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Observatrio da Jurisdio Constitucional.
Ano 6, no. 2, jul./dez. 2013. ISSN 1982-4564.
OBSERVATRIO DA JURISDIO CONSTITUCIONAL. Braslia: IDP, Ano 6, no. 2, jul./dez. 2013. ISSN 1982-4564. 29
Instituto Brasiliense de Direito Pblico
Observatrio da JurisdioConstitucional
Acelerao da democracia brasileira?Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch
*
Resumo: O artigo analisa o estgio atual da
democracia brasileira com o escopo de
demonstrar que representa problema relevante
a ausncia de arenas de dissenso na sociedade
civil. So pressupostos do estudo as
percepes de que: (a) diferentemente do que
ocorre com outras patologias sociais, a
criao de canal de comunicao entre as
instituies e a sociedade civil depende de
efetivos experimentalismos democrticos que
no podem ser realizados a partir da
jurisdio constitucional ou por exclusivo
intermdio dela; e (b) no se tem revelado
eficaz no Brasil a poltica de laissez-faire
estatal em relao promoo social da
cidadania. Ao final, o artigo explicita o
conceito de democracia que essa proposta de
acelerao democrtica deve construir no
plano terico, especialmente em razo da
dificuldade de explicitao do contedo de
uma agenda de incremento da qualidade dos
governos representativos democrticos
modernos.
Palavras-chave: Acelerao democrtica.
Arenas de dissenso moral. Promoo social da
cidadania. Qualidade de governos
representativos.
Abstract: This Essay analyses the current
stage of democracy in Brazil, with the
purpose of demonstrating that the absence of
social arenas of dissent represents a relevant
pathology. It assumes that (a) unlike other
social problems, the absence of social arenas
cannot be solved by the Courts; and (b) the
Brazilian policy of laissez-faire regarding the
promotion of a citizenship agenda has not yet
proved its efficiency. This Essay also
proposes theoretical patterns for the
development of a concept of democracy that
justifies the proposition of improving the
quality of representative governments by the
development of social arenas of dissent.
Keywords: Democratic acceleration. Social
arenas of dissent. Citizenship agenda. Quality
of representative governments.
* Doutorando em Direito Constitucional pelo Departamento de Direito do Estado da USP. Mestre em Direito,
Estado e Constituio pela UnB. Professor do IDP, da EDB e Professor voluntrio da UnB na rea de Direito
Pblico.
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SUMRIO
1. Introduo;
2. Esferas pblicas polticas como arenas de dissenso moral;
3. O caso brasileiro;
4. Da solidariedade espontnea para a solidariedade forada: superao da poltica de laissez-
faire estatal quanto cidadania democrtica;
5. As metamorfoses da democracia: agenda de pensamento terico;
Referncias bibliogrficas.
1. Introduo
Em entrevista concedida Revista Veja em 3 de agosto de 1977, Fernando
Henrique Cardoso atestou, de maneira taxativa, que, substantivamente, nunca houve
democracia no Brasil (2010:25). Quase 30 anos depois, no posfcio da obra que escreveu a
respeito de sua experincia como Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso revelou
que, a despeito de toda a evoluo ocorrida nos anos anteriores, ainda mantinha viso
pessimista sobre o estgio de desenvolvimento da democracia no pas. Afirmou, nesse
sentido, que o que me decepciona ver o tempo que custou para o pas obter os resultados
que alcanamos, to longe ainda do necessrio (2012:673). Algum conceito de democracia
substantiva possivelmente tambm era o que Charles Tilly tinha em mente ao sustentar a
irrelevncia prtica e terica da previso da Constituio de 1996 do Cazaquisto que
qualificava como democrtico o regime poltico praticado naquele pas (2007:1-5). As vises
de Fernando Henrique Cardoso e Charles Tilly exemplificam o fato, reconhecido por Adam
Przeworski, de que os tericos sociais geralmente embutem no conceito de democracia o
contrrio de tudo aquilo repudiam nos regimes autoritrios (2010:xii). Isso faz com que seja
mais comum encontrar frmulas de conduo de processos de democratizao do que agendas
voltadas ao incremento da qualidade de democracias consolidadas. De fato, tornou-se simples
saber o que a democracia no representa e extremamente difcil compreender o contrrio.
Nas hipteses em que a discusso a respeito da qualidade de determinada democracia
em si travada academicamente, a anlise terica costuma se circunscrever aos planos: (a)
cidado, voltado verificao do grau de garantia prtica de conceitos substantivos de direitos
civis e sociais; e (b) institucional, direcionada a anlises que, ao mesmo tempo em que
equiparam democracia, governo representativo e sufrgio universal, objetivam desenvolver
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arranjos que permitam a maior participao popular nas decises polticas, ou, muitas vezes,
maior identidade entre representantes e representados.
No mbito da anlise jurdica, pressuposto do breve estudo que ser
desenvolvido adiante o reconhecimento da necessidade de mudana no ponto de partida das
teorias constitucionais dominantes na atualidade. Isso porque, conforme j diagnosticado por
Roberto Mangabeira Unger (2004a), a obsesso atual dos juristas com a pergunta como os
juzes devem julgar? representa o fracasso da doutrina constitucional em passar do momento
da preocupao com o gozo dos direitos para o passo do experimentalismo institucional, que
necessrio para que o direito no perca relevncia como instrumento de transformao social.
Nesse sentido, quando visualiza o jurista como seu agente primrio, a teoria constitucional
dominante na atualidade subordina indevidamente o direito aos resultados que os juzes
podem produzir. O preo desse equvoco a interrupo do avano democrtico, uma vez que
o direito acaba se tornando prioritrio sobre a poltica.
Por tal motivo, tornou-se premente no direito, segundo preconiza Unger (2004a), a
reorientao da anlise jurdica, para que o direito se transforme em poderoso instrumento de
experimentalismo institucional. O propsito da anlise jurdica reforjada deve ser solucionar,
de maneira ininterrupta, o conflito entre os compromissos programticos das sociedades e os
arranjos institucionais que constrangem a realizao plena desses objetivos.
A partir dessas premissas, o presente artigo se presta a duas finalidades.
A primeira apresentar breve perspectiva de viso do estgio atual da democracia
brasileira. Embora no exaustiva, a anlise ser voltada demonstrao de que (a) constitui
problema relevante da democracia brasileira atual a ausncia de arenas de dissenso na
sociedade civil; (b) diferentemente do que ocorre com outras patologias sociais, como a
privatizao dos interesses do Estado, a criao de autntico canal de comunicao entre as
instituies e a sociedade civil brasileira depende de efetivos experimentalismos democrticos
que no podem ser realizados a partir da jurisdio constitucional ou por exclusivo intermdio
dela; e (c) no se tem revelado eficaz no Brasil a poltica de laissez-faire estatal em relao
promoo social da cidadania.
A segunda finalidade do artigo explicitar o conceito de democracia que essa
proposta de acelerao democrtica deve construir no plano terico, especialmente em razo
da dificuldade, mencionada inicialmente, de explicitao do contedo de uma agenda de
incremento da qualidade dos governos representativos democrticos modernos.
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2. Esferas pblicas polticas como arenas de dissenso moral
A anlise do estgio atual da democracia brasileira realizada por Marcelo Neves, na
parte final da obra Entre Tmis e Leviat: uma relao difcil, representa o ponto de partida
do presente artigo. Aps qualificar as experincias de 1937-45 e 1965-84 como negaes
diretas e expressas do Estado de Direito no Brasil, o autor afirmou que os momentos
realmente democrticos do pas representariam caso[s] tpico[s] de modernidade
perifrica, nos quais a crescente complexidade e o desaparecimento do moralismo
tradicional no tm sido acompanhados de maneira satisfatria pela diferenciao funcional
e pelo surgimento de uma esfera pblica fundada institucionalmente na universalizao da
cidadania (2008:244).
O retrato de Neves foi primeiramente direcionado ao diagnstico da ausncia de
efetiva concretizao do Estado de Direito institucionalizado no Brasil. O problema principal
apontado pelo autor foi o insuficiente fechamento normativo do subsistema social do direito
decorrente da injuno de fatores sociais negativos diversos. O Brasil atual, nesse sentido, foi
qualificado como democracia moderna perifrica em comparao s democracias europeias.
O caminho proposto pelo autor para enfrentamento da questo dispensa experimentalismos
institucionais. Resume-se ao abandono de relaes de privatizao do Estado que
contrapem-se restritivamente concretizao constitucional dos direitos humanos e da
soberania do povo como procedimento (2008:247).
Por isso, o presente artigo dar preferncia ao segundo problema tambm
diagnosticado por Neves: a ausncia de esfera pblica poltica, fundada na universalizao da
cidadania, na sociedade civil brasileira. Ser defendido que a poltica de total ausncia estatal
em relao promoo de conscincia cvica nos indivduos no tem funcionado no Brasil
atual, ainda que resultados positivos pontuais tenham sido obtidos atravs da jurisdio
constitucional no que diz respeito maior realizao prtica dos objetivos programticos
assumidos por ocasio da Constituio Federal de 1988. Ser defendido que os resultados
dessa poltica estatal liberal tm sido o distanciamento irresponsvel entre representantes e
representados e o desaparecimento da poltica transformativa no pas.
