquisa em movimento

É tarefa relativamente fácil reconstruir um caminho de pesquisa,

em especial se ele for vigoroso do ponto de vista acadêmico, ou seja, for

marcado, desde sua gênese, pela produção de livros, artigos, participa-

ção em eventos etc.

Neste caso, uma competente revisão bibliográfica conduz o herme-

neuta ao percurso realizado, tornando possível, como sugerido acima, a

reconstrução do caminho percorrido.

O mesmo não pode ser dito, infelizmente, da origem primeira da

pesquisa; aquele que, no diálogo com Merleau-Ponty, nos conduz à es-

sência do vivido, tornando tudo o que se disse daquele momento elucu-

bração teórica, construção reflexiva, algo que se diz sobre o objeto sem

nos referirmos necessariamente a ele.

Quanto o assunto é localizar, na aurora do tempo, quando tudo se

iniciou, o momento primeiro, aí a situação se complica um pouco mais, à

medida que, na perspectiva fenomenológica, a visada exige pelo menos

uma presença em relação, um ser-no mundo.

Não vamos repetir o que já está narrado na apresentação de Eu-

nice Piazza Gai e no capítulo 3 deste livro, mas salientar que foi de um

encontro realizado à sombra dos ligustros existentes entre os prédios 14

e 15 do Departamento de Comunicação Social que tudo se iniciou, que a

pesquisa deu seus primeiros passos.

Reunião de trabalho, claro, com propósito e metas definidas, mas

marcada sobretudo pela vontade de acontecer, pela propositividade, pelo

querer ir adiante.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Se nasceu vigorosa, a julgar pela produção; e, por que não, longe-

vidade, haja vista os seis anos transcorridos, é porque desde sua origem

a pesquisa se estabeleceu sob o signo da interdisciplinariedade, pois foi

acolhida pelo PPG de Letras da Unisc, onde encontrou, pelo viés dos estu-

dos em narrativa, condições de se aprimorar e ganhar amplitude.

E é justamente esta a essência do Narrativas do ver, do ouvir e

do pensar, que agora chega até você em formato digital: um livro cuja

pretensão é marcar, pela produção dos que dele participam, mais que um

estágio de pesquisa, ou uma espécie de marco evolutivo de onde chega-

mos, sempretensões totalizantes.

E é em razão disso que aqui se encontram textos nossos enquanto

pesquisadores, como também de alu¬nos e ex alunos que se tornaram

mestres e doutores, tendo por preocu¬pação comum a narrativa e as re-

lações estabelecidas com a mídia e com a literatura.

O que se quer, aqui, é ilustrar, quem sabe, no diálogo com Bergson,

a percepção que o conhecimento que se tem das coisas do mundo, sem-

pre muda, sempre se transforma, e que na gênese do movimento reside

nossa razão primeira e última de ser.

Que assim o seja, então.

Uma boa leitura a todos.

Demétrio de Azeredo Soster

Fabiana Piccinin

Santa Cruz do Sul, julho de 2016. Inverno

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Estratégias narrativas no contemporâneo: o caso das séries televisivas

Fabiana Piccinin1

1 Mídias, novas gramáticas e novas audiências

A investigação acerca da natureza e comportamento das narrativas

midiáticas, que marca o trabalho empreendido, em termos da gradua-

ção no âmbito da Comunicação Social e da Pós-Graduação no Programa

de Letras, tem se constituído num caminho de pesquisa dinamicamente

organizado em duplo circuito. Tanto oportunamente contribui o conheci-

mento clássico da teoria da literatura e da narrativa ao mundo das ma-

nifestações midiáticas, quanto e da mesma maneira, estas reconfiguram

as pesquisas da narrativa literária, inserindo-se no espectro de pesquisas

e teorizações por conta de suas performances, práticas e usos culturais.

Neste sentido, e de forma harmônica à própria vigência de valores as-

sociados ao chamado “giro linguístico” observado a partir do final do

século XX (Motta: 2013), a narrativa passa a ser observada menos por

sua face estrutural e mais pela significação simbólica da diegese numa

visada mais ampla em direção às humanidades em geral. Passa, assim, a

ser pensada justamente na relação com outros campos de conhecimento

e o que daí pode derivar enquanto possibilidade artística, antropológica,

filosófica, psicológica e midiática.

Em razão disso, e conforme reflexões já travadas anteriormente (PIC-

1 Professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação Social do Programa de Pós Graduação em Letras (UNISC). Integrante do GENALIM (CNPQ) Grupo de Estudos sobre Nar-rativas Literárias e Comunicacionais, do GIP Tele, Grupo Interinstitucional de Pesquisa sobre Telejornalismo e da RENAMI (SBPJor) Rede Nacional de Pesquisa sobre Narrativas Midiáticas. [email protected]

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

CININ, 2012; PICCININ, 2013), o comportamento e as configurações gra-

maticais das narrativas contemporâneas têm sido compreendidas a partir

da relação estabelecida destas com seu contexto de época, considerando

sua natureza, anatomia, gramáticas e performances além das tecnologias

e suportes por meio dos quais se dão a conhecer. Ou seja, estudar as nar-

rativas pressupõe considerar o contexto sócio-técnico-discursivo em que

estão inseridas, em alinhamento com a perspectiva de Scholes e Kellog

(1977, p. 47), de que “toda época e cultura têm suas formas narrativas”. No

caso da narrativa contemporânea, é requerer, assim, que se leve em conta

as injunções decorrentes do período compreendido como o pós-moderno

e seus padrões sociais, tecnológicos e discursivos correspondentes.

Do ponto de vista da organização societária e dos discursos que a

estruturam, trata-se de um momento em que as epistemologias vigoro-

sas da Modernidade e suas crenças na capacidade de explicar a realida-

de objetivamente e dar a ela respostas totalizantes, são gradativamente

substituídas pela relativização das grandes verdades. Ao cogitar as pos-

sibilidades das explicações científicas, o contemporâneo vai revelando a

emergência de um cansaço existencial, proveniente dos efeitos relativos

à racionalização exagerada (RUIZ, 2003). Assim, no lugar da linearidade

do discurso fundamentado na racionalidade moderna, emerge a multipli-

cidade de argumentos ou jogos de linguagem (GRANDIM, 2015), que por

sua vez levam à expressão de narrativas paralelas e multiformes como

diz Murray:

(...) as histórias impressas e nos filmes estão pressionando os formatos lineares do passado, não por mera diversão, mas por esforço para exprimir uma percepção que caracteriza o século XX, ou seja, a vida enquanto composição de possibilidades para-lelas. A narrativa multiforme procura dar uma experiência simul-tânea a essas possibilidades, permitindo-nos ter em mente, ao mesmo tempo, múltiplas e contraditórias alternativas. (MURRAY, 2003, p. 48-49).

A superação da estética racionalista e consequente relativização

das epistemologias modernas são bastante bem traduzidas pela metá-

fora da liquidez apresentada por Bauman (2001) e por Santaella (2007).

Líquidas são as ideias e os conceitos que sustentam o contemporâneo,

porque mudam continuamente por sua natureza fluida e porque assu-

mem, em decorrência disso, a forma da estrutura que lhes dão suporte.

E que por extensão se manifestam em novos formatos das narrativas,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

oportunizando a reciclagem de suas intrigas ficcionais, recriadas para

circular por diferentes plataformas midiáticas reconhecidas na hibridação

de seus desenhos.

Se antes tendiam a gêneros e formatos definidos e delimitados, ago-

ra as narrativas caminham nessa inevitável interlocução, estruturando-se

na “mistura e combinação” de uma pela outra. Ou como diz Figueiredo

(2010) (...) na contramão das categorizações estabelecidas com a moder-

nidade, cada vez mais o texto vai deixando de ser considerado uma obra

fechada em si, para ser visto a partir de narrativas e de suas conexões no

interior de uma ampla rede formada por inúmeros outros textos.

Também Murray (2003) diz que a experiência de viver no século XX

implica a possibilidade de se poder ser diferentes pessoas em diferentes

mundos possíveis que se alternam em histórias que se entrecruzam in-

finitamente no mundo real. E mais do que isso, que estas possibilidades

demandam um novo lugar à audiência, na medida em que esta passa a

desejar a transposição e o reagrupamento de elementos das histórias,

dada a necessária habilidade de ter em mente múltiplas alternativas de

um mesmo universo ficcional. Como diz a autora, nas histórias multifor-

mes, em conformidade com os movimentos da experiência contemporâ-

nea que se exprimem nas possibilidades simultâneas de narrativas, as

influencias ocorrem como que por “ (...) um reflexo da física pós-einste-

niana, ou de uma sociedade secular assombrada pela imprevisibilidade

da vida, ou de uma nova sofisticação no modo de conceber a narração

(...) (2003, p.49)”.

Assumindo, portanto, a inerente relação entre a conjunção sócio-

técnica-discursiva contemporânea e a anatomia dos discursos, observa-se

que as narrativas midiáticas mudam suas proposições e orientações em

função de responder às novas circunscrições do contexto que se apresen-

ta. Ao se reconhecer frente às inovações tecnológicas às consequentes

injunções sociais que significam, as narrativas oferecem novos discursos

que se orientam, sobretudo, por conquistar as audiências. Ou seja, se

a experiência pós-moderna é o tempo das relativizações das verdades

e categorizações, em termos midiáticos a erosão dos limites vigorosos

modernos também incide, tanto na configuração das tramas narrativas na

medida em que apresentam esta multiplicidade de formatos e ofertas às

audiências, quanto também nas questões afeitas ao seu conteúdo.

Por efeito, em termos de temática, as “recicladas intrigas” das narra-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

tivas midiáticas também resultam contextualmente da influência estética

que diz respeito à substituição das grandes metanarrativas que marca-

ram a era moderna, como bem trata Lyotard (2004), pelas microhistórias.

Estas passam a ganhar força neste momento com suas valorações dos

eventos cotidianos e ordinários (FIGUEIREDO, 2010), porque contam com

a força de representação e proximidade ao “real verdadeiro”. E por isso,

estão mais preocupadas agora em tratar da vida em seus minimalismos e

cotidianidades para, por meio destes, alterar também sua relação com o

público numa tentativa de convencimento sobre as realidades que apre-

senta. É dizer, portanto, que diante de tanta e diversa oferta de narrativas

– neste caso as audiovisuais –, ganha força aquela que se apresenta como

a “verdadeira” porque espontânea e que, por espontânea, mais capaz de

se aproximar e convocar esta audiência insistentemente disputada.

Esse esforço da mídia em buscar a aproximação com seu público

por meio da oferta do “real mais real do que o real” vem suceder e tentar

superar a crise da representação, quando a estética realista, até então

sob a crença na objetividade moderna (FIGUEIREDO, 2010), passa a as-

sumir a impossibilidade do relato objetivo. As narrativas contemporâ-

neas, por conseguinte, tomam por norte, cada vez mais, a proximidade

dos relatos e destes com suas audiências, porque estão empenhadas

em trazer o real “autêntico”. A autenticidade, nestes casos, se dá pelos

investimentos na humanização e na busca de uma equiparação entre o

narrador e seu narratário. Ou como diz Figueiredo (2010, p. 3), “(...) a

credibilidade do relato não é conferida pela objetividade ou transparên-

cia do discurso do narrador-intelectual, mas, ao contrário, pela ênfase

no lugar de onde se fala, procurando-se também, deixar claros os recur-

sos utilizados no registro (...).”

Também Zizek (2003) entende que o investimento midiático na “es-

tética do real” é uma resposta ao sentido de virtualização e porosidade

contemporâneos que resultam na necessidade dos indivíduos “por expe-

riências reais”. As mídias, portanto, que lidam com as ficções tendem a

fazê-lo alternando a trama base da ficcionalidade com representações de

eventos verdadeiros. É por sua capacidade de referir e retratar este real

que, na concepção de Jost (2012) as narrativas ganham tanta adesão e

credibilidade dos públicos. A realidade Virtual, diz o autor, generaliza

esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: ofe-

rece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e re-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

sistente do Real – assim como o café descafeinado tem aroma e gosto do

café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida

como a realidade sem o ser. Mas o que acontece no final desse processo

de virtualização é que começamos a sentir a própria “realidade real” como

entidade virtual (ZIZEK, 2003, p.25).

Assim, as promessas de transparência e de autenticidade na trama

estão relacionadas com o sentido de redução dos artifícios e das me-

diações destas diegeses e, consequentemente, com uma ligação muito

estreita entre a narrativa e o mundo empírico. Um real apresentado, por

assim dizer, sem mediações, como sintoma da necessária desconstituição

dos artifícios ou de tudo que possa sugerir a artificialidade deste narrar.

(...) a vertente de realismo que se tornou predominante, hoje, caracteriza-se por valorizar o envolvimento do narrador com o fato narrado, isto é, a falta de distanciamento e a intimidade da abordagem, que são tomadas como prova de sinceridade – o que permitiria ao leitor ou espectador aproximar-se das verda-des particulares, parciais. Ou seja, a ênfase não recai num realis-mo de representação, mas num realismo de base testemunhal, apoiado na narração que se assume como discurso. (FIGUEIRE-DO, 2010, p. 75).

As provas de sinceridade e transparência, por sua vez, incidem nas

narrativas audiovisuais contemporâneas configurando novos formatos e

desenhos e gerando demandas na relação com os públicos ao apontar

para as necessidades de aproximação dos seus dizeres em suas temáticas

e formatos. Assim, líquidas (BAUMAN, 2001), em um cenário de limites,

classificações e gêneros cada vez mais difusos, as mídias audiovisuais

vão adotando novas formas e estruturas narrativas tendo por princípio

gramáticas autenticadoras dos discursos, marcadas pela redução dos ar-

tifícios, como estratégia de sedução às suas audiências. Auxiliadas pelas

possibilidades tecnológicas, as narrativas vão fazendo mesclar os papéis

de quem narra e escuta, resultando no movimento que hoje se compreen-

de como o de “redução da distância entre o palco e a plateia”.

A confiabilidade ao ato de enunciação, portanto, será dada confor-

me a estratégia da emissão, por sua promessa de gradativa diluição das

fronteiras entre seu dizer e suas audiências, convencendo-as deste lugar

de mais cumplicidade e, eventualmente, protagonismo. Diz Murray da

tendência de convocação do público:

Em cafés-teatros, membros da plateia são escalados para fazer

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

“pontas” como atores, em encenações coletivas, tais como um ca-samento cômico, um julgamento num tribunal ou um velório. (...). Em todas essas reuniões, a fascinação consiste em atrair os espec-tadores para o palco, para o reino da ilusão. (MURRAY, 2003, p. 54).

Nos acordos que dão origem às novas gramáticas contratuais, entre

as emissões midiáticas e suas audiências, a ideia da transparência e da

“verdade” dos conteúdos ofertas passa a estar obrigatoriamente vincula-

dos ao sentido de proximidade entre ambas as instâncias. O esforço das

mídias se dá, portanto, na direção da dissolução da estrutura dicotômica

moderna e vigente até então entre emissor e receptor, de maneira que a

narrativa passa a ser estruturada tendo por base sua capacidade justa-

mente de harmonizar estes agentes, agora em novos lugares e papéis,

com auxílio das novas possibilidades tecnológicas.

2 Narrativas audiovisuais na hipertelevisão

Dentro do universo midiático, a análise dos novos contratos narra-

tivos audiovisuais assume conotação fundamental, dado o fato de que a

televisão, por meio de suas produções, estabeleceu-se como “o epicentro

do audiovisual”. (OROZCO, 2014). Ou como diz Carlón (2014), a investiga-

ção é sempre necessária e pertinente uma vez que, a TV “mudou a nossa

maneira de conceber e experimentar o real” ao possibilitar que, do real,

fosse percebida a representação e não o representado. Ou ainda, para Eco

(1984), tratar da importância dos estudos do audiovisual em termos televi-

sivos, aponta para a carga e a ênfase verossímil que a Tv tem e com a qual

opera e pretende seduzir suas audiências tendo a pretensão de ofertar o

“mundo como ele é”. Um efeito de sentido caro a este momento orientado

pela estética do real e da necessidade de suas comprovações.

Neste sentido, diz o autor que as transformações sócio-técnico-dis-

cursivas contemporâneas geram o que denomina a nova idade da Tv

(ECO, 1984) que, em sintonia com o momento midiático atual, transfor-

ma as gramáticas de oferta e consumo, suas interações e incidências em

termos de tramas narrativas. Na distinção feita por Eco (1984), há dois

modelos de televisão, nomeadas como paleo e da neo Tv. Ambos mode-

los coexistem, embora cada um a seu modo, instituindo relações especí-

ficas com seus públicos.

A paleo Tv estrutura-se pela lógica da grade de programação

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18

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

axiomática com estrutura fixa tanto horizontal – com dia certo –

quanto vertical – com horário também determinado. O que determina

certo tipo de narrativa e de consumo específico em acordo com os

contratos gramaticais estabelecidos com estas audiências. Na paleo

Tv, a conquista do público está orientada pela ideia de fisgá-lo para

a programação em fluxo contínuo de modo que este faça sua adesão

à agenda ofertada pela televisão, internalizando horários e dias de-

terminados, capazes de serem incorporados às suas programações. A

força da convocação está, portanto, junto com o conteúdo ofertado,

no próprio dia e horário de uma programação mais vista no conjunto

do que isoladamente.

Já a neo Tv2 opera por um modelo de oferta do produto audiovi-

sual em rede e a partir da rede, em que o consumo pode se dar em hora,

dia e em quantas vezes as audiências determinarem, conforme suas

demandas. Neste modelo, oferta-se uma autonomia maior aos usuários

que podem decidir pela construção de agendas próprias e que, em fun-

ção disso, podem ser seduzidos pela força da trama narrativa. Só esta

os convencerá a de fato desfrutar o produto, posto que está disponível

sob demanda para que usufrua quando e quanto lhe interessar. A

emissão, neste caso, tem apenas e tão somente, com sua capacidade

de atrair e manter este indivíduo assistindo a um determinado produto

audiovisual, sem poder contar com o “modormo” da paleo Tv que além

de determinar dia e hora, chama durante a programação em fluxo, para

as próximas atrações.

Para Scolari (2014), a neo Tv de Eco é a hipertelevisão, entendida

como a que passa dos modelos (CARLÓN, 2014) de Tv broadcasting e

narrowcasting para o da Tv nestcasting que passam a relativizar os luga-

res do que até então entendeu-se rigidamente como os da emissão e o

da recepção dentro do circuito midiático televisivo. Também Souza Filho

(2015) diz que se experencia neste momento, a terceira idade desta mídia

2 Os números mostram que já há mais consumo dos produtos audiovisuais neste modelo, sob demanda, do que na Tv broadcasting. Os chamados portais de conteúdo e entre eles o Netflix (2015), são objeto de consumo no Brasil, segundo pesquisa, de 82% dos entrevista-dos que disseram assistir vídeos sob demanda, contra 73% que afirmaram assistir TV aberta. Também o uso desses serviços sob demanda é consideravelmente alto. Os usuários passam uma média de 13,6 horas por semana assistindo aos chamados vídeos digitais, cerca de 8,1 horas a mais do que passam vendo TV aberta no mesmo período. E dentro deste espectro de oferta, as séries de TV são os conteúdos mais assistidos nos serviços de vídeo digital no Brasil, ao lado do consumo de filmes e música.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

com o netcast3. Neste modelo, as operações dos conteúdos audiovisuais

que se dão a partir da internet e por meio de possibilidades interativas

mais sofisticadas, disponibilizam conteúdos em suportes físicos diver-

sos, como as Tvs abertas e por assinatura e /ou também na rede, oportu-

nizando nesta flexibilização dos papéis de emissor e receptor:

(...) o nascimento de espécies bastardas, ou seja, meios híbri-dos que adotam ou simulam gramáticas e narrativas de outros meios. Essas novas produções constroem um espectador mo-delo que exige do espectador real as competências cognitivas e interpretativas que caracterizam os nativos digitais. (SOUZA FILHO, 2015, p. 91).

Também Jenkins (2008) alerta para a reconfiguração da Tv, inserida

no contexto das mudanças do sistema midiático, próprias do momento

contemporâneo. O autor observa a diluição do poder e centralidade da

mídia em relação aos conteúdos ali publicizados a partir dos novos supor-

tes e do novo lugar concedido às audiências, indicando que estes não vão

significar o fim das mídias tradicionais, mas a reafirmação de um novo

modelo estabelecido em função das possibilidades ofertadas pela conver-

gência que depende fortemente da participação ativa dos consumidores.

Essa condição, resultante das histórias construídas em diferentes meios

de comunicação nomeada por Jenkins como transmidia storytelling, vai

constituir um lócus privilegiado em que o mundo da mídia se encontra

com o espectador, inaugurando novos protocolos relacionados à ques-

tão da interpretação. Para Jenkins (2008. p. 27), “(...) a convergência re-

presenta uma transformação cultural, à medida que consumidores são

incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a

conteúdos midiáticos dispersos”.

É importante lembrar que, como bem diz Scolari (2014) a era

da hipertelevisão fala para uma geração criada em ambientes digi-

tais interativos, que desenvolveu habilidades perceptivas e cognitivas

específicas. E, portanto, os programas “hospedados” em plataformas

de conteúdo operados pela lógica de um consumo sob demanda que

3 Segundo Souza Filho (2015, p. 91) as três etapas da Tv estão associadas às suas formas de operação e consumo. A primeira, característica do momento do surgimento da Tv, o Broad-casting, é o modelo segundo ele, caracterizado pela transmissão unidirecional do conteúdo para um público amplo e indefinido. A segunda seria o narrowcasting, onde a Tv já está marcada pela multiplicação e segmentação do conteúdo oportunizando mais flexibilidade para seus públicos. E a terceira é a Tv da era netcast.

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podem ser acessados graças à rede, são oferecidos, além da televi-

são convencional, por meio dos chamados dispositivos móveis como

computador, ipad e notebooks além do celular, exigindo que as narra-

tivas audiovisuais sofistiquem e aprimorem seus formatos, conteúdos

e ofertas interativas. Está se tratando de um telespectador modelo que

coloca em jogo todas as suas competências narrativas, perceptivas e

cognitivas para interpretar um produto textual cada vez mais atomiza-

do, multitela, e transmídia, carregado de personagens que conduzem

uma complexa trama de programas narrativos (SCOLARI, 2014, p. 49).

O que resulta numa relação diferenciada com seu público, obrigando

as produções audiovisuais a subverterem os padrões e operações nar-

rativas canônicas praticadas até então.

Também Lacalle (2010) contribui para esta ideia de um novo re-

ceptor fruto das interações oportunizadas pela aproximação entre a te-

levisão e a internet ao dizer que os internautas acabam por se constituir

em comunidades interpretativas que se caracterizam pela apropriação

dos textos televisivos substituindo relações tradicionais de identificação

e recepção pela produção de novos significados, posto que a Internet ex-

pande os limites de interpretação do texto televisivo até extremos impen-

sáveis. A Internet é, portanto, uma grande aliada da televisão, ao invés

de competir com a pequena tela (LACALLE, 2010), colocando emissores e

espectadores em condições de operarem discussões abertas sobre episó-

dios ou notícias dos atores.

O modelo televisivo netcast vai, assim, por meio das novas gramáti-

cas narrativas, articuladas inclusive por novas possibilidades interativas,

demandando e gerando performances também originais por conta de ins-

tituir neste processo um consumo mais individualizado e ativo, como diz

Machado e Veléz (2014):

(...) o surgimento no cenário audiovisual de novos protagonistas, os interatores, está forçando mudanças cada vez mais radicais em direção a modelos de conteúdo que possam ser buscados a qual-quer momento, em qualquer lugar, fruídos de maneira como cada um quiser e abertos à intervenção ativa dos participantes. Este novo tipo de consumidor/produtor está exigindo experiências mi-diáticas de uma mobilidade mais fluída, formas de economia mais individualizadas, que permitam a cada um compor suas próprias grades de programas e decidir de maneira particular de como vai interagir com elas. (MACHADO, VELÉZ, 2014, p. 55 - 56).

É dizer, portanto, que a emergência de formas assíncronas e perso-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

nalizadas de consumo dos conteúdos televisivos, conforme pontua Fechi-

ni, (2014), impõe desafios a esta mídia. É preciso reinventar produtos e

serviços, tanto em termos da indústria quanto dos conteúdos ofertados

que deem conta do aproveitamento das novas possibilidades tecnológi-

cas na direção de aproximar e oportunizar mais protagonismo ao mundo

da recepção. Telleria (2015) também indica como a oferta de produtos

audiovisuais em fluxo e sob demanda - separando, portanto, conteúdos

dos suportes agora vinculados “à nuvem”, vão configurando novas gra-

máticas do mundo da emissão ao se relacionar com o mundo da recep-

ção, inaugurando novos gêneros e formatos, e fazendo multiplicar os for-

matos narrativos, muitas vezes, advindos de uma única história original:

The dissolution of the link between content and support, which had been the basis for the definition of genres and formats, reaches its peak with the expression of the distribuition models based on storage services and cloud sync. The mobile environ-ment is, in essence, a multi-device one, whose core lies on the access and consumption mode conception to the content and services. (TELLERIA, 2015, p. 206).

As interações oportunizadas às audiências vão incidir, portanto,

também nas tramas narrativas como nos romances vitorianos ou nos

seriados de televisão contemporâneos que investem no envolvimento

com o público no desenrolar da história, observando esse enredo que,

como diz Murray (2003, p.51), “incentiva a especulação sobre quais

possibilidades serão desenvolvidas”. São estabelecidas gramáticas nar-

rativas associadas a estratégias e promessas de proximidade e cum-

plicidade com o receptor, além de oferecer a ele a “explicitude” de pro-

cessos produtivos e de bastidores para continuamente convencê-lo das

transparências desse dizer. Ou no dizer de Calabrese (1987), a “verifica-

bilidade” dos eventos é característica da idade neobarroca marcada, por

sua vez, por este tempo em que as novas tecnologias vão estabelecen-

do uma relação direta com a insuficiência na confiança do real ofertado.

Também Lipovetsky e Serroy (2009, p.133) lembram, referindo-se ao

cinema hipermoderno, que as narrativas audiovisuais contemporâneas,

orientadas pela autorreferência, promovem por meio das novas intera-

ções, a redução das distâncias entre palco e plateia, pressupondo, por-

tanto “(...) agora um espectador “cultivado” pela mídia, que não é bobo,

com quem ele instaura um efeito de cumplicidade, fundado sobre uma

cultura de imagens e arquétipos compartilhados”.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

3 Gramáticas de portais de conteúdo e séries televisivas

O movimento que busca oportunizar um lugar de maior protago-

nismo ao espectador por parte do mundo midiático – neste caso espe-

cificamente da televisão na sua relação com as possibilidades da rede

– pode ser bem evidenciado por meio das séries4 televisivas. Ao acom-

panhar as emergências do contexto sócio-técnico-discursivo, as produ-

ções televisivas buscam ofertar às audiências experiências efetivas de

identificação e proximidade por meio da aposta do que Mitell (2012)

chama de complexificação de suas narrativas. Esta marcada, entre ou-

tros, pela fruição mais rica e multifacetada que proporciona, em sinto-

nia com as demandas do espectador contemporâneo que, segundo o

autor, tende a aderir a programas complexos de uma forma muito mais

apaixonada e comprometida do que à maior parte da programação da

televisão convencional.

Para Mitell (2012), a complexificação das narrativas das séries:

(...) é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração em série – não é necessariamente uma fusão comple-ta dos formatos episódicos e seriados, mas um equilíbrio volá-til. Recusando a necessidade de fechamento da trama em cada episódio, que caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por diversos gêneros. Somado a isso, a complexidade narrativa desvincula o formato seriado das concepções gené-ricas identificadas nas novelas – muitos programas complexos (embora certamente não sejam todos) contam histórias de ma-neira seriada ao mesmo tempo em que rejeitam ou desconside-ram o estilo melodramático. (MITTEL, 2012, p. 37).

A complexificação da narrativa assim, ao juntar as possibilidades

da narração episódica – que resolve a trama na unidade narrativa – e o

serial – que estende o desenrolar da intriga ao longo da temporada - vem

resultando num modelo híbrido que, jogando com mais elementos, exige

também mais descobertas e especulações das audiências, oportunizando

4 É importante registrar que, no âmbito da pesquisa, esta se inicia em termos da observância das narrativas audiovisuais investigando as questões associadas ao jornalismo de televisão. O telejornalismo tem sido objeto de pesquisa nos projetos desenvolvidos junto ao GENALIM, Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Letras e onde se tem, no âmbito da pesquisa sobre narrativas e seus contex-tos sócio-técnico-discursivo buscado compreender como as ofertas de “real” se apresentam nesses programas. Já esse projeto que se dedica à pesquisa das séries chamado “Narrativas Audiovisuais na Hipertelevisão” é o primeiro que se volta ao estudo de um produto audiovi-sual ficcional.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

novas soluções e desdobramentos por meio das novas possibilidades

interpretativas que buscam engajar o público:

O tipo de fruição mais distinto nesses programas é admirar o desafio narrativo apresentado a partir da violação das regras de narração de uma maneira espetacular. Através da estética opera-cional essas narrativas complexas convidam os espectadores a se engajarem no programa assumindo o mesmo patamar de ana-listas formais, dissecando as técnicas utilizadas para transmitir demonstrações espetaculares da arte do storytelling; este mo-delo de acompanhamento formalmente consciente é altamente encorajado já que sua fruição está associada ao nível de cons-ciência que transcende o foco tradicional na ação diegética típica de muitos espectadores. (MITELL, 2012, p. 44).

Esquenazi (2010, p. 32-35) também lembra que as séries televisi-

vas nascem, enquanto gênero, por sua natureza narrativa estruturada a

partir de episódios. E que as histórias ali contadas tanto podem encerrar

a completude da diegese principal no episódio ou ao longo de uma tem-

porada (serial). Mas que a essência que define uma série está associada à

implicação afetiva da narrativa por meio de seus personagens com seus

públicos, associando-a especialmente à plausibilidade. Ou seja, a auto-

ra recupera os primeiros estudos sobre séries feitos por Ien Ang para

explicar seu conceito de “realismo emocional” e reafirmar, assim, que a

cumplicidade estabelecida entre a narrativa serial e os espectadores não

advem do fato de serem supostamente “engolidos pela ficção”, mas pela

possibilidade de instaurar-se entre a narrativa e o público um balanço

constante de identificação e distanciamento.

A implicação afetiva dos telespectadores é forte. Ainda que seja frequentemente condensada pela relação deles com uma perso-nagem “preferida”, nunca se resume a isso: a identificação com uma personagem nada explica. É todo universo ficcional que está na origem da adesão. A afeição nunca desmentida pelos vi-lões das diferentes séries não se explica de outra maneira. A ca-pacidade de estes universos se repercutirem na vida social dos públicos pode parecer impressionante: mas, embora “privada”, a vida televisiva não está afastada da corrente pública, profissio-nal e social dos públicos. (ESQUENAZI, 2010, p. 35).

Observa-se assim que, ao percorrer este caminho da complexifi-

cação narrativa, as séries televisivas tornaram-se contemporaneamen-

te gêneros de grande sucesso justamente porque vêm intensificando,

e de forma muito hábil, em suas tramas narrativas as “experiências

reais” e por vezes auto e metarreferentes como decorrência de um

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

esforço em tornar a audiência cúmplice da narrativa. Ou como diz Jost

(2012), as séries televisivas são fenômenos de consumo, especialmen-

te na Tv sob demanda, porque evocam, pela ficção, credibilidade por

conta de que oferecem capacidade vinculatória com os sujeitos ao in-

vestirem em referências “reais”, já socializadas em narrativas midiáti-

cas outras, com personagens cotidianos inseridos no mundo dos even-

tos “verdadeiros”. Oportunizando o processo ativo do espectador que

passa especular a respeito da diegese e de seus desdobramentos nos

diferentes espaços oportunizados aos integrantes das comunidades

interpretativas das séries.

(...) a primeira via de acesso à ficção é a atualidade, que os defen-sores do realismo identificam como realidade em geral. A pala-vra parece clara, quando, com efeito, ela abrange duas maneiras bem diferentes de construir nosso presente e nossa relação com a história. A atualidade tem, portanto, duas faces: a dispersão e a persistência. (JOST, 2012. p. 28).

As alusões aos eventos cotidianos são, portanto, metarreferências

da própria mídia e dizem respeito, segundo Jost (2012), a uma das ca-

racterísticas destas narrativas nomeada como dispersão. E que tem como

essência a “ (...) aparição e a desaparição de todos estes acontecimentos,

pequenos ou grandes, que atravessam a vida das pessoas e a das mídias

no cotidiano. São, assim as verdades do mundo (...) suscetíveis de provo-

car essa despressurização da ficção e sua absorção da realidade” (JOST,

2012, p. 28).

Ao mesmo tempo, esta característica marcante das séries televi-

sivas que responde em parte pela grande sedução que exerce junto às

audiências está consorciada com outra marca, segundo o autor, que é

a persistência. Como a dispersão oferece risco na medida em que, ao

atualizar, pode também desatualizar as tramas, os roteiristas empregam

a persistência também como concepção de atualidade, que permite um

acesso bem mais universal às suas séries. “É tudo aquilo que persiste,

aquilo que os telespectadores, sejam eles americanos ou não, sentem

como contemporâneo” (JOST, 2012, p.29).

Neste sentido, para o autor estas são as grandes contribuições

das séries que dizem respeito ao seu esforço por compor um retrato

realista do contemporâneo por estarem relacionadas aos saberes por

elas ofertados. Para Jost (2012), as séries investem em três domínios

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

do saber que são 1) o saber enciclopédico concernente ao patrimônio

científico; 2) o saber e o fazer e as competências profissionais relacio-

nados ao modus operandi da categoria profissional ali mostrada e 3) o

saber-ser e o que chama de gestão de comportamento. Para que os in-

divíduos sejam seduzidos por este saber com o qual a série pode pro-

duzir vinculações, estes devem estar articulados com as personagens

que ora narram sobre a temática da vida privada, da vida profissional

ou da vida em sociedade5.

Jost (2012) vai insistir, portanto, que as séries conseguem chegar

a este público, notadamente dono de um novo perfil de comportamen-

to, por conta de transformar o visto em vivido e a desvelar a interiori-

dade humana a partir da interioridade das coisas. Trata-se, assim, de

apreender a realidade pela consciência de um personagem ou mesmo

ver através de seus olhos. Diz o autor que o acesso à verdade depende

da capacidade do herói de compreender o outro, assim poder entrar nos

meandros de sua alma. Sofrer com a personagem, num processo iden-

tificatório, pode ser a melhor maneira de encontrar a solução para um

problema (JOST, 2012).

Em termos estruturais, algumas emergências nas séries podem

ajudar a interpretar o quadro atual em que se inserem narrativa-

mente, como por exemplo, a recorrência a temáticas e personagens

complexos e humanizados (FORSTER, 1969). As personagens redon-

das tem a força de serem baseadas nos “fatos reais”, e por isso ca-

pazes de refletir verossímeis vicissitudes da condição humana, com

todos os revezes que isto pode significar. O protagonista abandona

a personificação estrita do bem ou do mal, portanto não é mais o

5 Séries como The newsroom e House são bons exemplos disso. Em The newsroom, os diferentes saberes a que se refere Jost (2012) são apresentados na narrativa que mostra o cotidiano de uma redação, explicitando por meio dos bastidores, os desafios do tratamento das notícias x as questões culturais e pessoais da equipe. O telejornal é exibido por uma televisão a cabo denominada USB e a história é conduzida por meio do personagem principal, Will McCallister (Jeff Daniels), que vive um coâncora de personalidade forte, que, ao voltar de férias, descobre terem ocorrido várias mudan-ças na produção do programa. House da mesma maneira mostra os dilemas do mun-do dos profissionais da medicina, evidenciando os como são feitos os diagnósticos, bem como os consequentes tratamentos das doenças e suas implicações humanas. Neste caso, a narrativa é conduzida pela personagem principal que é um médico po-lêmico, irreverente e anti-social que não confia em ninguém, muito menos em seus pacientes. Dr. House, (Hugh Lurie) formou uma excelente equipe de três médicos, escolhendo apenas os melhores (de acordo com seus critérios pessoais e duvidosos) para diagnosticar doenças em casos misteriosos e já desacreditados. Fontes: http://www.saraivaconteudo.com.br/Noticias/Post/46252 e http://www.minhaserie.com.br/serie/70-house

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

olimpiano modelo de um ideal, para converter-se num personagem

que, aos moldes nietzschianos, é demasiadamente humano e, mais

do que isso, personificado pelo sujeito ordinário, anônimo e co-

mum6. No lugar dos grandes feitos, as imperfeições que revelam a

condição humana da personagem que se apresenta em conjunção

com suas habilidades. Estas por sua vez, não são algo do extraordi-

nário ou do super-humano, mas capacidades muito possíveis a cada

qualquer indivíduo.

(...)as séries atuais nos fazem penetrar em um mundo perto da nossa casa, um mundo próximo; a pequena criminalidade, os trá-ficos substituíram o grande banditismo e os golpes audaciosos, ao mesmo tempo em que as cidades e suas periferias tornaram-se teatros das operações. A aventura está na esquina (...). (JOST, 2012, p. 46).

Assim, ao desvelar a interioridade das coisas, como diz Jost

(2012), a verdade da narrativa muitas vezes se revela na intimidade

da matéria ou na profundidade da alma. E em razão disso, as sé-

ries apresentam estruturas ficcionais marcadas pelo uso da voz over

que mais que se instituir como uma voz interior, desempenham um

sentido de narrar e comentar o que vivem, tratando de sentimen-

tos e emoções. Um exemplo dessa dinâmica é observado em séries

que incorporam tematicamente também aquilo que se entenderia por

bastidores ou discussões sobre a própria essência do narrar como

expedientes metanarrativos que buscam, em última análise, a proxi-

midade e cumplicidade do narratário. Narrador é o que conta, sofre

e reflete sobre esse próprio contar, constituindo por vezes, camadas

narrativas diferenciadas pelo domínio da diegese. Ou seja, a delimi-

tação do nível narrativo está relacionada com situações narrativas

em que a informação 1) é partilhada entre o narrador e as demais

personagens com o público, ou 2) apenas do narrador com público,

6 Um exemplo de personagem humanizado e anônimo pode-se encontrar na série Breaking Bad. A série apresenta a vida do químico Walter White (Brian Cranston), um homem brilhante frustrado em dar aulas para adolescentes do ensino médio, enquanto lida com um filho so-frendo de paralisia cerebral, uma esposa grávida e dívidas intermináveis. Quando o já tenso White é diagnosticado com um câncer no pulmão, o mesmo sofre um colapso e abraça uma vida de crimes, começando a produzir e vender metanfetaminas com o seu ex-aluno para as-segurar o futuro financeiro de sua família após sua morte. Mesmo percorrendo um caminho pouco ortodoxo para um herói, usufrui da torcida dos fãs. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Breaking_Bad.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

instituindo neste último uma relação exclusiva com este de maneira

ao torná-lo cúmplice do narrado7.

Do ponto de vista da forma, pode-se observar exemplos dessas

tentativas de aproximação com as audiências como a adoção de técnicas

de captação e edição de imagens que simulam situações de “ao vivo” ou

de um sentido de redução da edição e pós-produção bem ao gosto da

linguagem documental. Trata-se de planos sequência que bem podem in-

dicar no seu transcorrer “erros construídos” ou imagens com “ruídos” que

indiquem semanticamente a espontaneidade e autenticidade do captado.

Todos, movimentos que denotam os esforços narrativos em buscar este

receptor, dizendo a ele que as convocações feitas se baseiam em emis-

sões muito próximas do real, ainda que ficcionais8.

4 Considerações Finais

O que se pode depreender da reflexão trazida aqui é que as nar-

rativas, em suas performances, acompanham as estruturas e influências

estéticas e técnicas do tempo e contexto em que estão inseridas. Neste

caso, as narrativas audiovisuais apresentam uma configuração que mani-

festa, por decorrência, a valoração sócio-técnica-discursiva deste tempo,

e que está relacionada à contínua reconstrução, significação e hibridação

7 Sobre a questão da cumplicidade estabelecida entre o narrador e a sua audiência pode bem ser observada na série House of Cards. Na série, o político corrupto Frank Underwood (Kevin Spacey) usa todos os expedientes para se tornar presidente dos Estados Unidos. O desenrolar da história é pontuado pelas interlocuções de Frank com o público, com quem confidencia informações e comentários importantes acerca da cena política vivenciada. Para tanto, ao dirigir-se de frente para o telespectador, Frank quebra a quarta parede, conceito oriundo do teatro e adotado pela ficção em que se simula existir uma parede no lugar do público. Em função da cumplicidade estabelecida entre Frank e a plateia a partir da quebra da quarta parede, estabelece-se aqui diferentes níveis narrativos na série. A dissertação Além de um castelo de cartas: A metaficção na série House Of Cards tratou da questão da metaficção na série. Fonte: http://btd.unisc.br/Dissertacoes/GabrielSteindorff.pdf8 A série de suspense True Dectetive apresenta o trabalho de dois detetives, Rustin Spencer (Mathew McConaughey) e Martin Eric (Woody Harrelson), e é ambientada no estado de Louisia-na, EUA em 3 décadas distintas: 1995, 2002 e 2012. Essa linha do tempo vai e volta, o que faz uma conexão bem legal com uma das idéias de Nietzsche citadas na série: a de que o tempo é um círculo plano. O uso do plano sequência é frequente na série, mas no quarto episódio, ficou famoso o ousado plano sequência de seis minutos utilizado para mostrar uma cena de perse-guição. A complexa mise-en-scène do desfecho deste quarto episódio foi tão impactante, que mesmo sabendo que Cohle não corria nenhum grande perigo, experimenta-se grande tensão durante um ataque à casa dos traficantes. Fontes: http://www.planocritico.com/critica-true-detective-1a-temporada/ e http://www.ligadoemserie.com.br/2014/02/true-detective-quan-do-a-tv-consegue-ser-melhor-que-o-cinema/#.V0tnZCF2GgQ

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

própria do que se evidencia no contemporâneo. Diante de tanta oferta

narrativa e das possibilidades ofertadas pelas condições tecnológicas, as

narrativas audiovisuais se reinventam para manter e estreitar o diálogo

com este novo público.

Com relação às séries, essas reproduzem enquanto produtos audio-

visuais, os valores e configurações necessárias para manter e tornar ainda

mais vigorosa a correspondência entre o âmbito da emissão e da recepção.

Para isso, apostam na complexidade de suas narrativas, capazes de vincu-

lar este público pelas possibilidades de situações e soluções dramáticas

que podem ofertar. Buscam a cumplicidade de suas audiências marcando

a narrativa por estratégias de sentido que corroborem a ideia do real e de

sua proximidade na história contada, investindo em protagonistas humani-

zados que experimentam as situações mais cotidianas e ordinárias. Neste

processo, esses personagens têm seus dilemas desvelados na medida da

possibilidade de ali se obter problematizações verdadeiramente densas.

Em razão disso, pode-se dizer que o sucesso das séries é decorrên-

cia desse conjunto de emergências relacionadas a estas narrativas que

garantem mais qualidade às mesmas, bem como justificam um debru-

çar investigativo sobre elas. Enfim, tem-se a legitimidade necessária para

desse olhar extrair-se elementos que definitivamente podem contribuir

para o estudo das narrativas de maneira largamente entendidas e das

narrativas midiáticas de forma mais específica.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/mercado/netflix-ja-fatura-mais-de-r-500-mi-e-vira-o-uber-da-tv-por-assinatura-8842

http://www.serielizados.com/dixit/me-interesan-mas-las-series-y-menos-la-television-serielizados-online/

http://www.b9.com.br/40337/entretenimento/breaking-bad-regras-tele-visao/

http://www.cartacapital.com.br/cultura/como-as-series-estao-mudando-a-tv-e-o-cinema-1181.html

http://www.planocritico.com/critica-true-detective-1a-temporada/

http://www.ligadoemserie.com.br/2014/02/true-detective-quando-a-tv-consegue-ser-melhor-que-o-cinema/#.V0tnZCF2GgQ

http://www.saraivaconteudo.com.br/Noticias/Post/46252

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https://pt.wikipedia.org/wiki/Breaking_Bad.

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http://www.ligadoemserie.com.br/2014/02/true-detective-quando-a-tv-consegue-ser-melhor-que-o-cinema/#.V0tnZCF2GgQ

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32

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A narrativa institucional de Zero Hora como estratégia de aproximação dos leitores no

processo de convergência jornalística

Cristiane Lindemann 1

1 Contextualização

Este trabalho tem como ponto de partida a pesquisa de douto-

ramento da autora (LINDEMANN, 2014)2, cuja proposta foi compreen-

der a convergência midiática sob a perspectiva das audiências, junto

ao jornal Zero Hora (ZH), de Porto Alegre, RS, Brasil. Respaldamo-

nos no pressuposto de que a convergência jornalística refere-se a um

processo de integração dos modos tradicionalmente separados de

comunicação, que afeta as empresas, as tecnologias, o público e os

profissionais em todas as fases de produção, distribuição e consumo

de conteúdo. Assim, a pesquisa identificou e analisou as transfor-

mações dos espaços do leitor decorrentes da convergência jornalís-

tica na redação do jornal ZH delineando novos elementos, práticas e

configurações que derivam da inserção das audiências na produção

jornalística institucionalizada.

A publicação estudada ocupa a posição de líder em circulação no

1 Doutora em Comunicação e Informação (UFRGS, 2014); professora no Departamento de co-municação Social e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), onde atua junto ao Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (Genalim); também integra o Grupo de Pesquisa Laboratório de Edição, Cultura & Design (LEAD/UFRGS/CNPq).2 A tese, intitulada “O jornal Zero Hora e seus leitores no contexto de convergência jornalísti-ca”, foi defendida em abril de 2014, junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Rio Grande do Sul e quarta no Brasil3 e é editada pelo maior conglome-

rado de mídia do Sul do país, o Grupo Rede Brasil Sul de Comunicação

(RBS). Ocorre que, durante a pesquisa, identificamos com frequência

a manifestação da empresa em espaços como o Blog do Editor (meio

digital) e a Carta do Editor (meio impresso), reforçando a importância

do leitor e indicando canais de aproximação deste com o jornal. Poste-

rior à realização da pesquisa de doutorado, seguimos acompanhando o

veículo e verificamos a recorrência destas publicações, não apenas nos

espaços já mencionados, mas também na fanpage4 de ZH e do próprio

grupo RBS. Assim, com vistas a dar sequência ao trabalho de investiga-

ção, definimos como objetivo deste artigo analisar as narrativas da fala

institucional de ZH publicadas na Carta do(a) Editor(a) em 2014 e 2015 e

disponibilizadas na web, visando compreender as estratégias do veículo

ao referir-se aos seus leitores, considerando que estas manifestações

fazem parte do processo – em andamento – de convergência midiática.

2 ZH, os leitores e a tecnologia

É tradição em Zero Hora a criação de canais, setores ou estratégias

para estreitar vínculos com seus leitores, bem como o investimento em

tecnologias digitais de comunicação e informação – e, não raras vezes,

estes dois eixos estão correlacionados. Em abril de 1995, ZH se tornava

o primeiro veículo da RBS com endereço eletrônico: [email protected];

em junho de 1995, foi lançado o primeiro site de Zero Hora na internet,

tornando-o o segundo jornal com edição digital no país (o primeiro foi o

Jornal do Brasil). Em 2001, com a chamada RBS Interativa, que um ano

depois foi reformulada, passando a trabalhar com ênfase no RBS Direct,

o grupo introduziu no Brasil o conceito CRM (Costumers, Relationship

Management – gestão de relacionamento de clientes), que “se tornou o

maior banco de dados, de nomes, do País, atuando desde São Paulo e

Porto Alegre” (SCHIRMER, 2002, p. 187).