Antes, porm, necessrio explicitar o que se entende por esfera pblica poltica. No
modelo terico habermasiano de democracia procedimental, a sociedade civil apresentada
como espcie de associao que institucionaliza os discursos capazes de solucionar
problemas, transformando-os em questes de interesse geral. O significado do termo, para
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Habermas, engloba todos os movimentos, organizaes e associaes, os quais captam os
ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os
transmitem, a seguir, para a esfera pblica poltica1. Nesse cenrio, segundo Habermas,
mesmo emitindo sinais e impulsos insuficientes para despertar processos de curto prazo de
aprendizagem democrtica nos Parlamentos e nas Cortes Constitucionais, a sociedade civil
pode efetivamente reorientar o poder oficial atravs das suas opinies polticas prprias
(2003b:99-106).
A proposta habermasiana de reconhecimento de uma sociedade civil que utiliza
linguagem comum situada abaixo do limiar de diferenciao dos cdigos especializados
(2003b:84) foi incorporada no modelo de Estado Democrtico de Direito proposto na obra
Entre Tmis e Leviat: uma relao difcil. Neves, nesse sentido, adotou criticamente a
teoria do discurso ao afirmar que, embora a contribuio habermasiana sobre o mundo da
vida e a ao comunicativa no seja imprestvel no que concerne considerao das esferas
de comunicao no estruturadas sistemicamente, afigura-se-me imprescindvel a sua
releitura luz da teoria dos sistemas. Para o autor, portanto, o mundo da vida, sobre o qual
se ancora a sociedade civil, representa a base para a construo sistmica e,
principalmente, o espao para a reproduo do dissenso intersubjetivo (2008:125-126).
A releitura da teoria do discurso proposta por Neves, alm de objetivar descarregar a
pretenso consensualista do mundo da vida imposta por Habermas, retira corretamente o
apoio da prtica cotidiana do mundo da vida em inexistentes certezas intuitivamente
compartilhadas. Com isso, o conceito habermasiano de esfera pblica poltica como ambiente
de reconstruo consensual do mundo da vida dentro de horizontes racionais d espao a uma
proposta mais modesta: campo complexo de tenso entre direito e poltica como sistemas
acoplados estruturalmente pela Constituio, de um lado, e mundo da vida e outros
subsistemas funcionalmente diferenciados da sociedade (2008:131).
A esfera pblica poltica surge, assim, como a arena do dissenso. A tarefa de
estruturao pluralista, aberta e universal da esfera pblica erigida por Neves ao patamar de
desafio fundamental do Estado Democrtico de Direito (2008:135).
1 O ncleo da sociedade civil, para Habermas, necessariamente formado por associaes e organizaes livres, no estatais e no econmicas, as quais, mesmo integrantes de uma esfera pblica dominada pelos meios de comunicao de massa e pelas grandes agncias, observada pelas instituies encarregadas das pesquisas de opinio e do mercado, e sobrecarregada com o trabalho de publicidade e propaganda dos partidos e organizaes polticas, ainda representam o substrato organizatrio do pblico de pessoas privadas, que buscam interpretaes pblicas para suas experincias einteresses sociais, exercendo influncia sobre a formao institucionalizada da opinio e da vontade (2003b:99-100).
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A partir do detalhamento da releitura das teorias do discurso e dos sistemas proposta
por Neves, fcil perceber que seu diagnstico a respeito da ausncia de arenas de dissenso
moral na sociedade civil brasileira traduz a concluso de que no h: (a) efetivos canais de
comunicao entre as opinies polticas prprias da sociedade brasileira e as decises tomadas
no mbito do Parlamento e dos Tribunais; (b) efetivas opinies polticas prprias da sociedade
civil brasileira; e (c) real abertura cognitiva dos procedimentos judicial, executivo e
legislativo em relao ao mundo da vida e aos anseios das associaes no estatais e no
econmicas que integram a sociedade civil.
3. O caso brasileiro
No que diz respeito democracia brasileira, Unger visualizou, em texto que escreveu
no momento em que se desenrolavam os eventos imediatamente antecedentes Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-88, momento especial de indefinio [que] poderia ser
encarado tanto como a voz da oportunidade transformativa, como um sinal da confuso
paralisante. Unger, assim, definiu o ltimo perodo fundacional brasileiro como exemplo
mgico de momento constitucional em que toda a nao podia distinguir claramente entre o
possvel e o impossvel na poltica (2004c:67-79).
Para o autor, o peculiar ambiente poltico prvio convocao da Assembleia
Nacional Constituinte, decorrente do encerramento de um longo perodo de uma mal
disfarada ditadura militar, formou o contexto necessrio para que, a partir de uma esfera
pblica poltica realmente aquecida, o Brasil se tornasse base de testes para todas as opes
disponveis de projetos polticos para a humanidade. Unger, assim, definiu a situao
brasileira durante o perodo constituinte como momento mgico de unio entre grupos
poltica, econmica e socialmente distintos em favor da criao de algo novo (2004c:67-79).
possvel perceber que Unger encontrou, no ltimo momento constituinte do Brasil, o
exemplo ideal da improvvel aliana entre a classe pobre estigmatizada, a classe mdia
trabalhadora e os detentores dos meios de produo, criada em decorrncia das experincias
vivenciadas coletivamente pela sociedade brasileira durante o perodo do governo militar.
Nesse momento mgico, segundo Unger, o principal objetivo poltico da sociedade civil
brasileira deveria ser a criao de mecanismos institucionais que garantissem um elevado
patamar de militncia cvica no Brasil (2004c:76).
OBSERVATRIO DA JURISDIO CONSTITUCIONAL. Braslia: IDP, Ano 6, no. 2, jul./dez. 2013. ISSN 1982-4564.
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Sem ingressar no mrito dessa viso poltica, a leitura que o presente artigo faz da
proposta de Unger a de que os arranjos acima mencionados funcionariam como
instrumentos garantidores de solidariedade forada em substituio solidariedade
espontnea2 que certamente cessaria assim que o momento fundacional brasileiro se
encerrasse. No necessrio admitir que a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 e os
seus antecedentes tenham representado especial momento de mobilizao democrtica
brasileira e de efetivo surgimento autnomo de esfera pblica poltica na sociedade civil para
reconhecer que, a despeito do inequvoco progresso moral gerado a partir da Constituio
Federal de 1988, a quantidade de poltica transformativa gerada no Brasil tem diminudo nos
anos recentes. Essa concluso, com efeito, independe da escolha pela verso daqueles que
defendem que o ltimo perodo constituinte brasileiro teria representado o meritrio resultado
do efeito totalmente desorganizador dos projetos das elites detentoras do poder decorrente de
amplo e indito processo de mobilizao popular (Barbosa, 2009)3 ou dos autores que
enxergam o referido momento fundacional como o fruto de mero acordo firmado entre lderes
parlamentares (Jobim, 2004)4.
2 necessrio explicar, para que seja possvel a compreenso mais precisa da mensagem que o artigo procura passar, que a oposio entre os conceitos de solidariedade forada e solidariedade espontnea diz respeito exclusivamente ao papel do Estado em relao ao desenvolvimento da conscincia cvica dos cidados. No primeiro caso, h uma poltica estatal literalmente indutiva, enquanto no segundo a postura pblica liberal. A diferena, portanto, a presena de uma agenda de cidadania (Ackerman, 2012) por parte do Estado.
3 O seguinte exemplo da macia participao popular no ltimo processo constituinte brasileiro dado por Leonardo
Barbosa: Os organizadores do relatrio Cidado constituinte: a saga das emendas populares consideraram a possibilidade de apresentao de emendas desse tipo como a primeira mudana no quadro poltico institucional brasileiro obtida pelo longo esforo que vinha sendo desenvolvido, desde o incio de 1985, pelos plenrios, comits e movimentos pr-participao popular na Constituinte(MICHILES, 1989, p. 54). A proposio de emendas consistia em mecanismo mais avanado que a participao em audincias ou oferecimento de sugestes e correspondia a um avano qualitativo da Constituinte em termos de abertura sociedade (1989, p. 55). Enquanto as sugestes encaminhadas s Comisses e Subcomisses temticas constituam apenas subsdios aos trabalhos dos constituintes, as emendas que contassem com pelo menos trinta mil assinaturas de eleitores e apoio de, no mnimo, trs entidades associativas legalmente constitudas integravam o processo de elaborao da nova Constituio, e s poderiam ser excludas dele
pela manifestao unnime da Comisso de Sistematizao. (...) No total foram apresentadas 122 emendas populares, reunindo mais de doze milhes de assinaturas. Considerando as regras regimentais para a apresentao das propostas das emendas (que permitiam ao cidado assinar no mximo trs propostas), a lgica da coleta das assinaturas (que mesclava campanhas solicitando a assinatura em trs propostas com outras que preferiam priorizar apenas uma iniciativa) e o universo do colgio eleitoral de 1987 (ento com praticamente setenta milhes de eleitores), estima-se que entre dez e doze por cento dos cidados brasileiros participaram diretamente do processo constituinte (MICHILES, 1989, p. 104-105). Igualmente impressionante o nmero de entidades envolvidas na coleta das assinaturas: quase trezentas entidades dos mais diferentes perfis foram mobilizadas. As entidades sindicais, profissionais e tcnico-
cientficas responderam por 42% desse total, com destaque tambm para as entidades civis (30%) e religiosas (9%) (2009: 201-202).
4 Segundo Nelson Jobim, em depoimento Comisso Especial destinada a proferir parecer sobre a Proposta de Emenda Constitucional n. 157/2003, na audincia pblica n. 100/2006, todas as Constituies brasileiras foram sempre processos de transio, ou seja, no tivemos rompimentos na histria brasileira. quando o regime anterior se esboroava, logo a seguir apresentava-se uma soluo situao anterior. Portanto, difcil, na histria poltica brasileira, utilizar-se de instrumento ou de linguagem importadas de outros pases, como, por exemplo, os conceitos de Constituinte originrio e Constituinte derivado.
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suficiente apenas constatar que, ainda que o referido momento eventualmente
tenha representado situao especial de solidariedade espontnea que uniu a populao
brasileira, o arrefecimento do engajamento cvico no demorou a ocorrer5. Para tanto, bastou
que cessassem as circunstncias poltico-econmicas que tornavam literalmente imperioso o
interesse cvico da populao brasileira.
A peculiaridade democrtica do Brasil recente que a diminuio da participao
social na poltica, decorrente do desaparecimento do ltimo momento constitucional
brasileiro, no gerou diminuio na quantidade de poltica constitucional realizada no pas. O
melhor exemplo disso o fato de que, no curto perodo de tempo que se passou desde a
promulgao da Constituio Federal de 1988, foram efetuadas setenta e uma emendas
constitucionais. A peculiaridade brasileira a irrelevncia democrtica do contedo da
significativa maioria dessas emendas, notadamente as mais recentes6.
Inicialmente, todavia, mais do que foroso reconhecer que a Constituio Federal
de 1988 teve o mrito de apresentar os fundamentos que permitiram ao Brasil obter a
confiana democrtica necessria para integrar-se definitivamente ordem global, atingindo
inquestionvel progresso econmico e social.
No possvel, ainda assim, atribuir exclusivamente ao prprio texto constitucional
brasileiro os mritos dessa conquista. Conforme reconhecido por Fernando Henrique Cardoso,
foi necessrio que os sucessivos governos eleitos a partir de 1989 experimentassem
institucionalmente alternativas que permitissem ao pas superar o principal defeito do texto
constitucional: o fato de seu vigor democrtico, capaz de desenhar um futuro social-
democrtico nas reas da previdncia, da sade, da reforma agrria e da educao no ter
sido acompanhado pelas condies institucionais propcias para gerar a riqueza necessria
ao custeio de to altos propsitos (2010:176)7. A Constituio Federal de 1988, nesse
5 Essa concluso independe de investigao mais detalhada a respeito de quem eram os detentores das rdeas reais de conduo do processo constituinte brasileiro. A esse respeito, ainda que seja relevante investigar (a) a dimenso da efetiva influncia social nos trabalhos dos parlamentares constituintes, e (b) o real peso dos trabalhos desempenhados pela Comisso Afonso Arinos no que diz respeito formatao do texto da Constituio de 1988, no h como no se reconhecer que a populao apoiou a convocao da Assembleia Nacional Constituinte e referendou tacitamente o resultado final dos seus trabalhos.
6 Merecem destaque, a esse respeito, as seguintes emendas constitucionais: (a) EC n. 61/2009, que alterou os parmetros de
idade para ingresso no Conselho Nacional de Justia; (b) EC n. 50/2006, que alterou o artigo 57 da Constituio Federal para modificar as datas das reunies do Congresso Nacional e modificou os critrios para convocao extraordinria; e (c) EC n. 69/2012, que transferiu da Unio para o Distrito Federal as atribuies para organizao e manuteno daDefensoria Pblica do Distrito Federal.
7 Segundo Fernando Henrique Cardoso, a Constituio Federal de 1988 manteve o vis, que se justificava nas dcadas anteriores, de um controle estatal forte da produo, de inibio ao capital externo e uma estrutura tributria que ou deixaria o Estado mngua ou as empresas e a populao morte (2010:176). Para o autor, extensa e detalhista ao extremo, a Constituio de 1988 era em larga medida ainda uma pea contraditria. Avanada no reconhecimento
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sentido, apenas esboou o plano do Estado Social, sem indicar, contudo, suas fontes de
financiamento.
De maneira apenas aparentemente paradoxal, o que propiciou o surgimento das
condies polticas necessrias para o desenvolvimento dos necessrios rearranjos
institucionais profundos no Brasil ps-constituinte foi o respeito ao rito constitucional que
marcou tanto o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello como sua substituio
pelo Vice-presidente Itamar Franco8. Foi exatamente a obedincia s previses constitucionais
no momento da mudana presidencial que revigorou a confiana social no processo
democrtico brasileiro e permitiu a criao de coalizao partidria ampla para a realizao de
reformas necessrias ao enfrentamento dos graves problemas econmicos que marcavam o
Brasil no incio da dcada de 19909.
Profundas alteraes institucionais foram conduzidas pelo Congresso Nacional,
consubstanciadas em emendas constitucionais voltadas alterao do servio pblico, da
previdncia social, dos monoplios estatais e da definio do conceito de empresa nacional.
Alm disso, no mbito empresarial, (a) foi criado, em fevereiro de 1995, novo regime legal
para a concesso e permisso da prestao de servios pblicos; e (b) foram inventadas as
agncias reguladoras. No campo fiscal, foi aprovada, em maio de 2000, a Lei de
dos direitos e garantias fundamentais do cidado, generosa na anteviso dos direitos sociais, nela tambm se entrincheiraram interesses especiais ligados s estruturas do Estado varguista, alm do patrimnio arraigado na cultura poltica brasileira (2010:148-149).
8 Outra consequncia favorvel criao de poltica transformativa decorrente do impeachment do Presidente Fernando Collor foi a seguinte: a passagem meterica [de Fernando Collor] sacudiu o mundo poltico e ampliou o espao na mdia para discusso sobre reformas. Ao levar o paroxismo a interveno presidencial na cena poltica e na vida econmica, possvel que ele tenha deixado na sociedade a demanda por uma liderana que, sem retroceder viso do passado, pudesse restabelecer a confiana numa agenda no traumtica de mudanas. Quando o agravamento da crise depois do impeachment bateu no limite da tolerncia da sociedade superinflao e baixou as resistncias mudana no Congresso, havia uma alternativa suficientemente amadurecida para se oferecer ao pas (2010:148-149).
9 A esse respeito, Fernando Henrique Cardoso apresenta verdadeiro testemunho pessoal das dificuldades enfrentadas poca em que assumiu o Ministrio da Fazenda no governo do Presidente Itamar Franco: Em maio de 1993, quando assumi o Ministrio da Fazenda, trs ministros haviam me antecedido em apenas sete meses e a inflao chegava aos 30% ao ms. Como se isso no bastasse, a tenso poltica estava de volta, agora com foco no Congresso, s voltas com um
escndalo de corrupo na distribuio de recursos oramentrios que levaria cassao de vrios deputados, incluindo alguns de grande projeo. Compreende-se, nessas condies, que o propsito de atacar de frente os trs grandes problemas do pas: a inflao, a inflao e a inflao, como enfatizei em meu discurso de posse como ministro, tenha sido recebido com ceticismo, apesar da boa vontade da mdia, dos empresrios, da maioria do Congresso e do pblico em geral. Com um presidente legalmente investido mas sem respaldo direto nas urnas (no Brasil, como nos Estados Unidos, o candidato a vice-presidente no votado) e o Congresso mergulhado numa penosa autodepurao, no se acreditava que houvesse condies polticas para dar essa batalha. Nem tempo para venc-la, j que haveria eleies gerais no fim de 1994 e a eleio presidencial seria antecipada para a mesma data por uma emenda
constitucional. Restava pouco mais de um ano antes de a campanha eleitoral reter os congressistas em suas bases, impossibilitando a aprovao de qualquer medida legislativa complexa, que exigisse a presena de maioria em plenrio. Contudo, mesmo no prazo apertado deixado pelo calendrio eleitoral, foi possvel reunir uma equipe tcnica competente no Ministrio da Fazenda requisito vital para um Ministro que no era economista formular uma estratgia inovadora de estabilizao, combinando medidas ortodoxas e heterodoxas, e conseguir apoio poltico para implement-la no que a experincia anterior do ministro como congressista mostrou-se valiosa. O xito do Plano Real e o ciclo de mudanas por ele inaugurado pareceram desmentir ou pelo menos relativizar os diagnsticos que enfatizavam os obstculos polticos para a estabilizao da economia e a realizao de reformas (2010:144-145).