3 Dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) indicam que ZH alcançou 208.963 em circulação total no mês de fevereiro de 2016, somando edições impressa e digital. O jornal Folha de S.Paulo (SP) lidera a lista, seguido por O Globo (RJ) e Super Notícias (MG).4 Fanpage (ou “página de fãs”, em português) é uma página criada dentro da rede social Facebook, na qual empresas, instituições ou marcas publicam conteúdos e interagem com seus públicos.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Em 19 de setembro de 2007, o site zerohora.com foi lançado em

substituição à antiga página estática do jornal ZH, que até então era pu-

blicada no portal ClicRBS. O projeto nasceu com a intenção de agregar

conteúdos de fontes diversas, utilizando uma linguagem mais apropriada

para as redes e explorando características como atualização contínua,

canais colaborativos, conteúdos multimídia e recursos de recuperação de

memória (consulta a edições anteriores, utilização de banco de dados).

Neste mesmo ano ocorreu a unificação das redações de ZH e zerohora.

com, iniciativa que representou um avanço da empresa em conformidade

com as tendências do mercado impostas pela evolução das redes digitais,

e que evidencia a imersão do jornal no processo de convergência jornalís-

tica (LINDEMANN, 2014).

A partir de 2009, o periódico passou a investir no lançamento

de produtos mobile, com versões para tablets, smartphones e celular

– o que, inferimos, para além das adequações ao processo conver-

gente em termos tecnológicos, faz parte das estratégias de aproxi-

mação do público e da fidelização dos leitores que, cada vez menos,

consomem o jornal impresso (LINDEMANN, 2014). Em dezembro do

referido ano, as notícias e os cadernos fixos já estavam disponíveis

no Kindle e em fevereiro de 2011, a empresa disponibilizou o apli-

cativo do jornal para iPad, Motorola Xoom e Galaxy Tab. Também em

2011, foram lançados aplicativos de ZH para o iPhone, BlackBerry e

para os smartphones que utilizam o sistema Android, permitindo aos

internautas visualizarem notícias e conteúdos multimídia produzidos

por ZH.

Ainda neste mesmo ano, o site passou por uma reformulação e,

de acordo com Gleich (2013), “um ponto muito importante foi a inclu-

são de links para redes sociais”. Além disso, conforme a diretora de

redação, houve uma preocupação em abrir seções de participação para

os leitores e em exibi-las visualmente de modo mais organizado. “Esse

foi um dos pilares da nossa mudança”. No dia 4 de dezembro de 2011,

em texto5 assinado pelo então diretor de redação de ZH, Ricardo Ste-

fanelli, a empresa divulgou a criação do selo Do Leitor, que passaria a

ser utilizado junto às notícias ou fotos provenientes de colaboradores

no jornal impresso. O intuito, consta na publicação, era conversar ain-

5 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2011/12/03/carta-do-editor-dialogo-per-manente/?topo=13,1,1,,,13 Acesso em: Acesso em: 24 jul. 2016.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

da mais com o público e dar voz a quem sabe se fazer respeitar. A em-

presa apresentou mudanças gráficas e novas formas de comunicação

entre profissionais e a sociedade, garantindo que, com a iniciativa, o

conteúdo enviado pelos leitores iria circular em todo o jornal, não ape-

nas na página tradicionalmente utilizada para expor opiniões, notas e

comentários do público6.

Portanto, 2011 pode ser considerado um ano marcante no que tan-

ge às estratégias do jornal envolvendo a relação com seus leitores, uma

vez que novos projetos surgiram com ênfase nesta proposta – em grande

medida alicerçados em recursos tecnológicos. No dia 20 de janeiro de

2012, igualmente no Blog do Editor, um post7 foi publicado convidando

os leitores para se inscreverem para a segunda edição do Conselho Vir-

tual de ZH, que tem o propósito de melhorar o jornal constantemente.

Conforme explica o texto, “a ideia é criar um espaço de discussões em

que o grupo sinta-se à vontade para criticar, sugerir e conversar aberta-

mente sobre ZH. Como os debates são online, podem participar leitores

de todo o Estado, Brasil ou mesmo do Exterior.”8

Em setembro de 2012, a diretora de ZH, Marta Gleich publicou,

em carta na página dois do jornal (Carta da Editora), que também foi

veiculada no Blog do Editor9, um texto exaltando a participação do

público como produtor de conteúdo por meio da rede social de fotos

e vídeos Instagram. “Nas últimas duas semanas, Zero Hora publicou

na sua edição impressa 43 fotos do Instagram”, disse ela na abertu-

ra do texto, acompanhado de nove fotos feitas pelos colaboradores.

Segundo a jornalista, mais de 1,7 mil pessoas participaram de seis

“missões” dadas pelo jornal. Já em abril de 2013, foi publicado, no

Blog do Editor, um texto intitulado “Nos 49 anos de ZH, seja um dos

editores do jornal”10, convidando os leitores a ajudar a construir o

jornal do dia 4 de maio. Segundo consta no post, a referida edição

6 Tradicionalmente, a página dedicada para conteúdos enviados pelos leitores em ZH era a página 2. Em maio de 2013, o jornal passou por uma reforma gráfica e estes conteúdos não têm mais página fixa, variando diariamente.7 Nome dado a cada publicação feita em um blog (texto, fotografia, vídeo ou áudio). Também chamada de postagem.8 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2012/01/20/zh-seleciona-leitores-para-o-novo-conselho-virtual/?topo=13,1,1,,,13 Acesso em: 24 jul. 2016.9 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2012/09/22/carta-da-editora-a-vida-sob-as-lentes-do-instagram/?topo=13,1,1,,,13. Acesso em: 24 jul. 2016.10 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2013/04/23/nos-49-anos-de-zh-seja-um-dos-editores-do-jornal/?topo=13,1,1,,,13. Acesso em: 24 jul. 2016.

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36

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

traria – e assim o fez – em destaque pautas sugeridas e comentadas

pelos leitores.

Ainda em 2013, o jornal investiu profundamente em um projeto

que estabeleceu uma nova editoria, chamada Do Leitor. Vale lembrar

que, no quesito “relacionamento com leitores” ZH se destaca pelo pio-

neirismo ao criar, em 1991, a Editoria de Atendimento ao Leitor, cuja

principal responsabilidade era a produção da página dois de ZH, com

ênfase em textos de opinião e comentários enviados pelos leitores, e

também o atendimento aos leitores em relação a assuntos editoriais

(MINUZZI, 2007). O primeiro grupo a trabalhar especificamente com os

leitores localizava-se na mesma sala do departamento de Arte e Fotogra-

fia, separada da redação.

Em 2011, ocorreu uma mudança de nome, para Editoria de Relacio-

namento com o Leitor, e a primeira mudança de espaço físico deste gru-

po se deu em dezembro de 2012, como ação estratégica de um projeto

maior, que estava sendo maturado desde então pelos gestores do jornal.

Na ocasião, a equipe foi para dentro da redação, logo na entrada de uma

das portas (lateral esquerda)11 – ou seja, no “fundão”, se considerarmos

que no extremo oposto ficam as salas da chefia e, no centro, o chamado

“meião”, onde encontram-se o editor-chefe, seus assistentes e o editor

do jornal digital (LINDEMANN, 2014). Conforme Vergara (2013), na época

editora assistente da Editoria de Relacionamento com o Leitor, “foi bem

clara essa diretriz de que o leitor não poderia ficar afastado, lá com os

departamentos técnicos”.

Em maio de 2013, o novo projeto foi implementado – o que acar-

retou alteração de funções entre os profissionais envolvidos e, cerca

de 30 dias após (junho/2013), uma segunda mudança de nome e geo-

gráfica dentro da redação. A editoria passou a denominar-se Editoria

do Leitor, localizada ao lado do “meião” – portanto, um espaço de gran-

de visibilidade e de fácil acesso a todos os demais membros do corpo

editorial de ZH –, coordenada pela jornalista Barbara Nickel, até então

editora de Mídias Sociais. Esta mudança evidenciava, à época, uma

nova concepção acerca do leitor, como revelou a diretora de redação,

Marta Gleich:

11 A redação tem formato de “U”, sendo que em cada uma das pontas há uma porta de en-trada.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A ideia é trazer cada vez mais o leitor para o centro da reda-ção. O Relacionamento com o Leitor12 era uma coisa secundá-ria. Ao trazer ele para cá [centro da redação], simbolicamente e, de fato, estamos dizendo: o Relacionamento com o Leitor é tão importante quanto qualquer uma das outras editoriais. Com este movimento teremos realmente o leitor no centro do jornal, esse é o significado. Se a gente faz um jornal para o público, o público tem que estar aqui dentro, então esta é a ideia. (GLEICH, 2013)

Conforme a diretora de ZH, “o jornal que não se abrir para os

leitores e para um conteúdo dosado, está ralado. Nós temos que fazer

isso, o público espera isso da gente, essa participação maior, porque é

assim que está a vida”. (GLEICH, 2013) Para dar conta desta demanda,

foram agrupados na nova editoria três setores que, conforme Gleich,

se sobrepunham e se complementavam: Relacionamento com o Leitor,

Divulgação e Mídias Sociais. Contudo, o projeto durou apenas um ano,

sendo extinto em maio de 2014. A partir de então, a aposta do jornal

passou a enfatizar essencialmente o relacionamento com o público

via mídias sociais, as produções especiais multimídia13, bem como em

conteúdo mobile (tablets e smartphones) (NICKEL, 2014). Segundo Ni-

ckel (2014), a grande preocupação de ZH era, nesta altura, estar mais

próxima do leitor, fazendo um jornal útil e necessário para a condução

de suas tarefas – e, para tanto, a exigência passava a ser, mais do que

nunca, ouvir o leitor.

O percurso de ZH nos permite a constatação de que a convergên-

cia jornalística acarreta transformações que transcendem as questões

tecnológicas, afetando também as estratégias de ação (incluindo o âm-

bito econômico), os espaços físicos, as equipes e os produtos finais.

São estabelecidas novas relações entre jornalistas e audiências, afetan-

do as rotinas produtivas e resultando em conteúdos diferenciados (ou

na tentativa destes), cuja proposta inclui contemplar a voz do leitor.

Nossa proposta, a partir deste cenário, é averiguar de que modo ZH

expressa estas iniciativas no canal denominado Carta do(a) Editor(a),

entendendo que as publicações neste espaço representam a fala ins-

titucionalizada do jornal e fazem parte da estratégia de estreitamento

12 No dia da entrevista (maio/2013) as mudanças ainda não haviam ocorrido, por isso a diretora fala em Relacionamento com o Leitor e não Editoria do Leitor.13 Até o dia 6 de junho de 2016 a seção “Especiais ZH” continha 84 reportagens multimídia. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/especiais-zh Acesso em: 6 jun. 2016.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de vínculo com o público, o que é uma forte característica da con-

vergência midiática, na qual insere-se o jornalismo. Antes da análise,

porém, identificaremos quem é o narrador que assume este espaço, vi-

sando compreender seu potencial e sua função na relação com o leitor.

3 As vozes narrativas

Uma das alternativas possíveis para compreender a relação en-

tre o jornal ZH e seus leitores é por meio da narratologia, que pro-

cura descrever de forma sistemática os códigos que estruturam a

narrativa e os signos que esses códigos compreendem (LOPES; REIS,

1988). A partir de Motta (2013, p. 79), tomamos como pressuposto

que a narratologia se dedica “ao estudo dos processos de relações

humanas que produzem sentidos através de expressões narrativas14”

– a exemplo do jornalismo, história ou biografias no campo factual,

e dos romances, cinema ou telenovelas no campo ficcional. Assim, a

narratologia “inclui todas as produções do ser humano cuja qualida-

de essencial é o relato de uma sucessão de estados de transformação

e cujo princípio organizador do discurso é o contar” (MOTTA, 2013,

p. 79).

Procuramos, a partir desta teoria e considerando o atual cená-

rio de convergência jornalística, “entender como os sujeitos sociais

constroem instersubjetivamente seus significados pela apreensão,

representação e expressão narrativa da realidade.” (MOTTA, 2013,

p. 79). Nesta conjuntura, pois, os narradores são agentes funda-

mentais do processo de enunciação, conforme já apontado pelo

Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (Genalim),

do qual fazemos parte. As chamadas “vozes narrativas” 15 – ou seja,

as emissões realizadas pelos narradores – têm diferentes níveis de

poder no ambiente jornalístico, o que pode ser verificado a partir

da proposta de Motta (2013), que categoriza três narradores ou ins-

tâncias narrativas por meio das quais as enunciações têm lugar. São

eles: 1) Primeiro narrador: narrador-jornal, extradiegético, fora da

14 Grifo do autor.15 Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/6254/4242 Acesso em: 22 de jul. de 2016

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

história; refere-se à organização jornalística, que viabiliza, por meio

de seus agentes, o dispositivo jornal (e os demais dispositivos des-

sa natureza); 2) Segundo narrador: narrador-jornalista, intradiegéti-

co, dentro da história; é, portanto, “o jornalista, a voz que enuncia

propriamente a narração, organiza e costura a tessitura da intriga,

dispõe as ações, conflitos, personagens e cenas.” (MOTTA, 2013,

p. 228); 3) Terceiro narrador: narrador-personagem, intradiegético,

dentro da história. Este grupo concerne às fontes ou personagens

das narrativas.

Baseado em Genette (1998), o modelo proposto por Motta (2013)

foi adaptado para análise de notícias veiculadas em jornais. Estes, como

aponta Soster (2015), dialogam com seu público-alvo por meio de dispo-

sitivos que têm como uma de suas principais marcas a periodicidade, e

são geridos por uma hierarquia produtiva, dentro de organizações, o que

interfere nas instâncias narrativas. “A interferência, observa-se, é mútua;

mas tende a ser mais incisiva, e determinante, do primeiro para o terceiro

narradores.” (SOSTER, 2015, p. 28)

A seção Carta do(a) Editor(a) é veiculada semanalmente em ZH, além

de ser replicada no site do jornal, e não tem caráter noticioso – contudo, é

um espaço de interlocução entre o veículo e seus leitores. Verificamos, a

priori, uma confluência entre o primeiro e o segundo narradores, uma vez

que o jornalista (segundo narrador) que escreve assume um papel hierár-

quico na empresa, falando, na quase totalidade das vezes, em nome da

mesma (primeiro narrador). Assim, nosso objetivo é analisar as Cartas

do(a) Editor(a) para verificar as estratégias narrativas destes narradores,

a partir da proposta de Motta (2013), em especial para compreender de

que modo ZH vem se posicionando institucionalmente para relacionar-se

com o leitor. Em tempos de convergência – processo este que acarreta

tensões no campo jornalístico, perda de leitores, mudança de hábitos no

consumo de notícias, dentre outros tensionamentos – acreditamos ser

esta uma reflexão oportuna.

4 Cartas do(a) Editor(a):

uma estratégia narrativa institucionalizada

Conforme já relatamos, além dos meios tradicionais para manifes-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

tação do público, como telefone, e-mail e colunas opinativas, o jornal

ZH tem criado projetos que visam acompanhar as tendências da web 2.0

e explorar o potencial dos leitores no fornecimento de imagens, textos,

sugestões de pauta e vídeos. Há, também, uma preocupação nítida em

estabelecer uma aproximação com o público, principalmente através

das redes sociais, conforme demonstram resultados da pesquisa de Lin-

demann (2014). A divulgação destas esferas interativas é feita por meio

impresso e também digital, via canais institucionais, como as Cartas

do(a) Editor(a), o Blog do Editor e perfis em redes sociais, ou mesmo

nos espaços editoriais, em textos que visam, sobretudo, incentivar as

pessoas a participar e fazer com que sintam-se parte do jornal, confor-

me veremos a seguir, quando apresentaremos e discutiremos algumas

destas publicações.

A Carta do(a) Editor(a), publicada semanalmente em ZH (versão im-

pressa) e também reproduzida no site zerohora.com, foi escolhida para

análise nesta pesquisa. Trata-se de uma coluna de cunho institucional,

onde o editor-chefe da publicação ou a diretora de redação – com raras

exceções, como verificamos neste estudo – escrevem sobre acontecimen-

tos dos bastidores da redação, escolhas editoriais, novos produtos, mu-

danças na equipe ou no espaço físico da empresa, bem como no projeto

gráfico ou editorial, premiações recebidas pelos jornalistas, colaborado-

res ou pela própria ZH e/ou RBS.

Como objeto de análise delimitamos as cartas veiculadas no Blog

do Editor na seção Carta do(a) Editor(a) durante os anos de 2014 e

2015. No primeiro ano encontramos 62 posts na referida categoria,

sendo que 53 destes tinham o mesmo cabeçalho utilizado na versão

impressa (Figura 1), o que nos leva a acreditar tratar-se do mesmo

conteúdo16. Com relação à autoria, em 2014 identificamos 44 pos-

ts assinados pela diretora de redação, Marta Gleich, seis assinados

pelo editor-chefe, Nilson Vargas, dois assinados pelo diretor-executivo

de jornalismo do Grupo RBS, Marcelo Rech, e um assinado por Diego

Araujo, editor de esportes. As nove postagens que não possuíam o

referido cabeçalho17 também não estavam assinadas. Já em 2015, ta-

bulamos um total de 47 posts, dos quais 46 possuíam o cabeçalho,

16 Não recorremos ao veículo impresso para realizar a comparação, visto que o foco desta análise é o suporte digital.17 Nestes casos, há algumas variações em termos de conteúdo, com uso de vídeos além de imagem e texto.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

também utilizado na versão em papel. Quanto à autoria, 41 textos fo-

ram assinados por Marta Gleich, cinco por Nilson Vargas e apenas um

não estava assinado (o único que não continha o cabeçalho).

Figura 1 – Identidade visual dos posts na categoria Carta do Editor,

no Blog do Editor

•Fonte: zerohora.com.

Conforme Motta (2013), não há narrativa ingênua, quem narra tem

sempre algum propósito. “Quer atrair, seduzir, envolver, convencer, pro-

vocar efeitos de sentido.” (MOTTA, 2013, p. 196). Ou seja, a narrativa fun-

ciona como um elo entre sujeitos ativos no processo de comunicação e é

papel do analista identificar os dispositivos retóricos que revelem o uso

intencional dos recursos linguísticos e extralinguísticos pelo narrador. To-

mando como base este princípio, nosso estudo tem como proposta cen-

tral verificar as estratégias narrativas contidas nas Cartas do(a) Editor(a)

em relação aos leitores de ZH.

Para tanto, após coletar os posts já mencionados, de 2014 e 2015,

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42

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

fizemos uma leitura exploratória e mantivemos no corpus apenas aque-

les em que os autores dirigem-se de modo enfático aos leitores, o que

resultou em 18 publicações (13 de 2014 e cinco de 2015), todas assina-

das pela diretora de redação, Marta Gleich. Também elaboramos, a partir

deste primeiro contato com os textos, categorias para classificação das

estratégias narrativas encontradas, que são: 1) Assuntos e/ou pautas re-

levantes para o leitor: textos que apregoam a realização de um jornalismo

de utilidade pública / serviço, visando atender às necessidades do públi-

co; 2) Redes sociais e dispositivos móveis: textos que denotam a busca

do estreitamento de vínculo com os leitores via Facebook e Instagram,

por exemplo, bem como a oferta de produtos multiplataforma, indicando

que ZH está acessível em vários dispositivos e alcançando, assim, um

público diversificado; 3) Ações de aproximação: textos que exprimem

interesse do jornal em inserir o leitor na produção de conteúdo; que apre-

sentam pesquisas com o público cujos resultados servem de base para

justificar mudanças editoriais e gráficas; que demonstram atendimento

às demandas/críticas/queixas do leitor. O Quadro 1 exibe um resumo dos

resultados que, em seguida, serão analisados e discutidos.

Quadro 1 – Classificação dos conteúdos postados nas Car-

tas do(a) Editor(a)

CategoriaPublicações por ano

Total de posts2014 2015

1) Assuntos e/ou pautas relevan-tes para o leitor

3 1 4

2) Redes sociais e dispositivos móveis

5 1 6

3) Ações de aproximação 5 3 8

Fonte: produção própria.

Conforme indicamos na abertura deste trabalho, em consonância

com pesquisa anterior (LINDEMANN, 2014), entendemos que a conver-

gência jornalística, para além das transformações tecnológicas, também

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

pode ser verificada em outras instâncias, como na gestão, nas estratégias

editoriais e econômicas, nas rotinas de produção, nos produtos e tam-

bém na relação entre empresa, jornalistas e público. Ao analisar as Cartas

do(a) Editor(a) de 2014 e 2015, veiculadas no suporte digital – muitas

das quais também publicadas no veículo impresso – verificamos que as

premissas do projeto de ZH para o ano de 2014 (NICKEL, 2014) aparece-

ram com saliência na narrativa de Marta Gleich. No papel de diretora de

redação – portanto, ocupando um cargo hierárquico que lhe autoriza falar

em nome da empresa – , a jornalista reforçou várias vezes a preocupação

de ZH em produzir conteúdo relevante para os leitores (Categoria 1), bem

como endossou o investimento do jornal em mídias sociais e dispositivos

móveis (Categoria 2), corroborando com sua própria fala em entrevista

concedida anteriormente a esta pesquisadora (GLEICH, 2013).

Como exemplos da Categoria 1, podemos citar:

“A partir do segundo semestre de 2013 o assunto mobilidade tor-

nou-se prioritário em Zero Hora, por uma razão básica: sua relevância

para nossos leitores. Mobilidade diz respeito a todos, porque não há quem

não precise se mover de um ponto a outro.” (Texto: “O grande debate da

mobilidade”, veiculado no dia 04/01/2014).

“Há mais de 20 anos, Zero Hora tem pautado a cobertura de eleições

pelo interesse do público. Não fazemos, aqui, reportagens para candida-

tos ou partidos. Nosso enfoque é a vida do leitor/eleitor, o que interessa a

ele, o que pode mudar na sua vida em termos de saúde, educação, segu-

rança, transporte, emprego, infraestrutura, economia e assim por dian-

te.” (Texto: “Nosso voto vai para o leitor”, veiculado no dia 05/07/2014).

“Foi numa reunião de editores que a pergunta surgiu: como a gente

pode se tornar mais relevante e útil na vida do leitor? (...) – Precisamos

ajudar o leitor a passar por essa crise – disse a editora FêCris Vasconce-

llos.” (Texto: “Encare a crise com Erik”, veiculado no dia 05/09/2015)

Tais narrativas mostram que o jornal tenta suprir algumas deman-

das dos leitores e faz questão de endossar isso na fala institucionaliza-

da. Os jornalistas esmeram-se em saber quais são as reivindicações ou

carências do público pretendendo, assim, transformar ZH em um produ-

to necessário na rotina dos consumidores. Em entrevista concedida em

2014, Nickel (2014) falava da necessidade de reforçar a boa relação com

as audiências. Este era um dos objetivos da equipe da Editoria do Leitor,

ainda em fase de planejamento na ocasião. “Para esse ano [2014], a gran-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de preocupação é estarmos mais próximos do leitor no seguinte sentido:

fazer matérias que sejam relevantes para a vida das pessoas” (NICKEL,

2014). A intenção, conforme a jornalista, era fazer um jornal útil, a ponto

de todos sentirem a necessidade de lê-lo para conduzir melhor suas tare-

fas. “Isso significa que a gente precisa ouvir muito mais as pessoas, para

saber o que elas querem, o que elas precisam. Prestar atenção no que elas

estão dizendo é uma coisa imprescindível.” (NICKEL, 2014)

Na Categoria 2, Redes sociais e dispositivos móveis, enquadramos

os trechos expostos abaixo:

“Barbara Nickel, da editoria do Leitor, avisou na sexta-feira que,

dentro de poucos dias o Facebook da Zero Hora alcançará a marca de 1

milhão de curtidores. (...) O crescimento acelerado de curtidores no Face-

book não é o único fenômeno identificado pelo time: há um decréscimo no

número de e-mails recebidos, e isso não significa que vocês, leitores, es-

tão escrevendo menos para nós. A instantaneidade das redes sociais está

substituindo o e-mail, assim como o e-mail substituiu as cartas.” (Texto: “A

embaixada do leitor na redação”, veiculado no dia 08/03/2014).

“Na madrugada de quinta-feira, o facebook (sic) de ZH completou 1

milhão de curtidores. Ficamos tão felizes com esta marca que a registramos

numa foto com toda a Redação. (...) – Pelo Facebook conversamos com os

nossos leitores diariamente e conseguimos conhecê-los melhor. Os questiona-

mentos e as críticas nos ajudam a melhorar constantemente o trabalho que

fazemos na Redação. Também recebemos sugestões e comentários que aca-

bam virando reportagens, e dos quais só ficamos sabendo graças a esse con-

tato permanente com o nosso público – diz ela [Barbara Nickel].” (Texto: “Car-

ta da editora: a Redação agradece ao leitor”, veiculado no dia 22/03/2014).

“No mês de julho, Zero Hora alcançou pela primeira vez a marca de

10 milhões de usuários no site. (...) Analisando o fenômeno com Barbara

Nickel, nossa editora-chefe digital, e Thiago Medeiros, gerente de Pro-

duto Digital, há três principais conclusões: primeiro, tem mesmo muito

mais gente consumindo ZH em meios digitais. Segundo, você mudou seu

comportamento, e está cada vez mais acessando informações em dife-

rentes plataformas. Lê o jornal no papel, no computador, no smartphone,

no tablet. Terceiro, nós mudamos totalmente o site, nossos aplicativos, o

mobile site e estamos com mais jornalistas produzindo conteúdo próprio

para o digital, e isso tem dado muito resultado.” (Texto: “10 milhões de

usuários”, veiculado no dia 09/08/2014)

“Cada vez mais, o leitor leva Zero Hora consigo, na rua, no caminho

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

para a faculdade ou trabalho, no supermercado, no estádio, no parque,

no ônibus, na praia, em todo lugar. No primeiro trimestre de 2015, che-

gou a 46% o percentual de visitas mobile a nossos conteúdos digitais. Ou

seja: de cada cem vezes que alguém consulta informações e notícias digi-

tais de ZH, 46 são de dispositivos móveis (smartphones e tablets) e 54 de

desktops ou computadores de mesa. (...) Outro número importante, pelo

qual toda a Redação agradece aos leitores, é o da audiência desses con-

teúdos digitais, que bateu mais um recorde em março: 26,9 milhões de

visitas. Se comparados os números do primeiro trimestre de 2015 aos do

primeiro trimestre de 2014, o crescimento é de 30%, de 59,5 milhões de

visitas, somando-se janeiro fevereiro e março, para 78,0 milhões.” (Texto:

“O leitor em movimento”, veiculado no dia 04/04/2015)

Os segmentos destacados denotam a obstinação de ZH em eviden-

ciar a harmonia da redação com as tecnologias digitais – o que, em nossa

leitura, é uma estratégia narrativa para aproximação entre ZH e o pú-

blico. Além das redes sociais, também fazem parte deste contexto os

investimentos em conteúdo mobile – tablets e smartphones, cada vez

mais utilizados pela coletividade para acessar informações, dentre outras

finalidades – , bem como a criação de uma equipe de jornalistas para

trabalhar especificamente com conteúdos para o jornal online, conforme

apontavam, à época, Nickel (2014) e Vergara (2014). Tal panorama salien-

ta o quanto ZH está atenta às tecnologias e representa uma preocupação

– fundamentalmente econômica – em alcançar um público que, como in-

dicam as pesquisas, tem deixado o veículo impresso em detrimento de

outras plataformas.

Por fim, na Categoria 3, Ações de aproximação, destacamos os se-

guintes trechos:

“Aproveito este espaço para fazer um convite especial a vocês. Com-

parecer ao Parque da Redenção neste domingo a partir das 13h para o

Piquenique dos 50 anos de Zero Hora. (...) Lá estarão nossos colunistas,

jornalistas, numa grande aproximação de Zero Hora com o seu público

(...). O piquenique se dará ao redor da Estação ZH, um espaço temporário

do jornal no parque, que tem como objetivo levar um pedacinho de Zero

Hora do seu público. É mais uma maneira de dizermos: “Estamos perto de

você, leitor, queremos ouvi-lo, queremos que você seja parte deste jornal”.”

(Texto: “Um piquenique com os leitores”, veiculado no dia 24/05/2014)

“A partir de hoje a Copa está concentrada em um caderno, e não

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

mais nas primeiras páginas do jornal, como vínhamos fazendo desde

o dia 1º de junho. Depois de receber algumas observações de leitores,

realizamos uma pesquisa com nossos assinantes e o resultado foi:

57% preferem a cobertura de Copa em um caderno separado, 30%

gostariam de vê-la na editoria de Esportes ao final do jornal e ape-

nas 4% aprovaram o formato usado até agora (nas páginas iniciais).

Nosso mantra aqui na Redação é produzir o jornal que você lê todo

dia a partir das suas necessidades.” (Texto: “ZH ouviu seus leitores”,

veiculado no dia 12/06/2014)

“Neste fim de semana, o Gustavo Foster, repórter digital de Zero

Hora, inventou uma nova. Toda semana, ZH publica no site e em apli-

cativos “7 Coisas para o Fíndi”. São atividades bacanas para se fazer na

sexta, no sábado e no domingo. Cinema, teatro, show, passeio, exposição,

tem de tudo. O Gustavo costuma fazer a curadoria desse conteúdo. Mas

ele resolveu perguntar, no Facebook de ZH, que está se aproximando de

1,5 milhão de curtidores (obrigada, queridos leitores), que tipos de dicas

o público quer. Veio cada ideia boa! Onde fazer trabalho voluntário. Pas-

seios curtos para fazer com a família, próximo à Região Metropolitana.

Livros. Passeios de bike. Circo.” (Texto: “A contribuição dos leitores”, vei-

culado no dia 02/08/2014)

“Na semana passada, perguntei aos leitores o que Zero Hora deveria

fazer com os comentários em notícias e artigos publicados no site. Hoje

os comentários são liberados, sem moderação da Redação, e algumas

pessoas os utilizam para ofender e caluniar, baixando o nível da discus-

são, em vez de aproveitarem o espaço para o debate construtivo. Nossa

equipe de desenvolvimento de produtos digitais já começou a trabalhar

nisso. Sem censurar a possibilidade de participação, devemos partir para

um controle maior do cadastro dos participantes. Essa solução deverá ser

implementada em 2016. Agradeço aos leitores atenciosos que dedicaram

tempo para nos responder. Foram dezenas de contribuições. Reproduzo

algumas respostas à pergunta que fiz: Zero Hora deveria seguir com os

comentários abertos, sem mediação?”. (Texto: “Comentários”, veiculado

no dia 26/09/2015)

Averiguamos, nos textos da diretora de redação, propostas de

ações que ambicionam uma aproximação física entre jornalistas e lei-

tores; também aparecem pesquisas endossando qual é o gosto do lei-

tor e indicando que tais parâmetros norteiam as decisões editoriais de

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

ZH – ou seja, o jornal estaria apresentando o conteúdo que o público

efetivamente deseja; além de pesquisas que mostram envolvimento

do leitor em outras decisões, que não são pontualmente de cunho

editorial, como a moderação ou não de comentários no site do veícu-

lo. Tratam-se, pois, de artifícios que intencionam dar transparência ao

funcionamento da redação, mas que são, sobretudo, estratégias narra-

tivas para fidelizar o leitor.

5 Reflexões finais

A convergência jornalística é um processo ainda em curso que afeta

os modelos de negócios, as práticas profissionais, as rotinas produtivas,

os conteúdos e a relação entre jornalistas e público. Grande parte destas

transformações decorre das invenções tecnológicas, que aceleram proces-

sos, oportunizam novos modos de apuração, produção, distribuição e cir-

culação das informações. Imbuída neste ambiente mutável, ZH tem realiza-

do ações nítidas para acompanhar as demandas que surgem. E, conforme

indica a pesquisa de Lindemann (2014), corroborando com dados do le-

vantamento aqui apresentado, o maior jornal gaúcho tem mantido a tradi-

ção – cujo berço é anterior ao estopim tecnológico digital – de apostar na

proximidade com o público como forma de cativá-lo e fidelizá-lo.

Logo, sustentamos que a preocupação em “agradar” o leitor é uma

tática jornalístico-empresarial evidente nas narrativas analisadas. O dis-

curso de Marta Gleich nas Cartas do(a) Editor(a) representa um elo entre

as estratégias da empresa, os jornalistas e o público. Em consonância

com Motta (2013), salientamos que não há narrativa ingênua, ou seja,

quem narra tem sempre algum propósito para com os sujeitos ativos no

processo de comunicação. No caso do veículo estudado, a fala institucio-

nalizada visa mostrar aos leitores que assuntos e/ou pautas relevantes

para eles são prioridade na pauta do dia, atendendo suas necessidades;

que as redes sociais e os dispositivos móveis estão sendo usados com

afinco pela redação, para que todos possam se manter informados per-

manentemente, em qualquer suporte ou canal; e, ainda, que há interesse

do jornal em inserir o público na produção de conteúdo e nas decisões

tomadas internamente.

Em tempos de tensões no campo jornalístico, perda de leitores,

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48

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

mudança de hábitos no consumo de notícias, dentre outros enfreta-

mentos, acreditamos ser este um método de trabalho oportuno. Con-

forme dados do State of the News Media 2015, um dos mais importan-

tes relatórios sobre a situação da mídia norte-americana, produzido

anualmente pelo Pew Research Center, nos sites de notícias, a audiên-

cia oriunda de mobile segue crescendo, mas quem acessa pelo desk-

top tem um tempo de permanência maior de leitura. Além disso, a

pesquisa indica que o Facebook é a porta de entrada de notícias para

mais de 50% dos entrevistados.18

No Brasil transcorre algo semelhante. A Pesquisa Brasileira de Mí-

dia (BRASIL, 2014)19 aponta que 48% dos brasileiros utilizam a internet e

gastam, em média, cinco horas do seu dia conectados. Dentre as razões

que justificam este uso, estão: 67% diversão/entretenimento; 67% buscar

informações/notícias; 38% passar o tempo livre e 24% estudar, dentre

outras com menor incidência. O emprego de aparelhos celulares como

forma de acesso chegou a 66%, contra 71% em computadores ou note-

books e 7% em tablets. Um dos influenciadores deste resultado é o uso

de redes sociais: 92% dos internautas estão conectados a elas, sendo as

mais utilizadas o Facebook (83%), o WhatsApp (58%) e o Youtube (17%).

Complementando tais resultados, é interessante observar, de acordo com

pesquisa realizada pela agência Quartz20, que o Brasil ocupa o primeiro

lugar da lista de países que mais consomem notícias por meio do Face-

book – 67% da população tem este hábito, contra 57% da população da

Itália, que aparece em segundo lugar.

Portanto, é legítima a estratégia de ZH de aproximar-se do público

através de diferentes dispositivos – sejam digitais ou mesmo analógicos,

como a Carta do(a) Editor(a), publicada tanto em papel quanto no site do

jornal, e que apresenta, em sua narrativa, marcas evidentes deste jogo

jornalístico-empresarial, como bem apontamos. Em compensação, insti-

ga-nos saber se, ao fisgar os leitores, lhes é oferecido o jornalismo que,

de fato, eles esperam e merecem. Afinal, em tempos de convergência – e

18 Os dados foram reproduzidos pelo Farol Jornalismo. Disponível em: http://farol-jornalismo.cc/blog/2015/05/01/newsletter-farol-jornalismo-43-especial-state-of-the-news-media-coberturas-do-nepal-e-de-baltimore-e-as-ultimas-do-crowdfunding. Acesso em: 6 jun. 2016.19 A Pesquisa Brasileira de Mídia foi realizada pelo IBOPE com 18.312 pessoas maiores de 16 anos. O trabalho de campo ocorreu em novembro de 2014.20 Dados reproduzidos pelo Observatório da Imprensa. Disponível em: http://observa-toriodaimprensa.com.br/e-noticias/cerca-de-70-dos-brasileiros-se-informam-pelo-face-book/. Acesso em: 6 jun. 2016.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de crise (de modelos de negócios, em especial) – não basta estar perto;

é preciso disponibilizar conteúdo de qualidade para, assim, conquistar a

credibilidade e fidelizar o público.

Referências

BRASIL, Presidência da República. Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secre-taria de Comunicação Social (Secom), 2014. Disponível em: http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qua-litativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf. Acesso em: 20 mai. 2015.

GENETTE, Gerard. Nuevo discurso del relato. Madrid: Cátedra, 1998.

GLEICH, Marta. Marta Gleich: depoimento, 2013.

LINDEMANN, Cristiane. O jornal Zero Hora e seus leitores no con-texto de convergência jornalística. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/100146. Acesso em: 20 mai. 2015.

MINUZZI, Marcus Vinícius. Diálogo entre jornalistas e leitores: a par-ticipação do público através do ombudsman de imprensa e do Conselho do Leitor de Zero Hora. Tese. Unisinos. São Leopoldo-RS, 2007.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013.

NICKEL, Barbara. Barbara Nickel: depoimento, 2014.

LOPES, Ana Cristina M.; REIS, Carlos. Dicionário de teoria narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

SCHIRMER, Lauro. Da Voz-do-Poste à Multimídia. Porto Alegre: L&PM, 2002.

SOSTER, Demétrio de Azeredo. A reconfiguração das vozes narrativas no jornalismo midiatizado. In: Rizoma. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 1. Santa Cruz do Sul: Unisc, jul/2015, p. 23-35.

VERGARA, Nereida. Nereida Vergara: depoimento, 2013.

VERGARA, Nereida. Nereida Vergara: depoimento, 2014.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

O quarto narrador como um problema de circulação midiática

Demétrio de Azeredo Soster1

1 Percurso de pesquisa

O objetivo deste capítulo é demarcar o percurso de pesquisa que

possibilitou a emergência do conceito de quarto narrador e suas comple-

xificações, bem como os desafios de que se apresentam desde então. Por

esta perspectiva, os dispositivos que compõem o sistema midiático-co-

municacional, em determinadas situações, são detentores de vozes narra-

tivas; compreender como se dão estes processos de enunciação permitir

identificar este que estamos chamando de “o quarto narrador”. Sob outro

ângulo, insere-se da discussão a problemática da circulação, à medida

que a identificação do quarto narrador se estabelece em uma ambiência

midiatizada, reconfigurando lugares.

Iniciaremos com dois reconhecimentos e uma conclusão: 1) o siste-

ma midiático, em determinadas circunstâncias, é detentor de voz narrati-

va, cujos processos de enunciação lhe emprestam, a um tempo, identida-

de e diferença na relação com o meio em que se insere e com os demais

sistemas, e, decorrência disso, 2) que emerge desta “condição” um novo

extrato narrativo, que denominamos quarto narrador.

A conclusão, decorrência de 1) e 2), é que este quarto narrador,

1Pós-doutoranto pelo PPG de Comunicação da Unisinos. Professor-pesquisador do Programa de Pós Graduação em Letras e do Departamento de Comunicação Social da Unisc. Integrante o Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e ComunicacionaisGENALIM (CNPQ). Coor-dena a (SBPJor) Rede Nacional de Pesquisa so¬bre Narrativas Midiáticas (RENAMI), ligada à SBPJor. [email protected]

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51

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de natureza multifacetada e plurivocal, afeito antes a uma processua-

lidade que a um lugar situacional, como veremos adiante, reconfigura

as perspectivas seminais de Genette (1988) e Motta (2013), à medida

que reconhece no diálogo entre os dispositivos o “lugar” em que as

enunciações se estabelecem. Reconhecê-lo como tal coloca-nos diante da

seguinte questão: o quarto narrador é um problema de circulação?

A opção pela abordagem via circulação, no diálogo com Bergson

(2005) e Marcondes Filho (2010), reafirma a percepção que, caso queiramos

compreender a essência do que estamos afirmando neste capítulo, ou seja,

que a voz do quarto narrador se estabelece processualmente, é preciso pen-

sá-lo se transformando a cada instante. Se isso se evidencia dessa forma, é

porque a sociedade, neste momento evolutivo, está estruturada sobre com-

plexos mecanismos de circulação fortemente marcados por processos inte-

racionais de referência (BRAGA, 2007) que se dão sobre bases midiatizadas.

A observação do objeto, pelas condições descritas acima, encontra

consideráveis barreiras epistemológicas por pelo menos dois motivos:

1) por ele dizer respeito, seminalmente, a uma relação sistê-

mi¬ca; ou seja, observá-lo em parte permite que se veja, antes, a parte

que o objeto como um todo. (BERTALANFFY, 2006);

2) sua análise representar uma observação de segunda ordem,

à medida que ele, enquanto objeto, se estabelece a partir de complexos

processos de enunciação gerados por dispositivos sócio-tecnológicos, o

que requer gramáticas específicas de compreensão.

No que tange ao primeiro ponto, o registro dos acontecimentos, à

revelia de sua natureza, nos aproxima apenas de forma indiciática da es-

sência dos mesmos, à medida que esta, por estar em constante processo

de transformação, é inapreensível.

A observação é de segunda ordem, por outro lado, porque o objeto

emerge de processualidades sistêmicas (LUHMANN, 2009). Ou seja, o

que vemos, quando identificamos o quarto narrador, é uma reconfigura-

ção do acontecimento a partir do diálogo existente ente os dispositivos

que integram o sistema midiático. Por este viés, analisamos, fenomeno-

logicamente, antes, os movimentos de quem observa (o sistema) que

necessariamente aquilo que é observado. (LUHMANN, 2009).

Do ponto de vista metodológico, estamos falando de um cami-

nho de pesquisa de natureza qualitativa (DEMO, 2000) à medida que

se debruça sobre um objeto a um tempo complexo e emergente. Para

compreendê-lo melhor, descreveremos caminho que nos trouxe até este

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

estágio da pesquisa; inseriremos, na discussão, o quarto narrador e, nela,

a questão da circulação.

2 Como chegamos até aqui

A percepção que existe, para além dos extratos identificados semi-

nalmente por Genette (1988) e Motta (2013), um quarto nível narrativo

e que, para compreender sua essência, precisamos deixar, na análise, o

âmbito do dispositivo e considerar as operações existentes entre os dis-

positivos do sistema midiático, está diretamente relacionada ao caminho

do grupo de pesquisa Narrativas comunicacionais reconfiguradas.

Por este viés, ainda em 2010, o grupo, formado pelos professores-

doutores Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin, além dos então

alunos de graduação em jornalismo Joel Haas, Pedro Picolli Garcia e Va-

nessa Kannenberg (monitora), começou a estudar, pelo viés da teoria da

narrativa, como se estabelecia a intersecção da comunicação com a litera-

tura. Interessava, sobretudo, observar as estratégias que jornais impres-

sos diários estavam realizando para fortalecer seus vínculos identitários,

e, com isso, viabilizar suas operações (SOSTER et. al., 2010)

Dentre as constatações, considerando, por exemplo, pesquisa reali-

zada de 1º a 30 de setembro de 2010 com os jornais Zero Hora, de Porto

Alegre, e Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, é que estes movimentos

podiam ser identificados pela emergência de textos mais elaborados nas

amostras analisadas. Ou seja, relatos de natureza interpretativa e diver-

sional encontradas em jornais diário, mais afeitos a notícias, por exem-

plo, sugeriram operações realizadas pelos dispositivos para se diferen-

ciar dos demais, e, com isso, viabilizar suas próprias operações.

A partir de 2012, e até 2014, agora com novos integrantes – Diana de

Azeredo (monitora), Daiana Stockey Carpes, Rodrigo Bartz e Vanessa Costa

de Oliveira – a pesquisa deixa de lado finalmente o âmbito do dispositivo e

começa a prestar mais atenção aos movimentos de natureza sistêmica, ten-

do por objeto central, ainda, as imbricações entre o jornalismo e a literatura.

A atenção, a partir deste momento, passa a se concentrar so-

bre a imbricação entre os dois campos de conhecimento por meio da

análise de formatos específicos de publicação de natureza jornalísti-

co-comunicacional, genericamente chamados de livros-reportagem e

biografias jornalísticas.

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53

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Na categorização de Lima (2009), livros-reportagem são veículos de

comunicação impressa não periódicos que “(...) apresentam reportagens em

grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios jornalísticos

periódicos” (LIMA, 2009, p. 26). Já biografias de natureza jornalísticas são vis-

tos como uma variante dos livros-reportagens, mas que, diferentemente dos

primeiros, se estabelecem quando “(...) um jornalista centra suas baterias mais

em torno da vida, do passado, da carreira” (LIMA, 2009, p.45) de alguém.

A proposta era observar a emergência destes formatos de narrativa

e as reconfigurações decorrentes da utilização, por parte do jornalismo,

de recursos da narrativa de natureza literária que acabam por transfor-

mar tanto o que é da ordem do jornalismo como da literatura em uma

perspectiva dialogal. É dessa época, por exemplo, que emergem artigos

como “Reconfigurações narrativas no jornalismo e na literatura2”, publica-

do na Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo (Rebej).

Partiu-se do princípio que, não obstante as origens das imbricações

entre jornalismo e literatura remontarem ao surgimento do primeiro, no

século 13, em algum lugar da Europa central, este modelo de narrativa

parece ocupar um lugar diferenciado nos dias que se seguem, reconfigu-

rando a prática tanto no que tem de jornalístico-comunicacional como de

literária, especialmente, e de modo diferencial, na contemporaneidade,

como estratégia de identidade.

As atenções se debruçaram, à época, sobre os livros-reportagem e

biografias de Fernando Morais, como se pode observar pelo artigo “O que

dizem os gêneros nas narrativas jornalísticas não-biográficas de Fernando

Morais3”, apresentado em Manaus, Amazonas, durate o 35º encontro da

Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVI

(Intercom) - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

Partia-se do pressuposto, no artigo, que observar a riqueza narrati-

va dos livros-reportagem de Fernando Morais de natureza não-biográfica

implicava analisar, de um lado, as categorias e os gêneros que a compõe,

enquanto que, de outro, o papel que ela ocupa no sistema midiático-co-

municacional. A hipótese que norteou a pesquisa é que as categorias e

suas derivações eram, antes, indexadores de camadas mais profundas de

significação que mecanismos de compartimentalização textual.

2 Disponível em: http://www.fnpj.org.br/rebej/ojs/index.php/rebej/article/view-File/314/199 Acesso em: 7 de junho de 20163 Disponível em http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-0046-1.pdf Acesso em: 7 de junho de 29016

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A pesquisa permitiu observar, à época, que a emergência destes forma-

tos de narrativa juntos aos demais dispositivo do sistema midiático (rádios,

jornais, revistas, televisões, sites etc.) se dava em decorrência de movimentos

que buscavam, ao fim, fortalecer os laços identitários do referido sistema.

A pesquisa avança e começa a tomar dimensões mais amplas, a

partir de 2015, quando se insere, na discussão, o primeiro, segundo e

terceiro narradores identificados primeiro por Genette (1988), na literatu-

ra, e, depois, por Motta (2013), na comunicação.

3 Os três narradores

Sinteticamente, eles podem ser assim descritos (SOSTER, 2015):

Primeiro narrador – Reconhecê-lo como tal implica observar

que os relatos que nos chegam pela televisão, rádios, sites, jornais e

revistas impressos, no que eles têm de jornalísticos, para ficarmos em

alguns exemplos, são enunciados dos dispositivos a que se referem (a

manchete do jornal, por exemplo), evidentemente, mas, também, das

organizações e instituições que viabilizam os mesmos. Ou seja, o pri-

meiro narrador, que é extradiegético, é, em sua essência, seminalmente

plurivocal, à medida que é formado por agentes e processos dos mais

diferentes matizes e naturezas (empresários, diretores, editores etc.).