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Responsabilidade Fiscal, com critrios cogentes para endividamento nos trs nveis de
governo. Nas esferas social, da sade e da educao, tambm por emendas constitucionais,
foram redesenhadas as formas de participao dos entes federativos no financiamento do
ensino fundamental e da sade, bem como inventado o Fundo de Combate Pobreza. No
prprio domnio da jurisdio constitucional, por intermdio das Leis n. 9.868/98 e 9.882/98,
foi reinventado por completo o mtodo de atuao do Supremo Tribunal Federal.
Nesse perodo, a Constituio Federal foi literalmente reinventada institucionalmente
atravs de trinta e cinco emendas e mais de quinhentas leis complementares, leis ordinrias e
medidas provisrias com contedo relevante (Cardoso, 2010:152-153). A peculiaridade desse
perodo democrtico do Brasil que o experimentalismo institucional profundo ocorreu
dentro das regras constitucionais procedimentais em vigor e mediante deliberaes
legislativas.
O resultado do experimentalismo institucional brasileiro realizado em conformidade
com as regras democrticas10, com segurana, foi a criao de condies slidas para que o
pas obtivesse o expressivo progresso econmico vivenciado na ltima dcada11.
Ainda assim, a despeito das notveis conquistas obtidas mais recentemente em
termos de incluso social, o ritmo das reformas institucionais diminuiu drasticamente a partir
do momento em que o Brasil alcanou estabilidade econmica. H duas maneiras de se
analisar esse fenmeno. A primeira sugere que, por tentativa e erro, o Brasil alcanou seu
ponto timo institucional atravs da reinveno constitucional desenhada na dcada de 1990,
de modo que, a partir de ento, bastaria ao pas se esforar para concretizar seus
compromissos programticos segundo os critrios e arranjos ento existentes. A poltica
extraordinria seria relegada, ento, a outro distante mgico momento especial de crise e a
poltica transformativa seria substituda pela poltica ordinria. A mensagem implcita a de
10 Deve ser mencionada, como exceo relevante regra de ausncia de alterao na disciplina de funcionamento do poder poltico no Brasil da poca, a Emenda Constitucional n. 16/1997, que permitiu a reeleio do Presidente da Repblica, dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal e dos Prefeitos.
11 O testemunho de Fernando Henrique Cardoso a respeito dessa questo bastante esclarecedor: Nem todas as reformas foram completadas em toda a extenso proposta. No serei eu o melhor juiz de seu acerto, nem posso garantir que tenham alcanado o ponto de no retorno. Parece-me inegvel, de todo modo, que elas avanaram o bastante para sustentar a estabilidade da economia nos ltimos dez anos. E, se no assentaram sobre alicerces inabalveis um novo modelo de desenvolvimento, pelo menos redefiniram os seus contornos. (...) Em nenhum outro pas da Amrica Latina,
que eu saiba, as reformas envolveram um esforo parecido de reconstruo de consenso no Legislativo. No Chile, as reformas de Pinochet dispensaram a chancela do Congresso. Na Argentina, a privatizao, a desregulamentao e o que houve de enxugamento da mquina estatal foram feitos em grande parte por delegao legislativa ao Executivo. Em retrospecto, talvez isso tenha sido vantajoso para o Brasil. O atalho argentino para as reformas, ao que parece, deu em instituies mais dbeis e no mais fortes. O tortuoso caminho brasileiro levou-nos a uma situao mais slida desse ponto de vista. Toda a pauta legislativa mencionada acima tramitou dentro de um quadro poltico-institucional bastante inalterado, com os mesmos atores e as mesmas regras do jogo, ou quase as mesmas, que se supunha colocar obstculos praticamente intransponveis para as reformas (2010:152-153).
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que seria perigoso alterar a dinmica dos arranjos desenvolvida anteriormente, seja pela
perfeio do desenho institucional vigente, ou pela inaptido dos agentes polticos atuais de
propor bons experimentos.
A segunda viso, adotada no presente artigo, recomenda que se substitua a poltica
ordinria pela poltica transformativa, com contnua e incessante preocupao com a
redefinio dos mecanismos institucionais brasileiros para que, independentemente do
aparecimento de crises, haja incremento na realizao prtica dos compromissos
programticos assumidos por ocasio da Constituio Federal de 1988.
O caminho apartidrio sugerido no a perpetuao ordinria do momento
constituinte, o que levaria a inaceitvel modelo niilista de busca pela impossvel
transcendncia ao contexto. A proposta mais apenas retomar o experimentalismo
institucional segundo as regras do jogo, prtica que marcou o pas aps o impeachment do
Presidente Fernando Collor de Mello. O objetivo, portanto, apenas a recuperao da agenda
poltica pelos agentes polticos, em substituio agenda poltica conduzida pelo jurista, o
que se tornou regra recentemente no Brasil.
A esse respeito, ainda que existam bons exemplos de avanos institucionais recentes
no Brasil obtidos por meio do Poder Executivo e Legislativo, como o caso das cotas raciais
sociais nas universidades pblicas12, bem como das leis da Ficha Limpa e de Acesso
Informao, inquestionvel que a qualidade da poltica praticada pelos agentes polticos caiu
de forma drstica nos anos mais recentes. Os mais relevantes exemplos de poltica
transformativa praticados nos ltimos anos no pas:
(a) ocorreram a partir da jurisdio constitucional, como a regulamentao da
unio homoafetiva (ADI n. 4277 e ADPF n. 132), a autorizao da realizao de
aborto de fetos anenceflicos (ADPF n. 54) e a permisso da realizao da chamada
marcha da maconha (ADPF n. 187); ou
(b) somente ganharam fora aps o referendo do Supremo Tribunal Federal, como
foi o caso das cotas das universidades com o surgimento da Lei Federal n.
12 A esse respeito, o presente artigo comunga integralmente da viso do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal, manifesta em voto proferido no julgamento da ADPF n. 186/DF e da ADI n. 3.330-1/DF, no sentido de que (a) a instituio de cotas raciais para ingresso dos interessados em cursar os cursos de graduao da Universidade de Braslia e (b) a instituio do Programa Universidade para Todos, atravs de Medida Provisria n. 213/2004, posteriormente convertida na Lei n. 11.096/05, representaram notveis exemplos de experimentalismo institucional. O captulo 07 do voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes no julgamento da ADI n. 3.330-1/DF, intitulado Uma palavra sobre experimentalismo institucional, bastante claro quanto a essa questo.
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12.711/2012 e do Programa de Incluso com Mrito no Ensino Superior Pblico
Paulista e das prprias Lei da Ficha Limpa e de Acesso Informao.
O melhor retrato recente da dormncia cvica que domina o Brasil atual e da pequena
relevncia atual do Poder Legislativo no cenrio poltico veio do caso da regulamentao do
Fundo de Participao dos Estados. Como sabido, em 24 de fevereiro de 2010, ao julgar as
ADIs n. 875/DF, 1.987/DF, 2.727/DF e 3.243/MT, o Supremo Tribunal Federal declarou a
inconstitucionalidade, sem a pronncia da nulidade, do artigo 2, incisos I e II, 1, 2 e 3,
bem como do Anexo nico, da Lei Complementar n. 62/1989, assegurando a aplicao dos
referidos textos at 31 de dezembro de 2012.
O argumento fundamental do julgamento foi o fato de que o Poder Legislativo no
havia cumprido adequadamente seu dever constitucional de legislar quando criou polticas de
diviso de receita que desrespeitavam a diretriz prevista no artigo 161 da Constituio Federal
de promoo de equilbrio socioeconmico entre os Estados da Federao. Segundo
entendimento do Supremo Tribunal Federal, a legislao que ento regulamentava o Fundo de
Participao dos Estados decorria exclusivamente de acordos polticos e no considerava
critrios objetivos e variveis, como populao e produto interno bruto dos municpios.
Durante o extenso prazo estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal para que a
norma inconstitucional vigorasse, no foi possvel alcanar, no mbito do Congresso
Nacional, consenso relacionado criao de nova forma de rateio do fundo constitucional13.
Encerrado o prazo de vigncia da norma declarada inconstitucional, o resultado foi um
constrangedor manifesto subscrito por membros do Senado, intitulado Uma nova
presidncia e um novo rumo para o Senado14. O documento destaca a percepo de parte
relevante dos integrantes do Senado de que nos ltimos anos o Parlamento tem sido um
poder menor na democracia brasileira.
Trs fatores principais so apontados para fundamentar esse diagnstico: (a) a
submisso do Parlamento s medidas provisrias, que estariam sendo utilizadas em assuntos
sem emergncia e aprovadas sem debate e em prazos vergonhosamente curtos; (b) a
judicializao da poltica, com a clara interveno da Justia, impondo legislaes e
contestando decises tomadas no Parlamento, muitas vezes respondendo a iniciativas dos
13 necessrio reconhecer que houve manifestaes por parte do Congresso Nacional no sentido de promover a realizao de discusses relacionadas criao de novo normativo que disciplinasse o assunto. A principal delas foi a tardia cr iao, pelo ento Presidente do Senado Federal Jos Sarney, de uma comisso destinada a estudar o assunto e a propor possveis solues para os principais problemas federativos atualmente existentes no Brasil.
14 Disponvel em http://www.cristovam.org.br/portal3/index.php?option=com_content&view=article&id=5211:manifesto-de-senadores-por-uma-nova-presidencia-e-um-novo-rumo-para-o-senado&catid=170:super-manchete&Itemid=100003.
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prprios parlamentares descontentes com o resultado das votaes; e (c) o comportamento
ineficiente dos prprios integrantes das Casas Legislativas.
Com relao dormncia poltica dos membros do Congresso Nacional, os seguintes
recentes exemplos foram apresentados no manifesto em questo: (a) a existncia de 3.060
vetos presidenciais sem anlise ao longo de quase duas dcadas15; (b) a ridcula tentativa de
organizar a votao de todos esses vetos em uma tarde, como forma de passar por cima de
deciso do Supremo Tribunal Federal; (c) o encerramento das atividades legislativas do ano
de 2012 sem a votao do oramento para o ano fiscal de 2013; (d) o fim melanclico da
CPMI [do Cachoeira], com um relatrio de duas laudas e nenhum indiciamento; (e) o
constrangimento de que a Administrao do Senado passou anos cometendo o equvoco de
no descontar Imposto de Renda de parte do salrio dos senadores e, ao ser surpreendida
pela Receita Federal, decidiu pagar com recursos pblicos, o que era dvida pessoal de cada
senador, embora provocada por erro da Administrao da Casa; (f) os plenrios vazios,
15 A questo da ausncia de deliberao do Congresso Nacional acerca de 3.060 vetos presidenciais foi utilizada como argumento pelo Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, para deferir questionvel medida liminar nos autos do mandado de segurana n. 31.816/DF. O contedo da ementa da referida deciso monocrtica foi o seguinte: DIREITO CONSTITUCIONAL. DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO. CONTROLE JUDICIAL. CABIMENTO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM EXCLUSIVA DO PARLAMENTAR EM EXERCCIO. MANDADO DE SEGURANA CONHECIDO. LIMITES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE DELIBERAO LEGISLATIVA ACERCA DO VETO PRESIDENCIAL. ART. 66, 4 E 6, DA CF/88. SOBRESTAMENTO DAS DEMAIS PROPOSIES AT A DELIBERAO DO VETO PENDENTE. POSSIBILIDADE. EXISTNCIA DE MAIS DE 3.000 VETOS AINDA NO APRECIADOS. INERTIA DELIBERANDI CONFIGURADORA DE OMISSO INCONSTITUCIONAL. NECESSIDADE DE OBSERVNCIA DA ORDEM CRONOLGICA DE COMUNICAO DOS VETOS PARA FINS DE DELIBERAO. OFENSA AO PODER DE AGENDA POLTICA DO LEGISLATIVO NO CONFIGURADA. REVISITAO DA JURISPRUDNCIA SOBRE QUESTES INTERNA CORPORIS. ESTADO DE DIREITO E PROTEO CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS. ALEGAO DE VIOLAO A NORMAS REGIMENTAIS. CONHECIMENTO. DELIBERAO ACERCA DE MATRIA NO CONSTANTE DA ORDEM DO DIA. OFENSA PREVISIBILIDADE E CONFIANA RECPROCA NO FUNCIONAMENTO PARLAMENTAR. AUSNCIA DE RELATRIO PRVIO DE COMISSO MISTA. OFENSA AOS ARTS. 104 E 105 DO REGIMENTO COMUM DO CONGRESSO NACIONAL. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA CONFIGURADOS. LIMINAR DEFERIDA. 1. O parlamentar no pleno exerccio do mandato eletivo ostenta legitimidade ativa ad causam para impetrar mandado de segurana com a finalidade de prevenir atos no processo de aprovao de leis e emendas constitucionais que no se compatibilizem com o processo legislativo constitucional. Precedentes do STF: MS n 20.257, rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, j. 08/10/1980, DJ de 27.02.1981; MS n 21.642, rel. Min. Celso de Mello, RDA 191/200; MS n 21.303, Min. Octavio Galloti; MS n 24.356, rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. 13/02/2003, DJ 12.09.2003; e MS n 24.642, rel. Min.Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. 18/02/2004, DJ 18.06.2004. 2. O veto aposto pelo Presidente da Repblica, na dinmica da sua rejeio pelo Poder Legislativo, se sujeita aos limites jurdicos delineados no art. 66, 4 e 6, da Constituio Federal; vale dizer, a deliberao legislativa acerca do agir presidencial deve ser imediata, competindo ao Poder Judicirio a sindicabilidade do comando constitucional acaso violado. 3. inconstitucional a deliberao aleatria dos vetos presidenciais pendentes de anlise legislativa, cuja simples existncia subtrai do Poder Legislativo a autonomia para definio da respectiva pauta poltica, ex vi do 66, 6, da CF/88. 4. que resta necessria a deliberao dos vetos presidenciais na sua ordem cronolgica de comunicao ao Congresso Nacional, o que importa na apreciao do veto parcial n 38/2012, aposto pela Presidente da Repblica ao Projeto de Lei n 2.565/2011, somente aps a anlise de todos aqueles cujo prazo constitucional de apreciao j tenha expirado. 5. So cognoscveis em sede mandamental as alegaes de ofensa disciplina das regras dos regimentos das Casas Legislativas, sendo certo que pela sua qualidade de normas jurdicas reclamam instrumentos jurisdicionais idneos a resguardar-lhes a efetividade. Rejeio da doutrina das questes interna corporis ante sua manifesta contrariedade ao Estado de Direito (art. 1, caput, CF/88) e proteo das minorias parlamentares. 6. A leitura do veto parcial n 38/2012, em regime de urgncia, na sesso legislativa de 12.12.2012, violou as disposies regimentais que impedem (a) a discusso de matria estranha ordem do dia e (b) a deliberao do veto sem prvio relatrio da comisso mista. 7. Fumus boni iuris e periculum in mora configurados. Medida liminar deferida.
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(...) discursos apenas para a televiso, a falta de debates de ideias e de propostas mesmo nas
Comisses, o voto com o corpo (...) sem o compromisso de pronunciamento ou com a
cobertura do voto secreto; (g) a existncia de simulacro de eleio para a presidncia do
Senado Federal no binio 2013-201416; e, por fim, (h) depois de trs anos de prazo dado pelo
Supremo, [a ausncia de definio] (...) do funcionamento do Fundo de Participao dos
Estados, jogando as finanas dos Estados em um abismo17.
Especificamente com relao ao caso do Fundo de Participao dos Estados, aps
manobra tcnica do Tribunal de Contas da Unio que permitiu que alguns pagamentos fossem
realizados no incio do ano de 2013 mngua de autorizao legal especfica18, o assunto foi
embaraosamente devolvido apreciao do Supremo Tribunal Federal, por intermdio da
ADO n. 23, proposta pelos Estados da Bahia, do Maranho, de Minas Gerais e de
Pernambuco19. Em deciso monocrtica proferida poucos dias depois, o Ministro Ricardo
Lewandowski, exercendo interinamente a presidncia do Supremo Tribunal Federal, deferiu
parcialmente o pedido formulado pelos autores, permitindo que o repasse das verbas do
16 O texto do manifesto bastante duro com relao a esse ponto: Tudo isso exige que a eleio de um novo presidente seja feita com debates entre ns senadores para, antes da eleio sabermos quais as propostas do novo presidente para recuperar a eficincia e a credibilidade do Senado, ajudando a recuperar a de todo o Parlamento. Mas no isso que se v. Ao contrrio, samos para o recesso, cada um em seu Estado, sem saber quais seriam os candidatos (diferentemente dos Deputados que h meses esto no processo eleitoral para escolha de seu prximo presidente). Voltaremos apenas para
ratificar o nome, nomeado sem apresentar qualquer proposta que mude o nosso funcionamento. Votaremos como os eleitores que iam s urnas na Primeira Repblica, levando a cdula sem conhecer o nome do candidato escrito nela pelos antigos Coronis de Interior. Diante disto, o mnimo que ns, como eleitores, podemos fazer apresentar sugestes para serem debatidas e, se aprovadas, postas em prtica no Senado, sob a coordenao do novo presidente. 17
O documento tambm apresenta crticas fortes com relao ausncia de definio, pelo Congresso Nacional, das regras de funcionamento do Fundo de Participao dos Estados dentro do prazo fixado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs n. 875/DF, 1.987/DF, 2.727/DF e 3.243/MT: Este fato se reveste da maior gravidade quando lembramos a essncia da existncia de um Senado em nossa Repblica, ou seja, mostramos falta de zelo com o federalismo cooperativo inscrito na Carta Magna e penalizamos as unidades federadas mais frgeis, contribuindo para a permanncia
de enormes desigualdades territoriais. 18
Deciso Normativa n. 123/2012, segundo a qual: Diante desse quadro de indefinio e considerando que o pargrafo nico do art. 616 da Constituio Federal atribui ao TCU a responsabilidade pelo clculo das quotas referentes aos fundos de participao, e mais, considerando, ainda, a exigncia contida no art. 92 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Cdigo Tributrio Nacional), no sentido de esta Corte de Contas encaminhar os coeficientes ao Banco do Brasil at o ltimo dia til de cada exerccio, determinei Secretaria de Macroavaliao Governamental a imediata realizao do clculo dos coeficientes de FPE. (...) Ao ordenar a instruo definitiva do feito, ponderei o fato de a Unio no poder reter os aludidos recursos, os quais pertencem constitucionalmente aos Estados e ao Distrito Federal e pautei-me, sobretudo, nos princpios
da segurana jurdica e da prudncia por entender que os dispositivos da LC 62/1989 questionados pelo STF ainda estaro em vigor at 31/12/2012. Dessa forma, at que sobrevenha nova disciplina legal, devem ser mantidos os coeficientes para o exerccio de 2013 com base no Anexo nico da LC 62/1989. 19
O pedido formulado pelos autores da ADO foi o seguinte: Desse modo, considerando-se que o artigo 12-F, 1, da Lei n. 9.868/99 confere a essa Suprema Corte competncia para determinar qualquer providncia que se revele necessria para assegurar a efetividade das decises cautelares que profira em sede de ao direta por omisso, afigura-se devida a fixao de novo prazo para a atuao dos rgos legislativos competentes, prorrogando-se, durante esse perodo, a vigncia das normas declaradas inconstitucionais no julgamento das referidas aes diretas.