Segundo narrador – “É o jornalista, a voz que enuncia propriamente

a narração, organiza e costura a tessitura da intriga, dispõe as ações, con-

flitos, personagens e cenas.” (MOTTA, 2013, p. 228). O jornalista-narrador,

que é intradiegético, possui autonomia operacional, mas suas ações estão

condicionadas ao primeiro narrador. Por exemplo: o jornalista, mesmo tendo

liberdade, em maior ou menos grau, de elaborar sua pauta, esta estará sem-

pre umbilicalmente ligada ao local (dispositivo) em que ele vai publicá-la em

seus mais diversos sentidos (espacial, temático, ideológico etc.)

Terceiro narrador – São as fontes, ou personagens, das matérias.

Intradiegéticos, igualmente, porque dentro das histórias, e subordinados

principalmente ao segundo narrador. Também aqui, a percepção de que

as fontes são subordinadas deve ser relativizada, à medida em que elas

podem ter ascendência tanto sobre o segundo narrador como o primeiro.

“(...) estes atores sociais passam muitas vezes a narrar como testemunhas,

ganha status de personagens e voz ativa na história, transformando-se,

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55

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

em última instância, também em narradores” (MOTTA, 2013, p. 230).

A partir deste momento, e com base no caminho seguido até aqui,

os pesquisadores avançam em direção a camadas mais profundas de sig-

nificação e começam a prestar atenção nos processos de enunciação que

emergem dos relatos analisados. Constata-se, em primeiro lugar, a exis-

tência dos três níveis narrativos em livros, por exemplo, mas com uma

diferença importante na relação com as categorizações anteriores: em

determinados formatos de narrativas, o segundo narrador ganha relevân-

cia diferenciada, na comparação com os demais. Tem-se, dessa forma,

uma espécie de reconfiguração do processo de disputa de poder entre as

vozes narrativas, partindo da proposição de Motta (2013).

Podemos pensar a disputa de vozes narrativas a partir do gráfico abaixo:

Gráfico 1 – disputa de vozes narrativas

Fonte: elaboração do autor

Observe-se que o esquema diz respeito, principalmente, à análise

de dispositivos como jornais e revistas impressos, cuja processualidade

é fortemente marcada por dinâmicas de circulação mais aceleradas, cuja

marca mais visível é a periodicidade.

Contudo, uma vez transplantada para os livros-reportagem e as bi-

bliografias de natureza jornalísticas, observa-se, aí, uma reconfiguração

importante, haja vista que estes não circulam da mesma forma que os

jornais; não devem ser pensados, portanto, em termos de periodicidade.

O gráfico abaixo demonstra o que estamos afirmando:

Primeiro narrador(extradiegético)

Segundo narrador(intradiegético)

Terceiro narrador

(intradiegético)

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Gráfico 2 – reconfiguração das vozes

Fonte: elaboração do autor

A pesquisa observou que, por este viés, o segundo narrador passa

a exercer uma centralidade operacional, na comparação com os demais

extratos narrativos (primeiro e segundo narradores). Esta reconfiguração,

como dito, é decorrência principalmente da temporalidade por meio da

qual o dispositivo “livro” dialoga com seu entorno.

Ao não se ver premido por amarras temporais – e a ausência de

periodicidade é a face mais visível deste processo – o segundo narrador

(jornalista) tem condições de interferir mais incisivamente sobre as esco-

lhas tanto sobre o primeiro como sobre o terceiro narradores.

4 O quarto narrador

O estágio atual da pesquisa, iniciado em 2015, debruça-se so-

bre a emergência de um quarto narrador. A diferença, na compa-

ração com os demais extratos narrativos, como salientado, é que

o quarto narrador se personifica antes em uma processualidade;

quando em movimento, portanto, que em um lugar situacional (jor-

nal, revista etc.), como ocorria com os modelos anteriores. Pensá-lo

Terceiro narrador(intradiegético)

Primeiro narrador(extradiegético)

Segundo narrador(intradiegético)

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

como tal requer que se considere tanto os processos de enunciação

realizados pelos dispositivos como o diálogo que se dá entre estes.

Os sentidos que emergem desta processualidade é que dão forma

ao quarto narrador.

Importante salientar, ainda que, como frisado no artigo. “A litera-

tura, o sistema midiático e a emergência do quarto narrador”, veiculado

na revista Signo4, estamos falando, nesta perspectiva de um narrador

de natureza multifacetada e plurivocal. Não parece haver, neste caso,

como sugerimos nos gráficos 1 e 2, uma disputa de vozes, represen-

tadas, nas imagens, pelo primeiro, segundo e terceiro narradores por

pelo menos dois motivos: o quarto narrador existe, como dissemos, a

partir do diálogo entre os dispositivos, e, ato contínuo, se estabelece

antes em uma processualidade que em um lugar situacional.

Não quer dizer que ele não dialogue com os demais extratos

narrativos, mas, antes, que, por ser decorrência dos processos de

enunciação destes, não disputa “espaço de fala” com eles. O gráfico

abaixo nos permite compreender melhor o lugar ocupado pelo quar-

to narrador.

Gráfico 3 – o lugar do quarto narrador

Fonte: elaboração do autor

4 Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/7336. Acesso em: 7 de junho de 2016

Terceiro narrador(intradiegético)

Primeiro narrador(extradiegético)

Segundo narrador(intradiegético)

Quarto narrador

(extradiegético)

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58

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Observe-se que as ofertas de sentido, decorrentes dos processos de

enunciação dos dispositivos que, em seu conjunto, personificam aquele

que estamos chamando de quarto narrador não é axiomática. Ou seja, não

pressupõe que as transformações que se estabeleçam a partir daí interfi-

ram apenas no entorno do sistema midiático (meio e demais sistemas).

Verifica-se aqui, em essência, o que identificamos em outro momen-

to (SOSTER, 2009) como a gênese do jornalismo midiatizado. Ou seja, do

jornalismo cujos dispositivos, mais que vetores de midiatização, são afe-

tados pela processualidade desta, midiatizando-se: os dispositivos res-

ponsáveis pela midiatização são afetados pela processualidade desta.

Para melhor ilustrar o que estamos afirmando, vamos supor que, no

esquema abaixo, os pontos “a”, “b” e “c” (círculo menor) sejam os primei-

ros, segundo e terceiros narradores, e que sejam identificáveis, portanto,

no âmbito do dispositivo. Por essa lógica, “d” é o quarto narrador e “e” e

“f” são, respectivamente, o ambiente e os demais sistemas, sociais ou não.

Gráfico 5 – processualidades diferenciadas

Fonte: elaboração do autor

Pois bem, ao se tornar “identificável”, o quarto narrador – “d” – mais

que se tornar visível, passa a dialogar com “e” e “f”, interferindo na dinâ-

mica funcional destes. Esta interferência, por sua vez, acaba por afetar

tanto o quarto narrador – “d” – como “a” + “b” + “c”, relacionalmente.

“a” + “b” + “c” “d” “e” “f”

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Compreender as transformações que se dão no diálogo entre “a” +

“b” + “c” + “d” + “e” + “f” implica, portanto, 1) reconhecer a existência do

quarto narrador; 2) observar que ele não exerce uma centralidade opera-

cional, 3) que as partes, isoladas, integram, mas não sintetizam, o todo;

e, finalmente, 4) que se trata de um problema, como estamos defenden-

do, de circulação midiática.

Afirmar que o quarto narrador representa um problema de circu-

lação, no diálogo com Fausto Neto (2010), é assumir, desde aqui, que

a circulação, sofrendo as injunções dos processos de midiatização,

passa a ser compreendida como um novo lugar na arquitetura comuni-

cacional midiática:

A circulação deixa de ser um elemento “invisível” ou “insondá-vel” e, graças a um trabalho complexo de linguagem e técnica, segundo operações de dispositivos explicita sua “atividade cons-trucionista”, gerando pistas, novos objetos, e, ao mesmo tempo, procedimentos analíticos que ensejam a inteligibilidade do seu funcionamento e dos seus efeitos. (2010, p. 3)

Por esta perspectiva, usado o gráfico 5 como parâmetro, o que ob-

servamos na relação existente entre “a” + “b” + “c” + “d” + “e” + “f” é mais

que o diálogo entre as vozes narrativas de um dispositivo (a” + “b” + “c”),

a emergência de uma nova instância narrativa a partir do contato deste

com os demais dispositivos (“d”) – o quarto narrador –, e destes com o

meio (“e”) e demais sistemas (“f”).

O que percebemos, nas zonas de contato entre cada uma das

instâncias, é a formação de “espaços de potencialidades”, na nomen-

clatura de Fausto Neto (2010), ao invés de intervalos ou simples zonas

de passagem.

Os intervalos, enquanto regra naturalizada, devem ser lidos como complexa processualidade, enfeixando relações sobre as quais não se detém o controle de suas dinâmicas. A própria exis-tência, trajetos e efeitos dos vínculos que reúnem produção e recepção resultam do “aparelho circulatório”, enquanto efeito de suas próprias disposições, na medida em que é este último que define e impulsiona sobre quais condições se fundem as opera-ções de sentido. (2010, p. 8)

Isso posto, podemos afirmar que a instância “d”, ou seja, o quarto

narrador, existe, de um lado, como temos defendido, em decorrência dos

processos de enunciação que se dão entre os dispositivos, mas que se

complexifica substancialmente, e eis a direção que a pesquisa caminha,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

quando pensado pelo viés da circulação. Ou seja, antes como uma rela-

ção entre “a” + “b” + “c” + “d” + “e” + “f” que um lugar situacional.

Compreender o que isso significa é o desafio que se apresenta da-

qui para frente.

5 Percurso de pesquisa

Sinteticamente, temos o seguinte percurso de pesquisa.

5.1 A narrativa jornalística em sua intersecção com a litera-

tura. O projeto, iniciado em 2010 e encerrado em 2012, foi o primeiro

passo no sentido de observar as reconfigurações que estavam ocorrendo

com o jornalismo, tendo como ponto de partida a emergência de forma-

tos pouco canônicos no sistema jornalístico, caso dos livros-reportagem

e das biografias de natureza jornalística.

Principais produções no período:

SOSTER, D. A.; PICCININ, F. (Org.). Narrativas Comunicacionais Comple-

xificadas. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012. v. 1. 294p .

SOSTER, D. A.. Reconfigurações narrativas no jornalismo e na literatura.

Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo (Rebej), v. 3, p. 96-108, 2013.

SOSTER, D. A.; PICCININ, F. . Da anatomia do telejornal midiatizado: me-

tamorfoses e narrativas múltiplas. Brazilian Journalism Research (Online),

v. 8, p. 118-134, 2012.

5.2 Jornalismo e literatura: narrativas reconfiguradas. De

2012 a 2014, e a partir do que havíamos pesquisado nos dois anos ante-

riores, passamos a pesquisar mais pontualmente as referidas configura-

ções do jornalismo, desta vez com mais atenção aos diálogos existentes

entre os sistemas e considerando as complexificações que se estabele-

ciam entre os campos do jornalismo e da literatura.

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61

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Principais produções no período:

SOSTER, D. A.; PICCININ, F. (Org.). Narrativas comunicacionais complexi-

ficadas 2: a forma. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2014.

SOSTER, D. A.; PICCININ, F. . Narrativas literárias no jornalismo impresso

diário: o caso dos jornais Zero Hora e Gazeta do Sul. Brazilian Journalism

Research (Online), v. 1, p. 128-149, 2014.

SOSTER, D. A.; PICCININ, F. . Literary narrative in the daily print media:

Zero Hora and Gazeta do Sul. Brazilian Journalism Research (Online), v. 1,

p. 122-143, 2014.

SOSTER, D. A.. Reconfigurações narrativas no jornalismo e na literatura.

Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo (Rebej), v. 3, p. 96-108, 2013.

SOSTER, D. A.; CARPES, D. S. ; AZEREDO, D. ; DUREN, R. ; BARTZ, R. ;

OLIVEIRA, V. C. . APROPRIAÇÕES JORNALÍSTICAS NO CAMPO LITERÁRIO:

RECONFIGURAÇÕES NARRATIVAS IDENTIFICADAS NA OBRA NÃO BIOGRÁ-

FICA DE FERNANDO MORAIS. In: Fabiana Piccinin; Onici Claro Flôres; Ro-

sângela Gabriel; Rosane Cardoso. (Org.). Tecendo conexões: cognição,

linguagem e leitura. 1ed.Curitiba: Multideia, 2014, v. , p. 441-450.5.

SOSTER, D. A.. Vozes narrativas reconfiguradas nas biografias de natu-

reza jornalística. In: Demétrio de Azeredo Soster; Fabiana Piccinin. (Org.).

Narrativas comunicacionais complexificadas 2: a forma. 1ª ed.Santa Cruz

Do Sul: Edunisc, 2014, v. , p. 89-110.

SOSTER, D. A.. Jornal Unicom e revista Exceção: práticas laboratoriais

impressas. In: Demétrio de Azeredo Soster; Mirna Tonus. (Org.). Jornalis-

mo-laboratório: impressos. 1ª ed.Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2013, v. 1,

p. 153-165.

SOSTER, D. A.; MOURA, D. O. ; ROSA, A. P. ; QUADROS, C. I. ; STACHESKI,

D. ; MOGNON, F. ; COUTINHO, I. ; GUERRA, J. L. ; NUNES, J. ; CAETANO,

K. ; MAIA, K. ; AGUIAR, L. ; LIELNICZUK, L. ; FORT, M. C. ; KASEKER, M. ;

VECHIO, M. ; GENTILI, V. . Jornaliso II: congresso da SBPJor em Curitiba

atesta expansão da pesquisa. In: João Cláudio Garcia Lima; José Marques

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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nice Piazza Gai, Vera Lúcia de Oliveira. (Org.). Narrativas brasileiras con-

temporâneas em foco. Santa Maria: Editora UFSM, 2012, v. , p. -.

SOSTER, D. A.. Sistemas, complexidades e dialogias: narrativas jorna-

lísticas reconfiguradas. In: Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Piccinin.

(Org.). Narrativas Comunicacionais Complexificadas. 1ª ed.Santa Cruz do

Sul: Edunisc, 2012, v. 1, p. 89-110.

SOSTER, D. A.. Complexidades, sistemas e redes sociais: metamorfoses

do ensino-aprendizado. In: Raquel Longhi; Carlos d’Andréa. (Org.). Jorna-

lismo convergente: reflexões, apropriações, experiências. 1ª ed. Florianó-

polis: Insular, 2012, v. 1, p. 1-272.

SOSTER, D. A.; PICCININ, F. ; HAAS, J. ; GARCIA, Pedro Piccoli ; Kan-

nenberg, Vanessa . Jornalismo diversional e jornalismo interpretativo: di-

ferenças que estabelecem diferenças. In: José Marques de Melo; Roseméri

Laurindo e Francisco de Assis. (Org.). Gêneros jornalísticos: teoria e prá-

xis. 1ed.Blumenau: Edifurb, 2012, v. 1, p. 95-107.

5.3 Narrativas comunicacionais reconfiguradas. É onde, des-

de 2015, temos observado com mais atenção não apenas os três níveis

narrativos referidos anteriormente como a emergência do quarto narra-

dor. Ou seja, representa o marco que projeta a pesquisa antes para pro-

cessualidades operacionais dos campos que para as áreas do conheci-

mento, ainda que siga dialogando com as mesmas.

Principais produções no período:

SOSTER, D.A. A literatura, o sistema midiático e a emergência do quarto

narrador. Signo (UNISC. Online), v. 1, p. 154-161, 2016.

SOSTER, D. A.. Dialogia e atorização: características do jornalismo mi-

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63

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

diatizado. Rebej (Brasília), v. 5, p. 4-20, 2015.

SOSTER, D. A.. A reconfiguração das vozes narrativas no jornalismo mi-

diatizado. Rizoma: midiatização, cultura, narrativas, v. 3, p. 23-35, 2015.

SOSTER, D. A.; BARTZ, R. . Biografia jornalística: algumas possibilidades.

Guavira Letras, v. 21, p. 187-201, 2015.

SOSTER, D. A.. O jornalismo midiatizado e a reconfiguração das vozes

narrativas nos livros-reportagem de Eliane Brum. In: Antonio Fausto Neto;

Natalia Raimondo Anselmino; Irene Lis Gindin. (Org.). Relatos de investi-

gaciones sobre mediatizaciones. 1ªed.Rosario (AR): UNR Editora. Editorial

de la Universidad Nacional de Rosario, 2015, v. , p. 255-270.

SOSTER, D. A.. O sistema como quarto narrador do jornalismo. In: Ana

Carolina Rocha Pessôa Temer; Marli dos Santos. (Org.). Fronteiras híbridas

do jornalismo. 1ª ed.Curitiba: Appris, 2015, v. 3, p. 161-176.

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DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2000.

GENETTE, Gerárd. Figuras III. Barcelona: Lumen, 1988.

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LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como ex-tensão do jornalismo e da literatura. Barueri: Manole, 2009.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

MARCONDES FILHO, Ciro. Nova teoria da comunicação. São Paulo: Pau-lus, 2010.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: UnB, 2013.SOSTER, Demétrio de Azeredo Soster. O sistema como quarto narrador do jornalismo. In: TEMER, Ana Carolina Rocha Pessôa; SANTOS, Marli, Fronteiras híbridas do jornalismo. Curitiba: Apris, 2015.

SOSTER, Demétrio de Azeredo; PICCININ, Fabiana; HAAS, Joel; GARCIA, Pedro; Kannenberg, Vanessa. Narrativas Literárias no Jornalismo Impresso Diário: o caso dos jornais Zero Hora e Gazeta do Sul. In: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011 Anais. Intercom, 2010.

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65

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

O ouvidor: além do escutar, narrar

Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller1

1 Introdução

O presente estudo traz uma reflexão sobre a atividade do ouvidor, es-

pecificamente do ouvidor brasileiro (com suas peculiaridades), e a relação

da prática da escuta (ferramenta de trabalho essencial do ouvidor) com o

ato da narrativa.

Por ouvidor, entendemos o profissional que atua como mediador nas

relações entre uma instituição ou organização e os seus públicos interno

ou externo. O ouvidor, conforme Sá (2004, p. 54), deve saber ouvir o

“do outro lado”, fazendo uma “leitura”, pois, muitas vezes, serve como

intérprete e tradutor de quem o procura. “A leitura do ouvidor é a alma

da comunicação”, sendo que ser “ouvidor é saber falar ao ‘do outro lado’,

encontrando a palavra certa, a resposta exata”.

Por narrativa, entendemos “o discurso capaz de evocar, através da

sucessão de fatos, um modo dado como real ou imaginário, situado num

tempo e num espaço determinados” (SODRÉ, 1988, p. 75). Sodré (1988)

ainda frisa que a narração é a construção verbal que fala acerca do mundo.

A narrativa é “a história resultante da sucessão de eventos e estado de

coisas mediados por personagens numa perspectiva crono(lógica)”

(PICCININ, 2012, p. 68).

Assim, o objetivo deste artigo – frisando a figura do ouvidor, da ouvido-

ria brasileira e da narrativa – é pesquisar se há, de fato, narrativa no traba-

1 Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Unisc

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

lho do ouvidor e, além disso, buscar entender quais os tipos de narrativas

podem ser encontradas, caso existam. Buscamos, sobretudo, fazer uma

aproximação entre a narrativa e a escuta, que é o ouvir com atenção.

2 A ouvidoria

2.1 Contextualização histórica

A primeira vez que se falou na figura do ouvidor no Brasil foi no período

colonial, em meados do século XVI, quando já existia o ouvidor-mor – no-

meado pelo rei de Portugal, que exercia a tarefa de administrar a justiça da

coroa junto à população. Posteriormente, em 1713, na Suécia, surgiu um

novo conceito de ouvidor, ou ombudsman (palavra que vem do sueco e sig-

nifica: “ombud”, representante, e “man”, homem), que seria o precursor do

ouvidor moderno, conforme Calado (2012). Contudo, essas figuras e suas

funções, mesmo após mudanças, ainda eram distantes do conceito atual

de ouvidor e de ouvidoria, pelo menos no contexto brasileiro.

O primeiro ombudsman no Brasil, após início do processo de rede-

mocratização, deu-se na empresa privada Rhodia, no ano de 1985. Esse

profissional nasceu como um representante do consumidor. Um ano de-

pois, a prefeitura de Curitiba instituiu o seu ouvidor. Já em 1989, o jornal

Folha de São Paulo lançou o primeiro ombudsman da imprensa brasileira

(VISMONA, 2005). A partir dai, várias ouvidorias surgiram, tanto na esfera

públicas (como as sistêmicas: municipais, estaduais e federais; e as seto-

riais: da área educacional e da saúde), quanto em particulares (empresas

dos mais variados segmentos).

Especificamente as ouvidorias universitárias no Brasil são recentes,

pois começaram a surgir apenas a partir dos anos 90, com a criação da

primeira ouvidoria na Universidade Federal do Espírito Santo, em 1992.

As ouvidorias universitárias têm como premissa agirem como “um instru-

mento da democracia participativa, que propicia um canal acessível de

comunicação de alunos, professores, servidores e da comunidade exter-

na, com a Administração Superior, contribuindo para sintonizá-la com os

anseios coletivos” (VILANOVA, 2005, p. 101).

É clara a distinção entre o ombudsman tradicional e a ouvidoria bra-

sileira, que, apesar de ter adotado estrutura e sistemas semelhantes nas

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67

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

suas operações, não podem ser considerados como instituições iguais,

conforme Oliveira (2005). No presente estudo, usaremos o termo ouvidor

apenas, apesar de não estarem, no nosso entendimento, bastante defini-

das as diferenças entre o uso do termo ombudsman e ouvidor (inclusive

também são usados os nomes: procuradores do povo ou procuradores

do público, defensores , mediadores, entre outras definições). Nota-se

apenas que a palavra ombudsman é mais usada no meio jornalístico e a

palavra ouvidor no meio empresarial. Contudo, há o uso das duas nomen-

claturas, em muitos casos, para designar o mesmo tipo de profissional

em nosso país.

2.2 O papel da ouvidoria

A ouvidoria é um canal de comunicação entre os públicos e a ins-

tituição ou organização, e vice-versa, pois, conforme Almeida e Fava

(2012, p. 16-17), “a Ouvidoria é sem dúvida um importante canal para

que a Instituição possa ouvir e ser ouvida”, visto que, assim como escuta

no momento em que recebe uma manifestação, a ouvidoria (representan-

do a instituição ou organização) também é escutada, quando responde à

demanda daquele cidadão o qual representou quando tratou do assunto

no âmbito interno.

O ouvidor, desta forma, trabalha com um mediador, a partir de um

relato de um demandante, que é aquele (ou aqueles) indivíduo(s) que fez

uma manifestação junto à ouvidoria. Segundo Oliveira (2005, p. 47), “a

ouvidoria brasileira é, sem dúvidas, um canal de diálogo com a popula-

ção; uma porta aberta para a participação através do escutar”.

É fato que as ouvidorias começaram sua atuação, desde seus primór-

dios, justamente com o caráter da escuta de manifestações oralizadas, por

meio de contatos feitos pessoalmente, face a face, contudo, logo com o

passar do tempo, adotou-se as correspondências e o telefone (que não

deixa de ser oralizado também) para facilitar o acesso aos demandantes.

Hoje, com as inúmeras tecnologias existentes, grande parte das manifesta-

ções são feitas virtualmente (por e-mail ou formulários on-line).

Os registros nas ouvidorias normalmente podem se dar no formato

de: consultas, reclamações, denúncias, sugestões ou elogios. Porém, cada

Ouvidoria pode ter a sua maneira de nomear as manifestações que recebe.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

O processo de trabalho do ouvidor acontece já a partir da escuta

ou leitura da manifestação do demandante (daquele que procura a ouvi-

doria), posteriormente o ouvidor redige o texto, analisa a questão e, em

seguida, faz os devidos encaminhamentos do assunto com os responsá-

veis competentes, que, no caso, avaliam a situação e fornecem um retor-

no, uma resposta para o ouvidor que contemple o assunto. O ouvidor, de

posse da resposta, repassa a informação, após sua análise, para o deman-

dante, dando um retorno para o seu manifesto. Ainda há, especialmente

nas ouvidorias de instituições públicas, o caráter investigativo, quando o

ouvidor não apenas trabalha de forma receptiva, mas proativa, quase que

como um fiscal.

3. Narrativa e ouvidoria

Apesar de Benjamin (1987) dizer em seu clássico texto O narrador,

que a arte de narrar está quase entrando em extinção, pois, entende o au-

tor que cada vez mais estão ficando raros aqueles que sabem narrar ade-

quadamente. Entendemos que o narrador não irá morrer, porque, como

bem disse Motta (2012A, p. 53), “a narrativa retornou definitivamente à

cena cultural”.

Benjamin referia-se à arte de se narrar histórias oralizadas, fala do

narrador clássico, pois temia o fim dessa figura com a chegada do romance

e do jornalismo. Contudo, como afirmou Barthes (1976, p.19), “a narrativa

está sempre presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas

as sociedades”. Desta forma, se sempre existiu e existirá narrativas, acre-

ditamos que sempre haverá o narrador, aquele que narra algo e, havendo

narrador, haverá o ouvinte, pois, assim como para existir a escuta, enten-

demos que é preciso que haja, antes, alguém disposto a narrar, para haver

a narrativa é preciso que exista alguém com disposição para escutar.

De acordo com Santiago (1989, p. 2-3), Benjamin conseguiu carac-

terizar três tipos (elocuções) de narrador: o primeiro estágio ele nomeia

como “o narrador clássico”, que tem como função “dar ao seu ouvinte a

oportunidade de um intercâmbio de experiência”; o segundo, nomeou

como “o narrador do romance”, que tem a função “de não mais poder falar

de maneira exemplar ao seu leitor”; e o terceiro, nomeou como “o narra-

dor que é jornalista”, aquele que “só transmite pelo narrar a informação,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

visto que escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o

que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora”.

Para Santiago (1989), enquanto Benjamin desvaloriza o “narrador do

romance” e o “narrador jornalista”, o pós-moderno os valoriza, porque es-

ses narradores transmitem uma “sabedoria” que surge a partir da observa-

ção de uma vivência alheia a eles, “visto que a ação que narra não foi tecida

na substância viva da sua existência” (p. 3). No presente estudo, entende-

mos que o narrador ouvidor também se enquadre aqui, talvez próximo do

narrador jornalista, afinal, narra uma vivência que não é a sua.

Benjamin (1987) diz que as melhores narrativas escritas são “as que

menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narra-

dores anônimos” (p. 198). Ele ainda salienta que “a experiência que passa

de pessoa para pessoa é a fonte que recorreram todos os narradores” (p.

198). Logo, Benjamin defende um narrador falante e nós acreditamos em

um narratário (destinatário do ato narrativo) ouvinte e também falante,

que é o ouvidor.

Segundo o Código de Ética do Ouvidor/Ombudsman (2014, p.1),

uma das caraterísticas do exercício das atividades da função é “ouvir seu

representado com paciência, compreensão, ausência de pré-julgamento e

de todo e qualquer preconceito”. E, para ouvir, entendemos que é preciso

que haja, antes, alguém disposto a narrar.

Por outras palavras, é dizer que, para que haja histórias escritas

(baseadas nas histórias faladas), é preciso que existam as histórias orali-

zadas, e para que estas aconteçam, é preciso que haja, além do narrador,

o narratário, que, sobretudo, é aquele que escuta. Conforme Gaudreault e

Jost (2009, p. 57), “não há narrativa sem que haja uma instância que nar-

re”. Assim, frisamos que, em uma ouvidoria, não há narrativa sem alguém

que escute e que, em um segundo momento, também narre.

Toda manifestação feita em uma ouvidoria é uma narrativa. E, tendo

em vista que o próprio ouvidor também se transforma em narrador, no mo-

mento em que interpreta, redige e organiza o relato do manifestante, ele

narra não as suas, mas as experiências alheias. E, se assim o faz é porque

em momento anterior escutou, logo, o ouvinte é uma figura fundamental

no contexto em que se dá o processo da narrativa no presente estudo.

Segundo Motta (2012B, p. 23), “as narrativas permeiam toda a

nossa existência. Estudá-las é refletir sobre o significado da experiência

humana e sobre o quê as narrativas realizam enquanto atos de fala”.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Para Motta (2012B), estudar as narrativas é entender o sentido da vida,

dada sua importância. Ou seja, narrar é inerente ao ser humano. Apren-

demos a contar histórias muito antes da aquisição da linguagem escrita

ou até mesmo da oral.

Conforme Gaudreault e Jost (2009), há diferença entre a narrativa

oral, “mais simples”, em que se supõe um narrador, uma única atividade

de comunicação narrativa que se dá no momento, quando dois interlocu-

tores estão em presença um do outro (in praesentia) e a narrativa escrita,

que não é entregue no mesmo momento em que é emitida (in absentia)

e, além disso, tem intermediário (que pode ser um livro, uma revista, um

jornal, ou o relato do ouvidor, no nosso entendimento neste artigo).

Assim, compreendemos que em uma ouvidoria existem as duas formas

de narrativa: primeiro, quando da escuta do relato do demandante, por parte

do ouvidor, ai se dá a narrativa oral, quando o ouvidor é o narratário e o

demandante o narrador; e, em um segundo momento, há a narrativa escrita,

quando o ouvidor se transforma em narrador a partir do instante em que

interpreta a narrativa do demandante e a transcreve, intermedia. Ele, de posse

da narrativa escrita intermediada, trabalha como narrador a outro narratário,

que é o responsável competente (a quem será encaminhada a manifestação)

que, por sua vez, pode servir de narrador para outras instâncias, até que

volte a dialogar com o ouvidor, narrando sua resposta. Neste ponto, o

ouvidor é, pelo menos, um duplo narrador e um duplo ouvinte, pois está

intermediando uma segunda narrativa, que é a resposta.

É importante destacar, conforme definição de Gaudreault e Jost

(2009), o sistema de igualdades e desigualdades proposto por Todorov:

quando “narrador > personagem”, o narrador sabe mais do que a perso-

nagem sabe; quando “narrador = personagem”, o narrador sabe o mesmo

que a personagem sabe; e, quando “narrador < personagem”, o narrador

sabe menos do que a personagem sabe.

Desse ângulo, podemos dizer que o ouvidor é o narrador e o deman-

dante a personagem. Assim, quando o ouvidor-narrador é “= a personagem”,

ele sabe aquilo que o demandante relatou, ambos têm a mesma informação,

já quando o ouvidor-narrador é “< que o personagem”, há pontos que a per-

sonagem ou omitiu ou esqueceu de relatar. Esses são os dois casos possíveis

que se pode encontrar. O ouvir-narrador como “> que a personagem” acredi-

tamos que não é possível haver, pois a comunicação se dá basicamente pela

narrativa do demandante, por sua história contada, logo, o ouvidor-narrador

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

não tem como ir além do que lhe é dito. Isso mesmo quando o ouvidor está

em diálogo com o responsável competente, que, por ventura, pode saber

de coisas que o demandante não sabe. Nesse caso, o narrador passa a ser o

responsável e não mais o demandante, assim o ouvidor não tem como saber

além do que lhe é contado por cada narrador em seu tempo.

Logo, o narrador-ouvidor ou sabe o mesmo ou sabe menos que o

narrador-demandante. Ai está novamente uma aproximação com a nar-

rativa jornalística informativa e um distanciamento da narrativa literária,

quando o narrador pode ser onisciente e saber mais do que o dito pela

personagem.

Obviamente que, após os encaminhamentos dos assuntos o ouvi-

dor poderá ter outras versões além da que foi narrada pelo demandante,

mas nesse caso, serão sempre outras novas narrativas, de outros narra-

dores com suas verdades.

4. Conclusão

Pensando na figura do ouvidor, na ouvidoria e na narrativa, o intui-

to deste trabalho é apresentar uma possibilidade de se pesquisar acerca

dos tipos de narrativas encontradas no trabalho do ouvidor. Trata-se de

uma relação entre a narrativa e a escuta.

Concluímos, com este estudo, que o ouvidor é sim um narrador e,

mais do que isso, possui uma peculiaridade, pois é o que nomeamos de

“ouvidor-narrador”, pois escuta e narra (é o saber ouvir e o saber falar,

conforme Sá, 2004). Desta forma, afirmamos que o ouvidor é primeira-

mente um ouvinte e posteriormente transforma-se em um narrador, pou-

co antes (no momento em que faz a leitura, conforme Sá, 2004) e durante

o processo de mediação existente na atividade laboral de uma ouvidoria.

Acreditamos que o narrador de Benjamin, ao menos no que se refere à

ouvidoria, não irá morrer enquanto as ouvidorias existirem, uma vez que

a escuta de histórias/manifestações oralizadas (ou até mesmo as escri-

tas) é definitivamente fundamental para a atividade do ouvidor.

Concordamos com Motta (2012B) de que narrar é sim inerente aos

humanos. De fato, as narrativas nos acompanham em toda a nossa vida.

Vivemos e somos a partir do que narramos, de nossas histórias, sendo

que “narra-se pelo prazer gerado por quem o faz e por quem o recebe”

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

(PICCININ, 2012, p. 69). O ouvidor, ou ombudsman, como frisou Dummar

(2004, p. 7), “é o acesso ao outro e a nós mesmos”. Assim, se a ouvidoria é

um canal de diálogo, de acesso e troca entre uma instituição ou organização

e seus públicos, nas experiências relacionais mediadas por uma ouvidoria

também há a narrativa, visto que há o ouvinte e o narrador.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

O percurso do método: a criação de uma metodologia de pesquisa

Gabriel Steindorff1

1 Introdução

Escrever um trabalho científico, ao nível de uma dissertação de

mestrado é uma tarefa de bastante fôlego e dedicação. Basicamente, na

dissertação de mestrado Além de um castelo de cartas: a metaficção em

House of Cards2, pode-se falar em três passos bem delimitados. O primei-

ro consiste em uma análise exploratória onde o pesquisador procura o

problema de sua pesquisa. O segundo, na fundamentação teórica, o qual,

buscou-se em autores consagrados a teoria que deu suporte a pesquisa.

No terceiro, foi criada a metodologia para o trabalho, ou seja, momento,

no qual, se pensa na estrutura do trabalho e na forma de abordagem que

será utilizada.

Evidente que esses quatro passos, citados anteriormente, já são

uma metodologia de trabalho, um método preliminar que ajuda a sair da

página em branco para a primeira página completa.

Este artigo não tem a pretensão de um guia sobre metodologia, mas

pretende mostrar o percurso de elaboração da metodologia de pesquisa

utilizada na dissertação de mestrado Além de um castelo de cartas: a me-

1 Mestre pelo PPG Letras e professor do Curso de Comunicação Social – UNISC. E-mail: [email protected] 2 Disponível em: http://repositorio.unisc.br/jspui/bitstream/11624/808/1/GabrielStein-dorff.pdf

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

taficção em House of Cards , apresentada como requisito parcial para ob-

tenção do título de mestre, ao Programa de Pós Graduação em Letras da

Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Deste modo, tem o objetivo de

elucidar e contribuir para a reflexão a respeito de processos metodológi-

cos, muitas vezes encarados com um pouco de temor pelos acadêmicos.

2 Passo um: análise exploratória

A fase da análise exploratória inicia-se com a identificação do pro-

blema de pesquisa e a definição do objeto a ser pesquisado, esses dois

itens aparecem quase juntos. No caso da dissertação que estamos tra-

tando, aconteceram exatamente no mesmo momento. Por incrível que

pareça, foi num momento de descontração onde a busca por descanso,

trouxe a vontade de sentar diante a televisão e assistir algo diferente, que

não tivesse relação com à pesquisa.

Assim, foi escolhida a série House of Cards, e a intrigante quebra da

quarta parede, promovida pelo seu protagonista Frank Underwood. Desta

forma, observou-se que o protagonista dirigia-se ao espectador, com o

objetivo deste último, se sentir a segunda pessoa do relato, entregando a

ele informações que os demais personagens não tinham acesso.

House of Cards é uma série norte-americana baseada num livro ho-

mônimo, do escritor e político britânico Michael Dobbs. A série já havia

sido adaptada para a televisão em 1990 pela BBC de Londres, no entanto

nesta oportunidade teve apenas uma temporada. Tanto o livro quanto a

série britânica contam a história de Francis Urquhart, um político sem

escrúpulos que, de forma ilegal, cumpre uma escalada até se tornar o

Primeiro Ministro Britânico.

A versão americana da série teve algumas modificações em relação

à obra original. Em vez de se passar na Inglaterra, se passa nos Estados

Unidos. Em decorrência deste fato, o cargo a ser galgado por Francis é o

de presidente, já que o país desta versão não possui o mesmo sistema

de governo do cenário original, e por consequência, não tem Primeiro

Ministro. Outra adaptação foi o sobrenome do protagonista que foi alte-

rado para Underwood, além de ser frequentemente utilizado o apelido de

Francis, Frank, para referir-se a ele.

Nesta versão, após perder a vaga de secretário de estado que es-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

perava no novo governo, Frank resolve tomar o poder por seus próprios

meios ilícitos. O personagem possui uma grande rede de colaboradores

que estão dispostos a ajudá-lo em seus planos mediante recompensas, às

vezes financeiras e às vezes sob a forma de influência. Quando possível

utiliza-se parceiros eventuais que são captados por meio de extorsão e

chantagem e quando não servem mais, são descartados. Além dos aliados

do meio político, Frank tem duas aliadas que aparecem de forma relevante

na série, a esposa Claire Underwood e a jornalista e amante Zoey Barnes.

House of Cards tornou-se relevante para a pesquisa, pois além da

linguagem pouco usual, foi a primeira grande produção feita especifica-

mente para um canal de vídeos exclusivamente da internet. A série tam-

bém chama a atenção por ser disponibilizada sempre no formato de tem-

poradas inteiras, o que, segundo Kevin Spacey (apud MURARO, 2013), dá

mais liberdade ao espectador. Ou seja, o espectador não precisa esperar

um tempo determinado para assistir um novo episódio, pode assistir um

após o outro até o fim da temporada, se assim desejar.

A série é desenvolvida em duas linhas de enredo em que a principal

utiliza a linguagem tradicional do cinema e a secundária utiliza a meta-

linguagem. Ou seja, na linguagem tradicional, o espectador percebe a

história como testemunha ocular, como se estivesse presente à ação. Na

narrativa metalinguística, tem seu lugar alterado para a segunda pessoa,

com o narrador dirigindo-se diretamente a ele, e lhe fazendo confidên-

cias. Desta forma, o narrador dirige-se à câmera como se estivesse falan-

do com o espectador, e não mais o ignorando como se não soubesse que

a narrativa estivesse sendo assistida.

House of Cards tornou-se interessante para este estudo, justamen-

te, devido às várias interações do narrador intradiegético, direcionadas ao

espectador. Frank Underwood frequentemente se dirige ao espectador por

meio de linguagem oral e gestual. Isto tem a intenção de criar no espectador

sensação de proximidade com a narrativa e cumplicidade com o narrador. A

cumplicidade é o ponto chave da interação entre narrador e espectador nes-

ta série, porque o narrador confessa somente ao espectador, seus desejos

mais íntimos e seus sentimentos a respeito de outros personagens.

No momento em que a pesquisa foi iniciada, a série contava com duas

temporadas, totalizando vinte e seis episódios. No percurso espectatorial da

série, foi que o problema de pesquisa foi se revelando. É importante salien-

tar que isso não acontece de uma hora pra outra, muitas vezes o pesquisa-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

dor não tem ainda a fundamentação teórica necessária para reconhecer o

potencial do seu objeto, entretanto, estava claro que o as interações com o

espectador tinham alguma relevância para uma pesquisa científica.

3 Passo dois: a fundamentação teórica

A partir da revisão bibliográfica, o problema de pesquisa vai apare-

cendo. Começa-se, portanto, a entender o quanto um elemento observado

no objeto de pesquisa pode render por intermédio da ótica de determina-

dos autores, convocados a reforçar o paradigma elaborado para a pesquisa.

No caso de Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of

Cards, descobriu-se dois conceitos fundamentais para a elaboração da base

teórica que permitiria, posteriormente, a criação de categorias metodológi-

cas, através das quais foram divididas as amostras colhidas no objeto.

Foi de extrema importância entender que toda a vez que, o prota-

gonista Frank Underwood, dirigia-se ao espectador, tratava-se da quebra

da quarta parede, atualizada no audiovisual, mas herdada dos primórdios

do teatro. Segundo Xavier (2003), manter a quarta parede consiste em os

atores que representam papeis, ignorarem a presença do público, ou no

caso do vídeo, ignorarem que estão representando para serem captados

por uma câmera, e posteriormente serem observados.

Desta maneira, segundo o autor, a ficção fica aprisionada em seu

caráter imaginário e protegida da realidade, para se fixar como um mun-

do possível, que finge ser real. Mas Xavier (2003) ainda considera que

o poder de aprisionamento do audiovisual ainda é maior “pois o espaço

imaginário se projeta na pura superfície (a luz da tela); não há atores no

espaço da sala, o que auxilia na produção do efeito de autonomia da fic-

ção.” (XAVIER, 2003, p.18).

Outro fator fundamental na construção das categorias de análise foi

perceber que a quebra da quarta parede é uma forma de expressão das

narrativas metaficcionais. Entende-se, desta maneira, porque esta quebra

subverte as formas de narrativas realistas tradicionais, dando à obra a

consciência de estar sendo consumida – seja ela lida ou assistida.

Através de Hutcheon (1984), abordou-se o conceito de metaficção,

em que foi possível perceber que este tipo de narrativa trata-se de obra

de ficção que tem em si mesma seu referente, que fala sobre si mesma e

se reflete em si mesma. Ou ainda, histórias marcadas pela introspecção,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

introversão e autorreferência. Ou seja, o foco está na própria obra, re-

fletindo-se e se autorreferenciando. E desta maneira, muda a posição do

espectador, que diante deste tipo de obra, é convocado com maior inten-

sidade a ser coautor interpretativo da obra.

Tendo como base este conceito geral de metaficção, Hutcheon (1984)

avança em direção a uma categorização mais minuciosa do conceito. Para a

autora a metaficção pode ter duas formas: implícita e explícita. À categoria da

metaficção implícita juntam-se todas as formas de autorreferências textuais

internas ao texto, até mesmo, em situações sutis em que muitas vezes o pú-

blico pode não estar ciente que está diante de uma narrativa metaficcional.

Como exemplos dessa modalidade pode-se citar os gêneros textuais como as

histórias de detetive e os trocadilhos em que os textos têm uma relação de

estrutura com outros textos ou um sentido diferente do que está escrito.

Já nas categorias explícitas, percebe-se a autoconsciência de forma

bastante evidente e integrada na narrativa. Assim, a metaficção explíci-

ta pode aparecer por meio de alegoria no enredo, nas metáforas ou até

mesmo nos comentários. Hutcheon (1984) salienta que várias técnicas

podem ser utilizadas para gerar este efeito, tais como a perspectiva em

abismo (mise en abyme3) ou até mesmo a criação de um pequeno mundo

paralelo com o objetivo de mudar o foco da ficção para a narração. Nes-

ta última possibilidade, o mundo paralelo pode ser criado pelo narrador

intradiegético4, ao dirigir-se ao leitor/espectador ideal, ignorando a pre-

sença dos outros personagens. E, assim, destitui a narrativa principal, ou

seja, a narrativa de onde o personagem-narrador parte originalmente, de

uma realidade proposta para uma ficção declarada, dando mais credibili-

dade ao mundo paralelo compartilhado por narrador e narratário5. Quan-

3 Para Prince (1989) o a expressão mise en abyme significa uma duplicação da obra dentro da própria obra. Segundo o autor este termo tem origem na heráldica, ciência que estuda os brasões. Diz-se que a figura no brasão está en abyme , quando ela representa uma duplica-ção do brasão em miniatura, no próprio brasão. No caso do audiovisual seria como utilizar uma câmera apontada para um televisor. Se o sinal da câmera fosse colocado no mesmo televisor que está sendo utilizado de modelo, seria possível perceber vários televisores, um representado dentro do outro.4 Segundo Genette (1972), o narrador intradiegético é aquele que é percebido dentro do mundo ficctício, mundo também chamado de diegese. Este narrador é subordinado ao nar-rador extradiegético, mas também pode ter outro narrador intradiegético, subordinado a ele, em outra metadiegese.5 Segundo Reis e Lopes (1988), o narratário é uma entidade textual que compõe com o narrador uma relação de comunicação semelhante a do autor com o leitor. O narratário é o que Eco (1995) chama de leitor ideal, ou seja, o leitor pra quem o narrador imagina que se dirige, o leitor que o narrador imagina que tenha determinadas informações não contidas na narrativa e que vão beneficiar sua compreensão dela.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

do constituído este “mundo paralelo”, o leitor não tem mais a impressão,

como na ficção realista, de que os acontecimentos se desenvolvem diante

dos seus olhos, mas tem a impressão de que participa da ação, nem que

seja, como confidente do personagem. Desta maneira, a narrativa me-

taficcional se consolida, e ao quebrar a quarta parede, reforça laços de

relacionamento entre narrador e narratário.

A quebra da quarta parede, além de um recurso estético narrativo

metaficcional, também denota que ficção mudou seu foco para outro nível

do relato. Isso seria como se o narrador estivesse imerso em uma piscina,

mas colocasse a cabeça para fora da água para se comunicar com o es-

pectador. Genette (1972) explica que a narração em níveis narrativos está

ligada estritamente à instância narrativa, ou seja, de onde se está falando.

Para o autor, todo acontecimento relatado está situado em um nível nar-

rativo imediatamente superior ao que a história acontece. Desta forma, o

autor explica que é possível encontrar diversos níveis como este dentro de

uma narração, como se fossem narrações a respeito de narrações.

Assim, dentro da narração pode haver outro narrador, este intra-

diegético, encarregado de narrar uma história que terá alguma relevância

para a primeira. Nesta obra, Genette (1972), não discorre os pormenores

do seu conceito, mas elenca os principais tipos do que também chama de

narração em segundo grau.

O primeiro tipo, para o autor, trata de uma relação direta da diegese

com a metadiegese. Desta forma, teria função explicativa, mostrando ao

leitor e ao público interno do romance (no caso de um relato de um perso-

nagem a outro), que tipo de acontecimento os levou até aquela situação

em que se encontram.

O segundo tipo - que Genette (1972) observou - trata de uma relação te-

mática que não tem nenhuma relação espaço-temporal direta com a narração

em primeiro nível, podendo se apresentar de forma contrastante ou análoga

em relação ao nível superior. Assim, é possível pensar em um filme em que

um personagem relata um fato a outro personagem, mas é mostrado ao es-

pectador um flashback6 contraditório ao relato. Logo, a narrativa tem o objeti-

vo de mostrar ao espectador que o primeiro personagem mente ao segundo,

entretanto isso pode não causar efeitos na narrativa de primeiro nível.

6 Segundo Reis e Lopes (1988), este recurso, também chamado de analepse é entendido por um “movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início.” (p.203)

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

No terceiro tipo, Genette (1972) observa que há um menor grau de

relação entre o nível diegético da história e o nível metadiegético. Nesta

modalidade, o próprio ato narrativo se torna a diegese, independente do

conteúdo das narrativas que o constituem, e nele essas narrativas, em se-

gundo grau, têm função de distrair o leitor ou obstruir a solução da histó-

ria. O autor exemplifica esta modalidade com a obra As mil e uma noites,

na qual a protagonista adia sua possível morte contando ao sultão, seu

marido, histórias que lhe interessem independente do conteúdo delas.

Genette (1972) ainda observa que a importância da instância narra-

tiva é crescente do primeiro ao terceiro tipo. No primeiro tipo trazido pelo

autor, o encadeamento direto da narração em segundo grau passa pela

narrativa e poderia substituí-la. No segundo, a relação entre os níveis é

obrigatoriamente mediada pela narração, que se torna indispensável para

o encadeamento das narrativas. No terceiro, a relação está somente no

ato narrativo e na situação presente da narrativa, as metadiegeses – nar-

rações subordinadas à narração principal – não tem importância maior

que a narrativa principal, podendo ser substituídas por quaisquer conteú-

dos desde que não alterem a narrativa principal.

Genette (1972) trata a metaficção basicamente como uma relação

de níveis internos da história. Esse nivelamento é necessário para se esti-

pular de onde a história está sendo contada. No entanto, Genette (1972)

não aborda as transgressões aos cânones do romance observados na

maioria dos teóricos da metaficção.

Ao final deste processo, é possível enternder que as interações por

parte do narrador Frank Underwood são ao mesmo tempo: quebras da

quarta parede (XAVIER, 2003), recursos metaficcionais (HUTCHEON, 1984)

e mudanças na instância narrativa do relato (GENETTE, 1972). Nesse mo-

mento, tem-se a base solidificada para que se possa mais uma vez obser-

var o objeto, e desta vez, começar a recortar amostras capazes de sinali-

zarem se o paradigma contruído até o momento poderá ser comprovado.

4 Terceiro passo: a criação da metodologia de análise

A partir da terceira fase começa o trabalho efetivo de análise. Nesse

momento, já se identificou o padrão de repetição, ao qual as amostras irão

se ligar. No caso de Além de um castelo de cartas: a metaficção em House

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

of Cards, este padrão seria o momento em que o personagem Frank Un-

derwood olha diretamente para a câmera e comunica-se com o espectador.

Assim, para dar conta da análise do objeto, assistiu-se novamente

os 26 episódios disponíveis nas duas primeiras temporadas de House

of Cards, desta vez com o objetivo de identificar e catalogar todas as

ocorrências em que de Frank Underwood dirigia-se diretamente ao espec-

tador. Posteriormente, selecionou-se 5 episódios, e destes 9 cenas que

mostram de forma mais evidente a forma que a metaficção se apresenta

na série, de acordo com a proposta desenvolvida.

Identificado o padrão de repetição e as amostras para a análise,

criou-se um problema de pesquisa, ou seja, uma pergunta que para ser

respondida indicou o caminho a ser seguido. A pergunta inicial, baseada

nos conhecimentos adquiridos na fundamentação teórica foi: como os

níveis diegéticos e a metaficção se apresentam em House of Cards?

Partindo deste problema, o caminho natural que foi seguido, con-

sistiu em elaborar hipóteses que pudessem ser comprovadas ou refuta-

das durante o processo. Tanto a confirmação quanto a refutação das hipó-

teses tiveram importância no processo, em função de confirmar a direção

em que a pesquisa deveria tomar, ou a desistência de caminhos que não

teriam relevância para o objetivo final. Segundo Demo (2000), a hipótese

tem três funções primordiais:

I- é um pré lançamento, um “chute” preliminar, seguindo algum “faro” por isso essencialmente aberto e que pode, depois em vez de confirmado, ser rejeitado; II- tem a finalidade de orientar o tra-balho dentro de certo caminho que imaginamos promissor, per-mitindo também selecionar bibliografia, conceitos-chaves, pro-cedimentos metodológicos; III- aponta para algum problema que gostaríamos de enfrentar, alguma pergunta que mereceria respos-ta, algum objetivo ainda não explorado. (DEMO, 2000, p.162)

Deste modo, união da fundamentação teórica e da observação do

objeto indicou o caminho, ou seja, a resposta da pergunta era que a me-

taficção e os níveis diegéticos se apresentavam em House of Cards, por

meio da interação do personagem Frank Underwood com o espectador.

Desta forma, o narrador criaria no destinatário a sensação de cumplici-

dade, ou segundo Hutcheon (1984), exigindo de forma mais enfática a

presença do espectador diante da obra e criando um mundo paralelo que

somente narrador e espectador compartilham.

No entanto, a análise das amostras expôs que a pesquisa poderia

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

avançar mais, foram notadas diferenças no conteúdo das interações do

personagem com o espectador. Silva (2015) elucida que o pesquisador

deve contar com certa liberdade metodológica para alcançar seus obje-

tivos e que mudanças de rumo durante o processo são compreensíveis.

“Analisar implica, portanto, encontrar diferenças na repetição e repetição

na diferença. Em outros termos, analisar é fazer emergir a contradição, o

paradoxo, a diferença, a repetição, o encoberto, o recoberto, o descober-

to sob o familiar.” (SILVA, 2015, p.52)

Na análise de Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of

Cards surgiu, portanto, a diferença na repetição. Em outras palavras, recor-

taram-se as situações em que o personagem olhava diretamente para a câ-

mera, mas nesse recorte emergiu a diferença de conteúdo de cada interação.

Assim como Hutcheon (1984) na sua obra sobre a metaficção

narcisista, na qual, dividiu as ocorrências metaficcionais em implí-

citas e explícitas, e posteriormente, criou os sub-grupos linguística

implícita e diegética implícita, e linguística explícita e diegética ex-

plícita, também houve a necessidade de subcategorizar as amostras

percebidas em House of Cards. Assim, foram concebidas as catego-

rias metaficcional diegética, metaficcional confessional e metaficcio-

nal gestual, que pretendiam explicar as motivações metaficionais

diegéticas explícitas (HUTCHEON, 1984) observadas na série. Como

dito anteriormente, foram selecionadas 9 amostras para análise na

dissertação, mas para este artigo serão apresentadas apenas 3. Uma

para cada categoria desenvolvida.

3.1 Categoria Metaficcional Diegética

À categoria metaficional diegética atribuem-se todas as interações

diegéticas explícitas, as quais o narrador utiliza para apresentar perso-

nagens, antecipar situações e explicar os acontecimentos ao espectador.

Destarte, o narrador pode trazer ao conhecimento do espectador aconte-

cimentos ocorridos no passado diegético, ou seja, em um momento an-

terior ao início da narrativa. Esta categoria também pode ser identificada

quando o narrador prevê alguma situação que irá ocorrer mais adiante

no desenvolvimento da história. Ou ainda explicar a importância de de-

terminado personagem, fazendo o espectador dar mais atenção a ele.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Portanto, todos os fatores que envolvem a diegese podem ser agrupados

nesta categoria.

Por exemplo, no primeiro episódio de House of Cards, Frank fala

de seus hábitos cotidianos, apresentando o ambiente ao espectador. No

entanto, esta cena trata mais de sua rotina pessoal, de uma preferência

sua pelo churrasco de costelas. É possível notar aqui um pouco da cons-

trução do personagem quando Frank fala um pouco de si.

Ilustração 1 – Conhecendo o personagem

Meu prazer secreto é uma boa costela, mesmo às 7h30 da manhã. Não há mais nin-guém aqui. Freddy às vezes abre só pra mim. Em minha cidade natal, na Carolina do Sul, as pessoas não têm muito dinheiro. Costelas são um luxo, como... [Frank abre o jornal e lê a manchete: PROJETO DE LEI DE EDUCAÇÃO MUITO À ES-QUERDA DO CENTRO – ASSOCIA GRANDE FINANCIAMENTO A MANDATOS LIBERAIS]... Natal em julho. [Frank joga o jornal na mesa onde é possível se ler: WALKER É EMPOSSADO E PRO-METE REFORMAS EDUCACIONAIS ABRANGENTES. A câmera retorna à Frank que olha diretamente para ela e sorri]

Fonte: House of Cards, episódio 1

Nesta amostra, observa-se que o narrador dá informações impor-

tantes ao espectador. Como, por exemplo, sua frequente presença na

churrascaria de Freddy, que muitas vezes abre o estabelecimento só

para que Frank faça uma refeição. Frank também fala um pouco das

suas origens e de seu povo, justificando seu “ritual” com um pouco

de nostalgia. Sabemos por intermédio desta interação que Frank, ape-

sar de ter uma vida confortável como congressista norte americano,

conhece a pobreza do lugar onde nasceu, a ponto de comparar uma

simples refeição com um presente de natal. Desta forma, é mostrado

ao espectador um pouco do passado da diegese, ou seja, de onde vem

o personagem, e porque ele tem tamanha fome de poder. Frank já não

é mais um reles cidadão pobre da Carolina do Sul, agora é o presiden-

te do congresso americano e está fazendo articulações. Ou seja, está

dando as cartas do jogo.

Além de apresentar o personagem, é importante ressaltar que a cate-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

goria metaficcional diegética é observada em outros momentos da série apre-

sentando situações, ou justificando as ações com acontecimentos passados,

ou ainda mostrando como as coisas funcionam no mundo desta ficção.

3.2 Categoria Metaficcional Confessional

A ocorrência metaficcional encontrada com maior frequência em

House of Cards, inclusive em associação com a categoria metaficcional

diegética, é a categoria metaficcional confessional. A esta categoria atri-

buem-se as interações referentes a juízos que o narrador faz em relação

a outros personagens, confissões a respeito de seus medos e valores,

estratégias que está desenvolvendo e que não seriam bem vistas se con-

tasse a alguém. Esta categoria agrupa as interações que dizem respeito

à personalidade do narrador, sua ética ou falta dela, suas confissões a

respeito de ocorrências bastante privadas de sua vida ficcional.

A amostra selecionada para ilustrar esta categoria faz parte do epi-

sódio quatorze da série, início da segunda temporada. Na ocasião, Frank

havia sido empossado vice-presidente e não havia interagido nenhuma vez

com o espectador. Em função disso, no final do episódio, o narrador uti-

liza sua fala para lembrar ao espectador que estão juntos nessa “viagem

narrativa”. Frank também se justifica por ter matado Zoey Barnes, uma

personagem até então importante na série. A justificativa de Frank para o

assassinato pode ser interpretada como a perda do controle que ele tinha

sobre ela. Desta forma, por ela ter acesso a demasiadas informações sobre

o narrador, precisou ser silenciada para que não atrapalhasse seus planos.

Ilustração 2 – Autoconsciência

Achou que eu tinha me esquecido de você? Talvez esperasse que sim. Não perca tempo lamentando a Srta. Barnes. Todo gatinho cresce até virar um gato. No começo parecem inofensivos, pequenos, quietos, tomando leite no pires. Mas quando suas garras ficam longas o bastante eles tiram sangue, às vezes, da mão que os alimenta. Para quem está subindo ao topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só existe uma regra: cace ou seja caçado. Bem-vindo de volta!

Fonte: House of Cards, episódio 14

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Esta cena também é rica na escolha do movimento de câmera. Na

primeira frase, Frank olha diretamente pra si no espelho e então diz:

“Achou que eu tinha me esquecido de você?”. O narrador não olha pra

câmera como nas interações anteriores, mas pela fala o espectador pode

deduzir com quem o narrador está falando, ou seja, com ele, no outro

lado da tela. Depois desta primeira frase, Frank vira-se para a câmera, que

vai se aproximando de seu rosto. Isto cria um movimento de intimidade,

aproximando o narrador do espaço fora da narrativa, como se estivesse

lentamente entrando no espaço seguro da sala do espectador.

Como na categoria anterior, as ocorrências metaficcionais confes-

sionais se repetem várias vezes durante toda a obra. Neste sentido, po-

demos conhecer as intensões, desejos e juízos de Frank Underwood em

relação aos outros personagens da trama.

3.3 Categoria metaficcional gestual

A categoria metaficcional gestual consiste em interações em que o

narrador não utiliza a fala para expressar um sentido, mas gestos e per-

formances. Assim, pode dirigir-se ao expectador através de olhares, gestos

com a cabeça ou com as mãos. Este tipo de interação geralmente se dá quan-

do o narrador já explicou o que aconteceria por meio da interação com as

categorias anteriores. A categoria metaficcional gestual, na maioria das ve-

zes, é antecedida por uma interação do tipo metaficcional diegética, por se

tratar de uma confirmação de uma situação prevista, mas isso não impede

que seja empregada após uma interação do tipo metaficcional confessional.

A interação por meio dos gestos reforça o sentido e dá maior credi-

bilidade à atuação de Kevin Spacey como Frank Underwood, por ser mais

semelhante aos diálogos que as pessoas compartilham na vida real. Devi-

do a estas características de reforço, é possível conceder à categoria me-

taficcional gestual, a maior importância no rompimento da quarta parede

(XAVIER, 2003) nesta série. Por não utilizar-se de recursos sonoros, esta

categoria, não seria possível sem o olhar do narrador diretamente para

a câmera. E assim, sem o gesto do olhar, as demais categorias também

haveriam de se reconfigurarem, já que, o que indica a mudança de nível

diegético (GENETTE, 1972), é justamente, o olhar do narrador em direção

à câmera.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Em House of Cards a utilização da expressão gestual, muitas ve-

zes substitui diálogos que servem para intensificar ideias já expostas.

Os diálogos verbais, nesses casos, além de desnecessários soariam

como artificiais na narrativa. Os recursos gestuais e faciais mostram-

se mais sutis e sofisticados que os verbais. Ao mesmo tempo, a utili-

zação desse tipo de interação amplia a cumplicidade do narrador com

o espectador, colocando essas duas entidades tão próximas que são

capazes de se comunicarem apenas através de um olhar em determi-

nadas situações. Novamente, reforça-se e altera-se a relação entre o

narrador e o espectador. O primeiro exigindo maior participação do

segundo (HUTCHEON, 1984).

No décimo quinto episódio de House of Cards, Frank utiliza-se de

uma interação metaficcional gestual para mostrar ao espectador que sua

influência sobre o presidente está aumentando.

Frank após perceber que o presidente estava inclinado a aceitar

a sugestão de Raymond Tusk – que atuava como conselheiro do pre-

sidente e se consolidava como principal rival de Underwood –, para

manter o diálogo com a China a respeito da violação de propriedade

intelectual dos produtos de empresas americanas pelos chineses, recor-

re a sua aliada, Catherine Durant, secretária de estado. Ele a convence

de fazer o contrário do que o presidente lhe pediu, manter o diálogo

com a China, e dá a entender aos chineses, que os Estados Unidos não

serão tolerantes com a situação. Isto força o presidente a posicionar-se

a favor de uma possível guerra com o país asiático e anunciar isto em

um pronunciamento.

Ilustração 3 – Gestual

[Frank faz um gesto com as sobrancelhas para a câmera vendo o pronunciamento o pre-sidente sobre a resposta que deveria dar aos chineses. Frank percebeu que o presidente preferiu seguir o conselho que ele lhe induziu ao contrário da recomendação de Tusk.]

Fonte: House of Cards, episódio 15

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Assim, Frank mostra ao espectador nesta interação, não somente

que sua influência sobre o presidente está aumentando. Mas também

mostra que conhece os meios necessários para que seus planos corram

como ele deseja. Isto, mais uma vez, reforça a relação com o espectador

que pode sentir-se acompanhado pelo condutor, não só da narrativa, mas

do destino dos personagens dentro da diegese.

Isto posto, a interação metalinguística gestual consolida-se como

uma das mais fortes evidências da metaficção em House of Cards, em

decorrência de se referir a um comentário feito pelo narrador, sobre a

diegese que ele constitui, se autorreferenciando. Criando assim o efeito

de mise en abyme, o qual, a perspectiva metaficcional avança em direção

ao interior da obra duplicando-se.

3.4 Observações gerais

Ao analisar cada categoria desenvolvida buscou-se diferenciar uma

da outra de forma mais evidente com o objetivo didático de ressaltar

características próprias e singulares de cada uma. Deste modo, é possí-

vel conceber que nenhuma das categorias apresentadas foi percebida de

forma pura e isolada. Todas as amostras dependiam de aspectos de todas

as categorias, em diferentes proporções. A escolha por rotulá-las como

metaficcionais diegéticas, confessionais ou gestuais, se deu em função da

predominância de uma característica sobre as outras. Entretanto, é im-

portante perceber que existem diversas características que foram obser-

vadas e que compõe de forma básica o que se desenvolveu neste estudo.

Inicialmente, percebeu-se que os padrões de interação com o

espectador se repetiam por olhares do narrador em direção à câmera

ou por falas que colocavam o espectador em posição de destinatário

da comunicação.

Estas interações caracterizam-se como metaficcionais por transgre-

direm as convenções tradicionais da ficção realista, que tendem a con-

ceber a arte como uma representação da realidade. Ao quebrar a quarta

parede (XAVIER, 2003), por meio destas interações, o narrador assume ao

espectador que esta narrativa não tem o objetivo de ser uma representa-

ção da realidade, mas sim pura ficção.

As interações do narrador com o espectador também denotam uma

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

mudança no nível narrativo da obra. Pois, como visto em Genette (1972),

estes níveis narrativos estão atrelados à instância narrativa. Ou seja, de

onde o narrador está falando. Em House of Cards, observa-se a mudança

de instância quando há também a mudança de posição do espectador.

Considerações finais

É importante constar que este artigo não tem a pretensão de se tor-

nar um guia metodológico para pesquisas envolvendo a metaficção, ou

níveis narrativos e muito menos o audiovisual. Trouxe-se aqui, nada mais

do que o relato do desenvolvimento da metodologia em uma pesquisa

específica, a fim de contribuir com o pensamento acadêmico a respeito

das possibilidades de desenvolvimento metodológico.

Esta pesquisa se desenvolveu a partir de observações exploratórias

originadas de uma inquietação nascida ao assistir o primeiro episódio

de House of Cards. As interações metaficcionais do narrador, que levan-

taram as primeiras dúvidas a respeito de que tipo de obra essa série se

tratava, foram aos poucos respondidas com a imersão na teoria.

Percebeu-se, depois de longas sessões de apreciação e análise des-

ta série, que Frank Underwood não é a melhor pessoa pra se ter como

inimigo. Ao mesmo tempo, ele oferece ao espectador o lugar a seu lado

para viajar através da narrativa que conduzirá entre a história e suas con-

fissões. Desta forma, faz o espectador entrar na diegese e participar de

forma ativa de assassinatos e falcatruas que comete.

O que emergiu desta pesquisa, após o caminho percorrido, foi

que a metaficção (HUTCHEON, 1984) aliada aos níveis narrativos (GE-

NETTE, 1972) cria de forma mais contundente a sensação de cumplici-

dade e envolvimento do espectador com a obra audiovisual. A criação

de um microcosmo entre narrador e espectador, que ocorre pela mu-

dança de nível narrativo, proporciona ao narrador que faça confissões

e comentários ao espectador sem comprometer-se com os demais per-

sonagens da ficção. Isto gera um sentimento de participação no es-

pectador, que tem a impressão de estar imerso na obra de ficção em

posição privilegiada.

Esta pesquisa, por fim, mostrou que a metaficção pode emergir

como diferencial nas obras audiovisuais, podendo tirar o espectador do

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

papel de construtor passivo da narrativa e podendo causar a sensação de

participação. Ao mesmo tempo, proporcionou a reflexão sobre o narrador

metaficcional, que, no audiovisual, em especial no seriado, apresenta-se

íntimo do espectador. Criando assim, além da relação de identificação,

tradicionalmente observada no cinema, uma relação de maior cumplicida-

de. Além disso, observou-se que a quebra da quarta parede pode ser en-

tendida como uma marca das produções que buscam utilizar estratégias

que convoquem o espectador a interagir.

Referências bibliográficas

DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Compa-nhia das Letras,1994.

GENETTE, Gérard. Figuras III. Barcelona: Lumen, 1972.

HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative the metafictional paradox. Wa-terloo: Wilfrid Laurier University Press, 1984.

MURARO, Cauê. Kevin Spacey defende series e fala de corrupção em House of Cards. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/noti-cia/2013/07/kevin-spacey-defende-series-e-fala-de-corrupcao-em-house-cards.html. Publicado em: 11/07/2013. Acessado em: 02/02/2015.

PRINCE, Gerald. Dictionary of narratology. Lincoln: University of Nebraska Press, 2003.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SILVA, Juremir Machado da. O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da ABNT e da CAPES. Porto Alegre: Sulina, 2015.

STEINDORFF, Gabriel. Além de um castelo de cartas: a metaficção na série House of cards. 2015. 104 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Santa Cruz do Sul, 2015

XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

O processo de criação do jornalista narrador literário: um olhar para Eliane Brum

Kassia Nobre1

1 Introdução

O diferente e o diferencial da obra da jornalista Eliane Brum2 estão

na construção de uma narrativa com marcas autorais, a partir da utili-

zação de recursos de observação e redação originários da (ou inspira-

dos na) literatura. A autora se comporta como um “narrador literário”

(SODRÉ, 2009) ao transgredir o manual de redação jornalístico e utilizar

recursos da retórica literária. Desta forma, o que se observa nas repor-

tagens da autora é o uso de recursos literários na composição de textos

que priorizam histórias de vida de pessoas anônimas convertendo-as no

próprio acontecimento jornalístico.

O presente artigo mostrará como o jornalista narrador literário

transforma a fonte em personagem, por meio da análise da obra A

vida que ninguém vê (2006), e, em seguida, mostrará que é possível

investigar o processo de criação deste narrador ao pesquisar os bas-

tidores da produção, tendo como caso as reportagens de O olho da

rua (2008).

1 Mestra pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e doutoranda pela Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2 A jornalista trabalhou durante 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Atualmente, é colunista na versão brasileira do jornal espanhol El País. Publicou três livros-reportagens: Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994); A vida que ninguém vê (2006) e O olho da rua (2008), além dos romances Uma duas (2011) e Meus desacontecimentos (2014) e do livro de crônicas A meni-na quebrada (2013).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

2 A fonte que vira personagem

As reportagens do livro A vida que ninguém vê foram, inicialmente,

publicadas por Eliane aos sábados durante o ano de 1999 na coluna “A vida

que ninguém vê” do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Todas as histórias

foram ambientadas no estado do Rio Grande do Sul. O objetivo do espaço

era apresentar textos de pessoas comuns e situações ordinárias. Após a

coluna, as reportagens foram publicadas no formato livro em 2006. A obra

venceu o Prêmio Jabuti de 2007 na categoria livro-reportagem.

O olhar da autora foi direcionado para figuras anônimas, algo que

é observado na literatura e, com menos frequência, no jornalismo. A re-

portagem, segundo Sodré e Ferrari (1986), assumiria esta perspectiva de

representação da figura humana, pois possui o foco no “quem”, entre as

perguntas clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde e por

quê. Assim, o essencial da reportagem está no interesse humano. Como

representou Brum, ao relatar mais do que acontecimentos, e sim singulari-

dades de histórias de vida de pessoas desconhecidas em suas reportagens:

Eliane procurava fugir da vala comum da pauta, cavando suas próprias histórias em quebradas escondidas da mídia onde des-cobriria personagens e assuntos que não estão nas agendas das redações – do solitário enterro de pobre à toca do colecionador das sobras da cidade, do carregador de malas no aeroporto que nunca voou ao cantor cego que inferniza a vizinhança anuncian-do a mega-sena acumulada (KOTSCHO, 2006, p. 180).

A autora comenta, em um depoimento, sobre o interesse por contar

histórias de pessoas anônimas: “Sempre gostei das histórias pequenas. Das

que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes.

O oposto, portanto, do jornalismo clássico [...] O que esse olhar desvela é

que o ordinário da vida é o extraordinário” (BRUM, 2006, p. 187).

Assim, A vida que ninguém vê demonstra, primeiramente, um olhar

insubordinado da autora que rompe com o vício e o automatismo do jor-

nalismo que busca um herói do cotidiano:

A rua e seus personagens, suas surpresas diárias, seus anti-he-róis, é sua matéria-prima. No livro, Eliane conta a história de pessoas normalmente tidas como párias, ou invisíveis, numa lin-guagem mais moderninha, ou não-incluídos socialmente, segun-do o dicionário do politicamente correto. É o mendigo que passa o dia inteiro deitado numa rua de Porto Alegre, vendo a vida do rés-do-chão. Ou um pai que acaba de enterrar o filho natimorto. Ou um louco da comunidade. Esses são personagens que vimos

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

no nosso cotidiano, mas fingimos que não os vemos, ou somos levados a achar que sua condição é natural. No máximo, esten-demos a mão e derrubamos uma pequena esmola, se for o caso de um mendigo. Mas Eliane é diferente. Ela tem a sensibilidade à flor da pele, e entende que, para descobrir o tema de uma grande reportagem, basta mudar o ângulo, o foco – ou, numa palavra, o olhar (LIMA, 2006).

Ao fugir das fontes convencionais, Brum concretizou a fala de Me-

dina (2003, p. 79) sobre a necessidade de oxigenar a pauta viciada para

uma renovação na atmosfera claustrofóbica de uma redação. Assim, o

olhar de Brum procurou por pessoas anônimas para traduzir dilemas hu-

manos em reportagens. As narrativas contam histórias de anti-heróis do

cotidiano que ganham destaque de Ulisses:

O ser humano, qualquer um, é infinitivamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. [...] Esse [...] é o encanto de A vida que ninguém vê. Inverter essa lógica que nos afasta para mostrar que o Zé é Ulisses e o Ulisses é Zé. [...] E cada pequena vida uma Odisséia” (BRUM, 2006, p. 195).

A obra é exemplo de um jornalismo focado em pessoas, por isso,

humanizado. Ou seja, “os textos de Eliane Brum revelam um fazer que

prioriza a humanização, que significa trazer o ser humano para o foco

dos acontecimentos, dando voz aos personagens, mostrando sua índole,

suas angústias, os sentimentos” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p. 11). Para

as autoras, A vida que ninguém vê é fruto de um momento de interação,

de imersão, de uma realidade que se construiu a partir da participação

de Brum. “É o real enquadrado por meio dos olhos e da escrita de Eliane

Brum” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p. 10).

Com essa característica, as reportagens despertaram o interesse de

leitores do jornal gaúcho Zero Hora que sinalizaram por meio de e-mails

e cartas uma identificação com as histórias de vida narradas por Brum.

“Toda semana desembarcavam e-mails e cartas contando sobre vidas pró-

prias, vidas de outros [...] Toda semana me alcançavam relatos que acaba-

vam assim: ‘Descobri que a minha vida é especial. Mudou tudo’” (BRUM,

2006, p. 188).

Para aguçar a reflexão de seu leitor, Brum constrói fontes/persona-

gens que representam mais de um conceito dentro da narrativa, diferen-

temente do jornalismo que costuma separar suas fontes em conceitos

estabelecidos – boas/más; vítimas/culpadas.

Para a construção de personagens complexas, Brum busca em suas

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

fontes representações que vão além de suas falas: ela observa profunda-

mente as pessoas para a captação de gestos, comportamentos, linguagem

e tudo que ajude na composição da figura que será a protagonista da nar-

rativa. Ou seja, características que tornem a fonte palpável para o leitor:

O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que pa-lavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que mo-mentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio (BRUM, 2008, p. 37).

3 Marcas da literatura

A primeira marca literária identificada no texto da jornalista foi a ca-

racterização física e moral das pessoas, para que o leitor pudesse melhor

visualizar e entender as ações delas nas reportagens (BRAIT, 1985). Esta

caracterização foi representada pela descrição de aspectos, como fisio-

nomia, vestuário, personalidade, caráter e modo de vida. Ação frequen-

temente realizada pelos romancistas para apresentar suas personagens.

O resultado deste efeito na literatura e na reportagem é a “ampliação”

do real, já que o leitor terá mais artifícios para conhecer a história. A carac-

terização também permite a humanização da personagem e da fonte para

aproximá-las ainda mais do leitor através do mecanismo de identificação.

Além de caracterizar o que é visível, como a descrição física, Brum arrisca

uma construção psicológica das pessoas na narrativa, outra marca da lite-

ratura no texto da repórter. O relato de pensamentos, desejos e sonhos,

em tese, é permitido apenas aos romancistas, que podem ter o controle de

seus personagens, já que são suas criaturas, frutos de sua criação.

Na literatura, as descrições da personagem, ao mesmo tempo que

revelam detalhes sobre a figura humana, permitem a complexificação do

ente da ficção, o que evita o seu reducionismo. Ou seja, quanto mais di-

ferentes facetas o autor revelar sobre a personagem, mais o leitor cons-

truirá diferentes perfis de uma mesma personagem. Ela poderá ser boa ou

má ao mesmo tempo e será tão complexa quanto são as pessoas “reais”.

Assim, quanto mais aberta for a narrativa, maior será a possibilida-

de de relativações, interpretações e complefixações. Por ser uma marca

subjetiva, a descrição psicológica não seria permitida em um jornalismo

que se diz objetivo, ao descrever a realidade com uma suposta precisão.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Porém, Brum, ao modo da literatura, aposta em uma escuta e em

uma observação aprimoradas para a interpretação daquilo que foi mani-

festado por suas fontes por meio de gestos e palavras, além da imersão

no ambiente da narrativa para melhor conhecer a pessoa e aqueles que

convivem com ela. O que remete ao trabalho dos realistas e naturalistas

que realizavam uma observação profunda da realidade e das pessoas.

O diálogo entre Brum e suas fontes – que foi utilizado na íntegra em

algumas reportagens – é outro recurso literário empregado pela jornalista

na tentativa de transpor para o leitor o momento da conversa entre a re-

pórter e seu entrevistado, o que provoca no leitor a sensação de também

estar presente na cena, intensificando o efeito do real (CANDIDO, 1998).

4 A importância da personagem

Na literatura, a atuação da personagem é essencial no desenrolar

da trama. Muitas vezes, é através da história da personagem que são

apresentados outros componentes da narrativa, como o enredo e o es-

paço. E, principalmente, pelo fato de que não há narrativa literária sem

personagem.

No espaço da narrativa de Brum, todas as fontes viraram protago-

nistas das histórias e, por meio delas, foram apresentados outros com-

ponentes da narrativa, o que mostra que a pessoa é mais importante do

que o fato. Outra característica importante diz respeito ao fato de Brum

ter um estilo dissertativo para construir o seu texto, o que se assemelha

à prosa literária. A jornalista faz a sua interpretação da realidade que ob-

serva e, por meio de críticas, analisa o comportamento humano diante

de situações vividas nas narrativas. Mais uma característica que se asse-

melha às narrativas literárias, quando o narrador apresenta seu ponto de

vista na narrativa e direciona o leitor para um caminho ou caminhos.

Assim, por meio das histórias das fontes/protagonistas, Brum – atra-

vés do narrador – permite que o leitor reflita ao criar um efeito de “moral

da história”. O que também remete à literatura é o fato de as reportagens

dizerem respeito às protagonistas que estão em um momento de conflito

em suas vidas. Dessa forma, a autora consegue revelar aspectos psico-

lógicos e sociológicos da vida humana. O jornalismo tem o costume de

trazer ao conhecimento público fontes que passam por situações-limites,

porém a diferença é que a narrativa de Brum, a partir desta construção

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

psicológica e sociológica e de recursos literários, consegue avançar nisso

propondo a reflexão sobre o assunto e não apenas a sua exposição.

Assim, a narrativa de Brum demonstra a possibilidade de o repórter

tornar-se um narrador literário e utilizar-se de estratégias já reconheci-

das por romancistas para melhor apresentar a realidade ao leitor. Atitude

esta que vai de encontro ao jornalismo que se diz por princípio neutro e

imparcial em seu relato e à ideia de que o jornalista não pode interpretar

a realidade, apenas informar sobre ela, principalmente na categoria do

gênero informativo. O jornalista, como narrador literário, amplia a visão

do leitor sobre os fatos e pessoas e, assim, pode – como fez Eliane Brum –

ter uma fonte complexa que engloba valores, posicionamentos e atitudes

para desmistificar a figura humana.

A interação entre repórter e fonte percebida nos textos de Brum con-

tradiz a realidade aparente das redações, principalmente com o uso das no-

vas tecnologias na produção jornalística. O meio digital facilita e conduz o

processo de produção do jornalismo para que ele seja realizado sem o conta-

to direto do repórter com a sua fonte, se assim desejar. Isso se constitui em

algo que inviabiliza uma observação profunda e uma posterior interpretação

do jornalista para a construção da caracterização da pessoa na narrativa. Ao

mesmo tempo em que se constata a produção jornalística imersa nas novas

tecnologias, observar-se a ascensão de produções humanizadas.

Conforme Soster (2010 et al., p.1-2), as representações desse gêne-

ro se tornam elementos diferenciadores – diante da prática do jornalismo

online e sua produção homogênea – ao prender a atenção do leitor por

meio de narrativas estruturadas com recursos literários.

5 O jornalista narrador literário

Partindo da constatação de que a jornalista utiliza-se dos recursos

literários para estruturar sua narrativa a partir da história das fontes, per-

cebe-se, na forma de construção, que estas tendem a assumir qualidades

da personagem literária, constituindo-se numa estratégia da autora quan-

do assume este lugar de narrador literário (DOS SANTOS, 2013).

Sodré (2009, p. 144) explica que o jornalista narrador literário utiliza

uma linguagem pessoal, tornando-se personagem da própria história e dá

cores de aventura romanescas a seu relato com a intenção de captar ainda

mais a atenção do leitor. Para o entendimento do comportamento deste

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

tipo de narrador é interessante observar como atua o “narrador clássico” de

Benjamin (1987) e o “narrador pós-moderno” de Santiago (2012).

A principal característica do narrador clássico é a capacidade de

sua narrativa intercambiar experiências com o leitor, de maneira que o

ato de narrar advenha da experiência do narrador. Para Benjamin, não há

narrativa sem a experiência, então, o narrador necessariamente precisa

experimentar algo para contar uma história.

Já o narrador pós-moderno se distancia da ideia benjaminiana, por-

que não narra sobre suas experiências, mas colhe informações de ter-

ceiros para construir sua narrativa. A principal diferença defendida por

Benjamin entre narrar (narrador benjaminiano) e informar (narrador pós-

moderno) é que os fatos em uma informação já chegam acompanhados

de uma explicação. Já na narrativa, o leitor é livre para interpretar a his-

tória como quiser e, com isso, o episódio narrado ganha uma amplitude

que não existe na informação (BENJAMIN, 1987, p. 203).

Assim, o narrador pós-moderno é, na verdade, um grande observa-

dor da vivência dos outros. A partir dela, constrói a sua narrativa. “A figura

do narrador [pós-moderno] passa a ser basicamente a de quem se interes-

sa pelo outro (e não por si) e se afirma pelo olhar que lança ao seu redor,

acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar introspectivo

que cata experiências vividas no passado)” (SANTIAGO, 2012, p.42).

Ao passo que o narrador clássico introduz suas experiências na nar-

rativa, o pós-moderno se afasta (muitas vezes se esconde) da narração para

enaltecer a voz da pessoa observada. A “sabedoria” da narrativa midiática

não advém do narrador, e sim da ação daquele que é observado. A sua essên-

cia não deixa de ser a experiência, mas ela não é vivida, apenas observada.

Entre os narradores pós-modernos, estaria, segundo Santiago (2012,

p. 39-42), o narrador do romance (literário) que quer ser impessoal e ob-

jetivo diante da coisa narrada (utilizando-se da voz da personagem para

contar sua história), mas que, no fundo, confessa-se em sua narrativa. Ou

seja, suas experiências estão em seus relatos, apesar da evidente e neces-

sária preocupação da literatura em diferenciar narrador e autor.

Já o jornalista, que se comporta como narrador literário, é um narra-

dor pós-moderno porque se utiliza da experiência do outro para construir

sua narrativa, mas se torna menos impessoal e passa a narrar sobre os

fatos, e não apenas informá-los, aproximando-se do narrador benjami-

niano. Para isso, busca novos formatos, investindo em recursos típicos

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

da literatura – profunda observação, imersão na história a ser contada,

fartura de detalhes e descrições, texto com traços autorais, reprodução

de diálogos e uso de metáforas (Necchi, 2009).

Dessa forma, o jornalista narrador literário aproxima-se do traba-

lho realizado pelo autor de ficção para construir suas reportagens, ainda

que tenha sempre claro que as narrativas – literária e jornalística – são

construções baseadas na realidade, mas que possuem finalidades e, prin-

cipalmente, intenções diferenciadas. No caso do jornalismo, essa diferen-

ciação diz respeito ao seu compromisso com a referencialidade e com os

discursos sobre o real (DOS SANTOS, 2013).

6 O jornalista como agente criador

Como foi descrito, o jornalista narrador literário não observa a reali-

dade imparcialmente, como o narrador pós-moderno de Santiago (2012),

mas também não relata apenas sobre as suas experiências, como o narra-

dor de Benjamim. É certo, ainda, que as reportagens possuem inspiração

nos romances da literatura. O questionamento que poderia surgir é como,

afinal, seria a produção deste texto.

É possível afirmar que o jornalista narrador literário é uma figura

fundamental na criação do texto, já que será o seu olhar singular que irá

conduzir a construção da reportagem. Ele se torna um agente criador3, o

que possibilita a investigação do seu processo criativo em todos os mo-

mentos de produção: pesquisa, entrevista e redação.

Sabe-se, entretanto, que este olhar não é solitário, já que o repórter

não é um ser isolado. A linha editorial e as relações dele com o tempo e o

espaço em que está inserido atuam de maneira decisiva em conjunto com o

sujeito criador. Como afirma Morin (1998), o menor conhecimento do sujei-

to comporta elementos biológicos, cerebrais, culturais, sociais e históricos.

O ato criador é relacionado, muitas vezes, à inspiração ou à geniali-

dade do artista. O trabalho, a transpiração, que envolve todo o processo

criativo permanece nos bastidores ou nos ateliês. Poucas vezes é com-

partilhado com o público, que só tem acesso ao produto disponível no

mercado, seja na galeria, cinema, livrarias ou bancas de revista.

3 Termo utilizado por Salles (2008) para definir o autor ou o artista da obra que será analisa-do o processo de criação.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Como afirma Salles (2011, p.22), “muitos aspectos da criação artís-

tica aparecem a seus fruidores envoltos em uma aura que mais mitifica

do que explica esse engenhoso labirinto da mente humana”. Para a auto-

ra, o processo criador envolve uma lógica complexa e que não é possível

a sua total explicação. No entanto, é possível conhecê-lo melhor por meio

de uma análise crítica:

É uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua construção, acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, com o objetivo de melhor compreensão do processo de sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a construção da obra e descreve os meca-nismos que sustentam essa produção (SALLES, 2011, p. 22).

A Crítica Genética se propõe a discutir o processo criador de obras

literárias a partir de manuscritos ou outros registros deixados pelo artista

sobre a obra. “O interesse da Crítica Genética está voltado para o proces-

so criativo artístico. Trata-se de uma investigação que indaga a obra de

arte a partir de sua fabricação. Como é criada a obra? Essa é a grande

questão” (SALLES, 2008, p. 28).

Os estudos foram ampliados para outras manifestações artísticas,

como artes plásticas, música, teatro e cinema. Conforme Salles e Cardoso

(2012, p. 44), os processos comunicativos em sentido mais amplo, como

a fotografia, publicidade e o jornalismo, também receberam a atenção da

Crítica Genética.

A Crítica Genética trabalha com os documentos de processo que

são os registros materiais do processo criador. Ou seja, “a coleta sensível

que o artista faz ao longo do processo, recolhendo aquilo que, sob algum

aspecto, o atrai. São seus modos de se apropriar do mundo” (SALLES,

2008, p. 68).

A partir da observação dos documentos de processo, o crítico po-

derá analisar as etapas da reportagem e entender melhor as tomadas de

decisões e a construção dos textos. Desta forma, o estudo do percurso

criativo na construção de reportagens poderá ampliar o conhecimento

teórico já existente sobre a prática e teoria da narrativa jornalística. Po-

rém com o olhar diferenciado da Crítica Genética para os documentos

dos bastidores da produção com a finalidade de entender e analisar o

percurso escolhido pelo jornalista.

A jornalista Eliane Brum incluiu, ao final das reportagens da obra

O olho da rua (2008), o making off da construção das reportagens (do-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

cumento de processo), que podem auxiliar o entendimento das mesmas.

Os textos são impressões pessoais da autora e mostram a preocupação

da jornalista em revelar ao público a forma como foi construída as suas

reportagens, revelando, assim, a forma que ela lida com o jornalismo.

7 Os bastidores de Eliane Brum

Para entender os caminhos escolhidos pelo agente criador é inte-

ressante observar o que o motivou ao iniciar a jornada. Ou seja, qual é a

sua busca ao criar, compor ou escrever. Salles denomina como “projeto

poético” os gostos, crenças e as preferências estéticas e éticas que regem

o modo de ação do artista ou do jornalista. “Por meio dessas formas de

retenção de dados, conhecemos, entre outras coisas, as questões que o

preocupam e suas preferências estéticas” (SALLES, 2011, p. 44). Na apre-

sentação do livro O olho da rua (2008), Eliane Brum relata qual são os

seus principais objetivos e preocupações ao escrever:

Meu ofício é encontrar o que torna a vida possível apesar de tudo, a delicadeza na brutalidade do cotidiano, a vida na morte. É esse o mistério que me fascina. E o olhar que escolhi como farol nessas andanças pelos muitos Brasis é o da compaixão, aquele que reconhece no outro a fratura que já adivinhou a si mesmo [...] A realidade é complexa e composta não apenas de palavras. É feita de texturas, cheiros, nuances e silêncios. Na apuração de minhas matérias, busco dar ao leitor o máxi-mo dessa riqueza do real, para que ele possa estar onde eu estive e fazer suas próprias escolhas. Este livro também é uma confissão de fé na reportagem, aquela que vai para a rua se arriscar a ver o mundo. É uma confissão de minhas es-colhas, meus sustos, meus dilemas e também de meus erros. Porque, como diz Sérgio Vaz, grande poeta da periferia de São Paulo, quem ama erra. Para cada reportagem há uma re-flexão sincera, vísceras à mostra, sobre o que fiz e vivi – como repórter, como gente (BRUM, 2008, p. 14; grifo meu).

Percebe-se que a busca da jornalista, retratada no prefácio do livro, vai

além da obra em si. Representa os princípios direcionadores da forma como

entende o fazer jornalismo. Até porque, como afirma Salles (2008, p. 50): “Todo

o processo de apreensão do mundo é feito, normalmente, em função de uma

obra ou de um projeto que vai além da construção de uma obra específica”.

Desta forma, o depoimento da autora mostra estes princípios direcio-

nadores da sua narrativa. Como ela afirma: “O olhar que escolhi como farol”.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Algo que ela não abre mão ao escrever e acaba por se tornar uma marca pes-

soal que foi recorrente nos textos para a Época e que também apareceram

na contribuição da jornalista ao Zero Hora, no início da carreira.

A delicadeza é um deles. A aproximação com a literatura permite

este movimento por meio da humanização da narrativa. Ou seja, uma

narrativa centrada em pessoas, quando o jornalista compreende as ações

dos sujeitos para atribuir significado e sentido aos acontecimentos e, as-

sim, proporcionar ao público, mais que a explicação, a compreensão das

ações humanas (IJUIM, 2012, p.133). A humanização também é descrita

quando a autora fala de compaixão. Ou seja, a empatia que ela possui

com suas fontes ao escrever sobre suas histórias.

Narrar a história com “o máximo de riqueza do real” também é ou-

tra escolha da jornalista que utiliza recursos da literatura como a descri-

ção física de pessoas e de lugares para ambientar o leitor na narrativa. Ao

relatar que a reportagem é uma confissão com escolhas, dilemas e erros,

a autora permite que seu trabalho não seja visto como uma verdade ab-

soluta, mas sim como um texto em estado de permanente inacabamento,

que poderia ter diferentes versões. “O objeto considerado acabado repre-

senta, também de forma potencial, uma forma inacabada. A própria obra

entregue ao público pode ser retrabalhada ou algum de seus aspectos [...]

pode ser retomado” (SALLES, 2011, p. 85).

A partir destas observações sobre o texto de Eliane Brum, o pre-

sente artigo analisará a forma como foram construídas as reportagens

“A floresta das parteiras”, “O sobrevivente”, “Mães vivas de uma geração

morta” e “Vida até o fim” a partir do que foi fornecido pelos textos sobre

os bastidores destas matérias “Reportagem por cesariana”, “Olhar para

ver” e “Minha vida com Ailce”.

8 A floresta das parteiras

A reportagem “A floresta das parteiras” é o texto que abre o livro

O olho da Rua (2008) e conta a história de parteiras do Amapá. Eliane

Brum relatou o oficio de mulheres que vivem no Norte do Brasil e são

responsáveis pelo nascimento de quase toda a população do Estado. A

narrativa gira em torno da vida destas mulheres e da função que elas

exercem. A jornalista inicia o making off com uma confissão de erro. O

título “Reportagem por cesariana” já indica um arrependimento da autora

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

que não acompanhou um parto porque precisou deixar a região, antes do

momento do nascimento:

Cometi o mesmo erro dos médicos. Não esperei o tempo do par-to. Era a minha primeira reportagem na Época. Eu e a fotógrafa Denise Adams partimos para o Amapá para fazer a matéria em quatro dias. Na sequência, faríamos uma entrevista com Rosea-na Sarney, então governadora do Maranhão, na sua casa, em São Luiz. [...] Não há nada que justifique ter deixado passar um parto feito pela parteira mais antiga do Amapá, uma índia caripuna de 96 anos, por causa de alguns dias e de uma entrevista com a Roseana Sarney (nada pessoal). Então, errei (BRUM, 2008, p. 36 e 37).

Conforme Salles (2011, p. 69), “limites internos ou externos à obra

oferecem resistência à liberdade do artista”. No caso da reportagem, o

deadline, prazo final para a entrega do material, é o que poderá delimitar

o trabalho do repórter. Se a jornalista tivesse acompanhado o parto, a re-

portagem, certamente, seria diferente. O que demonstra a possibilidade

de diferentes matérias e que aquela que chega ao público é apenas uma

versão de outras possíveis, não uma versão única.

No depoimento da jornalista também é perceptível a sua insatisfa-

ção, o que ela chama de erro, com o resultado da sua apuração, já que

não pode esperar o parto. Segundo Salles (2008), a sensação de insatis-

fação do criador vem pelo fato dele lidar com a sua obra em estado de

contínuo inacabamento. “O objeto dito acabado pertence, portanto, a um

processo inacabado. Não se trata de uma desvalorização da obra entre-

gue ao público, mas da dessacralização dessa como final e única forma

possível” (SALLES, 2008, p. 21).

As observações de Eliane Brum sobre a reportagem “A floresta das

parteiras” permitiram ainda uma reflexão da autora sobre o jornalismo.

Em um momento do making off, ela afirma que é preciso respeitar a lin-

guagem das parteiras. Ou seja, deixar a fonte falar sem um direcionamen-

to forçado do repórter.

O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que pa-lavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que mo-mentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio (BRUM, 2008, p. 37).

Mais adiante, a jornalista explica o que fazer para captar a nuance

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de suas fontes que vão enriquecer com detalhes a sua narrativa: “Bastava

escutar e anotar cada suspiro para não perder nada. [...] Especialmen-

te nesta reportagem, meu trabalho de repórter foi apenas escutar, pres-

tar atenção em cada gesto, ênfase, trejeito e passar tudo para o papel”

(BRUM, 2008, p. 38). Salles (2011) escreve sobre a percepção do artista

na hora de criar a obra. E que esta percepção é uma forma de exploração

do mundo. “O processo de apreensão dessas imagens revela a ação do

olhar dominando a realidade com armas poéticas” (SALLES, 2011, p. 97).