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Fundo de Participao dos Estados continuasse sendo realizada conforme as regras da Lei
Complementar n. 62/1989, pelo prazo adicional de cento e cinquenta dias20.
Mesmo assim, foroso concluir que a total passividade do Congresso Nacional em
relao a esse tema sensvel, que interfere drasticamente no equilbrio federativo do pas,
representa claro exemplo de que existe pouco espao para a realizao de poltica
transformativa no Brasil atual, em contraste ao perodo de intensa atividade criativa que
marcou as Casas Legislativas nos anos seguintes ao impeachment do Presidente Fernando
Collor de Mello. O texto do manifesto mencionado anteriormente elenca diversos fatos que
podem sustentar essa concluso. O mais relevante deles, com segurana, a percepo de que
o importante desenvolvimento econmico recente do Brasil gerou certa acomodao social e a
percepo poltica de que a inovao institucional no mais necessria no pas. O fetichismo
institucional, portanto, dominou a percepo poltica na democracia brasileira atual.
Nesse cenrio, fundamental perceber a literal impossibilidade de que a jurisdio
constitucional sozinha coloque combustvel na agenda parlamentar de debates, seja por meio
de tcnicas de deciso que efetivamente gerem um dilogo institucional apto a permitir a
superao de entraves polticos, ou por intermdio da efetiva influncia dos posicionamentos
do Supremo Tribunal Federal na dormncia democrtica brasileira recente.
De fato, ultrapassados o momento fundacional de poltica extraordinria que marcou
a inaugurao de uma nova ordem constituinte e o perodo de graves crises econmicas que
manteve o interesse social pela poltica transformativa no incio da dcada de 199021, tornou-
se necessria a criao de instrumento distinto da jurisdio constitucional para o surgimento
de solidariedade forada no mbito da sociedade civil brasileira.
20 Em manifestao apresentada anteriormente apreciao do pedido liminar, o Congresso Nacional se defendeu no seguinte sentido: Contudo, no h omisso inconstitucional do Congresso Nacional como apontam os Requerentes, j que tm curso regular nas Casas Legislativas Projetos de Lei Complementar destinados a disciplinar a forma de distribuio dos recursos do FPE, no havendo, portanto, inrcia do Poder Legislativo, a justificar qualquer interveno do Poder Judicirio em suas atividades tpicas, em ateno ao princpio da separao dos poderes. A realidade ftica demonstrou que o prazo de manuteno da vigncia da norma (at 31/12/2012), fixado pelo STF, foi exguo para debate, aprovao, vigncia e eficcia de uma nova Lei Complementar que substitusse os critrios adotados desde 1989, ante as inmeras atividades desenvolvidas pelo Congresso Nacional nos ltimos dois anos, associada ao fato de que em 2010 ocorreram eleies federais, conforme expressamente mencionado no acrdo do STF.21
curioso notar, nesse cenrio de profundas alteraes institucionais que marcou o Brasil desde os eventos que antecederam a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, especialmente a campanha pelas diretas-j em 1984, at mais recentemente, o relevante peso atribudo por Fernando Henrique Cardoso ao papel da opinio pblica: O Brasil um pas com proporcionalmente poucos eleitores mas com uma quantidade de telespectadores e radiouvintes que cobre praticamente a totalidade da populao. A oferta de informao pelos dois veculos, rdio e televiso, razoavelmente pluralista e independente. A fora poltica das massas informadas pela mdia eletrnica se fez sentir pela primeira vez na campanha por eleies diretas-j em 1984, que marcou o ocaso do regime militar. Todos os acontecimentos polticos importantes desde ento trazem a sua marca, da eleio indireta de Tancredo Neves ao impeachment de Collor, do Plano Cruzado ao Real, passando pelas eleies peridicas. A presena desse ator difuso altera profundamente as formas de exerccio democrtico do poder. No basta ser votado, ainda que por dezenas de milhares, nem estar revestido de autoridade legal. A legitimao das decises requer o esforo incessante de explicar suas razes e convencer a opinio pblica (2010:160-161).
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4. Da solidariedade espontnea para a solidariedade forada: superao da poltica de
laissez-faire estatal quanto cidadania democrtica
No item anterior, foi visto que, segundo Unger, a Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-88 representou o encerramento do ltimo momento brasileiro de solidariedade
espontnea. Para o autor, o ambiente scio-poltico que circundou a convocao da
Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 gerou verdadeiro momento constitucional
mgico de unio entre grupos poltica, econmica e socialmente distintos no Brasil. De
maneira implcita, Unger identificou, nesse momento brasileiro, a improvvel solidariedade
espontnea, necessria para o aquecimento democrtico.
O problema da solidariedade espontnea que ela desaparece no exato momento em
que o ambiente de mobilizao popular que marca os momentos constitucionais perde sua
razo motivadora ou alcana, total ou parcialmente, o seu objetivo. A dificuldade, quando se
esvai a solidariedade espontnea, justamente imaginar mecanismos para que ocorra o
surgimento da solidariedade forada.
No caso brasileiro, como visto, o interesse da populao pela poltica apenas se
manteve aceso aps o encerramento da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 em
decorrncia (a) do significado democrtico que representou o impeachment do Presidente
Fernando Collor de Mello e (b) do profundo incmodo social causado pela crise econmica
que atingiu o Brasil ainda no incio da dcada de 199022. Nesse sentido, a arena do dissenso
formada na sociedade civil brasileira entendida como a opinio pblica com as suas
atenes realmente voltadas poltica somente se dissipou com a estabilizao econmica23.
O ltimo momento constitucional brasileiro, assim, prolongou-se para alm do perodo
22 A esse respeito, vale mencionar novamente o testemunho de Fernando Henrique Cardoso: Ao enfraquecimento momentneo das foras polticas tradicionais somava-se outro fator decisivo: a saturao da sociedade depois de anos de convivncia com os efeitos desagregadores da superinflao. Com preos subindo quase todo dia e acumulando aumentos mdios acima de 20% ao ms, praticamente no havia setores e camadas imunes. Todos eram de algum modo impactados: os assalariados, aposentados e pensionistas, pela corroso acelerada do poder de compra de seus rendimentos fixos; os trabalhadores por conta prpria e microempresrios sem acesso ao sistema bancrio, pela desvalorizao de seus escassos ativos em dinheiro; a alta classe mdia e os empresrios, pelas imensas dificuldades de planejar e investir no ambiente superinflacionrio, mesmo tendo acesso a aplicaes financeiras indexadas. Qualquer proposta crvel de ataque inflao tenderia a obter, nessas circunstncias, consenso amplo na sociedade, deixando em segundo plano outros interesses eventualmente divergentes e at conflitantes. Consenso que, uma vez repercutido pelos meios de comunicao de massa, terminaria por influenciar os que tomavam decises no governo e no Congresso. Nossos esforos para vender o Plano Real voltaram-se, por isso, tanto para dentro do governo e do Congresso quanto para fora do sistema poltico, para o convencimento da sociedade. A ambas tarefas me dediquei obsessivamente, primeiro como ministro, depois como candidato a presidente (2010:154). 23
Com bastante franqueza, Fernando Henrique Cardoso assume que foi exatamente a saturao social com a crise econmica que gerou o ambiente poltico necessrio para que reformas profundas institucionais fossem realizadas sob o pretexto de segurar o real (2010:155).
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constituinte. No possvel, ainda, analisar se essa situao foi modificada pelos recentes
protestos ocorridos ao longo do ms de junho de 2013.