Na reportagem, as vozes das parteiras, realmente, dão o tom do

texto. Frases como: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mor-

tas da noite para povoar o mundo”, de Maria dos Santos Maciel, a dona

Dorica. Em outro momento, a parteira Alexadrina também afirma: “Mulher

e floresta são uma coisa só. A mãe-terra tem tudo, como tudo se encon-

tra no corpo da mulher. Força, coragem, vida e prazer”. Sobre as frases,

Brum comenta no making off: “Nem que quisesse, nem que eu estivesse

fazendo ficção e pudesse inventar, eu chegaria perto da beleza com que

elas se expressavam” (BRUM, 2008, p. 38).

A jornalista conclui o making off desta reportagem com outra

reflexão sobre o ofício do jornalista. Fala sobre a importância da par-

ticipação efetiva do repórter na construção da pauta. Segundo Brum,

a realidade precisará afetar\ mexer\ perturbar o repórter para que

ele possa traduzi-la de maneira mais verdadeira ao seu leitor. “Por-

que só tem graça ser repórter quando nos entregamos à reportagem

e deixamos que ela nos transforme. Se um dia eu voltar a mesma de

uma viagem ao Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono

a profissão. Ser repórter é renascer e se recriar a cada reportagem”

(BRUM, 2008, p. 39).

9 O sobrevivente e Mães vivas de uma geração morta

A reportagem “O sobrevivente” relata a história do único sobre-

vivente do documentário “Falcão – Meninos do Tráfico”, que relatou no

Fantástico, programa da TV Globo, a vida de meninos de favela e perife-

ria que são assassinados por trabalhar para a venda ilegal de drogas. Já

a reportagem “Mães vivas de uma geração morta” é sobre as mães que

perderam os seus filhos para o tráfico.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

O texto sobre os bastidores das reportagens foi intitulado “Olhar

para ver” em alusão ao documentário que, segundo Brum, mostrou cenas

para ver. Ou seja, para conhecer a realidade destes jovens. O comentário

de Eliane Brum sobre o documentário ainda pode gerar uma discussão

sobre os programas que noticiam a violência, mas não realizam, de fato,

uma reflexão sobre o tema.

Violência não é uma novidade na programação de jornalismo da televisão brasileira. [...] A diferença é que a maioria dos programas é feita não para que possamos ver – mas para que possamos continuar não vendo. A maioria deles, com a voz do apresentador ou do repórter ao fundo apontando o que devemos ver ou como devemos ver, não mostra, esconde. [...] Essa foi a diferença do documentário de MV Bill e Celso Athay-de. Eram cenas para ver – não para assistir. [...] Eu acredito que, nas ruas do mundo, o grande desafio é olhar para ver. E olhar para ver é perceber a realidade invisível – ou deliberada-mente colocada nas sombras. Olhar para ver é o ato cotidiano de resistência de cada repórter, de cada pessoa (BRUM, 2008, p. 236 e 241).

Eliane Brum explica que a pauta da reportagem “O sobrevivente”

foi a partir da repercussão do documentário exibido no Fantástico. A

segunda reportagem foi uma sugestão da repórter no momento da apu-

ração da primeira. Brum conta ainda que tinha uma entrevista com o

único sobrevivente entre os dezessete garotos do documentário. Mas o

acaso fez com que a repórter entrevistasse ainda uma fonte significativa

para a reportagem, que não estava prevista na pauta. Os acasos podem

acontecer no jornalismo, o diferencial estaria na forma como o repórter

lida com eles.

Salles (2011) discute sobre o acaso e como ele pode ser incorpo-

rado na criação. Já os documentos de processo auxiliam na identificação

deste acontecimento.

Os documentos de processo e os relatos retrospectivos conse-guem, às vezes, registrar a ação do acaso ao longo do percurso de criação. São flagrados momentos de evolução fortuita do pen-samento daquele artista. A rota é temporariamente mudada, o ar-tista acolhe o acaso e a obra em progresso incorpora os desvios. Depois deste acolhimento, não há mais retorno ao estado do pro-cesso no instante em que foi interrompido (SALLES, 2011, p. 41).

No caso da reportagem, a fonte inesperada ajudou na construção

do texto. Brum explica:

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Às vezes, supostamente, já temos o suficiente para escrever um texto, mas se pararmos nesse ponto nunca saberemos o que dei-xarmos de contar. Nem o leitor. [...] Às vezes essa última tenta-tiva não dá em nada. Mas em outras encontramos algo precioso – ou até a chave do texto. Foi o que aconteceu na conversa com a tia de Fortalece [único sobrevivente] [...] Eu acabara de desco-brir como contaria a história. Pelos nomes – essa era a chave do texto e da vida (BRUM, 2008, p. 238).

Assim, a reportagem “Mães vivas de uma geração morta” surgiu

de um acaso fortuito para a repórter que conseguiu contar a história por

uma perspectiva diferente daquela mostrada pelo programa Fantástico:

A primeira pergunta era: como eu poderia colaborar com este debate, como eu poderia acrescentar algo a essa discussão. A realidade da vida – e da morte – dos meninos do tráfico já ha-via sido mostrada com absoluta competência por MV Bill e Cel-so Athayde. Compliquei a pauta virando os meninos do avesso. Pude então mostrar outro olhar sobre eles: o das mães (BRUM, 2008, p. 240).

10 Vida até o fim

Salles (2011, p 132-135) afirma que o estudo do percurso criativo

de uma obra pode ser observado sob a perspectiva da construção de co-

nhecimento. Ou seja, ao analisar documentos de processo de uma obra,

busca-se o conhecimento do ambiente em que o artista está inserido; da

matéria-prima utilizada por ele e sobre o próprio artista. O percurso cria-

dor também se torna um processo de autoconhecimento.

Ao observar a reportagem “Vida até o fim” e o documento de pro-

cesso “Minha vida com Ailce”, é possível identificar o quanto o trabalho

foi intenso e transformador para a vida da jornalista. Brum também es-

crevia semanalmente para o site da revista Época na coluna de crônicas

“Nossa sociedade”. No texto “Escrivaninha Xerife”, que narrou sobre a sua

decisão de sair da revista Época, a jornalista conta sobre o impacto desta

reportagem na sua escolha:

Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. [...] Ao fazer a principal reportagem desta série, quan-do acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. [...]

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. [...] Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivani-nha Xerife e mudar de cenário (BRUM, 2010).

Pode-se afirmar que o primeiro romance da autora Uma duas (2011)

também teve ecos da reportagem já que uma das personagens principais

é diagnosticada com câncer terminal igual à merendeira Ailce.

No makinf off, Brum questiona os limites de intervenção do repórter

na história a ser contada e acaba discutindo temas importantes para o

jornalismo, como a objetividade e imparcialidade:

Algumas pessoas me perguntaram sobre o nível de intervenção do repórter, eu, na travessia da personagem, ela. Esse é um tema caro ao exercício do jornalismo. Isenção e objetividade se colo-cam para o jornalista como um ideal que deve ser perseguido, mas que jamais será atingido por completo. Nossa simples pre-sença – ou decisão de fazer uma reportagem – já altera a reali-dade sobre a qual vamos escrever. Quanto mais claro isso ficar para o leitor, maior será a honestidade do nosso trabalho. [...] Em meus textos, procuro deixar muito claro ao leitor qual é o meu lugar e onde minha interferência foi decisiva (BRUM, 2008, p. 419).

Ao contar sobre suas escolhas, principalmente aquela de não ser im-

parcial, a jornalista tem a oportunidade de mostrar a forma como constrói

a reportagem. Como neste trecho que relata como foi a relação com Ailce:

Eu quase não fazia perguntas, optei por apenas pontuar suas respostas, numa escuta delicada e muito, muito atenta. Por um lado, minhas perguntas, se incisivas, contaminariam suas res-postas: ela poderia usar minhas palavras em vez das delas para se referir a esse momento limite da vida. Por outro, eu correria o risco de atropelar seus sentimentos se abordasse questões para as quais ela ainda não estava preparada. No primeiro caso, essa interferência impossibilitaria uma reportagem honesta; no se-gundo, machucaria Ailce. Um exemplo: ela jamais usou a palavra “câncer”, eu nunca pronunciei a palavra “câncer”. Se eu falasse “câncer”, não poderia saber que Ailce não usava esta palavra e, assim, não compreenderia algo crucial da forma como ela lidava com a doença que a mataria (BRUM, 2008, p. 420).

Mais uma vez, os documentos de processo auxiliaram o entendi-

mento da forma de agir da jornalista diante da reportagem em constru-

ção. Desta forma, pode-se afirmar que a análise do processo criativo evi-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

dencia a possibilidade de um conhecimento a mais sobre o jornalismo e

sobre os desafios da reportagem.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasilien-se, 1987.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985.

BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2006.

_____________ O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São Paulo: Globo, 2008.

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______________ Escrivaninha xerife. Revista Época. São Paulo, 2010. Disponível em <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI-124381-15230,00-ESCRIVANINHA+XERIFE.html> Acesso em 17.06.2015.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Perspectivas acerca da biografia jornalística

Rodrigo Bartz1

1 Introdução

A curiosidade, em relação à biografia, está diretamente ligada ao

nosso interesse em estudar as complexificações que emergem quando

o narrador (jornalista de ofício) resolve dialogar com a literatura, neste

gênero (biográfico) que abarrota as prateleiras de livrarias e bibliotecas,

sendo inclusive número um em vendas em alguns sites2.

Por meio de estudos, realizados no grupo de pesquisa3, abordamos

o que significa para o jornalismo valer-se de recursos da literatura para

dar conta de seus relatos. Buscamos também encontrar recorrências ou

motivos dessas complexificações e reformulações no campo do jorna-

lismo, quando nos deparamos com uma ocorrência biográfica que nos

perturbou. Verificamos que quando dialogam com a literatura muitas bio-

grafias, tomando alguns fatos da vida do biografado, os transformam em

1 Professor e Mestre em letras. Email:[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6488912051189206. 2 http://www.liraneto.com/2012/05/getulio-o-mais-vendido-na-livraria.html. http://top10mais.org/top-10-livros-mais-vendidos-no-brasil-em-2014/. http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/09/andressa-urach-festeja-biografia-no-topo-da-lista-dos-livros-mais-vendidos.html.3 Narrativas Comunicacionais Reconfiguradas. Iniciado em março de 2013, junto ao PPG em Letras em parceria com o curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Projeto de pesquisa que tem por objetivo observar as reconfigurações decorren-tes da utilização, por parte do jornalismo, de recursos da narrativa de natureza literária que acabam por transformar tanto o que é da ordem do jornalismo como da literatura, em uma perspectiva dialogal. Hoje, GENALIM (CNPQ) Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Comunicacionais.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

signos abundantes de significações que reconstituem a escrita biográfica

por meio da fragmentação do sujeito conforme Barthes (2011), fazendo

emergir o que ele chama de biografemas.

Assim, esses biografemas resultariam da montagem de uma bio-

diagramação com base na coleta e escolha de biografemas: “[...] armados

num bastidor biográfico, em função de certo design, um interpretante

-objeto a que chamaríamos de significado da vida em questão.” (PIGNA-

TARI, 1996, p. 13). Os biografemas são, pois, uma forma de ficcionalizar

os documentos e provas, uma vez que sem factualidade e comprovação

documental os biografemas também não existem. E quando se valori-

zam demasiadamente os biografemas ou fatos de pouca ou nenhuma

importância, a biografia se torna o que Pignatari (1996) chama de puzzle

em que se pode “observar enormes lacunas [...] transformando-se num

arquipélago bizarro de biografemas flutuantes.” (PIGNATARI, 1996, p. 17).

Comprovamos, em nossos estudos, que apesar de híbrida, signifi-

cando a mescla de muitos gêneros e tendências, a biografia possui ele-

mentos e inclinações, principalmente narrativas e de estilo, que permitem

classificá-la como jornalística. Constatamos que nas biografias escritas

por jornalistas muitas das peças do quebra-cabeça biográfico ou puzzle

não se encaixam ou parecem pertencer a outro jogo.

Além disso, percebemos que as biografias jornalísticas têm em

seu entorno, para legitimar seus relatos, informações paratextuais e,

de certa forma, na sua grande verdade tem um pouco de ficção e muita

ficção na sua verdade. Outrossim, percebemos que as biografias jorna-

lísticas acompanham, em alguns aspectos, as mudanças ocorridas no

cenário da ficção brasileira contemporânea corroborando com as afir-

mações de Karl Erik Schollhammer (2011) e que, hoje, vivemos uma

verdadeira fusão dos campos ficcional e factual fazendo com que a bio-

grafia, paradoxalmente, seja o testemunho legitimador do real em uma

nomenclatura ficcional.

Então, a proposta de nosso trabalho é muito mais o debate dessa(s),

digamos, intertextualidade(s) do gênero biográfico, do que propriamente

uma cristalização ou conceitualização do gênero em estudo. Queremos

sim entender esses suportes que estabelecem novos meios de interação e

redefinem práticas sociais. Produto, estilo impuro, o gênero biográfico se

situa na divisa entre a vontade de reproduzir o real e o ficcional, que fica

de acordo com as feições criativas do jornalista escritor.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

2 Os nossos achados

Vilas Boas evidencia em sua tese doutoral (2006) que não acredita

na possibilidade de uma biografia jornalística. No decorrer de sua pesqui-

sa essa chance se tornou “insustentável porque é imensa a variedade de

intercâmbios possíveis entre diversas áreas do conhecimento do indiví-

duo humano e para a biografia em particular” (VILAS BOAS, 2006, p.15).

Opta, assim, por seguir a trilha da multidisciplinaridade característica da

narrativa biográfica. Porém, mesmo construídas de forma intertextual e

interdisciplinar, como afirma Dosse (2009) “um gênero impuro”, segui-

mos algumas trilhas existentes em uma tentativa de classificação, ou de

abordagem, das biografias ditas jornalísticas. Vejamos algumas.

Uma das maneiras, que usamos em pesquisas anteriores, foi por

meio das categorias e gêneros jornalísticos. Encontramos exemplos de

todas as categorias nos moldes propostos por Melo e Assis (2010), (exce-

to a utilitária4), que, na verdade, funcionam como indexadores de cama-

das mais profundas de significação, conclusão essa obtida após leituras

de algumas biografias e livros-reportagem, em parceria com o grupo de

pesquisa Narrativas Comunicacionais Reconfiguradas. Nas categorias in-

formativa, interpretativa e diversional alguns gêneros são mais recorren-

tes que outros5.

A categoria diversional é encontrada com mais recorrência nas bio-

grafias e nos livros-reportagem. Encontramos, por mais de uma vez, os

dois gêneros propostos por Melo e Assis (2010).

De acordo com Demétrio de Azeredo Soster (2011), a produção

classificada como interpretativa e diversional ganhou maior visibilida-

de devido à profunda imersão tecnológica que vive o jornalismo. Isso

acontece, segundo ele, porque as duas formas tornaram-se elementos

de constituição identitária e diferenciadora diante de um sistema midiáti-

co-comunicacional. Assim, outra forma de abordagem seria por meio da

midiatização, ou jornalismo midiatizado que permite compreender como

4 Em uma das abordagens de nosso Grupo de Pesquisa, verificamos as riquezas narrativas das obras do jornalista Fernando Moraes. Para tanto analisamos, de um lado, as categorias e os gêneros que a compõem, e de outro, o papel que ela ocupa no sistema midiático-comu-nicacional, elaborando um artigo apresentado no INTERCOM Manaus (2013) com o título, “O que dizem os gêneros nas narrativas jornalísticas não-biográficas de Fernando Moraes” dis-ponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-0046-1.pdf. 5 Mais exemplos ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 53 – 59.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

modelos de jornalismo se revigoram em meio a um cenário de profun-

da imersão tecnológica6. A abordagem pelo viés dos gêneros, segundo

Soster (2013), se apresenta como uma estratégia para compreendermos

reconfigurações que emergem destas narrativas.

Como Jornalismo midiatizado, Demétrio de Azeredo Soster (2009)

define aquele cujos dispositivos mais do que veículos de midiatização

são alterados por esse processo, midiatizando-se. O jornalismo midiatiza-

do para Soster (2013) é composto pela: auto referência, coreferência, des-

centralização, dialogia e atorização. A dialogia tornou-se a mais relevante

característica para nossa pesquisa. Por conseguinte, nessa característica,

o jornalismo vai buscar em outras áreas conhecimentos/legitimação en-

quanto campo, como ocorre nas biografias, classificadas como jornalísti-

cas. Não se trata aqui de apenas uma hibridização, mas sim de uma nova

realidade sócio-discursiva que complexifica sua estrutura7.

Para Demétrio de Azeredo Soster (2013) é particularmente por meio

da dialogia, isto é, pelo diálogo entre dois ou mais campos do conhecimen-

to, em uma perspectiva midiatizada, que encontramos tal emergência nos

gêneros discursivos do jornalismo, como o diversional e o interpretativo,

assentados principalmente em livros-reportagem e biografias jornalísticas.

Em Lima (2009), mesmo tendo como seu objeto de análise somen-

te o livro-reportagem, também encontramos algumas considerações que

se encaixam perfeitamente nas biografias. Para Lima, o livro-reportagem

perfil procura evidenciar o humano de uma personalidade pública ou

anônima. Inclusive, sustenta que: “[...] uma variante dessa modalidade

é o livro-reportagem-biografia, quando um jornalista, [...], centra suas

baterias mais em torno da vida, do passado, da carreira [...] normalmente

dando mais destaque ao presente” (LIMA, 2009, p.45).

Na mesma esteira, observamos a teoria de Genro Filho (2012), pois

se pode aplicar ao campo do jornalismo como um todo. Ao fundamentar

6 O sistema midiático-comunicacional, denominado “jornalístico”, estabelece-se como tal quando os jornais e revistas impressos, rádios, televisões, webjornais, sites jornalísticos, blogs e microblogs de natureza jornalística são unidos por meio da web. (SOSTER et.al.2010, p. 4). 7 Ocorre, por exemplo, quando o jornalismo vai buscar na literatura, por meio de reporta-gens ou livros-reportagem, o substrato para sua própria manutenção enquanto jornalismo, o mesmo ocorrendo com a literatura. É o que se percebe, a título de ilustração, quando escrito-res passam a se valer, cada vez mais, de dispositivos como jornais e revista para emprestar sentido e amplitude aos seus relatos, que acabam por se transformar nesta relação. Isso já ocorria desde pelo menos os folhetins, é bem verdade, mas não com a intensidade que se verifica hoje. (SOSTER, 2013, p. 101).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

as categorias universal, singular e particular afirma que é possível enqua-

drar todos os acontecimentos jornalísticos em tais. Proposta pelo autor,

a pirâmide em pé, imagem pela qual descreve sua teoria, aponta que um

texto informativo jornalístico parte da singularidade como característica

primeira do jornalismo para a particularidade e a universalidade8.

Assim, os pilares de Genro Filho são relevantes, pois com eles po-

demos verificar se a biografia jornalística busca elementos jornalísticos

como singularidade e, consequentemente, se diferencia, sendo que aqui

a singularidade é um ponto importante, enquanto para outras ciências,

como Sociologia nem tanto. Queremos dizer com isso que os pilares de

Genro Filho auxiliam na distinção entre uma biografia histórica, mais pau-

tada na universalidade e uma biografia jornalística mais pautada na sin-

gularidade do personagem biografado.

Além disso, encontramos, não raras vezes, nas narrativas biográfi-

cas as técnicas norteadoras dos escritores do Creative nonfiction9.

Mesmo que não se tenha uma predominância deste ou daquele

campo percebemos que uma das formas de intertextualizar literatura e

jornalismo, na escrita biográfica, ocorre por meio das técnicas ou procedi-

mentos que guiam o movimento alavancado pelos escritores americanos

em meados dos anos cinquenta. Embora não se tenha documentos oficias

que comprovem, ou seja, não podemos afirmar que a narrativa biográfica

contemporânea é influenciada somente e diretamente pelo movimento,

percebemos por meio dos procedimentos usados pelos adeptos do New

Journalism que temos mais uma possível porta de entrada para introdu-

zir elementos literários em escritas biográficas10.

E, após ter delineado espaço, não restritivo, mas, de certa forma,

norteador das biografias quanto a sua classificação, isto é: jornalística;

adentramos na abordagem biografemática. Explicamos o conceito.

Para Barthes (2010), biografema é entendido como uma espécie de

8 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 67– 70. 9 A primeira delas é a construção cena-a-cena. Decorrente da primeira técnica, a segunda consiste em testemunhar o fato e registrar os diálogos em sua totalidade. A terceira técnica é a alternância do foco narrativo, cujo objetivo é apresentar cada cena ao leitor através dos olhos de uma personagem particular, propiciando a ele a sensação de estar dentro da cena. A quarta da construção minuciosa que consiste em reunir e citar os gestos e hábitos cotidia-nos, a personalidade, o comportamento com familiares, crianças, empregados, e vizinhos, além de outros pormenores que permeiam a vida dos personagens e que servem para deli-mitar estilo de vida, por exemplo. (Wolfe, 2005)10 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfi-co [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 78 – 81.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

anamnese factícia, uma imitação que é mais da ordem da fabulação, da-

quilo que não toma como modelo um Real-Imaginário, mas que o inventa

na sua necessidade de fazer algo com ele. Esse sujeito revisitado por Ro-

land Barthes está aos pedaços, disperso, “um pouco como as cinzas que

se lançam ao vento depois da morte” (BARTHES, 2010, p.14). E a partir de

então Barthes se depara com seu anseio:

Se eu fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a algumas inflexões, digamos: biografemas, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado a mesma dispersão! (BARTHES, 2010, p.14).

Ao abordar a semiótica da biografia, Décio Pignatari (1996, p.13)

afirma que o trabalho biográfico é realizado por alguém que, como uma

aranha à caça da mosca, arma uma teia por meio dos diversos recursos

utilizados pela biografia, como o documental, o factual e o ficcional, isto

é, “capta, lê a vida de alguém”. Pignatari propõe, dessa forma, a concep-

ção de biodiagrama como um conjunto de biografemas. Ao extrair fios

das mais variadas naturezas sígnicas o biógrafo elabora uma tessitura

(biodiagrama). A prática biografemática faz uso do material acerca da

vida do autor, porém de forma desfragmentada, como um compósito de

signos soltos prontos para pontilharem outros rostos, culminando em

jogos de mentiras e verdades.

Em sua pesquisa, Luciano Bedin da Costa (2011) afirma que ao invés

de modelos exemplares de biografias de heróis ou de personagens religio-

sos a prática biografemática volta-se para o comum, para o potente que se

entranha no ordinário, para as imprecisões do rosto, numa espécie de etno-

logia do minúsculo. Assim, a biografia resultaria da coleta de biografemas.

Entendemos, em nossos achados, biografemas como essas cinzas

soltas, como afirmou Roland Barthes, essas luzes salientes em um quarto

repleto delas quando algumas dessas luzes, escolhidas pelo narrador,

tornam-se o foco principal, isto é, uma valorização do aparentemente in-

significante que dá valor à escritura. Em nossa abordagem propriamente

dita, além de Luciano Bedin da Costa (2011), encontramos no Biografis-

mo de Vilas Boas (2008), uma análise consistente acerca das biografias.

Mesmo que Vilas Boas não se refira à palavra biografemas, nos sentimos

seguros, nos momentos de abordagem, de sua relação com a escrita bio-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

grafemática. Os biografemas, como afirma Costa (2011), são muito mais

apegados com a-história, narrando não o nascimento e a morte, mas as

várias mortes que temos em vida. Esses traços insignificantes (estilha-

ços) de verdade tornam a vida uma potência. No encontro com algumas

potencias de vida, personificadas nos personagens biografados, por ve-

zes, tem-se uma sensação biografemática. Tal sensação, que sentimos

no momento de nossa abordagem, nos fez costurar os biografemas com

o biografismo, pois essa biografemática leitora que se instaurou em nós

nos fez ser absorvidos por essa cinza heroica precoce e paradoxal com

que o narrador, alinhava biografematicamente seu personagem.

Como biografemas fatais, entendemos aquelas passagens em que

o narrador evidencia sua intencionalidade de atribuir ao biografado o su-

cesso, a predestinação. Para tanto, reunimos a concepção de biografemas

de Barthes (2010) com o fatalismo de Vilas Boas (2008, p. 88) que é “[...]

esse afã de realçar várias qualidades supostamente inatas, que expliquem

o herói vitorioso”. E como biografemas extraordinários aquelas tentativas

do narrador em mostrar as diversas facetas de seu personagem e não so-

mente seu sucesso. Isso, amparados na concepção de Barthes (2010), e

Costa (2011) acerca dos biografemas, juntamente com a posição de Vilas

Boas (2008) acerca do tema.

Observamos, em abordagens anteriores11, que o narrador usa os

biografemas como forma de ficcionalizar a narrativa biográfica. Perce-

bemos que algumas opções biografemáticas fornecem ao leitor informa-

ções implícitas, ou seja, por meio da leitura dos biografemas podemos

perceber o poder aquisitivo, as manias dos personagens, nos ambientar

no espaço em que o biografado circula, por exemplo. Assim, percebemos

que as biografias de cunho jornalístico são afetadas e que na ausência de

conexões, que esquadrinhem esse puzzle, os biógrafos se esforçam em

uma tentativa de atribuir um sentido à vida biografada.

Os biografemas rompem a fronteira dos modelos tradicionais de

biografia que, como afirma Vilas boas (2008), jura dizer a verdade nada

mais que a verdade, somente a verdade e se associa a um olhar que evi-

dencia os pequenos detalhes, as cinzas soltas, os traços insignificantes

que fazem parte dessa vida.

Notemos, dessa forma, que apesar de híbrida, intertextual, as bio-

11 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfi-co [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 91 – 99.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

grafias possuem elementos narrativos e de estilo que permitem denomi-

ná-la, classificá-la como jornalística, porém isso não é o mais importan-

te. Procuramos evidenciar, aqui, algumas possibilidades de abordagem

nas biografias de cunho jornalístico e as complexificações emergentes

de algumas estruturais verificações que, como afirmamos anteriormente,

prestam-se apenas como formas mais largas de verificação e discussão e

nunca de engessamento.

3 Algumas respostas prováveis

A escrita biográfica foi consolidada no Brasil com um verdadeiro fenô-

meno de vendas iniciado nos anos 1990. O ápice mercadológico brasileiro foi

na década de 90 quando “o catálogo brasileiro de publicações anunciava um

crescimento de 55% do gênero em relação a 1987” (MAYRINK E GAMA, 1994,

p.104). Vilas Boas (2002) também ressalta essa questão, afirmando que nos

anos 1990 a publicação de biografias dobrou no Brasil, mesmo sendo um

país de poucos leitores, ao contrário de outros gêneros que diminuíram seu

número de tiragens: “[...] entre 1995 e 1997, o número de exemplares à venda

no Brasil praticamente dobrou (99%), enquanto a variação do total de títulos

lançados caiu 11%[...]” (VILAS BOAS, 2002, p. 23). A partir dessa data, as bio-

grafias passaram a ser escritas prioritariamente por jornalistas, que munidos

com recursos da literatura e documentos, preocuparam-se mais com a indivi-

dualidade (singularidade) dos biografados. Ademais, citamos dados contidos

no artigo de Sandra Reimão (2011) – Tendências do mercado de livros no Bra-

sil – quando a autora evidencia a presença de autores nacionais de ficção nas

listagens dos mais vendidos. Mesmo com um predomínio dos best-sellers de

autores estrangeiros como O Código Da Vinci do norte americano Dan Brown,

percebemos que na década estudada pela pesquisadora, de 2000 a 2009,

aparecem na lista livros-reportagem e biografias de autores nacionais. Como

exemplo; 1808 de Laurentino Gomes, 2º colocado em 2007, 1º em 2008, 5º

em 2009, além de Corações sujos (8º colocado em 2000 e 4º em 2001), Olga

(6º colocado em 2004) e O mago (8º colocado em 2008) do jornalista Fernan-

do Morais, o que, de certa forma, confirma esse Boom de jornalistas envere-

dando para a escrita de livros-reportagem e biografias.

Para Jaguaribe (2007) há um boom das biografias e das escritas do

“eu” no meio editorial. As muitas aparições da vida íntima tanto no cir-

cuito audiovisual quanto na internet assinalaram novas mesclas entre o

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

público e o privado, ficcional e o real. Para a autora a desaparição dessas

divisas é consequência “[...] da politização da vida privada [...] a presença

avassaladora da mídia que engloba [...] tanto agendas e eventos públicos,

quanto notícias referentes a individualidade privada” (JAGUARIBE, 2007,

p. 153). Segundo a pesquisadora, ficou quase impossível separar o real e

o ficcional na modernidade, pois incorporamos o imaginário no próprio

cotidiano e quando processos de ficcionalização se cristalizam, como dis-

poníveis, buscamos experiências não mediadas.

Nesse percurso, assim como a biografia, a ficção brasileira passou

por diversas fases. Conforme Karl Erik Schollhammer (2011), o Brasil,

prioritariamente, urbano em 1960 tem como norte a prosa urbana e em

1970 há uma busca pela narrativa, em resposta a situação política. Em

1980, o narrador começa a narrar se apropriando do cenário brasileiro e

dos grandes centros. Assumindo, assim, um compromisso com a reali-

dade social. Dessa forma, destacamos a produção de romances híbridos

- entre eles a biografia – na divisa entre o ficcional e realidade, aqui, uma

resposta à notícia reprimida pela ditadura.

Schollhammer (2011) afirma que a geração de 90 tem prefe-

rência pelo miniconto, formas de escritas instantâneas, os flashes e

stills com uma retomada inovadora ao romance realista regional como

vemos, por exemplo, em Assis Brasil. Ainda na década de 90, há a

intensificação do hibridismo literário e incorporação da narrativa ro-

teirizada da linguagem publicitária. Os escritores trazem para suas

narrativas a factualidade da criação, tirando proveito da tensão entre

o plano referencial e o plano ficcional, para confundir os limites e para

inserir índices de um real originário da experiência íntima que legitima

e ampara a ficção.

A narrativa biográfica segue, pelo menos neste ponto, fielmente

os rumos da ficção brasileira. Nas biografias contemporâneas escritas

por jornalistas, percebemos essa busca, de certa forma paradoxal12, pela

instantaneidade usufruindo de técnicas do conto. Na biografia jornalísti-

ca encontramos paratextos ou indexadores13 indicados nos capítulos em

que, mesmo se tratando de uma obra linear, cronológica, é possível ler o

último capítulo sem ter lido os demais, sem prejuízo do entendimento.

12 Afirmamos ser paradoxal, pela sua extensão. 13 Ver ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994 e RAMOS, Fernão. Mas afinal -- o que é mesmo documentário?. São Paulo: SENA-C-SP, 2008.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Aqui, podemos citar a obra Getúlio: dos anos de formação à conquista

do poder (1882-1930), do jornalista Lira Neto (2012) e O Mago (2008),

do jornalista Fernando Moraes que seguem divisão com paratextos e in-

dexadores, isso para ficar somente em dois exemplos. Nesse sentido,

visualizamos a semelhança da forma como é estruturada a narrativa bio-

gráfica contemporânea com a analogia da fotografia e do conto levantada

por Julio Cortázar. Cortázar (1993) afirma que a foto e o conto fazem um

recorte na realidade apontando a uma realidade mais ampla, pois ambas

se aproveitam de um acontecimento significativo para elaborar um efeito

de sentido a obra:

Numa fotografia ou num conto de grande qualidade [...] o fo-tógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capa-zes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibili-dade em direção a algo que vai muito além do argumento vi-sual ou literário contido na foto ou no conto. (Cortázar 1993: 151-152)

Assim, tal característica, segundo Cortázar (1993), impulsiona no

leitor amplitude, passível de levar o interlocutor a algo que transcende o

que está registrado de forma incisiva desde a primeira página na obra. É

uma possibilidade de leitura paratextual, ou seja, paralela, para além do

escrito. Dessa forma, essa narrativa biográfica (ou Puzzle), fragmentada

em capítulos – biografemática –, é entendida como um acontecimento

real ou fictício que proporciona ruptura de linhas, que vai além daquilo

que é contado na narrativa.

Para Selzer (1998) citado por Schollhammer (2011), vivemos a “cul-

tura da ferida” quando expomos a intimidade privada e ela é exposta

confundindo o individual e a multidão. De acordo com o autor, trata-se de

uma patologização da esfera pública por meio de sentimentos individuais

que se tornam coletivos num tempo em que a indiferença atinge a esfera

privada e a vivência Pública.

Assim, a biografia é uma narrativa costurada que se situa nos li-

miares do jornalismo, da história, do relato do real e do ficcional. O que

podemos extrair daí é a extrapolação do micro, dos pequenos detalhes,

da explicação do todo por meio da narrativa de pequenos personagens

ou cenas, a uma primeira mirada, banais. Assim, por meio do micro che-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

gar ao macro, característica fortemente ligada à micro-história14, que con-

forme Burke (1990) enfocou o homem comum, considerou não somente

ações individuais, mas também coletivas.

Ou seja, hibrida – pautada, por um lado, nas marcas que dão cre-

dibilidade a narrativa frente ao público leitor, a biografia, pegando caro-

na nesse fenômeno, alterou suas táticas narrativas e de estilo. Conside-

rando as proporções devidas, podemos comparar a biografia jornalística

contemporânea com a narrativa autoficcional, pois conforme Hidalgo

(2013)15, na autoficcão temos a vantagem de poder embaralhar, de certa

forma, apagar os limites entre a verdade e a ficção.

Por outro, nos diversos entrelaçamentos contidos na contempora-

neidade quando temos, segundo Fabiana Piccinin16 a “estética dos múlti-

plos”, ou seja, não há um narrar hegemônico o que auxilia a hibridização

das narrativas:

[...] trazendo a presença e a importância de todas as formas nar-rativas advindas de variados suportes. Assim, tem-se a narrativa a partir do recurso da oralidade, do texto impresso, do áudio e do vídeo e dos recursos oferecidos pelo ambiente web, resultan-do em um narrar fruto dessa multiplicidade. As historias se dão na combinação das formas narrativas tradicionais associadas às novas possibilidades e recursos, ou em novas “dicções” [...]. (PIC-CININ, 2014, p. 167)

Talvez, uma das causas dessa extrapolação do micro, como o uso

dos biografemas abordados anteriormente, a fragmentação do enredo

por meio dos capítulos, seja característica da autenticidade, como afirma

Jaguaribe (2007, p. 159) que: “[...] o retrato da favela verbalizado pelo

favelado possui maior poder de barganha do que a visão da favela en-

trevistada pelo fotógrafo classe-media, pelo cineasta publicitário ou pelo

escritor erudito.” Dessa forma, a narrativa biográfica continua hibrida no

paradoxo e limiar do contemporâneo, quando serve de igual maneira de

indexador da experiência de legitimação do real e estrutura do ficcional.

Logo, leitores encantados com esse narrar despendem fascinados

momentos de leitura mesmo sabendo de antemão o desfecho da história.

14 Ver BURKER, Peter. A escola dos annales (1929-1989) – A revolução francesa da historio-grafia. São Paulo: unesp, 1990.15 HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura. São Pau-lo: Annablume, 2008.)16 A expressão é uma criação da própria autora e é utilizada para se referir às diversas estéti-cas presentes na contemporaneidade sem que haja hegemonia de uma sobre a outra.

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119

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Isso porque tendemos a ficcionalizar a vida por parecer mais agradável

e confortável. Talvez por isso reality shows e biografias façam tanto su-

cesso, pois vemos nos “personagens”, de ambos, semelhanças com o

que nos deparamos. A biografia atrelada à literatura, a essa forma de

descrição verossímil, biografemática aproxima e encanta o leitor. O texto

biográfico, assim, faz com que o personagem biografado (na tentativa

do narrador em captar o real) seja explicável em um maior grau de origi-

nalidade que a própria vida, ofertando ao leitor uma sensação de poder

transformando esse personagem em algo mais manejável e palpável.

4 Considerações interpretativas

Percebemos, no trabalho que - por hora - aqui se encerra, que es-

sas formas de abordagem, servem como sobreposições de camadas mais

complexas. Tentamos construir somente algumas possibilidades de aces-

so em biografias de cunho jornalístico pelo viés da narratologia nos mol-

de de Reis e Lopes (1988), pois assim conseguimos constatar a estrutura,

para além dos gêneros e categorias, que se constituem tais relatos.

Com isso, buscamos identificar complexificações que estabelecem

a prática jornalística quando esta é midiatizada. Em particular a dialogia

que se concebe quando os campos do conhecimento buscam em outras

áreas os elementos atestatórios de identidade enquanto campo.

Além disso, nesse contexto, o narrador jornalista ao se comportar

como narrador literário, não deixa de ser um narrador midiático, pois se

formata através da experiência do personagem. Desse modo, busca no-

vos formatos imprimindo ao texto marcas literárias. Portanto, ao tornar o

texto uma narrativa, segundo Barthes (1991), há uma ficcionalização do

sujeito. Ao escrever acerca da vida de alguém se ficcionaliza esse sujeito.

E essa ficcionalização não esta no plano irreal, tampouco no real, que se

funde com o personagem tornando-se um mesmo tecido.

Como afirmava a escritora Virginia Woolf, uma biografia só pode

ser considerada completa quando explica sete ou mais eus, enquanto

uma pessoa pode ter milhares. Isso se aproxima as declarações de Anto-

nio Candido (2002) acerca do personagem. O autor define o personagem

de ficção (homo fictus) como o mais próximo da realidade e não a realida-

de, pois podemos delimitá-lo, por possuirmos um conhecimento (presen-

teado pelo narrador) mais completo e coerente, enquanto a pessoa viva

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

(homo sapiens) é constituída de uma infinidade de eus. O que se aproxi-

ma muito do trabalho biográfico quando pessoas, tornadas personagens,

sofrem o efeito do dinamismo da história.

Enfim, o gênero biográfico descomprometido com padrões, busca

aparatos outros em diversas fontes, distintas formas de se legitimar fren-

te a um mercado complexificado.

O que mais nos interessa nessas metamorfoses são as emergências

da biografia de natureza jornalística no cenário editorial. Terminamos com

poucas certezas, porém com a capacidade de perceber que compreender

o que significam, principalmente em tempos evolutivos do jornalismo

implica ter condições de observar importantes transformações e intertex-

tualidades que estão, atualmente, em constante processo.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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123

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A NARRATIVA DOS QUADRINHOS E AS FRONTEIRAS COM O JORNALISMO

José Arlei Cardoso1

A definição de histórias em quadrinhos sempre foi uma tarefa di-

fícil, dada a sua natureza híbrida. McCloud (2005), apesar de elaborar o

conceito de “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deli-

berada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta

no espectador” (p. 9), deixa claro que arte sequencial é a única definição

que vamos precisar para entender os quadrinhos. Para Chinen (2011), só

o fato de a definição de arte sequencial ser aplicada também ao cinema

já é o suficiente para refutá-la nos quadrinhos. Segundo o autor, “ainda

não se chegou a um consenso para definir o que seriam histórias em

quadrinhos, pois para cada conceito existe pelo menos um argumento

que o contradiz” (p. 7).

Essa indefinição conceitual é justificada. Capazes de assimilar

várias linguagens, como a cinematográfica e a literária, os quadrinhos

também se adaptam facilmente a novas tecnologias, ajustando regu-

larmente seu método de distribuição e consequentemente seu método

de leitura. Antes disponíveis apenas nas páginas impressas dos jornais

e revistas, os quadrinhos ultrapassaram diversas barreiras de platafor-

mas e hoje estão disponíveis digitalmente até mesmo em aplicativos

de leitura de livros.

De maneira específica, um dos grandes desafios das histórias

em quadrinhos é conseguir fazer valer uma de suas regras básicas e

primordiais, que é se estabelecer como uma narrativa interdependente

1 Mestre em Letras (UNISC) e Especialista em Comunicação Digital (UCS/PUCRS).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

da integração entre texto e imagem, onde a sequencialidade de seus

quadros vai determinar sua dinâmica. Por isso, aqui entenderemos a

história em quadrinhos como uma arte interdependente constituída

a partir da integração de elementos textuais e imagéticos, das mais

diversas naturezas, dispostos de modo sequencial e capaz de gerar

inúmeras narrativas a partir da hibridização da sua linguagem. Essa

natureza híbrida, que hoje extrapola a simples definição de arte se-

quencial, é a responsável por facilitar uma convergência com outras

áreas artísticas e comunicacionais, como a literatura, o cinema, e prin-

cipalmente o jornalismo. Se, por essa mesma natureza, muitas vezes

os quadrinhos são considerados diversão efêmera e infanto-juvenil, é

inegável que também estão presentes na cultura contemporânea de

uma forma generalizada e transformadora. Mais do que um produ-

to cultural descartável, as histórias em quadrinhos se transformaram

num poderoso meio artístico, contribuindo para o desenvolvimento

cultural, e de comunicação, recriando a realidade de épocas, costumes

e valores principalmente em um contexto jornalístico.

Em um dos primeiros estudos sobre os quadrinhos, Eco (2008) re-

correu à linguagem consolidada e reconhecida do cinema (p. 131), que

tem por base o movimento, e tentou adaptá-la para a especificidade da

linguagem dos quadrinhos, cuja continuidade narrativa é garantida pela

sequencialidade dos seus quadros (também chamados de vinhetas), que

são estáticos. Segundo o autor, “da história em quadrinhos banal, pra-

ticamente bidimensional, chega-se a algumas elaboradas construções,

no âmbito da vinheta, que obviamente se ressentem de uma sofisticada

atenção aos fenômenos cinematográficos” (p. 146). Ao afirmar que os

elementos semânticos dos quadrinhos – constituídos por balões, onoma-

topeias, entre outros – compõem-se numa gramática do enquadramento

(p.146), Eco faz uso de diversas leis de montagem cinematográfica, adap-

tando-as aos quadrinhos:

Dissemos “leis de montagem”, mas o apelo ao cinema não nos pode fazer esquecer de que a história em quadrinhos “monta” de modo original, quando mais não seja porque a montagem da história em quadrinhos não tende a resolver uma série de en-quadramentos imóveis num fluxo contínuo, como no filme, mas realiza uma espécie de continuidade ideal através de uma fatual descontinuidade. (ECO, 2008, p. 147)

Por isso, Eco (2008) afirma que “a história em quadrinhos que-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

bra o continuum2 em poucos elementos essenciais. O leitor, a seguir, sol-

da esses elementos na imaginação e os vê como continuum” (p.147). Ou

seja, é no intervalo entre um quadro e outro que o leitor deixa a sua ima-

ginação fluir, pois precisa preencher o espaço que não pode ser ocupado

pela informação estática. Esse espaço entre os quadros é que compõe o

continuum. Para Paim,

[…] há uma lei atuando de forma mais intensa nos quadrinhos, que não há no cinema nem na fotografia […]. Estamos falando da noção de que o que acontece entre dois quadros é um componente mais vital para a história do que esses dois quadros por si. Afinal, é no espaço entre dois momentos congelados que o leitor constrói uma conexão narrativa. É o espaço da imaginação do leitor, que pode ser exigida de forma mais ampla ou mais breve conforme variar a distância dos momentos representados nesses dois quadros. É, portanto, na justaposição que se constrói a linguagem dos quadrinhos. (2013, p. 374)

Nas histórias em quadrinhos, esse espaço entre os quadros (ou

vinhetas) – que precisa ser preenchido pela imaginação criativa do leitor

para completar a sequência narrativa – é conhecido como elipse, mul-

tiquadro, entrequadro, canaleta, sarjeta etc. Independente das nomen-

claturas escolhidas, a sua importância é sempre ressaltada. Para Chinen

(2011), “se a arte de contar uma boa história em quadrinhos depende da

habilidade em selecionar certas cenas, saber o que não mostrar também

é fundamental” (p.41).

Há algumas décadas costumava-se dizer que os quadrinhos eram leituras de gente preguiçosa, pois, diferentemente da literatura, não exigiam que se imaginasse como seria o rosto e o porte de uma personagem ou o relevo de uma paisagem, uma vez que tudo era mostrado nos desenhos. Esse tipo de crítica, além de antiquada, era equivocada, pois uma das riquezas dos gibis é justamente per-mitir que, entre um quadrinho e outro, a imaginação voe. Se numa vinheta vemos o mocinho sair a galope e, na sequência, um outro quadrinho o mostra prestes a desmontar do cavalo, todo o percur-so, a passagem ensolarada, o ruído dos cascos do animal batendo no solo é criado pela mente do leitor. (CHINEN, 2011, p.40/41)

2 O termo continuum – que significa contínuo (ou continuidade, sequência) – é usado por Eco (2008) a partir de um estudo sobre a memória, realizado pela socióloga francesa Evelyn Sulle-rot. Usando a estrutura da fotonovela, a socióloga percebeu que os entrevistados, ao serem submetidos a duas fotografias justapostas – que mostravam, respectivamente, um pelotão de execução disparando e um condenado caído no chão – eram capazes de comentar detalhada-mente uma “terceira fotografia” – descrevendo o condenado enquanto caía – que não tinha sido mostrada. Essa capacidade de preencher o espaço entre duas imagens usando a imaginação de uma terceira imagem recebeu o nome de continuum virtual (ECO, 2008, p.147).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Na mesma linha, Klawa (1997) analisa que “o que faz do bloco de

imagens uma série é o fato de que cada quadro ganha sentido depois de

visto o anterior; a ação contínua estabelece a ligação entre as diferentes

figuras” (p.110). Os cortes de tempo e espaço estão presentes e ligados

a uma rede de ações lógicas e coerentes. McCloud (1995) também argu-

menta que para ler o movimento dos quadrinhos é preciso ler também o

espaço que existe entre cada quadro e refere-se ao espaço entre os qua-

dros como sarjeta:

[...] a sarjeta é responsável por grande parte da magia e mistério que existem na essência dos quadrinhos. É aqui, no limbo da sarjeta, que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma única ideia. Nada é visto entre os quadros, mas a experiência indica que deve ter alguma coisa lá. Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada. Se a iconografia visual é o vocabulários das histórias em quadrinhos, a conclusão é a sua gramática. E já que nossa definição de quadrinhos se baseia na disposição de elementos, então, num sentido bem estrito, quadrinho é conclusão (MCCLOUD, 1995, p. 66-67).

Para que o leitor de quadrinhos possa estabelecer essa conexão

imaginária entre os quadros, é necessário que a sequência da história es-

teja muito bem definida, com os elementos dispostos de maneira clara e

adequada dentro dos quadros. Ou seja, o autor da história em quadrinhos

precisa realizar uma montagem estruturalmente eficaz, com as imagens

e textos bem enquadrados dentro de sua área designada. Nesse sentido,

o enquadramento refere-se à aproximação do observador em relação à

cena e serve para enfatizar algum elemento a partir do seu distanciamen-

to ou detalhe (CHINEN, 2011, p.36).

Curiosamente, muito tempo antes do surgimento do cinema os

quadrinhos já se utilizavam dessa montagem – e dessa linguagem – para

retratar os fatos da atualidade nas páginas dos jornais. É o caso do traba-

lho realizado pelo jornalista Angelo Agostini, italiano naturalizado brasi-

leiro. Lançada em 1869 e considerada a primeira história em quadrinhos

publicada no Brasil3, As Aventuras de Nhô-Quim (ou Impressões de uma

Viagem à Corte), criada por Agostini (2002), foi publicada nas páginas

3 A primeira parte da HQ foi publicada no dia 30 de janeiro de 1869. Considerando a im-portância da data, decidiu-se instituir o dia 30 de janeiro como o Dia do Quadrinho Nacional (CARDOSO, 2002, p.23).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

do jornal carioca A Vida Fluminense e teve a duração de nove capítulos.

Apesar de não apresentar as falas dos personagens em balão, a história

em quadrinhos de Agostini utilizou vários elementos que se tornaram

marca registrada dos quadrinhos, como o uso de recursos metalinguís-

ticos, com personagem fixos e de personalidade definida, bem como a

utilização de enquadramentos inusitados, que seriam referência para o

cinema (CAGNIN, 1996).

Na história, Nhô-Quim é um jovem abastado de uma cidade do in-

terior do país. Quando se apaixona por Sinhá Rosa, uma moça de família

pobre, Nhô-Quim é punido por seu pai, que o envia a um passeio à Cor-

te, na capital, com a intenção de que esqueça a amante. Começa assim

uma série de desventuras do caipira ingênuo e trapalhão em uma cidade

grande, evidenciando um estilo mais literário, mais próximo da crônica

de costumes4, que se tornaria uma marca registrada de Agostini. Como

aponta Sodré (2009), o cronista se impõe como uma moderna modalida-

de de narrador.

Na crônica jornalística, está quase sempre implícito um locucio-nário (um tu), com o qual o cronista estabelece uma relação de intimidade, permitindo-se a digressões sobre qualquer tema, embora, na maioria das vezes, o tema importe menos do que a feitura densa ou sedutora do texto, onde se deixa ver o estilo personalíssimo do autor (SODRÉ, 2009, p.145).

Considerado historicamente apenas como um caricaturista, Agosti-

ni teve um papel muito mais importante na aproximação dos quadrinhos

com o objetivismo do jornalismo e com o subjetivismo da literatura, do

que o mero entretenimento cômico. Conhecido como o “repórter do lá-

pis”, Agostini era um jornalista engajado em várias questões sociais, des-

de que criou o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, o Diabo Coxo, em

1864, que teve curta duração. Em 1866, fundou o Cabrião e suas críticas

ao governador da Província resultaram na depredação e destruição do

jornal, obrigando Agostini a fugir para o Rio de Janeiro. Lá, atuou nos jor-

nais Arlequim (1867), Vida Fluminense (1868), e O Mosquito (1869-1875).

Em 1876, fundou a sua própria revista, a Revista Illustrada, publicação

que marcou época no Brasil por seus relatos opinativos, em forma de

4 Segundo Sodré (2009), no Brasil, a crônica de costumes teve como representantes gran-des nomes da literatura como Martins Pena, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

histórias em quadrinhos, que tratavam de temas polêmicos e criticavam

desde o clero até a elite brasileira, levantando bandeiras em favor da li-

bertação dos escravos negros e da República.

Ao retratar os principais conflitos da sociedade escravista brasi-leira, Ângelo Agostini procurou dar sua contribuição ao processo que culminaria na abolição da escravatura em 1888. Como mili-tante abolicionista, ele usou seu talento para criticar os escravo-cratas e denunciar a crueldade da escravidão pondo em descré-dito a autoridade senhorial e a legitimidade da instituição. Com enorme perspicácia, ele percebeu as principais questões que en-volviam as leis emancipacionistas de 1871 e 1885, e procurou tirar proveito da crescente fragilidade da autoridade senhorial para mostrar à população o quanto a escravidão estava fadada ao desaparecimento (SILVA, 2006, p. 299).

A força do trabalho de Agostini não residia apenas no fato de

trabalhar com a informação de forma ilustrada, mas, principalmente, no

propósito e na significação do uso da linguagem em quadrinhos. Como

o uso da fotografia era raro na época, destinando-se apenas a registros

fotográficos de lugares e pessoas em poses programadas, o uso do de-

senho nos jornais era a única forma de retratar e registrar os fatos da

época. E Agostini, com seu traço marcante e detalhista, principalmente na

composição de luz e sombras, tornou-se uma referência realista, quase

fotográfica, dos fatos que marcaram o final do império brasileiro. Além

disso, a técnica sequencial dos quadrinhos desenvolvida por Agostini fa-

cilitava o entendimento do público leitor, sugerindo ideias e opiniões por

meio de texto e imagens bem encadeadas. O que era uma nova e eficien-

te ferramenta de comunicação para uma população com baixo índice de

alfabetização, reflexo de uma sociedade de minoria branca e rica e de

maioria negra e mulata, que contava com um grande número de escra-

vos. Esse ato de contar histórias por meio dos quadrinhos certamente

desempenhou papel relevante na formação da opinião pública da épo-

ca, funcionando como “um dispositivo argumentativo de linguagem para

convencer, provocar efeitos, mudar o estado de espírito de quem ouve, lê

ou vê uma história” (MOTTA, 2013, p.74).

Posteriormente, Agostini ainda iria criar personagens fictícios

famosos, como Zé Caipora (1883), e produzir histórias baseadas em even-

tos reais, criando as primeiras reportagens em quadrinhos. Seu maior

exemplo foi uma série de histórias em quadrinhos que mostrava vários

relatos históricos sobre a brutalidade da escravidão brasileira de uma

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

maneira factual: Scenas da Escravidão. As histórias, originalmente uma

seção regular da Revista Illustrada, retratavam e denunciavam, de forma

crua e documental, a realidade de castigos, torturas e assassinatos come-

tidos contra os escravos nas fazendas, pouco antes da assinatura da Lei

Áurea, em 1888.

Quadrinhos e o contexto jornalístico

Diferentes da ideia desenvolvida por Agostini, as histórias em

quadrinhos que se firmaram nas páginas dos jornais americanos do

final do século XIX eram resultado de uma intensa evolução industrial,

iniciada no século XV com a invenção da imprensa (MCCLOUD, 1995,

p. 16), e adquiriram autonomia e respaldo suficiente para serem

consumidas em grande quantidade, geralmente por um público cativo.

Mais especificamente, esses quadrinhos surgiram de uma rivalidade

jornalística entre William Randolph Hearst, dono do The New York Journal,

e Joseph Pulitzer5, dono do jornal The New York World, que disputavam

acirradamente as crescentes verbas publicitárias do mercado (CIRNE,

1975). O jornal The New York World foi o jornal americano mais popular do

final do século XIX, chegando a alcançar a tiragem de 600 mil exemplares

diários em 1896, e tinha como seu principal concorrente o jornal The New

York Journal (SILVEIRA, 2013), sendo que a violenta disputa entre os dois

por leitores originou o termo yellow journalism, que ficou conhecido no

Brasil como “jornalismo marrom” ou “sensacionalismo”. Como o aumento

da tiragem dos jornais determinava o sucesso publicitário, os quadrinhos

“funcionariam como uma novidade para atrair mais leitores” (CIRNE, 1975,

p. 19). Conforme o autor,

[…] os quadrinhos surgiram como uma consequência das rela-ções tecnológicas e sociais que alimentavam o complexo edi-torial capitalista, amparados numa rivalidade entre grupos jornalísticos […] dentro de um esquema preestabelecido para aumentar a vendagem de jornais, aproveitando os novos meios de reprodução e criando uma lógica própria de consumo. (CIR-NE, 1970, p.10)

5 Joseph Pulitzer é o jornalista que dá nome ao famoso prêmio dedicado a escritores e jornalistas, nos Estados Unidos. Já a biografia de William Randolph Hearst inspirou o filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles, em 1941 (WAIBERG, 1997, p.105).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Cirne (2000) também afirma que os quadrinhos já eram uma arte

consumada na época, só que ainda não existia uma discussão sobre a

sua função de elaboração artística, o que resultava em uma imagem de

um produto típico da cultura de massa, voltado principalmente para

um público consumidor infanto-juvenil, que não apresentava maiores

possibilidades estéticas. “Este engano, agravado com o forte preconceito

cultural instalado contra seus discursos, perduraria durante anos” (CIRNE,

2000, p. 40). Para Klawa (1997), a Revolução Industrial não é exatamente

a origem dos quadrinhos, mas estabelece uma espécie de ano zero da

história dessa arte popular, principalmente por levantar fatores decisivos

para o entendimento do significado histórico e estrutural dos quadrinhos.

Segundo Klawa,

[...] é necessário que a história em quadrinhos seja entendida como um produto típico da cultura de massas, ou especificamen-te da cultura jornalística. A necessidade de participação e envol-vimento catártico motivada pela alienação do indivíduo, a meta-morfose da informação em mercadoria, o avanço da ciência, a nova consciência da realidade, enfim, as coordenadas caracte-rísticas do estabelecimento da sociedade de consumo criaram as condições para o aparecimento e sucesso do jornal, cinema e história em quadrinhos. O teatro e a pintura foram meios trans-formados e adaptados à nova situação, enquanto que a história em quadrinhos como o cinema, podem ser classificados como novos veículos e formas. (1997, p.110)

Mesmo que os jornais americanos sejam reconhecidos pelo cresci-

mento e desenvolvimento dos quadrinhos, o pioneirismo da sua criação

ainda resulta em debates até hoje sem resolução. Isso porque muitas

obras – como as de Agostini – antecederam Hogan’s Alley, de Richard

Felton Outcault, considerada pela maioria dos críticos como a primeira

publicação em quadrinhos. A fama pioneira dos quadrinhos de Outcault

até hoje se mantém sob a justificativa de ter integrado o texto no dese-

nho através do uso do balão de quadrinhos pela primeira vez. Surgida em

1896 no jornal The New York World, Hogan’s Alley retrata o cotidiano de

diversas personagens exóticas e caricatas que vivem em um beco de New

York, entre elas o garoto Mickey Dugan, que ficou conhecido como Yellow

Kid por usar um camisolão amarelo onde eram escritas várias frases e

críticas. Curiosamente, a personagem Yellow Kid foi o motivo da criação

do termo yellow journalism, que fazia referência ao jornalismo sensacio-

nalista. A popularização dos quadrinhos, simbolizado pelo sucesso da

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

personagem de roupa amarela com o grande público, gerou “uma reação

de conservadores que temiam a divulgação dos fatos de maneira mas-

siva, através de uma imprensa cada vez mais popular, cada vez mais ao

alcance de todos” (MOYA, 1977, p.36).

Em 1907, o autor de quadrinhos Bud Fisher propôs a criação de

uma história em quadrinhos em forma de uma tira diária (MOYA, 1993,

p.40). Até então, os quadrinhos ocupavam os espaços dos suplemen-

tos dominicais coloridos dos jornais americanos, sendo publicados em

forma de painéis, ocupando meia ou uma página inteira do jornal (CHI-

NEN, 2011, p. 10), e normalmente utilizavam uma narrativa cômica

e caricata para complementar as informações jornalísticas ou apenas

como entretenimento.

Esse modelo de tiras de quadrinhos estabeleceu um molde padrão,

com um formato fixo, geralmente horizontal e de mesmo tamanho, e

acabou servindo claramente para os interesses comerciais do mercado

jornalístico (RAMOS, 2009). Dessa forma, os autores poderiam produzir

uma mesma história e vender para vários jornais, por um preço mais

acessível, ficando o trabalho de distribuição a cargo dos syndicates, em-

presas especializadas e responsáveis pela distribuição de conteúdo. Para

Ramos, as tiras adotam o uso de poucos quadrinhos dada a limitação do

formato, geralmente constítuido de um a quatro quadros, o que resulta

em narrativas mais curtas. Dessa maneira, as tiras privilegiam o tema do

humor porque nesse formato há “tendência de criar um desfecho inespe-

rado, como se fosse uma piada por dia” (2009, p.6).

Para Morin (2011), os quadrinhos em forma de tiras cômicas de jor-

nal – que a autora refere como historieta cômica – são tão curtas ou tão

engraçadas que seu valor narrativo poderia ser posto em questão (p.182).

Para comprovar que as tiras cômicas são narrativas e, “como estas, fazem

evoluir uma situação viva em função de reviravoltas imprevistas” (p.182),

a autora pesquisou sua estrutura descritiva durante 180 dias consecuti-

vos de publicação em jornal, concluindo que:

São todas redutíveis a uma sequência única que coloca, argu-menta e resolve uma certa problemática. Esta sequência nos pa-rece ser uniformemente articulada por três funções que ordena-mos como se segue: uma função de normalização que situa os personagens; uma função locutora de deflagração, com ou sem locutor, que coloca o problema a resolver, ou questiona; enfim uma função interlocutora de distinção, com ou sem interlocutor, que responde “comicamente” à questão. Esta última função faz

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

bifurcar-se a narrativa do “sério” para o “cômico”, e dá à sequên-cia narrativa sua existência disjunta, de historieta “última”. (MO-RIN, 2011, p.183)

Mais do que uma simples temática, as tiras cômicas baseadas nas

piadas se tornaram uma característica tão marcante dos quadrinhos que

definiram até mesmo sua nomenclatura: nos Estados Unidos, as histórias

em quadrinhos são conhecidas até hoje como comics. No entanto, nem

só de piadas vivem as tiras em quadrinhos. Para Santos (2014), a caracte-

rística marcante dos quadrinhos de humor neste século é o rompimento

com a estrutura típica das piadas a partir do surgimento dos “quadrinhos

poético-filosóficos que, mais do que causar no leitor o efeito cômico, pro-

curam levá-lo a uma reflexão sobre temas sociais ou existenciais” (p.16).

Além disso, para o autor, o conteúdo humorístico dos quadrinhos vai

mais além, “acompanhando ou não temas de fundo político ou social, as

imagens satirizam ou criticam as atitudes dos homens públicos e do ser

humano comum” (SANTOS, 2014, p. 15). Para Cardoso,

Mais do que uma simples forma de entretenimento, o humor em quadrinhos desvela certas práticas sociais, culturais e políticas, cobertas pelos mecanismos disciplinares de poder, colocando em relevo as fraquezas e imperfeições dos sujeitos e das socie-dades. Ao delinear de maneira crítica os contornos de grupos so-ciais, o humor em quadrinhos permite compreender as tensões entre os mecanismos de controle e as forças de resistência; entre as normas impostas e a acrasia; entre os comportamentos de submissão e transgressão. Nesse sentido, atuam como um tipo de expressão cultural popular que objetiva, ao satirizar os gru-pos dominantes, trazer à luz as adversidades que nos cercam. (2014, p. 11)

Diferentes das tiras em seus formatos e pretensões cômicas, o car-

tum e a charge têm estilos próprios e objetivos bem específicos de hu-

mor. Segundo Chinen (2011), o cartum restringe-se a um único quadro

ou painel em que é ilustrada uma situação cômica, normalmente de com-

preensão universal, atemporal e sem vínculo com o contexto sociocul-

tural da época. Já a charge costuma satirizar uma situação ou personali-

dade, retratando-a sob a forma caricaturizada. Por isso, é preciso que o

leitor conheça minimamente os personagens envolvidos para entender

ou rir da charge (CHINEN, 2011, p.8).

Normalmente constituídos de apenas um quadro, a charge e o car-

tum suscitam discussões sobre a sua natureza quadrinística, já que não

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

possibilitam uma sequencialidade de quadros, característica marcante

dos quadrinhos. Para McCloud (1995), eles podem ser classificados como

“arte em quadrinhos”, porque seu vocabulário visual vem dos quadri-

nhos. Para o autor, “talvez esse quadro único também seja rotulado de

quadrinho por sua justaposição de palavras e figuras” (p. 25). Para Cagnin

(2015), “uma só figura já é um embrião ou parte da narrativa ou mesmo

uma pequena história” (p.181). Ou seja, a partir da ação dos elementos

visuais e textuais presentes em um só quadrinho, tanto na forma de char-

ge, cartum ou tira, é possível percebermos sua sequencialidade. Por isso,

podemos chamá-lo de história em quadrinhos.

Outra característica marcante das tiras de jornal foi sua estrutura-

ção narrativa baseada no uso episódico das suas histórias, cujo final era

marcado por uma surpresa a ser revelada somente no jornal seguinte,

criando uma ligação entre os capítulos. Característica dos folhetins fran-

ceses da época, essa modalidade narrativa indicava a continuidade da

história no número seguinte do jornal, fazendo com que os leitores se

mantivessem cativos e ansiosos. Conforme Bulhões (2007), o folhetim foi

um fenômeno de massas que ligava “o jornalismo francês a uma das face-

tas da experiência da modernidade e à dinâmica do capitalismo arrojado,

revelando, ainda, uma interface com a literatura” (p.31).

Esse uso episódico das tiras foi adotado de maneira plena pelos

jornais diários como alternativa ao sistema de uma piada simples por dia,

criando um novo cenário mercadológico e criativo para os quadrinhos.

Para Ramos, esse era um gênero classificado como tira de quadrinhos

seriada, pois sua marca era a narração de uma história maior, contada em

partes, como um capítulo. “Tal qual uma novela, a tira retoma a cena final

da anterior e serve de gancho para a seguinte. A singularidade do gêne-

ro é o aspecto serial” (2011, p.8). Segundo Chinen (2011), essa fórmula

viabilizou a publicação de aventuras mais extensas que duravam meses

e que, para o leitor acompanhá-las, era necessário ler o jornal todos os

dias. Essa tarefa “exigia do autor um talento especial, pois era necessá-

rio reter o interesse do público, criando um gancho para o dia seguinte”

(p.11). Como os jornais estavam conectados ao padrão de vida diário (Eis-

ner, 2008, p.136), as tiras assimilam essa característica, criando sequên-

cias de histórias sempre dependentes da periodicidade diária dos jornais,

principalmente com relação a sua continuidade. Mais do que isso, para

Eisner (2008) as tiras seriadas tinham a função de manter a lealdade dos

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

leitores, o que exigia uma grande habilidade narrativa, já que os jornais

competiam selvagemente nas bancas, dominando a leitura popular.

A reconstrução do fato

A necessidade de atualização diária ou semanal dos jornais, aliado

ao alto custo e demora na produção, impossibilitava o uso frequente das

histórias em quadrinhos como material informativo. Com menos espa-

ço para o desenvolvimento de histórias mais longas e investigativas, os

quadrinhos acabaram restritos à predominância dos estilos cômicos e de

aventura, proposto pelas tiras de entretenimento. A publicação dessas ti-

ras em revistas específicas, normalmente suplementos dos jornais, foram

ganhando a preferência das crianças, que se firmaram como público con-

sumidor preferencial. No Brasil, revistas como O Tico-Tico6, a Gazetinha

(ou Gazeta Infantil), o Suplemento Infantil, o Globo Juvenil e O Lobinho

foram suplementos de muito sucesso, publicando principalmente quadri-

nhos americanos7, cujos direitos de publicação eram mais baratos do que

os nacionais8. Posteriormente, surgiram revistas de quadrinhos como O

Gibi, que acabou virando sinônimo de revista em quadrinhos no país, e O

Guri, publicado pela editora O Cruzeiro, que publicava a famosa revista

jornalística homônima.

Na década de 40, com a consolidação da fotografia como elemen-

to jornalístico e com o surgimento de novas mídias de comunicação, os

quadrinhos perderam espaço e função nos jornais impressos e revistas,

retomando sua força no final da década de 60, com o amadurecimento

dos quadrinhos de estilo underground9, reflexo da contracultura da época.

6 O Tico-Tico é considerada a primeira revista de quadrinhos do Brasil. Suplemento da revista O Malho, O Tico-Tico chegou a ter cerca de 100 mil exemplares vendidos por edição e foi pu-blicada durante 50 anos. A revista consagrou personagens originais do Brasil, como Zé Macaco e Faustina, Kaximbown, Jujuba, Carrapicho, Lamparina e o trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona.7 Exemplos de personagens que faziam sucesso nos EUA: Tarzan, Zorro, Popeye, Flash Gor-don, Mickey Mouse, Gato Felix, Buck Rogers, Fantasma, Flash Gordon, Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente, Super-Homem e Batman.8 Exemplos de personagens brasileiros de sucesso nos quadrinhos: Juca Pato, Garra Cinzen-ta, Capitão Gralha, Péricles, Capitão Atlas e Morena Flor, a primeira super heroína brasileira (anos 50).9 Os quadrinhos chamados de underground surgiram na década de 1960, nos EUA, como um movimento da contracultura, que tinha como principal objetivo criticar os valores da época. O movimento nas HQs iniciou a partir do quadrinista Robert Crumb com o lançamento da revista Zap Comix. Os principais temas do movimento eram sexo, drogas, rebeldia e a guerra no Vietnã.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Com seus personagens desajustados e irreverentes, suas histórias auto-

biográficas e críticas, essas publicações independentes ganharam espaço

como publicações em formato de livros. Nesse ponto, cresceram e se con-

solidaram os quadrinhos autorais de não-ficção preocupados em retratar

cotidianos e realidades específicas, a partir de relatos pessoais, histórias

familiares e dramas que se interligavam com grandes fatos da história.

Nesse contexto, sempre apontando para um caminho de apropriação do

real a partir das vivências e experiências10 do autor, se sobressai uma das

características marcantes dos quadrinhos, anteriormente explorados por

Angelo Agostini: a possibilidade de recriação visual do mundo imaginado,

nos seus mínimos e importantes detalhes ilustrativos. Para Motta (2013),

essa mimese11 permite recriarmos a significação da história a partir da

relação que fazemos com os nossos próprios valores e nossa memória

cultural. Diferente da fotografia e do filme, a história em quadrinhos não

capta ou retrata a realidade, ela imagina e recria essa realidade, a partir de

experiências e memórias dos envolvidos, dando importância vital a toda

e qualquer imagem inserida. Ponto intersticial na aproximação entre jor-

nalismo e ficção literária, essa estética do realismo objetivo, analisada por

Sodré (2009), também se aplica à narrativa dos quadrinhos. Para Sodré,

Não se trata, portanto, de qualquer estilo literário, nem mesmo de realismo clássico, como o de Balzac que, como bem se sabe, ensaiava uma espécie de “macrojornalismo” da totalidade social, intervindo como um demiurgo, por meio da filosofia social e moral, no universo que descrevia. O realismo objetivo prescinde dessa ordem de intervenções, desse narrador onisciente, em fa-vor de fatos objetivos, artisticamente selecionados como numa montagem cinematográfica e deixados à sorte de leitura. Fatos, gestos e diálogos passam de um suposto real-histórico para um real imaginado, com vista à produção daquilo que Roland Bar-thes chamou de “efeitos de real” (2009, p.154).

O processo de recriação – ou reinterpretação – da realidade pelos

quadrinhos encontra um campo fértil na apuração do fato jornalístico,

já que o autor precisa elaborar seu próprio olhar como uma estratégia

textual e imagética que o legitime. Para isso, se baseia nas experiências

10 Benjamin (1985) filosoficamente define experiência (Erfahrung) como o conhecimento que aufere da vida prática e vivência (Erlebnis) como a revelação que se obtém num aconte-cimento, numa experiência íntima do sujeito.11 Originalmente, o conceito de mimese significa imitação, recriação ou representação do mundo por meio de alguma configuração. Mas, ao configurar, o homem vai além do objeto representado, acrescenta algo e, neste ato, apropria-se do mundo (MOTTA, 2013, p.72).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de entrevistados e em seus próprios relatos autobiográficos, mesmo que

incorpore elementos ficcionais, utilizando os elementos da reportagem,

como um narrador investigativo, representado pela figura do repórter.

Dessa forma, pode construir a história a partir de estratégias textuais e

visuais pessoais que dão credibilidade ao relato.

Com esse olhar mais apurado pela informação contextual, os qua-

drinhos se ajustam a uma nova narrativa jornalística, marcada principal-

mente pela obra do jornalista e quadrinista maltês Joe Sacco que, em

1996, lançou a história em quadrinhos Palestina. Mais do que uma visão

violenta e dramática do conflito entre Israel e Palestina, a obra é um relato

jornalístico em imagens ilustradas sobre a dor das pessoas atingidas pela

guerra. Além de contar uma versão que dificilmente circularia nos meios

de comunicação tradicionais, como a televisão e o jornal, Sacco deu um

rosto aos invisíveis personagens palestinos, até então relegados a um

silenciamento forçado da identidade, sendo sempre associados, de forma

coletiva, ao terrorismo. Para Said (2011), poucos conseguiram registrar

o terrível estado de existência do povo palestino tão bem quando Sacco.

É inquestionável que suas imagens são muito mais representativas que quaisquer outras, lidas ou vistas na televisão (...) o ritmo de suas andanças, sem pressa e sem objetivo definido, deixa claro que ele não era um jornalista em busca de uma história ou um especialista tentando comprovar fatos para definir uma política. Joe estava ali para conhecer a Palestina e nada mais que isto; sua intenção era acompanhar, ou mesmo vivenciar, a vida que os palestinos foram condenados a levar (...) Joe Sacco conse-gue transmitir uma enorme quantidade de informações sobre o contexto humano e os eventos históricos que reduziram o povo palestino à atual sensação de impotência e estagnação, mesmo após o processo de pacificação e apesar do mascaramento hipó-crita dos fatos impostos por líderes políticos e pela grande mídia (SAID, 2011, p.XI).

Sucesso comercial e de crítica, Palestina ultrapassou as fronteiras

dos quadrinhos e do jornalismo ao vencer o prêmio literário American

Book Awards, em 1996. A obra obteve grande reconhecimento no mundo

inteiro, tanto por mostrar a crueza e a barbárie de uma guerra violenta,

quanto pela coragem de abertamente tomar partido12 pelo lado palesti-

12 No prefácio da HQ Palestina, Sacco responde sobre as acusações de que ele mostra ape-nas um dos lados do conflito. Ele afirma que “este é um juízo correto sobre o livro, mas ele não me afeta. Minha posição foi e ainda é que a visão do governo israelense já está bem re-presentada pela grande mídia norte-americana, e é calorosamente defendida por quase todo político eleito para altos cargos nos Estados Unidos” (SACCO, 2011).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

no no conflito, abalando a questão de imparcialidade e objetividade da

atividade jornalística tradicional. Ironicamente, o impacto de Palestina

firmou a obra como referência de narrativa a ser seguida e copiada à

exaustão, criando um rótulo difícil de ser suplantado. Nesse contexto,

criou-se uma exigência de que as histórias em quadrinhos, diferentes por

natureza em estilo e traço, seguissem o mesmo padrão criado por Sacco:

um padrão jornalístico, baseado na prática da reportagem, da entrevista

e da investigação. Surgiu assim o conceito de jornalismo em quadrinhos,

que continua na pauta de grandes debates sobre os gêneros jornalísticos.

A história de Palestina é baseada nas investigações de Sacco, a

partir de entrevistas e depoimentos dos refugiados palestinos, que se

posiciona como um narrador/jornalista, vivenciando de perto os fatos

que investiga, sempre demonstrando uma grande preocupação com a ve-

racidade de dados e informações. Com farta contextualização dos fatos,

a obra assume um estilo documental, pois pesquisa e fornece datas, nú-

meros, documentos e todos os tipos de informações históricas, sempre

evitando as fontes oficiais para dar atenção às fontes anônimas. Sacco

narra a história do seu ponto de vista, que parece muitas vezes dúbio, ad-

quirindo características de herói em busca de verdades nem sempre tão

evidentes. Dessa forma, o narrador/jornalista tem liberdade para deta-

lhar suas ações, revelando seus pensamentos e convicções e mostrando

o seu próprio processo criativo. Em outras palavras, Sacco não se apoia

em histórias fictícias para reconstruir a realidade. Ele narra seu esforço

como jornalista, suas próprias dificuldades em obter os depoimentos e se

preocupa em contar a sua própria história dentro desse conflito.

Mas esse tipo de narrativa, mais próxima da reportagem, não se

mostrou adequada para o jornalismo diário, que precisa de um ritmo in-

tenso e acelerado de produção de notícias. Por isso, o trabalho de Sacco,

transformado em livros-reportagem, se aproxima mais da textualidade

literária do New Journalism. Para Sodré (2009),

Quanto mais detalhada a pesquisa, e mais fiel a reconstituição, melhor o texto será (conforme Pereira Junior). Esta recomenda-ção vale tanto para uma biografia quanto para uma obra perten-cente à escola de ficção realista, mas igualmente para o que se convencionou chamar nos Estados Unidos de New journalism, isto é, as reportagens caracterizadas por extensas pesquisas de campo e pelas descrições detalhadas de ambientes e persona-gens (2009, p. 153).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Segundo Bulhões (2007), o New Journalism foi uma tendência que

despontou nos Estados Unidos, nos anos 60, e afrontou os limites con-

vencionais do fazer jornalístico, que na época adotava uma estrutura si-

milar à linha de produção industrial, produzindo a notícia a partir de uma

prática textual pré-fabricada. Contrariando esse estilo, o New Journalism

adotou uma nova textualidade jornalística ligada diretamente à literatu-

ra. Bulhões (2007), citando o escritor Tom Wolf em análise do pioneiro

livro A Sangue Frio, de Truman Capote, cita alguns dos expedientes

fundamentais do New Journalism, como o “registro minucioso de gestos

de personagens e a descrição de costumes, hábitos” (p.155). Além disso,

podemos ainda citar o “detalhamento espacial na caracterização de um

evento narrativo, a construção cena a cena e a presença de diálogos como

recurso de caracterização de personagens” (p.155).

Jornalismo em quadrinhos ou quadrinhos de narrativa jor-

nalística?

Usando uma imagem para uma comparação simplista: enquanto o

jornalista quer encontrar o livro de Sacco (2011) na estante de jornalismo,

o quadrinista quer encontrar o mesmo livro na área destinada aos qua-

drinhos. No entanto, por sua produção artística, a história em quadrinhos

tem mais funções do que preencher requisitos de algum gênero estabe-

lecido. Mesmo enquadrada em uma categoria específica, a narrativa dos

quadrinhos tem como característica se adequar a qualquer necessidade,

seja a partir do jornalismo, da história, da medicina, da área esportiva,

entre outros. Isso porque, mesmo servindo a algum propósito bem defi-

nido, a história em quadrinhos pode ser lida, interpretada, entendida de

diversas maneiras, devido a sua natureza híbrida de texto e imagem.

Os quadrinhos, na sua concepção artística, não se importam com

rótulos. Spiegelman (1987), em Maus, obra vencedora do Prêmio Pulitzer

de jornalismo, entrevistou o próprio pai em busca de uma história real,

ao mesmo tempo em que usou recursos visuais próprios dos quadrinhos

para retratar os povos de maneira clara e diferente: os alemães receberam

a forma de gatos, os judeus de ratos, os americanos de cachorros e os

poloneses de porcos. No final, não importava se a sua obra seria catego-

rizada pelo jornalismo ou pela história. Sacco (2011) já havia desistido do

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

jornalismo escrito, não por conta de uma desilusão com a profissão, mas

simplesmente porque não conseguia encontrar um trabalho jornalístico

que o deixasse satisfeito. Dedicou-se então aos quadrinhos, a paixão de

sua vida, e produziu a obra Palestina, que chamou de jornalismo em

quadrinhos. Agostini (2002) teve que criar seus próprios jornais e revis-

tas para veicular, no século XIX, uma arte que era ainda desconhecida,

mas não desistiu de seu objetivo de informar e opinar criticamente sobre

temas políticos e sociais.

Em todos os casos, fica evidente que os quadrinhos sempre segui-

ram a ideia de integração narrativa, mantendo fronteiras bem próximas

principalmente com o jornalismo e a literatura. Como ressalta Santaella

(2004), isso pode ser um reflexo de como se caminha para uma conver-

gência maior das artes com a comunicação, através de uma hibridização

de formas comunicacionais e culturais. Em outras palavras, uma narrati-

va não anula a outra. Elas se integram, buscando a melhor forma de se

manifestarem. No caso das histórias em quadrinhos, as novas narrativas

estão fazendo com que se repense o papel dos quadrinhos como mero

suporte a outras áreas, como o jornalismo. Longe de ser uma novidade,

os quadrinhos de narrativa jornalística ganharam uma nova vitrine e uma

possibilidade mais livre de trabalhar diretamente com a informação, prin-

cipalmente em forma de reportagens, como Angelo Agostini já ensaiava

no século XIX.

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WAINBERG, Jacques Alkalai. Império das palavras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Real ao dobro: a potencialização da legitimidade jornalística pelo uso

de estratégias literárias

Ricardo Luís Düren1

1 Introdução

Que relações haveria entre um barômetro pendurado na parede da

sala de madame Albain, personagem do romance Um coração singelo,

de Gustave Flaubert, e a casaca que D. João VI trajava quando pisou pela

primeira vez no Rio de Janeiro, descrita na obra 1808 do jornalista Lau-

rentino Gomes? Pelo viés da narratologia, podemos afirmar que ambas as

descrições – do barômetro e da casaca – têm em comum o uso de uma es-

tratégia literária bem particular, chamada de efeito de real, que visa gerar

uma sensação de veracidade, junto ao leitor, em relação aos fatos que são

narrados. O barômetro descrito por Flaubert foi, justamente, o elemento

estudado pelo linguista Roland Barthes quando elaborou sua teoria acerta

do efeito de real. Como veremos mais adiante, Barthes (1984) entendeu

que a descrição do barômetro, bem como de outros objetos aparentemen-

te insignificantes nas narrativas realistas, consistiria em uma estratégia

literária para transmitir ao leitor a impressão de que os cenários descritos

seriam reais – mesmo que presentes em obras ficcionais. Porém, como

buscaremos demonstrar, a descrição detalhada das roupas vestidas por

D. João, na obra de Laurentino Gomes (2010), também pode ser entendi-

da como uma estratégia literária geradora de efeito de real.

1 O autor é jornalista e mestre em Letras, graduado e pós-graduado (com bolsa da Capes) pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). É escritor, professor do Curso de Comunica-ção Social da Unisc e editor executivo do jornal Gazeta do Sul. E-mail: [email protected].

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Aqui, é imprescindível salientar que, diferente de Felicité, a obra

1808 não é um romance ficcional. Trata-se de um romance de não-ficção,

ou livro-reportagem, fruto de pesquisa jornalística realizada pelo autor2.

Tal constatação nos leva a uma inevitável pergunta: se o efeito de real

gera sensação de veracidade em relação à descrição ficcional, qual se-

ria seu efeito em uma descrição apresentada no âmbito de um trabalho

jornalístico, entendendo-se que o jornalismo se encontra previamente le-

gitimado como transmissor do real? Esta é a dúvida que norteou nossa

dissertação de mestrado (Düren, 2013), onde estudamos o emprego do

efeito de real em narrativas jornalísticas, adotando o livro 1808 como

corpus de pesquisa.

Guiamos este trabalhado acreditando na hipótese de que determi-

nadas narrativas jornalísticas empregam artifícios literários, como o efeito

de real, para reforçar sua legitimidade pré-existente, gerando redundância

discursiva. Entendemos que o jornalismo é previamente legitimado por-

que seus autores têm, já estabelecido com o leitor, um pacto segundo o

qual sua intenção é realizar o que Searle (1995) identifica como asserção,

ou seja, uma afirmação verdadeira, que pode ser comprovada mediante

evidências da veracidade do fato que é narrado. O que diferencia o autor

jornalista do autor ficcional, portanto seria a sua intencionalidade em rea-

lizar uma asserção, tendo em vista que a intenção do autor ficcional é a de

fingir realizar uma asserção. Como salienta Searle (1995), tanto no caso da

ficção quanto da não ficção, as intenções do autor são compartilhadas com

o leitor, de forma a possibilitar que ele identifique se está diante de uma

asserção ou de um texto que finge fazer uma asserção.

Neste artigo, buscamos apresentar o que observamos por oca-

sião deste trabalho. Em um primeiro momento, vamos demonstrar

como a apropriação de estratégias narrativas da literatura pelo jorna-

lismo ocorre, atualmente, inserida em uma lógica de dialogia entre sis-

temas – onde os sistemas jornalístico e literário entram em confluência

e se influenciam mutuamente. Ressaltaremos, porém, que este diálogo

entre jornalismo e literatura é um fenômeno bem mais antigo, que nos

remete às publicações jornalísticas do século 19. Posteriormente, ex-

2 Em 1808, como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta engana-ram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, o jornalista Laurentino Gomes (2007), relata e contextualiza a fuga da família real portuguesa para a América do Sul, entre 1807 e 1808, e os eventos políticos e sociais ocorridos ao longo dos 13 anos em que a corte permaneceu no Brasil colonial antes do retorno para a Europa.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

plicaremos em mais detalhes como ocorre o efeito de real, conforme

defende Roland Barthes (1984). Por fim, demonstraremos a presença

de descrições geradoras de efeito de real na obra 1808 e apresentare-

mos nossas conclusões.

Antes, cabe citar que nossa opção metodológica para viabilizar esta

pesquisa foi a narratologia, dado se tratar de um campo de estudo que,

segundo Reis e Lopes (1988), possibilita congregar diferentes áreas do

conhecimento. Neste sentido, a narratologia possibilitou que empregás-

semos, em nossos estudos, as teorias da literatura, do jornalismo e da

linguística. Para situar nossa opção metodológica em nossa dissertação,

esquematizamos como a narratologia se desenvolveu desde a Antiguida-

de Clássica até os dias atuais – passando pelo Formalismo Russo, pelo

Estruturalismo e pelo Pós-estruturalismo3, – bem como, relatamos como

a pesquisa em jornalismo se aprimorou nas últimas décadas. Trata-se de

um movimento complexo, que não reproduziremos neste artigo em fun-

ção do espaço.

Entretanto, no que diz respeito à pesquisa em jornalismo, aborda-

remos a seguir recentes trabalhos que inserem a prática jornalística em

uma lógica sistêmica, o que nos ajuda a entender como se processa, nos

dias atuais, a influência da literatura sobre o jornalismo. Entendemos que

é justamente em decorrência desta influência que podemos encontrar, em

trabalhos jornalísticos, estratégias narrativas que advém da literatura –

caso do efeito de real.

2 Diálogos entre jornalismo e literatura

Para verificarmos como se processa atualmente o diálogo com a

literatura, analisamos o jornalismo contemporâneo em um contexto de

jornalismo midiatizado, formato decorrente, segundo Soster (2009, 2011

e 2012), da midiatização da sociedade como um todo. Conforme o autor,

3 Cabe citar, para entendimento de conceitos que serão apresentados a seguir, que o Estru-turalismo foi uma linha de análise literária que se originou na segunda década do século XX, herdando do Formalismo Russo a tradição da análise do texto a partir de sua estrutura, entendida, conforme Reis e Lopes (1988), como o conjunto de relações entre os elementos que exercem determinadas funções no âmbito da narrativa. Segundo a ótica estruturalista, todos os componentes da narrativa devem exercer alguma função. Roland Barthes, cuja teo-ria sobre o efeito de real é um dos pilares desta pesquisa, é um autor de transição entre o Estruturalismo e o Pós-estruturalismo, sendo essa última uma linha de análise mais atenta à participação do leitor e de sua bagagem de conhecimento na interpretação dos textos.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

o termo midiatização diz respeito ao estágio onde a sociedade, inseri-

da em um quadro de profunda imersão tecnológica, converte-se em um

novo ambiente, no qual dispositivos comunicacionais interconectados

em rede, pela internet, atuam na geração de novos sentidos. Neste novo

ambiente social, o jornalismo situa-se como parte do sistema midiático-

comunicacional, ou seja, um sistema onde dispositivos comunicacionais

(jornais, revistas e noticiários de rádio, televisão e portais de notícias na

internet), interconectados em rede (internet), se influenciam mutuamente

e, em função dessa influência recíproca, reconfiguram conteúdos infor-

mativos, gerando novas significações a cada reconfiguração.

Neste processo de reconfiguração da informação, os dispositivos se

autorreferenciam e se correferenciam, ou seja, produzem novas signifi-

cações a partir de conteúdos anteriores produzidos/reconfigurados tanto

por eles próprios quanto por seus pares. Soster (2011 e 2012) ressalta

que a reconfiguração não se restringe à informação: nesse processo, os

próprios dispositivos, ao se correferenciarem, se modificam, seja em as-

pectos operacionais, seja em aspectos discursivos, na medida em que as

reconfigurações exigem adaptações, correções e mudanças de enfoque,

por exemplo.

Para a compreensão de nossa análise pelo viés sistêmico é funda-

mental entender que a reconfiguração dos dispositivos comunicacionais

não decorre apenas das influências mútuas entre eles, no interior do sis-

tema midiático-comunicacional. Conforme Soster (2012), os dispositivos

mantêm diálogo também com outros sistemas – além do midiático-comu-

nicacional – como é o caso do sistema literário. Para o autor, do diálogo

com outros sistemas emerge a complexificação das formas pelas quais o

jornalismo estabelece seus relatos e gera sentidos. No caso da imbrica-

ção com o sistema literário, integram essa complexificação, por exemplo,

formas de expressão e significação mais comuns à literatura (tais como

interjeições e diálogos), a interferência mais nítida da subjetividade do

autor, a apresentação das fontes da informação como se fossem persona-

gens literários e a opção por uma forma narrativa em que o relato parece

vir de um narrador que, muitas vezes, testemunhou ou mesmo participou

dos eventos que relata.

Porém, é importante salientar que este diálogo entre jornalismo é

literatura é bem mais antigo do que o processo de midiatização da socie-

dade. Esta relação dialógica retoma características do primeiro jornalismo,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

conceito utilizado por Marcondes Filho (2000) em referência ao modelo jor-

nalístico praticado entre o final do século XVIII e a metade do século XIX, que

tinha perfil político-literário. Seguindo a história do jornalismo, percebemos

que, muito embora o jornalismo tenha adotado, quase que hegemonicamen-

te, um perfil tido como objetivo, características do primeiro jornalismo con-

tinuaram se manifestando, através de simbioses com a literatura.

Marcondes Filho (2000) divide o desenvolvimento do jornalismo

em fases, dentre as quais nos interessam particularmente, nessa revisão,

o primeiro jornalismo, segundo jornalismo e terceiro jornalismo4. A pri-

meira fase, que o autor situa entre 1789 e a metade do século XIX, teve

origem na Revolução Francesa, quando a burguesia utilizou os jornais

para atacar a aristocracia e o estado. No período, os jornais, impulsio-

nados pelos ideais iluministas e pela queda dos antigos regimes – e de

seus aparatos de censura –, transformaram-se em difusores de ideologias

políticas e também do conhecimento que, antes, estava restrito à Igreja

e à nobreza. Marcondes Filho (2000) afirma que o primeiro jornalismo foi

de caráter político-literário – contanto com o trabalho de escritores nas

redações e movido por interesses ideológicos e pedagógicos; sem que

houvesse intenção de lucro com a empresa jornalística.

Entretanto, na maior parte do planeta, o caráter político dos jornais

não resistiu ao novo modelo capitalista advindo da Revolução Industrial.

Conforme Marcondes Filho (2000), o desenvolvimento de novas tecno-

logias de impressão – capazes de atender à demanda em expansão de

pessoas alfabetizadas – fez com que as empresas jornalísticas da metade

do século XIX realizassem grandes investimentos em maquinário. Para

cobrir os gastos, tornou-se necessário abandonar o caráter partidário,

que restringia a venda do jornal a um público específico, possibilitando

a comercialização a mais indivíduos, independentemente de suas prefe-

rências políticas. Além de cobrir os gastos, a medida possibilitou maiores

lucros e consolidou os jornais como empresas capitalistas. Tal período

diz respeito, conforme Marcondes Filho (2000), ao segundo jornalismo5.

4 Marcondes Filho (2000) também cita o quarto jornalismo, que contemporaneamente se apresenta nas redes (internet), ao mesmo tempo em que é influenciado por elas e pelas for-mas interativas que também geram e difundem notícias, independentemente da participação de jornalistas no processo.5 Outros fatores também interferiram nesta transição do primeiro para o segundo jornalis-mo, dentre os quais, o advento da publicidade. Lage (1993) observa a publicidade se tornou mais um obstáculo à continuidade do jornalismo partidário, na medida em que a divulgação de alguma ideologia poderia afastar determinada classe de anunciantes.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Com isso, o segundo jornalismo é aquele no qual a práxis jorna-

lística adota o paradigma da objetividade, entendida, segundo Amaral

(1996), como a tentativa de transmissão da informação com imparcialida-

de e isenção – ou seja, sem opinião. De acordo com o autor, as adequa-

ções dos jornais ao paradigma da objetividade também influenciaram a

forma como a notícia passou a ser apresentada ao leitor. O autor ilustra

o fenômeno citando o depoimento de Lincoln Steffens, jornalista norte-a-

mericano que viveu na época da transição para o jornalismo objetivo:

[...] Os repórteres tinham que redigir maquinalmente os fatos […], sem preconceito, sem cor e sem estilo: tudo a mesma coisa. Humor ou qualquer sinal de personalidade em nossas matérias eram apanhados, rejeitados e suprimidos. (STEFFENS, 1931 apud AMARAL, 1996, p. 32).

A afirmação de Steffens sugere que os jornais perderam não só o

perfil político-ideológico que mantinham desde a queda dos antigos regi-

mes como também o estilo estético de narrativa semelhante ao da litera-

tura, herdado dos escritores. No entanto, conforme Schudson (2010), na

década de 1890 ainda foi possível observar a existência de dois formatos

jornalísticos convivendo de forma paralela nos Estados Unidos. O autor

distingue os dois formatos classificando um deles como de ideal literário

e o outro como de ideal da informação. O primeiro formato englobava

textos que visavam, além de narrar a notícia, possibilitar uma experiência

estética através da leitura. Já o outro seguia a rígida cartilha da objeti-

vidade, buscando a transmissão isenta da informação, tentando excluir

qualquer resquício de subjetividade do repórter.

Mesmo ganhando força ao longo do século XX – período que diz res-

peito ao terceiro jornalismo – o paradigma da objetividade não suprimiu as

narrativas jornalísticas semelhantes à literatura. De acordo com Schudson

(2010), a crítica de vários jornalistas à objetividade, intensa na transição dos

séculos XIX ao XX – e Lincoln Steffens é um exemplo disso –, voltou a ganhar

força nos anos 1960. No período, o maior acesso ao ensino superior entre

a população e a consequente desconfiança em relação aos governos gerou

o que o autor chama de cultura crítica. Inseridos nessa cultura, os jovens

jornalistas dos anos 1960 desconfiavam das notícias que os governos di-

vulgavam à imprensa, ao mesmo tempo em que também atacavam a opção

pela objetividade. De acordo com Schudson (2010), esses repórteres enten-

diam que a notícia mais parcial era justamente aquela que se apresentava

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

sob o formato objetivo, na medida em que, desprovida de interpretações ou

questionamentos, meramente reproduzia a visão da realidade transmitida

pelos detentores do poder. Segundo o autor, os ataques à objetividade desse

período também deram novo vigor à tradição literária no jornalismo.

Tanto que, nos anos 1960, o formato jornalístico semelhante ao li-

terário, reforçado pela rebelião contra a objetividade e pela adesão de no-

vos adeptos, ganhou um nome: New Journalism. Segundo Wolfe (2005),

o New Journalism congregava jornalistas que, mesmo sem conhecimento

acadêmico sobre o assunto, empregavam técnicas de narrativa realista,

termo que diz respeito a obras literárias ficcionais que buscam transmitir

uma reprodução fiel da realidade. Dessa forma, tais jornalistas produziam

textos acerca de fatos ou situações não ficcionais, mas com descrições

detalhadas de cenários, personagens e diálogos, mediante aplicação de

estratégias narrativas dos romancistas. Entretanto, embora o New Journa-

lism seja apresentado por Wolfe (2005) como uma espécie de marco em

termos da aplicação de recursos literários no jornalismo, entendemos – e

aqui procuramos demonstrar – que a influência da literatura foi constante

no desenvolvimento do jornalismo desde o século XVIII. E persiste até hoje,

gerado, desta vez, pelo diálogo entre o sistema literário e o sistema jorna-

lístico decorrente do processo de midiatização da sociedade.

3 O que é efeito de real

Na revisão bibliográfica acima, demonstramos que, através de sim-

bioses com a literatura, o jornalismo se apropria de estratégias narrativas

desta. No caso específico de nossa pesquisa, nos interessa o emprego,

pelo jornalismo, de um estratagema literário conhecido como efeito de

real, que passaremos a explicitar a seguir. Mas, antes, é importante expli-

car porque nos referimos a tais construções como estratégias voltadas a

gerar efeitos no leitor.