Nesse sentido, a evoluo recente da teoria constitucional criada por Bruce
Ackerman bastante relevante para explicar tanto essa concluso como a proposta que ser
apresentada em seguida. Segundo o modelo dualista de democracia inicialmente desenvolvido
pelo autor24, existiriam dois momentos distintos para a tomada de decises polticas: (a) os
momentos constitucionais em que o povo decide e (b) os momentos ordinrios em que os
detentores do poder poltico decidem. Apenas os primeiros, extremamente raros, possuiriam o
condo de definir a identidade coletiva de cada nao. Alm disso, somente nos momentos
constitucionais que os detentores do poder adquiririam legitimidade para tomar decises
realmente constitucionais. As decises ordinrias tomadas diariamente pelos detentores do
poder no se enquadrariam na categoria de momentos constitucionais (1991:06).
Para Ackerman, as seguintes condies devem estar necessariamente presentes para
que determinado momento poltico possa ser qualificado de constitucional: (a) o lder poltico
(ou partido poltico) autor da proposta deve lograr convencer nmero extraordinrio de
cidados a levar a iniciativa com a seriedade que normalmente no conferida poltica
ordinria cotidiana; (b) os oponentes do lder poltico (ou partido poltico) devem receber
justa oportunidade para organizar suas prprias foras; (c) o lder poltico (ou partido poltico)
deve conseguir apoio da maioria dos integrantes da sociedade ao final de processo no qual o
contedo da proposta repetidamente discutido.
Na fase mais recente da sua obra, especialmente nos livros The Stakeholder Society
(1999, escrito conjuntamente com Anne Alstot)25, Voting With Dollars (2002, escrito
conjuntamente com Ian Ayres)26, Deliberation Day (2004, escrito conjuntamente com James
24 Referido modelo foi desenvolvido pelo autor com o objetivo de criar uma teoria constitucional realmente norte-americana alheia a importaes conceituais irrefletidas (1991:06). 25 A proposta inovadora contida nessa obra a atribuio de uma quota social de US$ 80,000.00 (oitenta mil dlares norte-
americanos) para todos os cidados do pas que atingissem a fase inicial da sua vida adulta. As quotas sociais seriam financiadas atravs da criao de um novo imposto e os beneficiados seriam livres para usar a quantia para o propsito que escolhessem. O objetivo conferir populao que ingressar no mercado de trabalho certo grau de independncia para tomar as suas decises pessoais e profissionais. A aposta de Ackerman e Alstot que haver significativa
diminuio no nmero de jovens literalmente fracassados na sociedade norte-americana (1999:04-05).26 Em linhas gerais, a proposta apresentada nesse livro almeja redefinir a lgica de funcionamento das campanhas eleitorais
atravs da atribuio de diferentes quotas polticas (patriot dolars) para todos os cidados com capacidade eleitoral, de modo a que cada um pudesse escolher em qual poltico ou partido poltico investir durantes as campanhas (2002:182-
221).
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Fishkin)27 e Decline and Fall of The American Republic (2010)28, Ackerman objetivou
interferir na agenda dualista do modelo de democracia que desenhou para os Estados Unidos.
Nesse sentido, buscou confeccionar experimentos destinados a tornar mais frequente a
ocorrncia de momentos de interesse social na poltica assemelhado ao que se verifica nos
momentos constitucionais. O caminho encontrado pelo autor foi reinventar mecanismos
cvicos com o objetivo de fazer com que o maior nmero de cidados possvel dedicasse
cidadania a quantidade de ateno que no emprega na poltica ordinria cotidiana.
A viso de Ackerman, assumida mais explicitamente em recente artigo intitulado
Reviving Democratic Citizenship? (2012), no sentido de que a significativa maioria das
instituies cvicas herdadas pela atual gerao norte-americana est morta ou em fase de
inanio, sendo que alm do ato formal do voto, o ato mais significante de cidadania [do
norte-americano] mostrar o seu passaporte nas fronteiras (2012:1). Assim, em avano
fase inicial mais descritiva da sua obra, o autor passou a produzir textos de cunho propositivo,
geralmente sobre temas de cincia poltica, voltados criao de uma espcie de agenda de
cidadania destinada criao de instituies sociais voltadas ao exerccio da democracia
na vida ordinria dos norte-americanos (2012:1).
Basicamente, o objetivo de Ackerman tem sido gerar no apenas o incremento da
conscincia cvica das populaes, mas, principalmente, o surgimento de ciclos de virtude
que teriam impacto direto em todas as instituies polticas (2002:75-96). Em ltima
instncia, sua agenda de cidadania almeja criar verdadeira esfera pblica poltica/arena do
dissenso na sociedade civil norte-americana. Por meio da elaborao imaginativa de distintos
canais institucionais de comunicao entre a sociedade civil e as instituies detentoras do
poder poltico, Ackerman tenciona claramente alcanar o objetivo mximo do
experimentalismo institucional: aumentar a quantidade de poltica transformativa produzida
cotidianamente.
Com a criao de solidariedade forada, as inovaes institucionais propostas por
Ackerman podero gerar incremento de poltica transformativa e a prpria revitalizao da
27 Esse livro apresenta proposta de criao de feriado nacional financiado pelo Estado que antecederia as eleies
presidenciais e teria como objetivo criar espaos destinados exclusivamente deliberao da sociedade civil acerca das plataformas de campanha dos candidatos (2004:75-96).
28 Nessa obra, Ackerman prope a criao de um voucher de notcias jornalsticas na internet. De acordo com a proposta, os usurios da internet seriam sempre convidados a indicar os textos jornalsticos que contriburam para o incremento da sua compreenso da vida poltica. Os votos dos usurios da internet seriam transmitidos a uma espcie de agenda reguladora que compensaria financeiramente as organizaes de imprensa responsveis pelos artigos mais votados. A ideia, segundo Ackerman, semelhante do dia da deliberao: criar microespaos de discusso poltica na sociedade civil (2010:133-134).
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cidadania democrtica (2012, p. 01). Isso porque, conforme corretamente percebeu o autor,
nos momentos de pouco engajamento social na poltica, imprescindvel o envolvimento
direto do Estado no financiamento da cidadania. O laissez-faire estatal com relao questo
tem sido o responsvel pelo baixo engajamento da sociedade civil aps o desaparecimento
dos raros momentos de solidariedade espontnea. O resultado dessa poltica liberal tem sido o
frequente surgimento de esferas pblicas polticas fantasmas nas democracias atuais (2004:
193-198).
difcil fugir percepo de que o referido raciocnio se amolda realidade atual da
democracia brasileira. Conquanto o voto obrigatrio represente importante poltica de
exerccio forado da cidadania no Brasil, inegvel que outros experimentalismos
institucionais, como a reinveno dos servios sociais forados, a rediscusso dos
mecanismos de financiamento de campanha e de funcionamento dos partidos polticos, assim
como o pensamento de novas formas de educao sentimental massificada, poderiam facilitar
sobremaneira a acelerao da democracia brasileira atual.
Nesse sentido, embora sejam direcionados democracia norte-americana, os
experimentos sugeridos por Ackerman nas obras anteriormente citadas poderiam ser
adaptados realidade brasileira. Algo assemelhado s quotas sociais, por exemplo, poderia
ser estudado no Brasil, assim como a utilizao de mecanismo inspirado no Deliberation Day
para as eleies municipais. A prpria alterao da lgica de financiamento de campanhas
atualmente empregada no Brasil questo que justifica estudo mais aprofundado. A proposta
de Ackerman de permitir populao interferir diretamente no mecanismo de diviso das
receitas pblicas de financiamento das campanhas eleitorais tambm bastante interessante
como mecanismo de criao de maior identidade ideolgica para os partidos polticos no
Brasil. Na mesma linha, as facilidades da comunicao por intermdio da internet poderiam
ser aproveitadas na criao de arenas cibernticas institucionalizadas, financiadas e
estimuladas pelo Estado, para debates de questes da poltica cotidiana pelos cidados. Seria
relevante, ainda, desenvolver tanto mecanismos que estimulassem financeiramente o
surgimento de mais projetos de leis de iniciativa popular, como agendas estatais srias de
promoo da cidadania durante os feriados nacionais.
5. As metamorfoses da democracia: agenda de pensamento terico
Encerrada a anlise especfica da situao atual da democracia brasileira,
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necessrio reconhecer que direcionar o pensamento terico sobre a democracia para o
aumento da participao popular nas decises polticas lugar comum sempre que se busca
falar em crises de representatividade. Justamente por isso, fundamental sofisticar a premissa
que justifica a defesa de experimentalismos institucionais voltados superao da poltica de
laissez-faire estatal com relao promoo da cidadania democrtica no Brasil.
Duas questes tericas so relevantes para esse desenvolvimento: (a) definir uma
agenda terica de trabalho com relao ao momento de metamorfose substantiva no conceito
de democracia que parece existir no Brasil hoje; e (b) localizar, dentro dessa agenda, espao
para enfrentamento do problema consistente no papel que deve ser atribudo ao eleitor entre
as eleies nos governos representativos.