Para tanto, citaremos apontamentos de Motta (2007), expoente da

Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Segundo

ele, a narrativa – inclusive, a jornalística – não é apenas uma forma de

representação, mas uma ação sociocultural articulada mediante determi-

nados objetivos do narrador, dentre os quais, a geração de certos efeitos

em seus destinatários. Afirma o autor que,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

[...] os discursos narrativos midiáticos se constroem através de estratégias comunicativas (atitudes organizadoras do discurso) e recorrem a operações e opções (modos) linguísticas e extra-linguísticas para realizar certas intenções e objetivos. A orga-nização narrativa do discurso midiático, ainda que espontânea e intuitiva, não é aleatória, portanto. Realiza-se em contextos pragmáticos e políticos e produz certos efeitos (consciente ou inconscientemente desejados). Quando o narrador configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força elocutiva responsável pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário. (MOTTA, 2007, p. 144).

Transferindo nosso olhar ao emprego, particularmente, de estraté-

gias literárias da estética realista pelo jornalismo, constatamos a emer-

gência de um fenômeno conhecido como efeito de real. Com isso, che-

gamos a um ponto importante de nosso trabalho: o estudo do efeito de

real, termo empregado por Roland Barthes na análise da descrição de

ambientes nos romances realistas. Para compreendermos o conceito de

efeito de real, devemos levar em consideração, inicialmente, que em lite-

ratura as descrições costumam exercer o que Genette (1973) chama de

função simbólica. Segundo o autor, as descrições de personagens ou dos

ambientes onde vivem podem fornecer ao leitor elementos que revelam,

por exemplo, traços das suas personalidades.

Barthes (1984), por sua vez, concorda que, de forma geral, a des-

crição procura transmitir determinados significados. Entretanto, observa

que existe, no âmbito da narrativa realista, a descrição de certos deta-

lhes que, aparentemente, não acrescentam sentidos e que, em função

disso, eram entendidos pelos críticos estruturalistas6 como pormenores

supérfluos ou inúteis. Para facilitar a compreensão acerca destes porme-

nores, Barthes (1984) recorre à descrição da sala da residência de ma-

dame Aubain, personagem do romance Um coração singelo, de Gusta-

ve Flaubert – ou seja, a descrição que citamos no início deste artigo. O

pesquisador observa que, em meio à descrição do ambiente onde vive a

patroa de Felicidade, o narrador cita que “[...] um velho piano suportava,

sob um barômetro, uma pilha piramidal de caixinhas e de cartões” (FLAU-

BERT, 1987, p. 10).

Barthes (1984) observa que tanto o piano quando as caixas com

cartões transmitem significados. Segundo ele, a presença de um piano

na sala é mostra do status burguês de madame Aubain, ao passo que a

6 Ver nota de rodapé número 2.

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151

Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

pilha de cartas denota certa desordem e, ao mesmo tempo, certa prospe-

ridade da proprietária da casa. O que intriga Barthes (1984), entretanto,

é o barômetro. Ele afirma que, aparentemente, “[...] nenhuma finalidade

justifica a referência ao barômetro, objeto que não é nem incongruente

nem significativo e não participa, portanto, à primeira vista, da ordem do

notável” (BARTHES, 1984, p. 88). Portanto, Barthes (1984) se debruça so-

bre este tipo de pormenor, típico da descrição realista, que parece não ter

utilidade alguma à transmissão de novos sentidos no âmbito da narrativa.

Para o autor, tais pormenores são descritos mediante uma relação

direta entre signo e referente, sem deixar espaços aparentes para novas

formas de significado decorrentes da descrição – como ocorre em outras

descrições realistas cuja função simbólica é mais facilmente identificada,

como no caso do piano de madame Aubain. Desta forma,

[...] a “representação” pura e simples do “real”, a relação nua “do que é” (ou foi) surge assim como uma resistência ao sentido; esta resistência confirma a grande oposição mítica do vivido (do vivo) e do inteligível; basta recordar que, na ideologia do nosso tempo, a referência obsessiva ao ‘concreto’ (naquilo que retorica-mente se pede às ciências humanas, à literatura, aos comporta-mentos) é sempre equiparada como uma máquina de guerra con-tra o sentido, como se, por uma exclusão de direito, o que vive não pudesse significar – e vice-versa. (BARTHES, 1984, p. 93).

Neste aspecto, o autor compara o discurso realista com o discurso

da história. Desde a Antiguidade Clássica, interessa ao discurso histórico

apenas o que aconteceu, o real concreto, a descrição dos lugares como

realmente são, ao passo que a prosa ficcional se apresentava mediante

padrões de verossimilhança. Barthes (1984) observa que a descrição rea-

lista, entretanto, não se contenta com o verossímil, visto que a aplicação

da verossimilhança é relativa, estando subordinada a entendimentos tan-

to do autor quando do leitor. O verossímil é o que poderia ter acontecido

e, assim, situa-se em caráter de dependência em relação à opinião do

público – que pode discordar quanto à coerência do que é narrado. A des-

crição realista, entretanto, opõe-se ao verossímil conforme esse conceito

clássico, apresentando-se não como o que pode ser, mas como o que é,

da mesma forma em que se apresenta o discurso histórico.

Entendemos que essa comparação do discurso realista com o his-

tórico é pertinente, no âmbito da pesquisa, na medida em que também

autoriza a comparação de ambos com o conteúdo jornalístico, nosso foco

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de análise. Assim como o historiador, o jornalista também se apresenta

com intenção de narrar o real. O próprio Barthes (1984) inclui a reporta-

gem jornalística, juntamente com as exposições de objetos antigos e o

turismo em monumentos e locais históricos, no grupo de manifestações

que demonstram não só a necessidade humana de acesso a um real con-

creto, mas também que “[...] o ‘real’ tem a reputação de se bastar a si

próprio, que é suficientemente forte para desmentir qualquer ideia de

‘função’ [...] e que o ter estado lá das coisas é um princípio suficiente da

palavra” (BARTHES, 1984, p. 94, grifo no original).

Visto esse ponto, torna-se necessário, para compreendermos o

conceito de efeito de real, retomarmos a questão da relação direta en-

tre signo e referente, a qual, como vimos há pouco, ocorre por ocasião

da existência dos pormenores na descrição realista. Essa relação direta,

aparentemente, exclui a possibilidade de desenvolvimento de novas for-

mas de sentido nessa descrição específica, a qual, como aponta Barthes

(1984), apresenta-se, assim, inteiramente denotativa. O autor observa,

entretanto, que a narrativa realista se desenvolve por vias ficcionais – afi-

nal, tratam-se de histórias ficcionais – de forma que esse pormenor inútil,

na verdade, não faz referência direta a algo real, mas significa algo real.

Quando o texto de Flaubert cita o barômetro de madame Aubain, não está

descrevendo um barômetro real, mas significando um barômetro. Portan-

to, para Barthes (1984), a descrição ficcional do pormenor inútil não é

denotativa, mas conotativa. Ou seja,

[...] suprimido da enunciação realista como significado de deno-tação, o “real” volta como significado de conotação. Porque no próprio momento em que se considera que esses pormenores denotam diretamente o real, o que fazem realmente, sem que seja dito, é significá-lo. (BARTHES, 1984, p. 95).

O que advém dessa inversão – onde o que é conotativo se apre-

senta como denotativo ao leitor –, conforme Barthes (1984), é a ilu-

são referencial, a impressão que tem o leitor de estar “enxergando a

realidade” quando o que vê, na verdade, é a representação gráfica, o

texto. No caso da descrição do pormenor, que aparenta uma ligação

direta com o próprio referente, a ilusão referencial ocorre justamen-

te porque o signo está posto de forma a parecer que apenas denota

um referente real – ao invés de conotar um referente fictício, como,

de fato, ocorre. Como afirma Barthes (1984), “[...] a própria carên-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

cia de significado em proveito do referente transforma-se no próprio

significante do realismo” (BARTHES, 1984, p. 96). O resultado desse

fenômeno é a produção, junto ao leitor, de uma sensação de estar, de

fato, diante de uma narrativa real, fenômeno esse que Barthes (1984)

chama de efeito de real.

É devido a esse fenômeno que Todorov (1984), ao interpretar

os apontamentos de Barthes, sugere que o pormenor do discurso

realista, na verdade, tem uma função: a de camuflar sua própria

existência como ficção e de dissimular suas próprias regras. Trata-

se de uma narrativa que, ao mostrar-se pormenorizada, com detalhes

que aparentam não ter significado além do próprio, pretende se fazer

passar por transparente, concedendo ao leitor a impressão de estar

diante, de fato, do real, do vivido. Conforme Todorov (1984), o que

surge no texto como apenas um pormenor inútil é o que “transporta

de fato uma mensagem essencial: a de uma autenticação do resto.”

(TODOROV, 1984, p. 11). Tal autenticação da narrativa realista como

um todo é resultado do efeito e real.

Jaguaribe (2007) relaciona o efeito de real à naturalização do lei-

tor à narrativa. Para a autora, a descrição pormenorizada de cenários,

ao mesmo tempo em que gera o eleito de real, ambienta – ou naturali-

za – o leitor à narrativa e, dessa forma, gera a sensação de credibilida-

de em relação aos fatos narrados. Tal ponto de vista fica claro quando

a autora afirma que

[...] o “efeito de real” do romance realista é obtido por detalhes que dão credibilidade à ambientação e caracterização dos perso-nagens. Assim, a descrição da casa burguesa contém a menção de objetos que não estão diretamente associados à trama, mas que sugerem o que deveria estar contido num lar burguês, daí [...] a inclusão dos objetos de refinamento francês na sala de es-tar de Quincas Borba quando ele buscava ascender socialmente. (JAGUARIBE, 2007, p. 27).

Jaguaribe (2007) ressalta que essa descrição detalhada, como a da

casa de Quincas Borba, é, em um primeiro plano, uma forma de construir

um cenário mimético que, em concordância com o real, ou com o senso

comum acerca do real, ganha contornos de verossimilhança e é aceito

pelo público, que dessa forma, deposita credibilidade na narrativa. Mas,

indo além, a descrição também gera o efeito de real descrito por Barthes

(1984) e, dessa forma, contribui para “mascarar os próprios processos

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

de ficcionalização e, assim, garantir ao leitor-espectador uma imersão no

mundo da representação” (JAGUARIBE, 2007, p. 27).

Portanto, aceitando o emprego do efeito de real como forma de

mascarar processos ficcionais, naturalizando o leitor à narrativa e geran-

do nele a sensação de estar enxergando o real, vem à tona a pergunta

que consiste em nosso problema de pesquisa: o que emerge do emprego

do efeito de real pelo jornalismo, se a práxis jornalista já se encontra

legitimada como transmissora do real? A seguir, demonstraremos como

analisamos este fenômeno em nossa pesquisa.

4 Nossa análise

Também nos apoiamos em Mota (2007) para estabelecer uma meto-

dologia de análise da obra 1808, nosso corpus de pesquisa. Empregamos a

Análise pragmática da narrativa jornalística, metodologia de análise de

textos jornalísticos pelo viés da narratologia formulada por Motta (2007),

mas com determinadas adaptações metodológicas para adequar o proce-

dimento ao nosso interesse de pesquisa. Basicamente, nossa adaptação

metodológica viabilizou a observação, dentre outros fatores, de como

recursos jornalísticos e literários agem em conjunto na autenticação da

narrativa pelo viés do efeito de real.

Para tanto, analisamos no texto momentos em que Gomes (2007)

emprega estratégias de objetivação jornalística, entendidas como recur-

sos que, segundo Motta (2007), também são geradores de efeito de real.

Conforme o autor, consistem em estratégias de objetivação jornalística,

por exemplo, referências precisas a datas, endereços e números, e a

citação de fontes das informações, inclusive, com declarações dessas

entre aspas. Tais expressões, conforme Motta (2007), contribuem para

conceder ao texto jornalístico a sensação de precisão e objetividade,

gerando assim efeito de real pelo viés de recursos jornalísticos. Con-

comitantemente, observamos os momentos em que, além de recursos

jornalísticos, Gomes (2007) emprega recursos literários geradores de

autenticação da narrativa – no caso, descrições pormenorizadas, como

as estudadas por Barthes (1984).

Para facilitar esta observação, confeccionamos um modelo de tabe-

la, como a do exemplo abaixo (aqui apresentada em formato resumido):

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Tabela 1 – Capítulo 10 (O repórter Perereca)

Categorias de expres-sões de objetivação

Reprodução do trecho onde consta a expressão de objetivação

Referência precisa a lugares

“[...] Encarregado de organizar a recepção, o vice-rei, con-de dos Arcos, deixou sua moradia, um prédio acanhado, de dois pavimentos, situado bem em frente ao cais do porto, onde hoje é a Praça 15 de Novembro. [...] Ali deveriam ser hospedados o príncipe regente e sua família” (GOMES, 2007, p. 129).

Números e/ou estatísticas

“[...] Por uma casa térrea fora da cidade, o diploma-ta Maler, encarregado de negócios da França, pagava 800000 réis por ano, o equivalente hoje a cerca de 45000 reais. Uma excursão numa carroça puxada por mulas até a Fazenda de Santa Cruz, situada a menos de cem quilômetros da capital, saia por quase 400 fran-cos, cerca de 4000 reais em valores atuais” (GOMES, 2007, p. 136).

Pormenor Reprodução do trecho onde consta o pormenor

O tempo no dia da chega-da da família real.

“[...] A esquadra de D. Pedro e da família real portuguesa entrou na Baía da Guanabara no começo da tarde de 7 de março de 1808. Havia sol e o céu estava azul, sem uma única nuvem. Um vento forte soprava do oceano para aliviar o calor ainda sufocante do final do verão carioca” (GOMES, 2007, p. 127).

Descrição das vestes de D. João por ocasião do desembarque no Rio de Janeiro, conforme Tobias Monteiro.

“[...] Na descrição de outro historiador, Tobias Montei-ro, ‘D. João trajava casaca comprida de gola alta, co-lete branco bordado, calções de cetim, botas curtas, dragonas, um enorme chapéu armado, com enfeites de arminho, e trazia na cintura um espadagão, pendente de cordões de fios de ouro com as respectivas bolas’” (GOMES, 2007, p. 132).

Para cada capítulo do livro, foi apresentada uma tabela como esta.

Cada uma tinha espaços para exemplos de expressões de objetivação

jornalística, dentre os elencados por Mota (2007), e para descrições

pormenorizadas que, conforme os conceitos de Barthes (1987), seriam

potenciais geradoras de efeito de real pelo viés literário. No exemplo

acima, a tabela mostra casos de expressões de objetivação que transmi-

tem sensação de precisão e veracidade por meio da referência precisa

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

a lugares e do emprego de números. Também exibe descrições porme-

norizadas – no caso, do dia em que a família real chegou ao Brasil e das

vestes usadas por D. João na ocasião (conforme, aliás, citamos na aber-

tura deste artigo).

Por meio destas tabelas – foram 30 no total – foi possível observar

e demonstrar como estratégias narrativas, tanto jornalísticas (expressões

de objetivação) quanto literárias (descrições pormenorizadas), emergem

atuando juntas na geração de efeito de real e, desta forma, contribuem

para o advento de sensações, junto ao leitor, de credibilidade em relação

aos fatos narrados pelo autor-jornalista.

Observamos assim que o jornalista, ao retomar o perfil literário do

primeiro jornalismo, emprega determinados artifícios literários gerado-

res de autenticação – como o efeito de real – como forma de reforçar

uma legitimidade que está mais vinculada ao advento do paradigma da

objetividade, atrelado ao segundo jornalismo. Notamos que este fenôme-

no, visível no emprego tanto de recursos jornalísticos quanto literários,

vincula-se às complexificações decorrentes do diálogo entre os sistemas

jornalístico e literário, conforme apontado por Soster (2012). Trata-se de

uma complexificação geradora de novos sentidos, dentre os quais perce-

bemos, em nossa análise, uma nova oferta, mais intensa, de autentica-

ção – estabelecendo, assim, também novos pactos de legitimidade entre

jornalista e leitor.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Uma perspectiva hermenêutica para os estudos de literatura: abordagem do texto Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe

Joseylza Lima Silva1

1 Considerações iniciais

O ensino de literatura na Educação Básica brasileira perpassa três

níveis:Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. A literatu-

ra está inserida, mais precisamente, na disciplina de língua portuguesa,

podendo ser trabalhada interdisciplinarmente em outras disciplinas. Com

características diferenciadas, nos dois primeiros níveis educacionais, o

ensino de literatura volta-se para o texto literário como suporte à forma-

ção do leitor, em que, na maioria das abordagens, o texto está fadado ao

ensino de boas maneiras, dos hábitos de higiene ou tópicos gramaticais.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, para o

ensino fundamental afirmam que:

[...] postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capa-zes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (BRA-SIL,1997, p.25).

A citação supracitada é um arquétipo da condição do ensino de

literatura. Equivocadamente, a literatura ainda é trabalhada com caráter

instrucional. É de suma importância que o texto literário esteja presente

1 Mestrado em Letras pela UNISC. Especialista em Leitura e Produção Textual / Metodologia do Ensino da Língua Inglesa / Educação Especial e Práticas Inclusivas / Educação Infantil.Graduada em Letras Português/Inglês na Universidade Estadual do Maranhão - UEMA.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

nas práticas de estudo em sala de aula, visto que a literatura é uma forma

específica de conhecimento. Porém, torna-se necessário que o tratamento

equivocado do texto literário seja afastado das atividades que os envolve.

A literatura precisa ser concebida enquanto uma variável que constitui a

experiência humana e que precisa ser demonstrada e discutida enquanto

manifestação do cotidiano humano no mundo.

Na última etapa da educação básica, no ensino médio, as práticas

educacionais para o ensino de literatura mostram-se, ao longo da histó-

ria, divididas em duas abordagens: teórica e histórica. A tradição teórica

considera a obra como única, de valor eterno e universal; e a tradição

histórica a encarano seu tempo e lugar.Fora do contexto escolar, conside-

ra-se pouco o número de afortunados que são inseridos, enquanto crian-

ças e adolescentes, no mundo da literatura via familiares, comunidades,

grupo de jovens, entre outros.

Neste contexto, faz-se necessária a inserção de práticas meto-

dológicas que levem o aluno/leitor auma postura diferenciada em re-

lação aos estudos literários, considerando fundamentalmente a obra

literária enquanto fonte de conhecimento. Palmer (2011) afirma que

uma obra literária não é um objeto que se analisa e conceitualiza;

mas, uma voz que deve ser ouvida, poisouvindo-a, compreendemos

mais que vendo-a. É mergulhando na leitura hermenêutica das obras,-

sob a perspectiva de Alfredo Bosi, Richard Palmer, Costa Lima, entre

outros teóricos que possam subsidiar este estudo, que sepropõe a

introdução nas aulas de literatura da postura hermenêutica de leitura

e, consequentemente, de um ensino e aprendizagem diferenciados. É

necessário oportunizar ao aluno/leitor a transposição doensino “en-

gessado”, da formalização da literatura, para um encontro no mundo

da existência humana.

Neste trabalho, a proposta de mudança de atitude em relação ao

ensino e aprendizagem da literatura na educação básica, fundamenta-se

a partir dos textos narrativos, que justificam a sua existência na própria

existência da humanidade e, que fazem parte de todas as civilizações

em quese apresentamnos mais variados gêneros textuais. A narrativa en-

contrada no romance alemão de Johann Wolfgang von Goetheescrita em

1774,intitulado Os sofrimentos do Jovem Werther,será palco para a dis-

cursão desta empreitada.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

2 Reflexões sobre o ensino de literatura

As considerações do ensino de literatura encontradas na Lei de Di-

retrizes e Bases da Educação 9.394/96, nos Parâmetros Curriculares Na-

cionais de Língua Portuguesa e nos Parâmetros Curriculares do Ensino

Médio refletem acerca da visão de ensinoe precedem a realidadedas aulas

de literatura nas escolas brasileiras. Conforme a lei que rege a educação

brasileira, LBD, em seu CAPÍTULO II – DA EDUCAÇÃO BÁSICA, Seção I das

Disposições Gerais:

Art. 26 § 1ºOs currículos a que se refere o caput devem abran-ger, obrigatoriamente o estudo da língua portuguesa e da mate-mática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil. (Brasil, 1996)

Sucinto e implícito, o estudo de literatura está imerso nas horas

destinadas às aulas de língua portuguesa. Nos dois primeiros níveis da

educação brasileira, a saber: a educação infantil e o ensino fundamental,

a atenção dada à literatura, ao texto literário, está relegada a informações

direcionadas a hábitos, costumes, regras sociais eobjetivos gramaticais.

Assim como apontam os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua

Portuguesa, para o ensino fundamental:

É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais, das receitas desgastadas do “prazer do texto”, etc. Postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. Sem que haja a percepção de que o texto literário está incorporado ao cotidiano do aluno, visto que é uma forma específica de conhe-cimento. (BRASIL, 1997, p.30)

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, última eta-

pa da educação básica, referem-se à literatura enquanto conhecimento

da área de Linguagens Códigos e Suas Tecnologias, incluindo-a como

expressão criadora e geradora de significação de uma linguagem e do

uso que se faz dos elementos e de suas regras em outras linguagens.

Dividindo a carga-horária de Língua Portuguesa entre aulas de gramáti-

ca e redação, a literatura é ensinada com abordagens voltadas à histo-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

ricidade da escola literária, prática corriqueira na qual a grande maioria

dos professores enfatizaas características históricas, sociais e ideoló-

gicas das escolas literárias; ou atividades relacionadas à vida e obras

dos autores, ficando, consequentemente, essa última à disposição da

crítica literária. Alguns questionamentos encontrados nos livros didá-

ticos podem explicitar essa afirmação: Quais são as características do

Classicismo? Explique a situação social, histórica e econômica do Brasil

no período romântico. Qual é o assunto tratado no poema? Quem são os

personagens da narrativa?Etc.

Evidentemente, que tais informações não podem ser banidas dos

estudos de literatura, porém, os enfoques histórico ou teórico não devem

ser considerados como os únicose de maior relevância. As raízes que

sustentam esta realidade estão fincadas na formação acadêmica desses

professores, que antes do exercício da profissão foram alunos e que, em

sua grande maioria, tiveram formação acadêmica em que sempre ao lado

de uma explicação do texto literário, fazia-se a relação ao contexto his-

tórico e social. Desta forma, as práticas de ensino acabam perpetuadas

e repassadas a cada geração de estudantes.O pensamento de Todorov

corrobora com essa situação do ensino de literatura na educação básica,

mesmo quando elese refere ao ensino superior:

Como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter-se torna-do o que é atualmente? Pode-se, inicialmente, dar a essa questão uma resposta simples: Trata-se do reflexo de uma mutação ocor-rida no ensino superior. Se os professores de literatura, em sua grande maioria, adotaram essa nova ótica na escola, é porque os estudos literários evoluíram da mesma maneira na universidade: antes de serem professores, eles foram estudantes. Essa muta-ção ocorreu uma geração mais cedo, nos anos 1960 e 1970, e sob a bandeira do “estruturalismo” (TODOROV, 2009, p.35).

O estudo de literatura para Todorov (2009)deveria, tanto na atuali-

dade quanto em épocas passadas, ser tratado de forma complementar das

abordagens interna e externa, unindo o estudo das relações dos elementos

da obra com o contexto histórico, ideológico e estético. O objetivo do es-

tudo, contudo, permaneceria acerca da compreensão do sentido das obras,

conduzindo essencialmente a fatores sociais, políticos, étnicos e psíquicos,

dos quais o texto literário supostamente seria a consequência desses.

Outros eventos impulsionam a crise do ensino de literatura, tendo

em vista a escassez de espaço consagrada a ela na sociedade: as escolas

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

são devoradas por textos midiáticos; na imprensa, as páginas literárias

estiolam; nos lazeres, a célere ocupação das mídias digitais fragmentam

o tempo disponível, antes ocupado por livros (COMPGNON, 2012). Uma

vez distanciados da leitura literária, os alunos não criam afeto pelosli-

vros, ficando expostos às leituras obrigatórias do ensino fundamental e

médio, adquirindo postura, muitas vezes, de leitores de resumos. Salvo

leitores juvenis que têm encontrado no mercado literário livros atraentes,

uma leitura de deleite como as séries e bestsellers, os demais consideram

o ato da leitura uma prática entediante, pois, requer períodos imóveis, de

solidão e concentração.

3Uma perspectiva hermenêutica na literatura

Não se tem neste trabalho, o objetivo de pormenorizar as fases evo-

lutivas da teoria hermenêutica, mas sintetizar a sua história em favor da

melhor compreensão do atual estado em que se encontra e que é motivo

maior desta empreitada, a abordagem hermenêutica da literatura.

Termo que deriva de Hermes, aquele que transmitia as mensagens

dos deuses aos mortais, a Hermenêutica, em suas origens surge como

atividade de anuncio textual, interpretativa, que tornava palavras acessí-

veis e compreensíveis. Caracterizadas pela tradução e mediação, a her-

menêutica tem suas raízes no sistema educativo grego quando as obras

de Homero já não eram mais compreensíveis pelos contemporâneos.

O caráter de tradução de textos é modificado na Idade Média, atra-

vés da hermenêutica teológica, a qual se fundava na diferenciação dos

sentidos das palavras, com realce para a distinção entre o sentido literal e

o figurado. Ainda que conhecida desde a antiguidade clássica, éem 1654

que surge a primeira obra intitulada Hermeneutica sacra sivemethodusex-

ponendarumsacrarumlitterarumde J. Dannhauer. Desde então, é datada a

distinção entre a hermenêutica teológica, filosófica e jurídica (LIMA, 1983).

Ligada ao campo religioso, a Reforma Protestante impulsiona a história da

hermenêutica ao condenar o emprego alegórico (figurado) do sentido, re-

cuperando a interpretação correta dos textos, fossem bíblicos ou clássicos.

Até o século XVIII a hermenêutica permaneceu fragmentada, en-

quanto disciplina, em posição de subordinação à teologia e à filologia,

usada com finalidades práticas e didáticas. É com Schleiermacher (1768-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

1834) que a hermenêutica é vista como teoria geral da compreensão e

da interpretação, mantendo o uso do emprego normativo especialmente

aos textos bíblicos. A hermenêutica geral de Schleiermacher vislumbra o

historicismo, antes desconhecido, define-se como os condicionamentos

temporais e espaciais que caracterizam a condição humana.

Para teóricos contemporâneos, a hermenêutica pode e deve ser uti-

lizada como fonte de interpretação a toda e qualquer obra literária. Por

ser essencialmente estudo da compreensão, tarefa de compreender tex-

tos, tem como ponto central a decifração da marca humana em uma obra.

O processo de decifração, de compreensão dos significados histórico e

humanístico é a base desta perspectiva de estudo da obra literária. Tendo

em vista o caráter analítico em que a interpretação literária encontra-

se, estagnada em um modo científico de pensar, que trata o texto como

objeto separado de qualquer sujeito de recepção. Desta forma, Palmer

reporta-se ao assunto:

A interpretação literária de um modo geral é ainda essencialmen-te encarada como um exercício de «dissecação» conceptual (é uma imagem biológica) do objeto (ou «ser») literário. É claro que como este ser ou objeto «estético», pensamos que dissecá-lo é sempre muito mais «humanizante» do que dissecar um sapo num laboratório; no entanto, a imagem do cientista, que isola um objeto para ver como ele é feito, tornou-se o modelo domi-nante na arte da interpretação (PALMER, 2011, p.18)

As obras literárias devem ser vistas não enquanto objetos de análi-

se científica, dissecadas como componentes biológicos; mas como textos

que falam,que foram criados por serem humanos. A compreensão de uma

obra literária não é, portanto, uma forma de conhecimento científico em

que foge da existência humana para o mundo dos conceitos; é um encon-

tro histórico que recorreao ser humano no mundo e assuas experiências

de vida, que se constituem em forma de conhecimento, que proporcio-

nam ao leitor a percepção de si, da cultura, das crenças, de tudo que en-

globa a vida humana.

É, contudo, a hermenêutica que, definida como o estudo da inter-

pretação das obras humanas, transcende as configurações linguísticas

do texto em busca do sentido que ultrapassa a superfície e as formas

simbólicas, Bosi diz:

Ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger (ex-legere: escolher), na messe das possibilidades semânticas,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer? (BOSI, 1988, p.74)

Neste sentido, aponta-se para uma leitura literária do texto a partir

da perspectiva hermenêutica. Pois é uma leitura de expressões e, não uma

decomposição de materiais biológicos. A postura hermenêutica diante do

texto propiciará ao aluno/leitor da educação básica uma possibilidade

diferenciada de aprendizagem, tendo em vista que o texto sairá de uma

posição estática, fora do mundo e contido apenas no interior da obra e

passará a fazer parte da vida do leitor, mobilizando diversas formas de

conhecimento que a obra literária é capaz de produzir. O aluno, leitor,

em uma postura hermenêutica, poderá perguntar-se e responder: o que o

texto quer dizer?

4 Narrativas e conhecimento

O conhecimento de que se trata neste trabalho está vinculado ao

texto literário, nãose trata, pois, de um conhecimento genérico, ou con-

ceitual; masuma forma específica de conhecimentoque valida no leitor

uma posição reflexiva de si e do mundo a que pertence. Parafraseando

Alfredo Bosi (1988), nenhum grande texto literário pode ter sido criado

fora do contexto da lembrança, memória social, de fantasia criadora, vi-

são ideológica da história. Entende-se, portanto, que o texto literário está

carregado de informações e conhecimentos que são próprios da existên-

cia humana.

A tarefa de compreender textos tem como ponto central a decifra-

ção da marca humana em uma obra. Esse processo de decifração, esta

compreensão dos significados histórico e humanístico é a base da pers-

pectiva de estudo da obra literária em que se propõe um posicionamento

hermenêutico para abstrair do texto literário, mais especificamente da

narrativa, o conhecimento constituído por ela. Pois, a narrativa é compos-

ta por conhecimentos que proporcionam ao leitor a percepção de si, da

cultura, das crenças, de tudo que engloba a vida humana.

Originalmente, a palavra “narrar” deriva do vocábulo latino “narro”,

verbo que significa “dar a conhecer”, “tornar conhecido”, o qual provém

do adjetivo “gnarus”, que significa “sabedor”, “que conhece” (AGUIAR E

SILVA, 2009). A narrativa é uma prática intrínseca à existência humana,

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

pois se vivemediante narrações, o acontecer da vida humana é uma su-

cessão de fatos vivenciados em determinados ambientes, em um espaço

de tempo, e relacionados, ou não, com outros seres.

Entende-se que o conhecimento contido nos textos narrativos são

repletos de singularidades e, por esse motivo, são intrínsecos à condição

humana. Neste sentido, necessita-se considerar uma posição diferenciada

diante doensino de literatura na educação básica, apontando para uma

prática na qual o leitor possa não somente reconhecer as características

do período literário, da obra em si e do autor, mas que ele possa se auto

constituir, reconhecendo-se diante das informações e conhecimentos ofe-

recidos pelo texto narrativo.

5 Os sofrimentos do Jovem Werther: um modo de ler

Romance alemão escrito em 1774 por Johann Wolfgang Goethe, Os

sofrimentos do Jovem Werther é a obra literária selecionada para aludir à

condição de leitura e aprendizagem, que se defende neste trabalho, no

estudo de literatura na educação básica. Tal postura, como supracitada,

requer uma fruição de conhecimentos que são admissíveis por meioda

teoria hermenêutica; a compreensão da obra não é somente um enten-

dimento de um novo sentido do texto, mas é um compreender que faz

parte do ser humano como um ser existencial.

Dividido entre os três anos do ensino médio, os períodos ou escolas

literárias são trabalhadas em paralelo com outros conhecimentos de língua

portuguesa. É no segundo ano do ensino médio, que seguindo as regras

cronológicas dos períodos, os alunos tem contato com o romantismo. Os

conteúdosdo período romântico são expostos concomitantemente, lite-

ratura brasileira e portuguesa, algumas poucas referências são feitas à

literatura produzida no restante da Europa e América.

O Romantismo é um movimento que surge internacionalmente, ca-

racterizado pela unificação dos estilos comuns dos escritores do período

compreendido entre a metade do século XVIII e a metade do século XIX. A

mesma concepção de literatura, imaginação poética, natureza e sua rela-

ção com o homem, sentimentos, elementos positivos e negativos formam

o plano de ideias que são as características da unificação do movimento.

É, contudo, um estilo artístico individual e de época, que consistiu uma

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

transformação estética e poética, foi traduzido num estilo de vida e de

arte e, inspirado no medievalismo, surge em oposição à tradição neoclás-

sica setecentista. A visão de natureza, a pureza da vida, a imaginação, o

sentimento, a emoção, a sensibilidade aos poucos tomam o lugar antes

ocupado pelo racionalismo (COUTINHO, 2002).

Divisor de águas na literatura alemã, referência mundial do Roman-

tismo, Werther, primeira obra de sucesso de Goethe é marco da prosa

moderna na Alemanha e precursor do romance oitocentista burguês na

Europa.Arquétipo do poder que a literatura pode exercer na vida do lei-

tor, a obra é qualificada como importante expressão literária, pela força

que opera na sociedade, sendo responsabilizada por grande número de

jovens que foram levados ao suicídio no período em que foi escrita.

Escrito em cartas pelo personagem principal e o seu destinatário,

Guilherme, que faz o papel de leitor. A presença de um suposto editor

-personagem faz algumas intervenções ao longo do livro para explicar

a compilação das cartas, esclarecer dúvidas em notas de rodapé e, para

contornar o final da história.

De acordo com o crítico literário Marcelo Backes, que traduziu,

organizou, prefaciou e comentou a edição de março de 2001, do livro

em questão, o romance é constituído por partes da autobiografia e das

relações do círculo de amizade que Goethe tinha em Wetzlar,cidade ale-

mã em que vivia quando escreveu o livro. Dividido em duas partes: a

primeira retrata a história de paixão de Werther por Carlota, inspirada

pela paixão de Goethe por Charlotte, esposa de seu amigo Johann Kest-

ner; a segunda parte é o desfecho do romance, inspirada na tragédia de

Karl Wilhelm Jerusalem, quetambém fazia parte do círculo de amizade

de Goethe e, apaixonado pela mulher de outro membro do grupo, Herd,

tem o mesmo destino incorporado porWerther.Fato curioso transcorre

com Jerusalem, que comete suicídio com uma arma emprestada por

Kestner, sendo o próprio Kestnerquem conta o ocorrido a Goethe por

meio de uma carta.

Os fatos que compõem a narrativa são descritos em cartas remeti-

das por Werther e endereçadas a Guilherme, seu amigo; a primeira datada

em 04 de maio de 1771; em 06 de dezembro de 1772 tem-se referencia

a carta que antecede a intervenção do editor; desde então algumas notas

explicativas do decurso e, cartas intercalam a narrativa. O marco para o

fim dos sofrimentos de Werther é uma carta endereçada a Guilherme em

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

20 de dezembro de 1772; outra destinada a Carlota, escrita dias antes da

morte do apaixonado; entre notas e explicações do editor que relatam a

sucessão de eventos até as vésperas de natal daquele ano.

O enredo do romance dá-se a partir de uma viagem que Wertherreali-

za no intuito de resolver uma situação de herança reclamada por sua mãe.

Ao alojar-se na cidade, encanta-se pela exuberante natureza que o rodeia,

dando atenção especial ao lugar chamado Wahlheim que é a princípio pal-

co de sua felicidade e sua posteriordesventura. Cativado pela essência do

lugar e das pessoas que conhece, e com quem passa a conviver, a perso-

nagem extasia-se potencializando suas pinturas e leituras. Neste estado

de espírito, o jovem conhece Carlota, motivo de vida e morte desde então.

Prometida a Alberto no leito de morte de sua mãe, Carlota e Werther divi-

dem grandiosos momentos de amizade e cumplicidade, nos quais o aman-

te torna-se até o limite do suportável apaixonado. Não correspondido em

seus sentimentos, o amante resolve partir; porém não suporta a distância

e, ao retornar, encontra Carlota e Alberto em matrimônio; desde então o

jovem põe-se em estado de possessão, passando por fases de delírios e

devaneios. A calma e serenidade voltam a pairarsobre ele somente quando

entende que a morte é necessária; reflete sobre a morte de Alberto, de Car-

lota, mas aceita-a como indispensável a si. Compreende a morte como uma

virtude, remédio para os males que o definham, suicida-se.

A visão descrita por Goethe, em 1744, aponta para a natureza racio-

nal do indivíduo ao perceber quanto prejuízo pode ser causado pela falta

de entendimento entre as pessoas.Atributo de questões atuais, Werther

discorre sobre essa temática ao escrever a Guilherme contando-lhe sobre

os negócios de família, que se tornaramobjeto de sua viagem:

Resumindo, não me agrada continuar escrevendo acerca disso; diga a minha mãe que tudo haverá de acabar bem. Neste insig-nificante negócio só fiz comprovar mais uma vez, meu caro, que os mal-entendidos e a indolência talvez causem mais enganos no mundo do que a esperteza e a maldade. De qualquer modo as duas últimas são, por certo, mais raras (GOETHE, 2016, p.16).

Outro tema que atualiza a obra e a põe em meditação é a brevidade

da vida, a relação de felicidade e realização pessoal. Werther cogita a

ideia que satisfaz sua mãe e seu amigo de partir com o embaixador e as-

sumir um cargo público, tendo em vista que os mesmos consideram que

ele encontra-se inativo:

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Tudo nessa vida acaba em bagatela e aquele que, para agradar aos outros se mata trabalhando por dinheiro, honras ou o que for, sem que a isso o mova sua própria paixão ou necessidade, é, com certeza, um tolo (GOETHE, 2016, p.60)

A riqueza e a sensibilidade do vocabulário utilizado, sem dúvidas,

faz de Os sofrimentos do Jovem Werther, uma obra clássica, atual. Refle-

xo exímio do movimento romântico, a natureza é exaltada com primor,

considerada como fonte inesgotável de beleza e poesia. Os escritos trans-

portam o leitor à cena retratada, neste extrato Werther exprime ao amigo

a exuberante paisagem bucólica:

Quando a bruma do vale se levanta a minha volta, e o sol alta-neiro descansa sobre a abóbada escura e impenetrável da minha floresta, e apenas alguns escassos raios deslizam até o fundo do santuário, ao passo que eu, deitado no chão entre a relva alta, na encosta de um riacho, descubro no chão mil plantinhas desco-nhecidas...Quando sinto mais perto de meu coração a existência desse minúsculo mundo que a formiga por entre a relva, essa incontável multidão de ínfimos vermes e insetinhos de todas as formas e imagino a presença do Todo-poderoso, que nos criou a sua imagem e semelhança e o hálito do Todo-amado que nos leva consigo e nos ampara a pairar em eternas delícias...(GOE-THE, 2016, p.18)

A delicadeza e a efervescência do amor sentido pelo jovem o faz um

homem em ebulição, mostra-se desconcentrado, atormentado pela espe-

rança de viver este amor e, pela certeza da não concretização do mesmo.

Muitas vezes levado ao extremo com seu temperamento fervoroso trava

batalhas no intento de convencer os demais de suas ideologias. Assim o

fez, ao denegar, o mau humor, versado em diálogos com Carlota e amigos:

Citai-me um só homem que, adoecendo de mau humor, seja, não obstante, bravo o suficiente para dissimulá-lo, guarda-lo só para si, sem acabar com a festa dos que o rodeiam! Não será o mau humor muito antes uma insatisfação íntima com a nossa própria indignidade, um descontentamento com nós mesmos, que sem-pre vem atado a uma inveja, fomentada por uma vaidade insana? Vemos homens felizes cuja felicidade não é obra nossa e isso nos resulta insuportável. (GOETHE, 2016, p.51)

A expressividade utilizada para retratar a mulher caracteriza-a como

um ser perfeito, celestial, de beleza e qualidades indizíveis, assim é Carlota

para Werther. Ele se considerao único a ter sensibilidade, devoção, e capa-

cidade para amá-la e usufruir de sua existência, como se observa a seguir:

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Ela é sagrada para mim. Todo meu desejo emudece em sua presença. Não sei jamais o que se passa comigo quando es-tou ao seu lado; parece que a minha alma se revolve em to-dos os meus nervos... Há uma melodia que ela toca no piano com a força de um anjo, tão sensível e tão espirituosa! É sua ária favorita! E ela livra-me de todas as mágoas, de todas as confusões, de todas as manias, apenas ouço a primeira nota. (GOETHE, 2016, p.58)

A ausência física e a suplementação são deveras retratadas ao longo

do romance. Werther exprime sua dor e consolo através de personagens

secundários, que durante a narrativa estiveram diante da amada, tocan-

do-a, em diálogos, ou simplesmente compartilharam de sua presença. A

exemplo, um canário, pássaro que Carlota considera como novo amigo,

que ao alimentá-lo com miolo de pão e, beijá-lo, o bico sugere que Wer-

ther também o faça. Desta forma, o apaixonado tem sua imaginação in-

cendiada passando a venerar também a ave. A citação a seguir manifesta

essa assertiva:

Falam que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absor-ve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Da-va-se o mesmo comigo e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota haviam pousado em seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo, tornava-o tão querido, tão sagrado para mim! Naquele momento não daria aquele rapaz nem por mil táleres! Me sentia tão bem em sua presença...(GOETHE, 2016, p.59)

A natureza humana, para o amante, tem seus limites, pode supor-

tar até certo ponto a dor, a alegria, o desespero; mas passado do ponto

ela sucumbe. Se o homem é fraco ou forte, não é a questão maior; mas

simse pode suportar o peso dos próprios sentimentos, quer físicos,

quer morais. Desta forma,Alberto reporta-se a Werther como irracional

ao perceber manejar uma pistola, apontando-a para a própria cabeça:

“Essas são mais algumas das tuas extravagancias”, disse Alberto. “Exageras tudo e, por certo, cometes pelo menos o erro de aceitar o suicídio, que é do que estamos falando agora, como se fosse uma grande ação, quando não é nada mais do que simplesmente fraqueza. Pois, para ser sincero, é mais fácil morrer do que suportar com firmeza uma vida de tormentos.” (GOETHE, 2016, p.69)

O pessimismo marcante do apaixonado jovem diante das incer-

tezas do futuro mostram um ser perdido, sem perspectivas para o tra-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

balho, a arte; para os livros, a leitura; perde-se para si e dentro de si.

Demonstra em toda a narrativa a convicção da transitoriedade da vida,

afirma, pois, que o homem é tão efêmero que mesmo tendo certeza que

existe e, consciente de que o único lugar que poderá permanecer por

mais tempo é na memória, ainda assim, será por pouco tempo e logo

deixará de existir.

Em vão estendo meus braços para ela, de manhã, ao despertar de um penoso sonho; em vão a procuro à noite em minha cama, quando um devaneio feliz e puro me iludiu, quando julgava es-tar sentado ao lado dela na relva, e lhe pegava na mão cobrin-do-a de mil beijos. Ah, quando, ainda meio tonto de sono, a procuro e a seguir desperto, uma torrente de lágrimas brota do meu coração e choro, desolado com o futuro sombrio a minha frete! (GOETHE, 2016, p.77)

A desilusão amorosa sentida por Werther fá-lo transitar pelas extre-

midades das sensações, ora carrega no peito a fonte de todas as ventu-

ras, ora a forte de todas as misérias. A angústia da desilusão, sentimento

recorrente, exprime um ser que dantes bracejava uma inesgotável sen-

sibilidade, que via surgir um paraíso diante de si em tudo; contudo, de-

senganado mostra-se com um coração morto, que já não sente nenhum

encanto pela vida.

À noite, decido que vou gozar o nascer do sol no dia seguinte, mas não consigo levantar da cama. De dia espero ficar alegre com o luar, mas à noite fico trancado em meu quarto. Já não sei mais por que levanto, já não sei mais por que vou dormir. O fermento que pôs minha vida em movimento falta; o estímulo que me encorajava à noite já não existe, aquele que me despertava pela manhã se foi (GOETHE, 2016, p.94).

A interpretação da obra de Goethe a que se trata nesta propos-

ta, traz ao leitor uma profunda reflexão da condição humana, levando

em conta os campos social, físico e psicológico, em que o ser humano

pode encontrar-se nos diversos momentos da vida. Necessita-se pontuar

a atualização da obra, que, em diversos trechos,Werther, a principal per-

sonagem, recai em reflexões propondo uma minuciosa compreensão das

atitudes do homem, que ora age por instinto, ora por obediência às regras

sociais. A grandeza da escrita, os vocábulos, as metáforas e sensações

propiciadas pela narrativa são notáveis fontes de conhecimento sobre o

movimento romântico.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações feitas no percurso deste trabalho têm como

pretensão um direcionamento, uma atitude diferenciada ante ao estu-

do e ensino de literatura na educação básica. Almeja-se com esse dis-

curso contribuir com uma prática de estudos na qual levem em consi-

deração os conhecimentos vinculados ao texto, mais precisamente, os

conhecimentos que o leitor, em atividade, possa abstrair;retirando-se

de uma condição estática de conhecimento na qual se privilegiaa his-

toricidade do período literário, as características da escrita relacionada

e, a vida e obras de autores com a presunção de classificá-los ou qua-

lificá-los.Optou-se por um romance de grande expressão para a socie-

dade, de época e atual, para interpretar segundo a visãohermenêutica.

Sendo essa, a base teórica para tal anseio, através dela,manifestam-se

as possíveis leituras e aprendizagens que podem ocorrernas práticas

metodológicas para o ensino de literatura. A partir deste postulado,

pondera-se que a teoria hermenêutica permite ao ensino de literatura,

além do conhecimento histórico e teórico, o conhecimento da obra em

si, prestigiando o que o leitor sente e imagina, pois, ao ler o texto, o

leitor se lê e não apenas lê o que está escrito. Respondendo, por fim,

o que quer dizer o texto.

Referências

BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: ____. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideologia. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.

COMPAGNON, Antonie. Literatura para quê? Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2012.

COSTA LIMA, L. Hermenêutica e abordagem literária. In: Teoria da Litera-tura em suas fontes. Vol. I. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983.

COUTINHO, Afrânio (Dir.); COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil. 6.ed. São Paulo: Global, 2002. v.3

GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do Jovem Werther.Porto Ale-gre: L&PM, 2016.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Uni-versidade de Brasília, 2003.

PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2011.

TODOROV, Tzvetan. A Literatura em perigo. Rio de Janeiro: DFEL, 2009.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A audiodescrição como estratégia narrativa para um jornalismo acessível1

Daiana Stockey Carpes2

Introdução

O processo de inclusão de pessoas com deficiência é um dos grandes

desafios da sociedade atual. Em se tratando de inclusão comunicacional, os

cegos têm grande dificuldade em obter informações, pois existem poucos

produtos adaptados, sejam eles em braile ou audiodescritos. Uma forma

de promover a acessibilidade comunicacional é por meio da audiodescri-

ção. Assim, a audiodescrição no jornalismo, surge como forma de inclusão

comunicacional dos cegos na sociedade. Tavares (2013, p. 11) explica que

esse recurso é uma técnica que traduz imagens em sons e que permite a

uma pessoa cega ou com baixa visão compreender o que está contido no

visual. A audiodescrição pode ser gravada, ao vivo ou escrita.

Segundo Lima et al. (2009), a audiodescrição vem constituir-se

numa ferramenta de acesso tanto para o lazer quanto para a educação e

informação. Se para aqueles que possuem visão está reservado o acesso

às informações visuais, estas devem, igualmente, serem disponibilizadas

aos cegos. De outra forma, essas pessoas estarão novamente sendo dis-

criminadas por razão de deficiência.