Em sua obra The Principles of Representative Government, aps revelar com
preciso o significado e as consequncias do princpio da distino que marca todas as
espcies de eleio (2002:94), Bernard Manin assentou a premissa de que o fato fundamental
sobre as eleies que elas so simultnea e indissoluvelmente iguais e desiguais,
democrticas e aristocrticas, sendo que a dimenso aristocrtica merece ateno especial
atualmente porque costuma ser esquecida ou atribuda a fatores equivocados (2002:149-
150). A partir desse ponto de partida, Manin desenvolveu um modelo ideal de sistema
eleitoral, no qual o critrio de distino que representa carter aristocrtico das eleies seria
deixado livre escolha do eleitor. Desse modo, mesmo no sendo todos os cidados aptos na
prtica a serem selecionados como representantes, em razo da inafastabilidade do princpio
da distino, haveria equilbrio institucional no pleito eleitoral, de modo que qualquer
indivduo poderia parecer superior aos outros por algum critrio (2002:158). Nesse modelo,
a escolha pelo contedo do princpio de distino seria deixada aos eleitores, de modo a
neutralizar os desequilbrios democrticos inerentes dimenso aristocrtica que no pode ser
afastada das eleies. A proposta de Manin, dessa maneira, deixa ao eleitor a escolha do tipo
de aristocracia que ir represent-lo29.
Ao tratar das diversas metamorfoses que o governo representativo passou desde o
final do sculo XVIII, Manin deixa claro, inicialmente, que o que hoje se entende por
democracia representativa tem as suas origens em sistemas de instituies (estabelecidos no
despertar das revolues inglesa, americana e francesa) que, de maneira alguma, foram
29 Essa questo fica bastante clara na seguinte afirmao de Manin: Em sistemas eletivos a nica dvida possvel diz respeito ao tipo de superioridade que ir marcar os governantes. Quando for indagado sobre quem devem ser os aristocratas a governar, o defensor da democracia deve se virar para o povo e deixa-lo decidir (2002:160).
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inicialmente concebidos como formas de democracia ou de governo pelo povo (2002:1). O
autor retira essa concluso no apenas dos modelos institucionais ou consuetudinrios de
distino aristocrtica entre eleitos e eleitores existentes na Frana, na Inglaterra ou nos
Estados Unidos no final do sculo XVIII (2002:94-131), mas tambm dos prprios
ensinamentos de tericos clssicos do governo representativo, como Rosseau, Madison e
Siys. Nesse sentido, comprovou que o fundamento da representao, tal como foi
inicialmente concebida nesses pases, era justamente selecionar os mais ricos como
governantes. Segundo Manin, foram necessrias metamorfoses inesperadas para que o
governo representativo se aproximasse da democracia atual, tais como o surgimento do
sufrgio universal e de partidos polticos30 (2002:194).
Especificamente em relao aos partidos polticos, aps apontar autores que
viam esse desenvolvimento das democracias como evidncia de crise da representatividade
poltica, Manin defendeu exatamente o oposto, por entender que os partidos aproximaram os
representantes das suas comunidades, fazendo com que fosse possvel a indicao de
candidatos cuja posio social, estilo de vida e preocupaes fossem prximos aos daqueles
pertencentes s camadas mais pobres da sociedade (2002:195-196).
A metamorfose mais recente dos governos representativos foi caracterizada por
Manin com expresso democracia de audincia. Esse momento, identificado pelo autor
como fenmeno iniciado a partir da dcada de 1970, teria representado retrocesso
democrtico por transformar indivduos em instituies mais importantes do que os partidos
polticos. A partir de ento, as campanhas polticas e os prprios partidos polticos teriam
voltado suas atenes figura de um determinado lder. Para Manin, ainda que os partidos
desempenhem um papel central nesse cenrio, fornecendo instrumental financeiro e fsico,
eles se tornaram instrumentos a servio de um lder (2002:219).
Duas causas foram apontadas por Manin como determinantes para a ocorrncia dessa
ltima metamorfose: (a) o incremento da comunicao poltica por intermdio de canais de
rdio e televiso, o que conferiu maior destaque individualidade dos candidatos do que s
particularidades da sua plataforma poltica; e (b) o aumento da complexidade da atividade
poltica, que fez com que os representantes eleitos tivessem que lidar diariamente com uma
30 Especificamente com relao ao surgimento dos partidos polticos e da oposio como desenvolvimentos inesperados dos governos representativos, vale conferir a anlise de Richard Hofstadter, na obra The Ideia of a Party System: The Rise of Legitimate Opposition in the United States, 1780-1840. A sntese do pensamento de Hofstadter a de que, nos Estados Unidos, primeiro os partidos polticos precisaram ser criados; mais tarde, apenas, comearam a encontrar aceitao terica (1997:39).
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srie de decises a respeito de questes que no poderiam ser previstas com antecedncia,
tornando literalmente impossvel, para o eleitor, escolher um candidato a partir de critrios
seguros com relao ao mrito das preferncias deste (2002:220). Ambas as caractersticas,
segundo Manin, fizeram com que as peculiaridades individuais dos candidatos se
sobressassem s distines ideolgicas dos partidos polticos. Por consequncia, a confiana
pessoal inspirada por cada candidato e a sua habilidade para lidar com exposies pblicas
teriam se tornado o principal fator de desequilbrio eleitoral desde ento.
O problema dessa metamorfose, para Manin, que o que qualifica a democracia
atual como uma democracia de audincia, o fato de que, nesse cenrio, os eleitores
tendem a responder a estmulos que surgem no curso dos processos eleitorais, no lugar de
expressar as suas reais preferncias. Atualmente, o voto passou a ser reativo iniciativa dos
prprios candidatos, fazendo com que o eleitorado aparea, acima de tudo, como uma
audincia que responde aos termos daquilo que foi apresentado no palco poltico
(2002:223). Isso no significa, contudo, que os polticos tenham ganhado total liberdade para
inventar as bases da clivagem. Conforme reconhece Manin, os polticos podem tomar a
iniciativa da propositura de um princpio de diviso do eleitorado, (...) mas no tm
condies de saber, de antemo, qual ser o critrio de clivagem mais efetivo (2002:224).
O que poderia ser diagnosticado com uma nova crise da representatividade dentro da
democracia de audincia explicado por Manin como o surgimento de uma nova elite
aristocrtica nas eleies, no lugar da anterior. Assim, o princpio da distino permaneceria
presente nas democracias de audincia, embora estruturado segundo lgica distinta.
Alm disso, o rumo positivo dos governos representativos tambm teria sido alterado
com o surgimento das democracias de audincia. Segundo Manin, quando os ativistas
polticos e os burocratas tomaram o lugar dos notveis, a histria pareceu diminuir o espao
existente entre as elites governantes e os cidados ordinrios. Contudo, para Manin, no h
razo para se pensar que as elites polticas e miditicas atuais so mais prximas dos
eleitores do que os antigos burocratas partidrios. Assim, ao invs de representar apenas a
substituio de uma elite por outra, a democracia de audincia poderia significar, na viso do
autor, o agravamento da distncia entre os governados e os representantes (2002:233).
Portanto, ainda que o governo representativo tenha inquestionavelmente se democratizado
desde o seu surgimento, consoante Manin a diminuio da distncia entre governantes e
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governados e o aumento da influncia dos governados sobre os governantes se revelaram
fenmenos menos duradouros do que o esperado (2002:234).
Conquanto no seja possvel explicar o momento atual da democracia brasileira
apenas a partir da explicao da crise de representatividade diagnosticada por Manin,
relevante perceber, a partir dessas consideraes, que:
(a) no possvel recuperar a legitimidade democrtica original supostamente
perdida do governo representativo. Pelo contrrio, necessrio reconhecer que foram
justamente os desdobramentos tericos inesperados dos governos representativos que
os aproximaram daquilo que hoje entendemos por democracia, especialmente a partir
do momento em que surgiram os partidos polticos;
(b) justamente por isso, no recomendvel tratar o problema da aparente crise de
legitimidade da democracia brasileira a partir de bases niilistas, como aquelas que
pregam o ingnuo repdio abstrato aos partidos polticos. O carter aristocrtico das
eleies tende apenas a ser majorado quando a opo institucional direcionada a
arranjos que apenas fomentam princpios de distino pautados no poder econmico,
que o que historicamente ocorreu antes do surgimento dos partidos polticos; e
(c) o momento aparentemente transicional da democracia brasileira demanda
experimentalismos institucionais voltados, na medida do possvel, ao alcance da
lgica do modelo ideal preconizado por Manin, quando deixada ao eleitor a
liberdade de escolha do princpio da distino que ir definir a composio da
aristocracia representativa.
A partir dessas concluses, torna-se fcil perceber que a pergunta relacionada ao
papel do eleitor entre as eleies ganha relevncia. Pode ser que o aumento da dimenso ativa
do cidado na poltica represente caminho de diminuio do retrocesso representativo criado
no momento atual das democracias de audincia. A agenda de pensamento terico, nesse
sentido, pode iniciar-se pela premissa colocada por Ackerman no sentido de que a cidadania
democrtica deve ser revitalizada a partir de polticas estatais indutoras.
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