Se a notícia é uma forma de narrativa, então, a audiodescrição des-

sa notícia também será uma forma de narrativa. Entende-se narrativas

1 Artigo desenvolvido para a disciplina Jornalismo e Literatura: Narrativas Complexificadas ministrado pelo professor Demétrio de Azeredo Soster, do PPG Letras da Unisc (2015).2 Jornalista e mestranda no programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista BIPPS-Unisc.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

como formas de narrações, e a audiodescrição é uma forma de narrativa

acessível aos cegos. Narrar é uma manifestação que acompanha o ho-

mem desde sua origem e está presente em todos os tempos, em todos

os lugares, em todas as sociedades. Atualmente, as narrativas podem ser

encontradas em novelas, filmes de cinema, peças de teatro, notícias de

jornais, gibis, desenhos animados, videogames, entre tantos outros.

Motta (2013, p. 27) identifica seis razões pelas quais o estudo da

narrativa é importante: para compreender quem somos; para entender

como os homens criam representações e apresentações do mundo; para

esclarecer as diferenças entre representações factuais e fictícias do mun-

do; para enunciar fenômenos tão diferentes como a literatura ficcional e

a historiografia fática; para identificar como os indivíduos e sociedades

cotejam o excepcional e o consuetudinário a fim de tornar familiar o que

antes era não familiar e por último, conclui: “Precisamos estuda-las para

melhor contá-las (story telling)”.

Dessa forma, pretende-se, com este trabalho, discutir a comunica-

ção acessível a partir de produtos laboratoriais, como meios para garantir

a inclusão, a cidadania e a promoção do desenvolvimento da informação

por meio da narrativa, uma vez que ela é considerada uma estratégia or-

ganizadora do discurso jornalístico.

Acessibilidade comunicacional: um direito de todos

Quando se fala de inclusão, seja ela física, intelectual, auditiva, vi-

sual ou múltipla, nos deparamos com a questão da acessibilidade. A in-

clusão só é possível se tiver acessibilidade. Conforme a Portaria da Lei nº

310 de 27 de julho de 2006, acessibilidade é a condição para utilização,

com segurança e autonomia, dos serviços, dos dispositivos, dos sistemas

e dos meios de comunicação e de informação, por pessoas com deficiên-

cias auditiva, visual ou intelectual.

O Manual da Mídia Legal (2002, p. 16) aponta alguns aspectos que

definem inclusão:

- Inserção total e incondicional (crianças com deficiência não precisam “se preparar” para ir à escola regular);- Exige rupturas nos sistemas;- Mudanças que beneficiam toda e qualquer pessoa (não se sabe quem “ganha” mais; todas ganham);

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

- Exige transformações profundas para que a sociedade se adap-te para atender às necessidades das pessoas com deficiência e, com isso, se torna mais atenta às necessidades de todos; - Defende o direito de todas as pessoas, com e sem deficiência; - Traz para dentro dos sistemas os grupos de “excluídos” e, pa-ralelamente, transforma esses sistemas para que se tornem de qualidade para todos; - O adjetivo inclusivo é usado quando se busca qualidade para todas as pessoas com e sem deficiência (escola inclusiva, traba-lho inclusivo, lazer inclusivo, etc); - Valoriza a individualidade de pessoas com deficiência (pessoas com deficiência podem ou não ser bons funcionários; podem ou não ser carinhosos etc); - Não quer disfarçar as limitações, porque elas são reais; - Não se caracteriza apenas pela presença de pessoas com e sem deficiência em um mesmo ambiente; - A partir da certeza de que todos somos diferentes, não existem “os especiais”, “os normais”, “os excepcionais”, o que existe são pessoas com deficiência.

É por meio das leis que o Governo Federal lança medidas de inclu-

são, que se voltam às questões de acessibilidade arquitetônica, atitudi-

nal, comunicacional, instrumental, metodológica, tecnológica e técnica.

Hoje, o Brasil possui leis que garantem a acessibilidade e o direito à in-

formação. Em 2015, foi sancionada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa

com Deficiência3, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, na

qual apresenta uma preocupação em promover a inclusão comunicação.

No título IV – da Ciência e Tecnologia, desta lei apresenta:

Art. 78. Devem ser estimulados a pesquisa, o desenvolvimento, a inovação e a difusão de tecnologias voltadas para ampliar o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias da informação e comunicação e às tecnologias sociais.Parágrafo único. Serão estimulados, em especial:Parágrafo único: I - o emprego de tecnologias da informação e comunicação como instrumento de superação de limitações fun-cionais e de barreiras à comunicação, à informação, à educação e ao entretenimento da pessoa com deficiência.

Não basta que a lei assegure os direitos à acessibilidade. É impres-

cindível que as escolas e as universidades adotem essas medidas na es-

trutura curricular dos cursos, como forma de aprendizagem e conscien-

tização dos alunos. “Do contrário, o direito de comunicar se esvazia, na

3 Lei 13.146 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

medida em que o seu exercício fica limitado aos poucos instruídos, ca-

pazes de formular mensagens, recheá-las de conteúdos e disseminá-las

adequadamente” (MELO, 1986, p. 69).

Pelo viés da educação, o Ministério da Educação (MEC) inseriu a

acessibilidade em diversos aspectos nos cursos superiores. Assim, o

órgão publicou em junho de 2015, o Instrumento de Avaliação de Cursos

de Graduação presencial e a distância4, no qual apresenta a acessibilidade

como critério de avaliação em diversos quesitos. Como:

Estrutura curricular: A estrutura curricular contempla, em uma aná-

lise sistêmica e global, os aspectos: flexibilidade, interdisciplinaridade, aces-

sibilidade pedagógica5 e atitudinal6, articulação da teoria com a prática.

Conteúdos curriculares: Possibilitar o desenvolvimento do

perfil profissional do egresso, considerando, em uma análise sistêmica

e global, os aspectos: atualização, adequação das cargas horárias (em

horas), adequação da bibliografia, abordagem de conteúdos referentes

às relações étnico-raciais, direitos humanos, políticas ambientais, bem

como acessibilidade.

Metodologia: Quando as atividades pedagógicas apresentam ex-

celente coerência com a metodologia prevista/implantada, inclusive em

relação aos aspectos referentes à acessibilidade pedagógica e atitudinal.

Além dos quesitos citados acima, o documento propõe acessibi-

lidade em outros aspectos, como: apoio ao discente, tecnologias de in-

formação e comunicação – no processo ensino aprendizagem, material

didático institucional, infraestrutura da universidade, equipamentos de

informática, laboratórios didáticos especializados.

Com o intuído de instruir os futuros profissionais, o MEC propõem

inúmeras mudanças no currículo dos cursos de graduação. Para Melo

(1986, p. 69) a trajetória do povo brasileiro é marcada por dois direitos

basilares: o direito à educação e à informação.

4 Este Instrumento subsidia os atos autorizativos de cursos – autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento – nos graus de tecnólogo, de licenciatura e de bacharelado para a modalidade presencial e a distância. De acordo com o art. 1º da Portaria Normativa 40/2007, consolidada em 29 de dezembro de 2010. 5 Ausência de barreiras nas metodologias e técnicas de estudo. Está relacionada diretamente à concepção subjacente à atuação docente: a forma como os professores concebem conhe-cimento, aprendizagem, avaliação e inclusão educacional irá determinar, ou não, a remoção das barreiras pedagógicas.6 Refere-se à percepção do outro sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações. Todos os demais tipos de acessibilidade estão relacionados a essa, pois é a atitude da pessoa que impulsiona a remoção de barreiras

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Comunicar, expressar livremente fatos e ideias, pressupõe o do-mínio do código e o acesso aos conteúdos que permitirão pro-duzir mensagens e difundi-las e divulga-las. Logo, pressupõe o manejo de informações. E tal atividade se estriba na instrução básica, no conhecimento sistematizado, no treinamento para aprendizagem continuada (MELO, 1986, p.69).

A UNESCO (1980, p. 230) também está engajada na causa em prol

da comunicação a todos, inclusive considera a comunicação como um

aspecto dos direitos humanos. A organização recomenda àqueles que

trabalham com os meios de informação, que eles devem contribuir para a

realização dos direitos humanos, tanto individuais como coletivos, cola-

borando dessa forma, que nenhum direito humano seja violado. A UNES-

CO ainda ressalta que todos têm o direito de comunicar. Para garantir o

direito de comunicar é preciso dedicar todos os recursos tecnológicos de

comunicação a atender às necessidades da humanidade a esse respeito.

Audiodescrição como forma de inclusão comunicacional

Um meio de promover a inclusão comunicacional àqueles que

possuem cegueira, está na oferta de um recurso tradutório, da imagem

em palavras, conhecido como audiodescrição. Esse recurso é um direito

constitucional da pessoa com deficiência visual, uma vez que a todos é

devido o direito à informação, à educação e ao lazer.

Conforme Franco e Silva (2010), a audiodescrição consiste na trans-

formação de imagens em palavras para que informações-chave sejam

transmitidas visualmente, não passem despercebidas e possam também

ser acessadas por pessoas cegas ou com baixa visão. O recurso, cujo ob-

jetivo é tornar os mais variados tipos de materiais audiovisuais acessíveis

a pessoas não videntes. “A audiodescrição não é meramente uma descri-

ção falada, e nem uma descrição exclusivamente transmitida por áudio,

como o nome pode sugerir” (LIMA e LIMA, 2013). Assim, este recurso é

uma forma de tradução, e, enquanto tradução, pode ser feita oralmente

ou também por escrito.

Couto salienta a importância deste recurso ser reconhecido:

A noção da audiodescrição como tradução é de fundamental im-portância para o seu reconhecimento como trabalho intelectual, pois vai muito além do que a descrição de informações percebi-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

das pela visão. Questões técnicas, linguísticas e fílmicas preci-sam ser observadas para que se possa realizar a audiodescrição. As respostas a essas questões dependem do gênero da obra a ser audiodescrita (Couto, 2014, p. 17).

A audiodescrição é um recurso de acessibilidade e, uma atividade

de mediação linguística, que transforma o visual em verbal, abrindo pos-

sibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para

a inclusão cultural, social e escolar. A reflexão a respeito dessas barreiras

é pertinente para remoção de entraves à construção de uma sociedade

justa e sem discriminação.

Franco (2007, p. 171) demonstrou por meio de sua pesquisa explo-

ratória, que a presença do recurso da audiodescrição facilitou a recepção

dos cegos, ao assistirem um filme de curta metragem. Se pensarmos no

jornalismo impresso, os cegos teriam um entendimento maior do contex-

to da história narrada, uma vez que fotos e ilustrações recebem o recurso

da audiodescrição.

Jornalismo em audiodescrição: uma forma de uma narrativa

inclusiva?

Preocupado com a inserção das pessoas com deficiência visual na

sociedade, o curso de Jornalismo da UNISC implantou a audiodescrição

nos produtos jornalísticos laboratoriais, produzido nas disciplinas de Jor-

nalismo Impresso e Jornalismo de Revista, ambas ministradas pelo pro-

fessor Demétrio de Azeredo Soster. A iniciativa possibilita uma melhora

na qualidade de vida dos cegos, além de torná-los mais autônomos e

informados. Por outro lado, traz aos acadêmicos a questão social, uma

vez que desperta a consciência social, a necessidade em pensar produtos

comunicacionais acessíveis. Aliado a isso, contribui para divulgar conteú-

dos jornalísticos a uma parcela da população que não teria acesso.

Pensar em um produto jornalístico acessível é uma tarefa difícil,

exige preparo, atenção e criatividade.

A dificuldade se dá, principalmente, devido ao despreparo des-ses profissionais para lidar com temas preponderantes, como educação, saúde, violência e inclusão. As faculdades de comuni-cação raramente oferecem disciplinas que qualifiquem os futu-ros comunicadores para compreender ou tratar dessas questões.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Por outro lado, aqueles que atuam no campo dos direitos, sejam eles juristas ou ativistas, que, enquanto fontes privilegiadas, po-deriam estabelecer um diálogo sistemático e educativo com a mídia, pouco sabem lidar com os processos e os profissionais da comunicação. Assim, o que poderia se tornar uma aliança estratégica acaba por se constituir em um grande fosso de in-compreensão (ESCOLA DE GENTE, 2002, p. 100).

Pensar a audiodescrição no jornalismo laboratorial impresso infere

em pensar nas imagens contidas nesse meio. Ou seja, traduzir as fotos

jornalísticas e as ilustrações para o áudio. Para Buitoni (2011, p. 90) a

foto jornalística está vinculada a valores informativos e/ou opinativos e à

veiculação num órgão dotado de periodicidade. Além disso, a fotografia

possui relevância social e política e possui relação com a atualidade com

um caráter noticioso. A partir disso, percebemos a importância em audio-

descrever as imagens do impresso.

A narratividade que pode estar presente numa foto isolada é a mesma potencialidade narrativa de um fragmento de ação. O jor-nalismo tem uma natureza intrinsecamente narrativa, pois relata acontecimentos e ações de pessoas, animais e meio ambiente. Daí podemos inferir que uma foto que apresenta uma narrati-vidade latente estará mais apta a fazer interface com o texto (BUITONI, 2011, p. 58).

Sem dúvida, o jornalismo impresso utiliza a fotografia como uma

ferramenta para o testemunho ocular, um registro da realidade e, sobre-

tudo a marca da credibilidade. Quando as imagens não possuem acessi-

bilidade aos cegos, o veículo de comunicação está excluindo essa parcela

da população em ter acesso a essa informação. Assim, a audiodescrição

no jornalismo impresso pode ser uma alternativa para garantir o acesso

aos deficientes visuais à comunicação.

José Marques de Melo (2007) desafia a nova geração dos estu-

diosos do jornalismo a buscarem alternativas pedagógicas que cor-

respondam aqueles que não possuem acesso às informações. Para

o autor os pesquisadores da área possuem o dever de repensar as

estruturas de ensino, pesquisa e extensão, tornando o espaço uni-

versitário em um instrumento de transformação social, bem como da

elevação do nível cognitivo daqueles que estão excluídos da socieda-

de de consumo. “Nossa meta é construir um jornalismo radicalmente

inclusivo” (MELO, 2007).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

A narrativa jornalística e a audiodescrição

Quando uma matéria jornalística impressa recebe o recurso da au-

diodescrição, a distância entre o leitor/ouvinte e a informação veiculada

é minimizada, de forma que será possível aos cegos ter conhecimento

do que foi publicado no periódico. Conforme Mascarenhas (2013, p. 56)

a audiodescrição possui natureza narrativa, uma vez que compreende a

descrição de uma sucessão de fatos visuais. Por esse viés, percebemos a

intenção da narrativa:

Quem narra tem algum propósito ao narrar, nenhuma narrativa é ingênua. A análise deve, portanto, compreender as estratégias e intenções textuais do narrador, por um lado, e o reconhecimento (ou não) das marcas do texto e as interpretações criativas do re-ceptor, por outro lado. A ênfase está no ato de fala, na dinâmica de reciprocidade, na pragmática comunicativa, não na narrativa em si mesma (Motta, 2005, p.3).

Quando se atinge o propósito da narrativa, ou melhor, quando

afirmamos que a entendemos, Scholes e Kellogg (1957, p. 56) ex-

plicam que nós encontramos um relacionamento ou conjunto de re-

lacionamentos satisfatórios entre o mundo real e o da ficção. Nesse

contexto, Barthes (2008, p. 48) sugere que, no interior da narrativa,

há uma grande função de troca (repartida entre um doador e um

beneficiário), para que efetivamente a narrativa atinja a sua função

de entendimento.

Trazendo essa intenção para a linha do jornalismo; a notícia é

uma forma de narrativa. E o grande propósito do repórter que escre-

veu essa matéria é que seu leitor o leia e, desta forma, entenda o que

está posto no jornal. Porém, quando esse possível leitor é cego, a

narrativa do impresso passa a ser incompreendida. Então, a audiodes-

crição cumpre esse propósito e a narrativa que foi veiculada no jornal

impresso e que recebeu esse recurso é recebida e compreendida pelo

cego. Fechando assim, o ciclo da narrativa, que tem por um lado o

narrador que conseguiu contar a sua história e por outro, o narratário7,

que recebeu e principalmente, entendeu essa narrativa. Desta forma,

surge a comunicação narrativa.

7 O narratário é uma entidade fictícia, um “ser de papel” com existência pluralmente textual, dependendo diretamente do outro “ser de papel”, o narrador que se lhe dirige de forma ex-pressa ou tática (REIS E LOPES, 1988, p. 63).

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Assim, as narrativas trazem um propósito em si: levar a mensagem

compreendida e entendida ao seu destinatário, sem ruídos e interferên-

cias; é seu objetivo final. Logo, as narrativas da audiodescrição estão

inseridas como uma forma de promover a acessibilidade, uma vez que

os cegos não teriam as informações de determinados produtos visuais,

salvo com a ajuda desse recurso.

Conclusão

Percebe-se que o jornalismo passou e está passando por mutações

ao longo de sua história. Já não basta simplesmente noticiar os fatos,

é preciso garantir que todos tenham o mesmo acesso a informação. Se

há mudança no consumo da notícia, trazidas pelas novas tecnologias, é

imprescindível pensar na maneira de produzir e apresentar os conteúdos

jornalísticos. A mídia precisa ser reeducada sistematicamente na aborda-

gem do tema.

A importância e a relação da linguagem e da comunicação na forma-

ção do sujeito crítico e participativo são claras e notórias, que não podem

ser negadas às pessoas com deficiência visual. Portanto, o recurso da

audiodescrição precisa ser valorizado e aproveitado para que a existên-

cia destas pessoas seja cada vez mais produtiva e significativa enquanto

cidadãos. Pensar no recurso da audiodescrição é proporcionar aos cegos

acesso a uma sociedade que antes não tinham conhecimento.

Por outro lado, as universidades não podem esquecer os problemas

sociais e nem se esquivar de contribuir para melhorar a qualidade de vida

daqueles que possuem alguma deficiência.

O compartilhamento de materiais jornalísticos por meio do recur-

so da audiodescrição é um desafio que tem como meta tornar possível

a experiência estética pelo sentido da visão, às pessoas com deficiência

visual. A audiodescrição no jornalismo impresso surge para solucionar

uma coluna descritiva, dispondo de informações obtidas nas imagens

inseridas no impresso.

Acreditamos que iniciativas de acessibilidade voltadas à auto-

nomia comunicacional e o bem estar das pessoas com deficiência

visual se tornarão em breve uma realidade nas empresas jornalís-

ticas, por essa razão se dá a importância dessa pesquisa, uma vez

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

que dialoga com o jornalismo laboratorial e a consciência dos fu-

turos jornalistas. Daí sua relevância, que visa discutir a inserção

de produtos comunicacionais voltados aos cegos. Cremos que esta

pesquisa seja de grande valia para a difusão da audiodescrição no

jornalismo laboratorial.

E entendemos que promover materiais jornalísticos acessíveis é

uma forma de fazer um jornalismo inclusivo.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

Estratégias narrativas em entrevistas pingue-pongue: uma análise de “As 30

melhores entrevistas de Playboy”1

Pedro Piccoli Garcia2

1 Introdução

O presente artigo discute a utilização de recursos textuais utili-

zados em entrevistas jornalísticas do formato pingue-pongue. A aten-

ção recairá sobre certo padrão de entrevistas, praticado principalmente

por revistas, em que é recorrente o emprego de uma série de artifícios

textuais na composição do relato da conversa face a face. Buscaremos

analisar esses artifícios enquanto estratégias discursivas adotadas com

propósitos específicos.

Para tanto, seguiremos um percurso que iniciará com uma contex-

tualização teórica por meio da qual lançaremos um primeiro olhar sobre a

entrevista pingue-pongue na sua perspectiva conceitual e histórica. Essa

contextualização também abarcará uma conexão entre os estudos sobre

entrevista e os estudos sobre narrativa e narrativa jornalística.

Esse escopo nos permitirá, em um segundo momento, partir para

um estudo de caso, cujo recorte será a coletânea As 30 melhores entre-

vistas de Playboy. Essa análise consistirá em dois movimentos: no primei-

ro, serão identificados os recursos narrativos recorrentes nas entrevistas,

enquanto no segundo se refletirá a respeito desses recursos e sobre as

causas e efeitos de seu uso.

1 Trabalho apresentado no DT 1 – Jornalismo do XVII Congresso de Ciências da Comunica-ção na Região Sul realizado de 26 a 28 de maio de 2016.2 Graduado em Comunicação Social – Jornalismo e mestrando em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). E-mail: [email protected]

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

2 Entrevista pingue-pongue: olhar sobre o indivíduo

A bibliografia clássica sobre entrevista a define como uma técnica

de interação social que possui diversas possíveis aplicações. Conforme

Medina (1990), todos os profissionais que tratam de problemas humanos

lidam, de forma ou outra, com a entrevista – médicos, juízes, funcioná-

rios de departamentos de pessoal de empresas, assistentes sociais, pes-

quisadores, psicanalistas e, claro, jornalistas.

No caso do jornalismo, a entrevista é, sem dúvida, um dos elemen-

tos fundamentais, já que constitui a principal ferramenta de obtenção de

informações junto a fontes humanas – informações essas que servirão

de matéria-prima para elaboração de notícias, reportagens, etc. O que

interessa a este artigo, porém, não é propriamente a entrevista enquanto

“meio” e, sim, enquanto “fim” ou “produto” da atividade jornalística.

Silva (2007) delimita três concepções para a entrevista jornalística.

São elas: a entrevista como procedimento de apuração de informações

(que consiste na interação entre jornalista e entrevistado), a entrevista

publicada em jornais e revistas (em citações diretas inseridas em notícias

e reportagens ou no formato pingue-pongue) e ainda a entrevista na mo-

dalidade oral (praticada nas mídias televisiva e radiofônica).

O que se discute aqui é a segunda concepção, ou seja, a en-

trevista enquanto formato praticado em veículos impressos. O termo

entrevista pingue-pongue (por alguns chamada apenas de entrevista

pergunta-e-resposta ou ainda P-R) refere-se a um padrão de composi-

ção textual em que são reproduzidas as perguntas do jornalista e as

respostas do entrevistado (SILVA, 2007). Difere-se, portanto, do que

acontece na notícia e reportagem, em que as citações diretas de entre-

vistados aparecem de forma esporádica e servem apenas como “aces-

sório” ao texto.3

A presença desse formato, lembra Silva (2007), é constante e sig-

nificativa, sobretudo em revistas. Se observarmos a realidade brasileira,

todas as revistas da atualidade de maior circulação no País dedicam es-

paços fixos às entrevistas pingue-pongue. Em alguns casos, essas seções

são tradicionais e compõem a “identidade” das publicações - exemplos

3 De acordo com as proposições teóricas clássicas sobre gêneros jornalísticos, de Beltrão (1980) e Marques de Melo (2003), a entrevista está inserida no gênero jornalismo infor-mativo.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

disso são as seções “Páginas Amarelas”, da Veja, e “Páginas Vermelhas”,

da IstoÉ.4

Também é fácil notar a presença marcante de entrevistas pingue

-pongue em revistas especializadas, principalmente as que se ocupam da

área de cultura e variedades. Um exemplo é a revista Bravo!, hoje extinta.

Na esfera internacional, vale citar publicações como Le Monde, Paris Re-

view, Rolling Stone e Playboy (as duas últimas, também nas suas versões

brasileiras). De qualquer forma, nos dizeres de Costa (2010, p. 51), a en-

trevista pingue-pongue é uma “unidade textual legitimada”.

Nas entrevistas pingue-pongue, o conteúdo temático é o entrevista-

do e o seu discurso. Diz Souza (2001, p. 236) que a maioria das entrevistas

pingue-pongue se presta a “revelar a personalidade de um ator social ou

a dar a conhecer o seu ponto de vista sobre uma realidade” (p. 236). Em

raciocínio semelhante, Silva (2007, p. 84) afirma que, na entrevista pingue

-pongue, “o pensamento do entrevistado é contemplado em sua totalidade,

constituindo, então, um espaço razoável para esboçar o seu perfil”.

“[...] podemos dizer que o projeto discursivo do autor da entre-vista pingue-pongue é evidenciar o entrevistado e seu “dizer”, o que equivale a dizer que a finalidade discursiva do gênero está intrinsecamente ligada ao objeto do discurso, que é o entrevista-do e seu discurso. (SILVA, 2007, p. 126)

Para Silva (2007, p. 127), a presença de entrevistas pingue-pongue em

jornais e revistas produz o que chama de “efeito de pluralidade ideológica”. Ao

inserir, no conteúdo da publicação, a “voz” de pessoas que não integram o cor-

po de profissionais da empresa, é como se o órgão estivesse democratizando

os espaços de fala. Muhlhaus (2007) vai ao encontro dessa reflexão ao afirmar

que a entrevista é um dos recursos por meio dos quais a mídia constrói mode-

los de identidades e alimenta o leque de subjetividades oferecido à sociedade.

3 Perspectiva histórica

O marco inaugural deste formato pode ser considerado a entrevista

feita por Horace Greeley com Brigham Young, fundador da Igreja Mór-

4 Por outro lado, é importante ressaltar que alguns jornais também têm aberto, nos últimos anos, espaços para esse formato – é o caso, por exemplo, de Zero Hora, líder em circulação no Estado do Rio Grande do Sul, que em 2013 inaugurou a seção “Com a Palavra”, passando a ocupar três páginas de suas edições dominicais com entrevistas.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

mon, publicada em 20 de agosto de 1859 pelo jornal New York Tribune

(BELTRÃO, 1985). Essa, possivelmente, foi a primeira vez que uma entre-

vista foi publicada no formato “pergunta-e-resposta”.

De acordo com Altman (1995), não é por acaso que o formato co-

meçou a aparecer nos jornais nesse período:

O surgimento da entrevista no final do século XIX coincidiu com um período de grandes transformações da sociedade: o mer-cado de massa pressupunha interesses mais vastos, tão vastos como as ideias de Marx e os romances de Robert Louis Steven-son. Além disso, a nova sociedade burguesa começava a produ-zir celebridades com velocidade inédita. Elas existiam aos olhos do cidadão comum – numa época em que a televisão era sonho – apenas nos jornais, entre perguntas e respostas. (p. 19)

De fato, segundo Marcondes Filho (2000), é exatamente na segun-

da metade do século 19 que os jornais começam a se constituir como

negócios que precisam gerar lucro para se manter e, portanto, passam a

produzir conteúdo sintonizados com as exigências do capital5.

Um novo impulso às entrevistas pingue-pongue virá na segunda

metade do século 20. De acordo com Medina (1990), é principalmente a

partir da década de 1950 que os veículos começam a valorizar a humani-

zação das fontes de informação. Nesse período, consagraram-se muitas

entrevistas e entrevistadores pelo mundo. Um exemplo é a jornalista ita-

liana Oriana Fallaci, considerada, conforme Altman (1995), uma das mais

contundentes entrevistadoras de todos os tempos.

No Brasil, relata Medina (1990), experiências interessantes foram

observadas a partir desta época em veículos como O Cruzeiro, Correio

da Manhã, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Realidade e

Bondinho. Aliás, o jornalismo brasileiro também coleciona notórias en-

trevistas. É o caso, por exemplo, da concedida em fevereiro de 1945 ao

jornalista Carlos Lacerda pelo político paraibano José Américo de Almei-

da e publicada pelos jornais Correio da Manhã e O Globo, em que fazia

duras críticas à ditadura de Getúlio Vargas.

Ainda sobre a experiência brasileira, cabe destacar outros dois mar-

cos importantes. Um deles refere-se às entrevistas publicadas pelo sema-

nário alternativo O Pasquim, reconhecido por sua irreverência e oposição

5 É o que o autor chama de “segundo jornalismo”, a fase que seguiu ao “primeiro jornalismo” (1789-segunda metade do século 19), período em que houve a profissionalização do jornal-ismo e que o conteúdo era marcado por um tom fortemente político e literária.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

ao regime militar. Outro grande momento foi a criação da seção “Páginas

Amarelas”, da Revista Veja, em junho de 19696.

4 O segundo narrador

Para analisar recursos narrativos empregados em entrevistas pin-

gue-pongue, valemo-nos dos conceitos de Luiz Gonzaga Motta sobre nar-

rativa e narrativa jornalística.

O autor entende a narrativa como algo inerente ao ser humano e

que permeia toda a nossa existência. Trata-se da forma por meio da qual

organizamos nossas ideias, opiniões e lembranças e, ao organizá-las,

atribuímos sentido às nossas experiências e formamos conceitos e iden-

tidades – inclusive a nossa própria identidade. “Construímos um autos-

significado singular: nosso eu se transforma em um conto, um relato

valorativo”. (MOTTA, 2013, p. 27)

Não por acaso, estamos permanentemente contando estórias sobre

nossas vidas, elaborando e transmitindo, das mais variadas formas, peque-

nos relatos a respeito do que vivenciamos e testemunhamos, nos quais estão

impregnados nossos julgamentos e intencionalidades. É também por meio

de narrativas que construímos representações do mundo material e social.

O cânon organizador da experiência é narrativo, mais que con-ceitual. Ao ordenar suas ideias em pensamentos coerentes em busca de significados, os sujeitos encadeiam as relações possí-veis na forma cronológica ou causal, estabelecendo provisoria-mente um antes e depois, um antecedente e um consequente, uma causa e uma consequência, até chegar ao senso comum partilhado. Sem uma ideia condutora, os dados da experiência se amontoariam como grãos de areia sem organizar-se unidade [...] (MOTTA, 2013, p. 31)

Se há uma narrativa, há um narrador. Conforme Motta (2012), o

narrador é o agente que enuncia a narrativa e que se vale de estratégias e

artifícios discursivos para orientar, em uma determinada direção, a com-

preensão de seu destinatário (ouvinte, leitor, interlocutor, etc).

No caso da narrativa jornalística, esse poder de voz emerge de três

esferas. São, portanto, três narradores: o veículo (primeiro-narrador), o

6 A maioria das entrevistas citadas nesta seção constam, na íntegra, na antologia A Arte da Entrevista (1995), organizada por Fábio Altman.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

jornalista (segundo-narrador) e o personagem (terceiro-narrador). Assim,

em qualquer notícia ou reportagem, a enunciação parte do veículo, seja

jornal, revista ou outro, que com base em seus interesses comerciais e

ideológicos exerce o papel de atrair audiência à estória através de uma

apresentação sedutora; do profissional responsável pelo conteúdo, que,

subordinado ao veículo, é quem enuncia propriamente a narração, ou

seja, quem organiza o relato com o desejo de contar uma boa estória; e

o personagem, ou seja, os atores sociais que são ouvidos como fontes e

que vão se manifestar no interior do relato. (MOTTA, 2012)

Se aplicarmos essa sistematização às entrevistas pingue-pongue, po-

demos concluir que, em cada uma delas, os narradores são: a revista ou

jornal em que é publicada, o entrevistador/autor do texto e o entrevistado.

Silva (2007), aliás, já havia se dedicado a essa análise. Segundo ela,

há uma complexa interação discursiva nas entrevistas pingue-pongue. En-

trevistado e entrevistador são, conforme ela, os “autores” das entrevistas

face a face. Porém, ao ser transformada em produto jornalístico (no texto

que é publicado), a entrevista passa por uma reenunciação, processo pelo

qual são responsáveis tanto o jornalista/entrevistador quanto os seus su-

periores hierárquicos, à luz dos valores do veículo no qual estão inseridos.

A utilização de recursos narrativos em entrevistas pingue-pongue

surge justamente nesse trabalho de acabamento. Isso significa que nossa

análise se volta à instância do segundo-narrador. Sobre este, vale acres-

centar: “[...] ele inclui, exclui, destaca, hierarquiza segundo seus valores

pessoais, profissionais e os interesses do jornal ao qual está subordinado

que ele assimila como uma cultura profissional, e de acordo ainda com a

sua complexa ‘negociação’ com as fontes”. (MOTTA, 2012, p. 32)

5 Sobre as entrevistas na revista Playboy

Quando nos deparamos com uma entrevista pingue-pongue, esta-

mos diante de uma transcrição pura e simples das falas do entrevistado e

entrevistador? O uso de recursos narrativos nos textos das entrevistas é

um dos indicativos de que a resposta a essa pergunta é negativa.

O corpus deste estudo consiste nas entrevistas reunidas em As 30

melhores entrevistas de Playboy. Trata-se de uma coletânea em livro, cuja

primeira edição saiu em 2005, de 30 entrevistas no formato pingue-pon-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

gue publicadas entre 1975 e 2005 pela Revista Playboy, da Editora Abril.

As entrevistas foram selecionadas, dentre as 348 publicadas neste perío-

do, pelo jornalista Luiz Rivoiro, ex-editor da Playboy.

Como já citado anteriormente, a Playboy7 tem nas entrevistas pin-

gue-pongue uma de suas marcas. Elas estão presentes desde o seu pri-

meiro número no Brasil, em agosto de 1975, quando ainda circulava com

o nome Homem. Seus principais traços identitários, que obedecem ao pa-

drão praticado nas edições norte-americanas, são: o nome do entrevista-

do como título; a frase “uma conversa franca com...” como subtítulo; um

pequeno texto de abertura apresentando o entrevistado e o entrevistador

e o uso de recursos narrativos nas perguntas e respostas – o que justifica

a escolha do corpus.

A partir de análise de toda a coletânea, identificou-se um conjun-

to de artifícios narrativos recorrentes nas entrevistas pingue-pongue de

Playboy, os quais serão ilustrados agora.

a) Perguntas suscitadas por respostas. Uma pergunta feita pelo en-

trevistador remete à resposta do questionamento anterior. Em alguns ca-

sos, esse “encadeamento” se estende por longos trechos das entrevistas.

Um exemplo pode ser observado na entrevista com o músico Tom Jobim,

realizada pelos jornalistas Ruy Castro e Ana Maria Bahiana, publicada na

edição de setembro de 1988.

“[...]

Você já fez música para cantar alguém, no sentido de conquis-

tar? Olha, cada canção que eu fiz é uma moça que eu não comi. Uma vez

eu disse isso pro Millôr Fernandes e ele rebateu com a seguinte frase: ‘Pois

cada canção que eu não fiz é uma moça que eu comi’ [risos]. Naturalmente,

ele disse aquilo brincando. Mas para as coisas darem certo não precisa de

canção, não. O mundo não está aí? Não se reproduz tão bem sem canção?

Então, não tem esse negócio. Mas é claro que uma canção ajuda.

Ou seja, se você já tem esse talento, é uma a mais para a

conquista, certo?

Ah, sem dúvida. O violão é uma arma, o piano é outra. Na hora de

compor, o truque é deixar em branco o espaço em que deveria entrar o

nome dela. [...]”

7 A revista foi fundada em 1953 nos Estados Unidos e circula regularmente desde então.

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

b) Entrevistado se dirige ao entrevistador. O entrevistado, em suas

respostas, se volta diretamente ao entrevistador. Pode-se observar um

exemplo disso em trecho da entrevista concedida pelo boxeador Moham-

med Ali ao repórter Lawrence Linderman, publicada na edição de dezem-

bro de 1975.

“[...] Quer ouvir alguns dos meus pensamentos?

Tenho outra escolha? Ouve só: ‘O homem sem imaginação tem

os pés na terra; ele não tem asas, não sabe voar”. E este: “Quando esta-

mos certos, ninguém se lembra; quando erramos, ninguém se esquece”.

Gosto muito deste, ouve só: “A riqueza do homem está no conhecimento;

não está no banco. Se estiver no banco, ele não possui, porque está no

banco”. Pegou todos, hein?

Peguei, Mohammed. Então tem mais: ‘O carcereiro está em pior

situação do que o prisioneiro, porque, enquanto o corpo do prisioneiro

está fechado, é a mente do carcereiro que está aprisionada’. Sábias pala-

vras de Mohammed Ali [...]

Um pouco piegas, não é, Ali? Na hora que eu te vi, percebi logo

que não era um cara inteligente. Mohammed Ali é muito mais profundo

do que o boxe, meu filho.

[...]”

c) Interjeições do entrevistador. O entrevistador não apenas

pergunta, como também comenta, ironiza, brinca, reage a declarações.

Observa-se esse traço no seguinte trecho da entrevista feita pelo jornalis-

ta Ivo Cardozo com a apresentadora de TV Xuxa e publicada em agosto

de 1983.

“[...]

Você ainda não tinha se iniciado sexualmente? Não.

Não é estranho, você namorando jogadores de futebol, ho-

mens feitos, e não haver transação? Como você conseguia isso?

Esse garoto chamado Jacaré

não queria me namorar, porque eu não transava, e durou pouco

tempo. [...]”

d) Transposição da linguagem coloquial. O modo de fala do en-

trevistado é preservado, com gírias, vícios de linguagem e tom coloquial.

É possível perceber essa característica na entrevista concedida pelos fun-

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

dadores da revista O Pasquim (Ziraldo, Jaguar e Ivan Lessa) a Zuenir Ven-

tura, Fernando Morais e Fernando Pessoa Ferreira, publicada em março

de 1977.

“[...]

Quem era Murilo Reis? JAGUAR – Era um camarada que traba-

lhava com o Altair, da Distribuidora da Imprensa, uma distribuidora de

jornais e revistas aqui do Rio. Mas, peraí, deixem eu primeiro contar os

antecedentes... [...]

e) Descrição da postura do entrevistado. Não apenas as respos-

tas são transcritas, mas também a postura/comportamento do entrevis-

tado: risadas, pausas na fala, reações a comentários do entrevistador,

gestos. É o que ocorre, por exemplo, na entrevista concedida pelo cantor

Tim Maia a Ruy Castro e publicada em julho de 1991.

“[...]

Você pensa mais em sexo hoje do que, digamos, há uns 20

anos? Vamos ver. Eu estava cantando no People, sentou uma comadre

com umas coxas, que eu fiquei cantando de olho nela o tempo todo. Ten-

tei falar com ela, dar um disco, mas o namorado não deixou. [divagando]

Sexo é coisa gostosa. Assim de mulher bonitas no Brasil. [...]”

f) Descrição de elementos extra-diálogo. O texto faz referências

para além do diálogo em si, descrevendo o ambiente em que a conversa

se deu e interferências que ocorreram durante a entrevista. A abertura da

entrevista feita por Josué Machado com Luiz Inácio Lula da Silva (na épo-

ca, líder sindical), publicada em julho de 1979, ilustra claramente o uso

desse recurso, assim como outros citados anteriormente.

“[...]

Lula, que tal posar nu para a PLAYBOY? [rindo] Quando você

falou sobre a entrevista, eu cheguei pro Djalma Bom [diretor do Sindica-

to dos Metalúrgicos de

São Bernardo] e disse: ‘Vou posar pelado pra PLAYBOY”. E o Djal-

ma, puto da vida: ‘Nem fodendo, nem fodendo’. Aí eu aguentei sério e

comecei a explicar: ‘Pô,

Djalma, que é isso? Não é o sindicato que vai posar pelado. Sou

eu, o Lula. Isso não tem nada com o sindicato. Eu quero, vou ganhar um

dinheiro, sabe? Dizem que as mulheres estão querendo saber como é o

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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar

metalúrgico, querem saber se ele tem pinto de ferrou ou não’. O Djalma

não quis saber: ‘Não, nem fodendo. Espera aí que nós vamos fazer uma

reunião da diretoria. Você tem que se preservar, não pode ficar entrando

nessas, não!”. Djalma acreditou, rapaz! [pausa] Quer ver a

Marisa ficar uma vara também? [grita para a cozinha]: ‘Marisa, vem

cá! O quarto tá arrumado?’.

MARISA [chegando] Está.

LULA [sério] Eu vou tirar umas fotos pelado. MARISA [rindo] Magina!

LULA - São poucas fotos.

MARISA [rindo, ainda meio incrédula] Ah, não inventa, vai, Lula. É

tão ridículo! LULA - Vai, mulher, está com ciúme de mim! Vai, não precisa

ficar vermelha. Arruma lá a cama que eu preciso posar pelado, vai.

MARISA - Você não tem vergonha, Lula? [...]”

Importante ressaltar que os trechos transcritos foram selecionados

apenas como exemplos, mas os recursos narrativos identificados são co-

muns a praticamente todos os textos analisados, o que permite inferir

que constituem um padrão de entrevista pingue-pongue praticado pela

Revista Playboy.

5 A estória de uma entrevista

O questionamento que naturalmente decorre da identificação de

artifícios discursivos empregados reiteradamente nas entrevistas da Re-

vista Playboy é: por que utilizá-los? À luz da bibliografia que nos serve

de base, conclui-se que o uso desses recursos de linguagem não é alea-

tório e tampouco gratuito, e sim intencional. O segundo-narrador dessas

entrevistas, que é o entrevistador e o responsável pelo acabamento esti-

lístico do texto, emprega-os estrategicamente como forma de orientar a

interpretação do destinatário (leitor) a respeito do seu objeto (o entrevis-

tado). Em outras palavras, vale-se desses recursos para garantir com que

a representação que se busca construir do entrevistado seja facilmente

compreensível para o leitor.

Um dos traços mais marcantes das entrevistas analisadas é a pre-

sença do entrevistador, que se evidencia tanto no encadeamento entre

perguntas e respostas,quanto nas interjeições e nos momentos em que

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o entrevistado se dirige diretamente a ele. Ao contrário do padrão pra-

ticado em outros veículos, as perguntas não são enunciadas de forma

impessoal. Com isso, o entrevistador ganha “visibilidade” e torna-se um

personagem da “estória” tanto quanto o entrevistado – não por acaso, o

entrevistador é sempre apresentado na abertura do texto.

Isso confere um “verniz dialógico” ao texto: ao invés de um ques-

tionário pré-elaborado e submetido a um entrevistado tal qual um formu-

lário, o que lemos é o relato de uma conversa, que evolui e toma rumos

os mais diversos em seu próprio desenrolar. Nesse ponto, é interessante

evocar novamente Silva (2007, p. 127), que afirma que a intenção do se-

gundo-narrador de uma entrevista pingue-pongue é oferecer ao leitor a

sensação de que está testemunhando a situação da conversa:

O autor, tendo em vista seu projeto discursivo, tenta “projetar” no seu leitor a impressão de que, ao ler uma entrevista pingue-pongue, ele (o leitor) está “presenciando” uma conversa face a face entre jornalista e entrevistado, dessa forma, o autor do gê-nero busca fazer com que seu leitor se ‘sinta’ como se estivesse frente a uma entrevista face a face.

A entrevista pingue-pongue torna-se, portanto, uma espécie de

“cena” de um diálogo entre duas pessoas, uma sequência cronológica de

fatos com começo, meio e fim – é a “estória de uma entrevista”. O obje-

to do texto não é a fala do entrevistado e, sim, este diálogo – que pode

ter momentos de descontração ou até mesmo de tensão, como restou

demonstrado em trechos reproduzidos anteriormente. Cabe aqui, aliás,

transcrever outro excerto da entrevista com a apresentadora Xuxa em

que o protagonismo do entrevistador é evidente.

“[...] Aos 17 anos eu só tinha transado com um cara.

E como foi que aconteceu? Ah, tu acha que eu vou te falar tudo?

Acho. Isto é uma entrevista. Mas dá um tempo... [...]”

O que se observa é que nessa relação dialógica com o entrevistador

emergem muitas ofertas de sentido a respeito da personalidade e do perfil

do entrevistado. Nesse ponto, vale recorrer novamente à entrevista com o

boxeador Mohammed Ali. Vê-se, no trecho transcrito anteriormente, que foi

o próprio Ali quem tomou a iniciativa de recitar versos de sua autoria, que

seguiu citando-os à revelia da falta de interesse do entrevistador e que se mos-

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trou incomodado e até “xingou” o entrevistador quando este criticou as suas

qualidades enquanto poeta. Presume-se, portanto, que ao transcrever essa

passagem da conversa (que poderia ter simplesmente sido deixado de fora

do texto final, já que o segundo-narrador possui autonomia para isso), o que

se procurou mostrar é que o entrevistado é uma pessoa vaidosa e arrogante.

Da mesma forma, os demais recursos identificados – a preservação

do modo de fala do entrevistado, a descrição de sua postura durante a con-

versa e as referências a elementos extra-entrevista – também compõem

essa “estória” e oferecem significados sobre a pessoa do entrevistado –

como são, o que pensam, como se comportam, como tratam os outros.

A abertura da entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva é, nesse sentido,

emblemática. A reprodução da piada feita por Lula com sua esposa, quan-

do mentiu a ela que tiraria fotos nu para a Playboy, não parece ter outra

função que não a de revelar o perfil do personagem: percebe-se, por exem-

plo, que ele estava à vontade na situação da entrevista e que é um homem

brincalhão e piadista. Já o fato de ele usar palavrões e termos populares em

sua fala sugere que é um sujeito de origem simples e descontraído.

Através desses artifícios, portanto, o leitor é induzido a formar uma

determinada imagem do entrevistado. Ao se valer desses artifícios, o en-

trevistador age intencionalmente, porque o que espera é exatamente que

o leitor assimile essa imagem. Vale lembrar Motta (2012, p. 12): “O sen-

tido narrativo de uma estória provém, portanto, não apenas dos conteú-

dos, mas também dos artifícios discursivos postos em prática em um ato

comunicativo em contexto”.

Essas constatações deixam claro que a entrevista pingue-pongue

está longe de ser uma transcrição literal da entrevista face a face. O uso

estratégico de recursos narrativos escancara o fato de que o conteúdo

da entrevista passa por uma reenunciação para que sirva ao intuito do

segundo-narrador, que é constituir uma representação de uma figura pú-

blica. Ou seja, nesse processo de reenunciação, uma valoração é agre-

gada ao entrevistado. É por isso que Silva (2007, p. 91) afirma que toda

entrevista pingue-pongue é “um discurso representado”.

[...] ao enquadrar o discurso do entrevistado, o autor o faz ‘ume-decido’ de julgamentos de valor. A partir da análise dos dados, consideramos que jornalista, editor e leitor são os participantes diretos da situação de interação discursiva do gênero entrevista pingue-pongue, mas que esse gênero cria um ‘efeito’, ou melhor, deixa ‘transparecer’ um ‘vestígio’ dos participantes da interação da entrevista face a face, em que os interlocutores da situação

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de interação discursiva são constituídos pelo jornalista e pelo entrevistado. (SILVA, 2007, p. 91)

Curiosamente, esse tratamento que é dado ao conteúdo das entre-

vistas serve, em muitos casos, justamente ao propósito de gerar a apa-

rência de uma reprodução literal da conversa – ou seja, reenuncia-se para

dar a impressão que não houve reenunciação.

6 Considerações finais

Não é por acaso que a entrevista pingue-pongue está presente há

mais de um século e até hoje ocupa espaço significativo no jornalismo.

Também não é por acaso o interesse de pesquisadores pelo tema nos

últimos anos. O que restou demonstrado nessa investigação é que, mais

do que uma simples forma de apresentação de um conteúdo, esse é um

formato que se presta à construção de representações e sentidos que se-

rão compartilhados nas sociedades.

Observou-se que o emprego de artifícios narrativos, como ocorre com

regularidade no padrão praticado por diversos veículos de grande circulação,

consiste na realidade em uma estratégia. Como toda entrevista publicada é,

na verdade, uma reenunciação da entrevista face a face (nunca uma transcri-

ção literal), vale-se desses artifícios como forma de potencializar o produto

no que toca à sua intenção maior, qual seja, tornar palatável para o leitor a

imagem que se deseja compor de um determinado personagem. Procura-se

dizer, “nas entrelinhas”, o que a fala pura e simples não é capaz de dizer.

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